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3/9/2017 Inteligência e verdade http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/intver.htm 1/25 Apostilas do Seminário de Filosofia - 15 Inteligência e verdade Duas aulas do Seminário de Filosofia, Curitiba, agosto de 1994 Transcrição de Luciane Amato, não revista pelo autor. 1. Definição Inteligência, no sentido em que aqui emprego a palavra, no sentido que tem etimologicamente e no sentido em que se usava no tempo em que as palavras tinham sentido, não quer dizer a habilidade de resolver problemas, a habilidade matemática, a imaginação visual, a aptidão musical ou qualquer outro tipo de habilidade em especial. Quer dizer, da maneira mais geral e abrangente, a capacidade de apreender a verdade. A inteligência não consiste nem mesmo em pensar. Quando pensamos, mas o nosso pensamento não capta propriamente o que é verdade naquilo que pensa, então o que está em ação nesse pensar não é propriamente a inteligência, no rigor do termo, mas apenas o desejo frustrado de inteligir ou mesmo o puro automatismo de um pensar ininteligente. O pensar e o inteligir são atividades completamente distintas. A prova disto é que muitas vezes você pensa, pensa, e não intelige nada, e outras vezes intelige sem ter pensado, numa súbita fulguração intuitiva. A inteligência é um órgão — digamos assim: um órgão — que só serve para isto: captar a verdade. Às vezes ela entra em operação através do pensamento, às vezes através da imaginação ou do sentimento, e às vezes entra diretamente, num ato intelectivo — ou intuitivo — instantâneo, no qual você

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Apostilas do Seminário de Filosofia - 15

 

Inteligência e verdadeDuas aulas do Seminário de Filosofia, Curitiba, agosto de 1994

 

Transcrição de Luciane Amato, não revista pelo autor.

 

1. Definição

Inteligência, no sentido em que aqui emprego a palavra, nosentido que tem etimologicamente e no sentido em que seusava no tempo em que as palavras tinham sentido, não querdizer a habilidade de resolver problemas, a habilidadematemática, a imaginação visual, a aptidão musical ouqualquer outro tipo de habilidade em especial. Quer dizer, damaneira mais geral e abrangente, a capacidade de apreender averdade. A inteligência não consiste nem mesmo em pensar.Quando pensamos, mas o nosso pensamento não captapropriamente o que é verdade naquilo que pensa, então o queestá em ação nesse pensar não é propriamente a inteligência,no rigor do termo, mas apenas o desejo frustrado de inteligir oumesmo o puro automatismo de um pensar ininteligente. Opensar e o inteligir são atividades completamente distintas. Aprova disto é que muitas vezes você pensa, pensa, e não inteligenada, e outras vezes intelige sem ter pensado, numa súbitafulguração intuitiva.

A inteligência é um órgão — digamos assim: um órgão — que sóserve para isto: captar a verdade. Às vezes ela entra emoperação através do pensamento, às vezes através daimaginação ou do sentimento, e às vezes entra diretamente,num ato intelectivo — ou intuitivo — instantâneo, no qual você

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capta alguma coisa sem uma preparação e sem uma formarepresentativa em especial que sirva de canal à intelecção.Outras vezes há uma longa preparação através do pensamento,da imaginação e da memória, e no fim você não captacoisíssima nenhuma: cumpridos os atos representativos, aintelecção a que se dirigiam falha por completo; dados osmeios, a finalidade não se realiza. A inteligência está narealização da finalidade, e não na natureza dos meiosempregados. E se a finalidade dos meios de conhecimento éconhecer, e se o conhecimento só é conhecimento em sentidopleno se conhece a verdade, então a definição de inteligência é:a potência de conhecer a verdade por qualquer meio que seja.

O conceito da verdade, e as discussões todas que suscita,podem ficar para outra ocasião. Por enquanto, e tomandoprovisoriamente a palavra "verdade" em seu sentido vulgar decoincidência entre fato e idéia, bastam estas distinçõeselementares para nos levarem a perceber o quanto é errônea adireção tomada pela atual teoria das "inteligências múltiplas",que dissolve a noção mesma de inteligência numa coleção dehabilidades — que vão desde o raciocínio matemático até adestreza física e o traquejo social —, sem notar que todas estascapacidades e outras quantas similares são meios e que ainteligência não é um meio, mas o ato mesmo, o resultado a quetendem esses meios e para o qual nenhum deles é por si — nema soma deles todos é por si — condição suficiente. A teoria dasinteligências múltiplas surgiu como uma reação contra a teoriado QI, que por sua vez identificava a inteligência,exclusivamente, com a habilidade verbal, matemática eimaginativo-espacial. Mas é um caso típico de substituição deuma falsidade por outra. Sejam poucas ou muitas ashabilidades com que se identifica a inteligência, o erro é omesmo: confundir a inteligência com os instrumentos de que seserve.

Essa confusão acontece porque a maior parte das pessoas seconhece muito mal, mesmo nas coisas práticas e nos aspectosmais óbvios da vida. Quanto maior não seria sua dificuldade decaptar a diferença sutil entre os atos representativos e ainteligência! Vendo sempre a inteligência atuar através dopensamento, da memória, da imaginação, do sentimento,confundem portanto o canal com aquilo que por ele passa, oveículo com o passageiro, e tomam por "inteligência" os merosatos mentais.

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Esse equívoco acabou por ser oficializado e legitimado pelaeducação. De modo geral, todas as formas de ensino visam aincrementar as habilidades em que a inteligência se apóia,como a memória, a imaginação, o raciocínio etc., e não dão amenor importância a inteligência enquanto tal. O fato é que aentrada em cena dessas outras faculdades não acarretanecessariamente a da inteligência. Podemos desenvolverbastante o raciocínio verbal, ou a imaginação visual, ou amemória, ou a aptidão artística, sem que haja efetivamenteuma inteligência dirigindo os seus passos — a prova é quevárias dessas aptidões são mais desenvolvidas em certosretardados mentais do que no comum das pessoas. Aliás, se éatravés do raciocínio que às vezes inteligimos, também éatravés dele que nos enganamos. Do mesmo modo, às vezes aimaginação nos leva à compreensão real de alguma coisa, masàs vezes nos leva para longe da verdade. O desenvolvimentodestas faculdades, imaginação, memória, raciocínio etc., nãoimplica portanto necessariamente o da inteligência; também éverdade o vice-versa: que a inteligência é independente dessesoutros processos, que lhe servem de canais, instrumentos eocasiões e nada mais. Mas o vice-versa não deve ser tomado emsentido rigoroso, pois uma inteligência resolutamente decididaa descobrir a verdade sobre alguma coisa acaba em geralencontrando os canais mentais pelos quais chegar ao seuobjetivo, ou seja, ela desenvolve as "faculdades" de quenecessita. Sem excluir portanto que haja casos de inteligênciasmesmo superiores mas carentes de meios ou canais específicosde atuação, digo que são exceções e raridades que antesconfirmam a regra: o desenvolvimento dos meios não implica oda inteligência, o da inteligência leva quase quenecessariamente à conquista dos meios.

Se definimos a inteligência como a capacidade humana decaptar o que é verdade, também entendemos que o essencial doser humano, aquilo que o diferencia dos animais, não é opensamento, não é a razão, nem uma imaginação ou memóriaexcepcionalmente desenvolvidas, embora tudo isto hajaefetivamente no ser humano. Pois pensar, um macaco tambémpensa: ele completa um silogismo e até encadeia silogismosnum raciocínio relativamente perfeito. Imaginação, até um gatopossui: os gatos sonham. Por este caminho não encontraremosa diferença específica humana, aquilo que nos torna homensem vez de bichos. E, se é importante arraigar o homem no reino

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animal, para não fazer dele um ser angélico sem pés no solo,também é importante saber distingui-lo de uma tartaruga ou deum molusco por alguma diferença que não seja meramentequantitativa e acidental.

O que nos torna humanos é o fato de que tudo aquilo queimaginamos, raciocinamos, recordamos, somos capazes de vê-lo como um conjunto e, com relação a este conjunto, podemosdizer um sim ou um não, podemos dizer: "É verdadeiro", ou: "Éfalso". Somos capazes de julgar a veracidade ou falsidade detudo aquilo que a nossa própria mente vai conhecendo ouproduzindo, e isto não há animal que possa fazer.

Mas, dirá o velho Pilatos em nós, quid est Veritas? Cada um denós é um juiz romano, corrompido até a medula, a fazer deconta que não sabe aquilo que sabe perfeitamente bem. Averdade da qual alegas nada saber, infausto Pôncio, a verdade éo quid — esse mesmo quid que, se desconhecesses, nãopoderias usar como medida de aferição para o termo "verdade".Se pergunto quê é alguma coisa, se ignoro mesmo o que éalguma coisa, é porque a coisa que se me oferece nesse instantenão cumpre, não atende perfeitamente a condição exigida napalavra quê — aquela consistência, aquela coesão do estar, doagir e do padecer, aquela patência e sobretudo aquelafatalidade, aquele não-ser-de-outro-modo, aquela impositivaausência de perguntas — e da capacidade de fazer perguntas —que me sobrevém quando sei o quê. Ecce veritas. É o que bastapor enquanto, sem prejuízo de posteriores discussões eaprofundamentos.

 

2. Não existe inteligência artificial

 

Hoje em dia, quando se fala de "inteligência artificial", maiscerto seria dizer pensamento artificial, ou talvez imaginaçãoartificial, porque uma determinada sequência de pensamentos,um conjunto de operações da mente, pode ser imitado de váriasmaneiras. Um conjunto é imitado, por exemplo, na escrita. Aescrita é uma imitação gráfica de sons, que por sua vez imitamidéias, que por sua vez imitam formas, funções e relações decoisas. A escrita foi a primeira forma de pensamento artificial.Toda e qualquer forma de registro que o homem use já é um

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tipo de pensamento artificial, uma vez que implica um códigode conversões e permutações, e neste sentido um programa decomputador não é muito diferente, por exemplo, de uma regrade jogo: como no jogo de xadrez, onde se concebe umasequência de operações com muitas alternativas, cristalizadasnum determinado esquema que pode ser imitado, repetido ouvariado segundo um algoritmo básico. Existem muitas formasde pensamento artificial, ou de imaginação artificial. Porém ainteligência, propriamente dita, não tem como ser artificial. Opensamento artificial é essencialmente uma imitação de atos depensamento segundo a fórmula das suas sequências ecombinações. Do mesmo modo podemos imitar a imaginação ea memória, se em vez de utilizar uma correspondênciabiunívoca entre signo e significado recorrermos a uma rede decorrespondências analógicas. Dá na mesma: em ambos oscasos, trata-se de imitar um algoritmo, a fórmula de umasequência ou rede de combinações, que por sua vez imitam asoperações reais da mente. Acontece que a inteligência não éuma "operação da mente"; ela é o nome que damos a umadeterminada qualidade do resultado dessas operações, poucoimportando qual a faculdade que as realizou ou qual o códigoempregado. É legítimo dizer que um indivíduo inteligiu algumacoisa somente quando ele captou a verdade dessa coisa, sejapelo raciocínio, seja pela imaginação ou seja lá pelo caminhoque for. Até mesmo o sentimento intelige, quando ama o que éverdadeiramente amável e odeia o que é verdadeiramenteodioso: há uma inteligência do sentimento, como há umaburrice do sentimento. A inteligência não reside na mente, masnum certo tipo de relação entre o ato mental e o seu objeto,relação que denominamos "veracidade" do conteúdo desse atomental ( notem bem: veracidade do conteúdo, e não do atomesmo ).

Aqui alguém poderia objetar que, quando um ato depensamento artificial chega a um resultado verdadeiro, porexemplo quando um computador nos assegura que 2 + 2 = 4,este é um ato de inteligência, uma vez que nos dá uma verdade.A diferença, aqui, é a seguinte: o computador não intelige que 2+ 2 = 4, mas apenas realiza as operações que dão por resultado4, segundo um programa ou algoritmo pré-estabelecido. Se elefor programado segundo a regra de que 2 + 2 = 5, ele nãosomente dará sempre este resultado, mas ainda o generalizarápara todos os casos similares, segundo a regra 2a + 2a = 5a. A

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inteligência não consiste somente em atinar com um resultadoverdadeiro, mas em admitir esse resultado como verdadeiro.Que significa "admitir"? Significa, primeiro, estar livre parapreferir um resultado falso ( um computador pode serprogramado para preferir os resultados falsos num certonúmero de ocasiões, mas sempre segundo um padrão pré-estabelecido ). Significa, em segundo lugar, crer nesseresultado, isto é, assumir uma responsabilidade pessoal pelaafirmação dele e pelas consequências que dele derivem. Ainteligência, neste sentido, só é admissível em seres livres eresponsáveis, e o primeiro ser livre e responsável queconhecemos na escala dos viventes é o homem: nenhum serabaixo dele possui inteligência, e se há seres superiores aohomem é um problema que não nos interessa no momento ecuja solução não interferiria no que estamos examinando aqui.A inteligência é a relação que se estabelece entre o homem e averdade, uma relação que só o homem tem com a verdade, eque só tem no momento em que intelige e admite a verdade, jáque ele pode tornar­se ininteligente no instante seguinte,quando a esquece ou renega.

Neste sentido, o resultado da conta de 2 + 2 que aparece na telado computador é uma verdade, mas uma verdade que está noobjeto e não ainda na inteligência; essa verdade está na telacomo a verdadeira estrutura mineralógica de uma pedra está napedra ou como a verdadeira fisiologia do animal está noanimal: são verdades latentes, que jazem na obscuridade domundo objetivo aguardando o instante em que se atualizarãona inteligência humana. Do mesmo modo, podemos pensaruma idéia verdadeira sem nos darmos conta de que éverdadeira; neste caso, a verdade está no pensamento como averdade da pedra está na pedra: o ato de inteligência só secumpre no instante em que percebemos e admitimos essaverdade como verdade. A inteligência é, neste sentido, mais"interior" a nós do que o pensamento. O pensamento, para nós,pode ser objeto. A inteligência, não. O ato de reflexão pelo qualretornamos a um pensamento para examiná-lo ou julgá-lo é umoutro pensamento, de conteúdo diferente do primeiro. Mas arecordação de um ato de inteligência é o mesmíssimo ato deinteligência, reforçado e revivificado, numa nova afirmação desi mesmo. Não posso recordar o conteúdo de um ato deintelecção sem inteligir novamente os mesmos conteúdos,quase sempre com redobrada força de evidência.

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Se definirmos o pensamento artificial como a imitação, porsinais eletrônicos, de certos atos de pensamento, entenderemosque o pensamento artificial é pensamento, que a imitação depensamento é pensamento, pois pensar, afinal, é apenas usarsinais ou signos para representar certos dados internos ouexternos. Mas a imitação de inteligência não é inteligência, devez que só há inteligência no ato real pelo qual um entehumano real apreende realmente uma verdade no instante emque a apreende; na imitação teríamos somente um sujeitohipotético apreendendo hipoteticamente uma hipotéticaverdade, cuja veracidade ele não pode afirmar senãohipoteticamente. Tudo isto seria apenas pensamento, nãointeligência.

A inteligência somente se exerce perante uma situação real,concreta: o inteligir é concentrar o foco da atenção numaevidência presente. Não se confunde com o meramente pensaruma verdade, pois consiste em captar a verdade dessepensamento; nem se confunde com o perceber uma cor, umaforma, pois consiste em apreender a veracidade dessa cor oudessa forma; nem com o recordar ou imaginar uma figura, poisconsiste em assumir a veracidade dessa recordação ouimaginação. Por isto não é possível imitar um ato deinteligência, pois sua imitação não poderia ser outra coisasenão a cópia do pensamento, ou da recordação, ou da imagemque lhe serviu de canal; mas, se esta cópia fosse acompanhadada captação de sua veracidade, não seria uma cópia, e sim o atomesmo, revivido em modo pleno; e, se desacompanhado dessacaptação, seria cópia do pensamento ou da imaginação apenas,e não do ato de inteligência. E esse pensamento ou essaimaginação, se verdadeiros em seu conteúdo, teriam apenas averdade de um objeto, a verdade latente de uma pedra ou deum cálculo exibido na tela do computador, aguardando seriluminada pelo ato de inteligência que a transformaria emverdade atual, efetiva, conhecida.

Um computador só pode julgar veracidade ou falsidade dentrode certos parâmetros que já estejam no programa dele, ou seja,falsidade ou veracidade relativas a um código dado deantemão, código esse que pode ser inteiramente convencional.Isto é, ele não julga a veracidade, mas apenas a logicidade dasconclusões, sem poder por si mesmo estabelecer premissas ouprincípios. Ora, a logicidade, a rigor, nada tem a ver com averacidade, pois é apenas uma relação entre proposições, e não

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a relação entre uma proposição e a experiência real. Quandodigo experiência real, não me refiro apenas à experiênciacotidiana dos cinco sentidos, mas ao campo total da experiênciahumana, onde a experiência científica feita através deaparelhos e submetida a medições rigorosas se encaixa apenascomo uma modalidade entre uma infinidade de outras. Ainteligência, quando julga veracidade ou falsidade, pode fazê-loem termos absolutos e incondicionais, independentemente dosparâmetros usados e da referência a um ou outro campodeterminado da experiência; e é justamente este conhecimentoincondicional da verdade incondicional que pode fundar emseguida os parâmetros da condicionalidade ou relatividade,assim como legitimar filosoficamente as divisões de campos deexperiência, como por exemplo na delimitação das esferas dasvárias ciências.

 

3. Evidência e certeza

O termo "intuição" designa em filosofia um conhecimentodireto, uma intelecção maximamente evidente ( o que nãosignifica que deva ser confundida com o sentimento subjetivode certeza ). Exemplo de um ato de inteligência intuitiva: o fatode você estar aqui neste momento é uma certeza absoluta eincondicional, o que não quer dizer que você não possa duvidardela, que você não possa até mesmo, por um jogo engenhoso deimaginação, ter o sentimento da certeza de estar em outrolugar; significa apenas que você só duvidará dela e só acreditaráestar em outro lugar se você sentir o seu campo de experiênciacomo dividido em blocos estanques, se você perder o senso daunidade do campo da experiência, o que só acontece nafantasia, no estado hipnótico ou na esquizofrenia. Quando suainteligência admite que você está aqui, você está admitindocomo verdadeira uma determinada interpretação que você fazdo conjunto das informações que você tem neste momento,mas não só a respeito deste momento e sim a respeito doencaixe entre ele e os momentos que o antecederam e os que seseguirão. Você sabe que está aqui não só por causa dasinformações sensíveis que recebe a respeito do ambiente,informações auditivas, tácteis, etc., mas também porque vocêsabe que estas informações são coerentes com um passado( você se lembra de ter vindo até aqui ), são coerentes com umprojeto de futuro, ou seja, com uma idéia que você tem a

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respeito do propósito com que veio aqui; e tudo isto forma umsistema tão coeso, tão inseparável, que a respeito desteconjunto você pronuncia o julgamento de que isto é verdade:Você sabe que você está aqui. No entanto, não seria impensávelque, estando aqui, você imaginasse estar em outro lugar, e queaté mesmo se persuadisse e, um tanto auto-hipnoticamente,"sentisse" que está num outro lugar. Tudo isto pode serproduzido; porém, se o senso da unidade do campo da suaexperiência ainda funciona, algo lhe dirá: isto é falso. Por que?Porque as informações que dizem que você está aqui vêm todasjuntas; ao passo que as que você está produzindo para dizer queestá em outro lugar vêm por partes. Examine. O quê imaginouvocê a respeito do outro lugar onde supõe estar? o som? ovisual? Um ou outro? Certamente não foram os doisexatamente no mesmo tempo e em proporção coerente. Omotivo, o antecedente temporal da sua presença ali, eram-lhetão claros quanto as sensações visuais ou auditivas? Não: masas informações que você recebe aqui sobre sua presença vêmtodas coladas umas às outras. Você não pega primeiro o visual,depois o auditivo, depois o táctil, ou seja, você não compõe esteambiente, ele lhe vem todo junto; e, embora você, porabstração, possa momentaneamente prestar atenção mais a umaspecto que a outro, você sabe e se recorda de que os aspectospreteridos estão aí presentes e podem ser atualizados napercepção a qualquer momento, sem um trabalho interior deconstrução voluntária ( que você lhe seria obrigatório de modoa completar a imagem do outro lugar suposto, ondesupostamente estaria ou se sentisse estar enquanto está de fatoaqui ).

Esta certeza que você tem de estar aqui é o que se chamaevidência. Uma evidência é um conhecimento inegável, e até decerto modo indestrutível, porque, se você dissesse que não estáaqui, a quem você o diria? A quem está lá, ou a quem está aqui?O ato mesmo de você dizer que não está aqui subentende queestá.

Existe, em certos pensamentos que temos, esse caráter deveracidade, mas não sabemos definir bem em quê ele consiste;sabemos apenas que conferimos esta veracidade a algunspensamentos e que a negamos a outros. Por exemplo, aquinegamos veracidade ao pensamento de que não estamos aqui.É a esta faculdade — a que diz "sim" ou "não" aos pensamentos,

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imaginações e sentimentos, que os julga como totalidade e diz"é verdadeiro" ou é "é falso" — que chamamos de inteligência.

 

4. Inteligência e vontade

A inteligência, em suma, é o senso da verdade, e umainteligência apta, hábil ou forte é uma inteligência que estáacostumada a discernir a verdade e a falsidade em todas ascircunstâncias da vida, a aceitar a verdade e permanecer nela.

Com isto quero dizer que a inteligência não se esgota no meroaspecto cognitivo: se a potência de conhecer a verdade constituia semente da inteligência, esta semente só floresce poriniciativa da vontade, e também pela vontade ela enfraquece emorre. Vontade significa o exercício da liberdade. Quando vocêcapta que algo é verdadeiro, significa que você aceitou queaquilo é verdadeiro, e quando você capta que é falso, significaque você o rejeitou. Ora, quem aceita ou rejeita não é umafaculdade em particular, mas é você inteiro, num ato devontade livre. Isto significa que a inteligência éindissoluvelmente a síntese de uma aptidão cognitiva e deuma vontade de conhecer. Se houvesse um ensinamentovoltado ao desenvolvimento da inteligência, ele teria de, antesde mais nada, acostumar o aluno a desejar a verdade em todasas circunstâncias e não fugir dela. Portanto o exercício dainteligência possui necessariamente um lado ético, moral.Platão dizia: "Verdade conhecida é verdade obedecida."

Se a inteligência fosse uma faculdade puramente cognitiva,nada impediria que ela fosse exercida igualmente bem pelosbons e pelos maus, pelos sinceros e pelos fingidos, peloshonestos e pelos safados. Na realidade as coisas não se passamassim, e a desonestidade interior produz necessariamente oenfraquecimento da inteligência, que acaba sendo substituídapor uma espécie de astúcia, de maldade engenhosa. A astúcianão consiste em captar a verdade, mas em captar — sem dúvidacom veracidade — qual a mentira mais eficiente em cadaocasião. O astucioso é eficaz, mas está condenado a falhar antesituações das quais não possa se safar mediante algumsubterfúgio, que exijam um confronto com a verdade. Aconexão entre a inteligência e a bondade é reconhecida portodos os grandes filósofos do passado, do mesmo modo que acorrespondente ligação, do lado do objeto, entre a verdade e o

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bem. Um mundo que nega essa conexão, que faz da inteligênciauma faculdade "neutra", capaz de funcionar tão bem nos bonsquanto nos maus como a respiração ou a digestão, é um mundofrancamente mau, que se orgulha da sua maldade como de umaconquista da ciência, pela qual ele se eleva acima dascivilizações do passado. Mauriac notava, "nos seres decaídos,essa destreza para embelezar sua decadência. É a derradeiraenfermidade a que o homem pode chegar: quando sua sujeira odeslumbra como um diamante".

A conexão a que me refiro surge com peculiar clareza quandoexaminamos os seguintes fatos. Com frequência nossas açõesnão são acompanhadas de palavras que as expliquem, nemmesmo interiormente; ou seja, somos capazes de agir dedeterminadas maneiras, explicando esses atos de maneirasexatamente inversas, precisamente porque as motivaçõesverdadeiras, permanecendo inexpressas e mudas, se furtam aojulgamento consciente. Isso faz com que, pelo menossubconscientemente, alimentemos um discurso duplo. A partirdo momento em que você admite que uma coisa é verdadeira,mas procede, mesmo em segredo, mesmo interiormente, comose ela não o fosse, está mantendo um discurso duplo: numplano afirma uma coisa, e noutro afirma outra coisa. A verdadetem poucas oportunidades de surgir para nós com toda aclareza, e a mente humana funciona de uma forma que, quandovocê nega uma determinada informação, o subconscientesuprime todas as informações análogas, de modo que, quandovocê diz para si mesmo uma determinada mentira que lhe éconveniente, por motivos práticos ou psicológicos, ou para sepreservar de sentimentos desagradáveis, no mesmo instante emque você suprime esta informação você suprime uma série deoutras que lhe seriam úteis e que você não tencionava suprimir.Por isto a mentira interior é sempre danosa à inteligência: é umescotoma que se alastra até escurecer todo o campo da visão esubstituí-lo por um sistema completo de erros ementiras.Quando nos habituamos a suprimir a verdade comrelação às nossas memórias, à nossa imaginação, aos nossossentimentos e atos, esta supressão nunca fica só naquele setoronde mexemos, mas se alastra para outros territórios em voltae, tornando-nos incapazes de inteligir uma determinada coisa,nos tornamos incapazes para inteligir muitas outras também. Adefesa contra verdades incômodas se transforma tambémnuma defesa contra a verdade em geral, contra todas as

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verdades. Mais tarde, quando desejarmos estudar umdeterminado assunto que nos interessa, ou entender o que estáse passando na nossa vida, e não conseguirmos, dificilmenteperceberemos que fomos nós mesmos que causamos esta lesãoda inteligência. Noto em muitos intelectuais de hoje umarepugnância, uma defesa instintiva contra a verdade, a talponto que, mesmo quando desejam aceitá-la, tem de metê-lanum invólucro de mentiras. O pior, nisso, é que com frequênciaessa lesão é compensada por um desenvolvimento hipertróficodas faculdades auxiliares, numa inútil excrescência ornamental,tal como os seios que crescem em algumas mulheres após amenopausa. Muitas dessas inteligências lesadas alcançamsucesso nas profissões intelectuais.

 

5. Pequenas e grandes verdades

Quando se fala em público a palavra "verdade", no ambientecínico de hoje em dia, logo aparece algum espertinho repetindoa pergunta de Pôncio Pilatos e desfiando ante nós, como sefossem a maior novidade, os velhos argumentos céticos, cujarefutação é classicamente o primeiro grau do aprendizadofilosófico. Muitas dessas pessoas têm da palavra "verdade" umanoção um tanto posada, teatral, empostada e romantizada. Sóestão dispostas a admitir que o homem pode conhecer averdade caso alguém lhes mostre a verdade total, universal ecompleta a respeito das questões mais difíceis, e, comoninguém satisfaz a esta exigência, elas concluem, com oceticismo clássico, que toda verdade é incognoscível. Mas essetipo de exigência não expressa uma busca sincera da verdade. Abusca sincera vai das verdades humildes e corriqueiras àsverdades supremas, aceitando aquelas como caminho paraestas, sem exigir desde logo, despoticamente, as respostasfinais a todas as perguntas.

Um exemplo de verdade humilde, porém segura, firme, da qualvocê pode partir como um modelo para avaliar outras possíveisverdades, é dado por aquilo que você sabe — e que somentevocê sabe — a respeito da sua própria história, sobretudo dahistória interior de seus sentimentos, motivações, desejos, etc.

Se houvesse um ensinamento voltado ao desenvolvimento dainteligência, ele teria de começar por propor ao aluno, aoestudante, principiante ou postulante, uma espécie de revisão

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das suas memórias, ou seja, contar sua história direito(analogamente ao que se faz em psicanálise). Tudo o que éverdadeiro tem um caráter de coesão, pois uma informaçãoverdadeira não pode ser artificialmente isolada de uma outrainformação que também seja verdadeira e que tenha com elauma relação de causa e efeito, de contiguidade, de semelhança ediferença, de complementaridade, etc.; então isto quer dizerque se você admite um A e um B, você vai ter de admitir um C,D, E, F, etc. A verdade tem sempre um caráter sistêmico,orgânico, razão pela qual sua captação pela inteligência pessoalrequer uma abertura da personalidade, uma predisposição aaceitar todas as verdades que como tal se revelem, semnenhuma seleção prévia de verdades convenientes.

6. Demissão dos intelectuais

O que aconteceria se, numa determinada sociedade, existisseum grande número de pessoas capazes de julgar por si mesmase de perceber a verdade, não sobre todos os pontos, mas sobreos pontos de maior interesse para a sociedade, ou sobre os quesão mais urgentes? Haveria mais sensatez, os debates levariama conclusões mais justas, as decisões teriam um sentido maisrealista. Agora, numa sociedade onde todos estão sepersuadindo uns aos outros de coisas de que eles mesmos nãoestão persuadidos, onde todos estão procurando se enganar, ouonde todos estão procurando ajuda dos outros para se enganarmais facilmente a si mesmos, todas as discussões versam sobrefantasmas, as decisões se esvanecem em meros sonhos, asfrustrações levam o povo a um estado de exasperação do qualele procura fugir mediante novas fantasias, e assim por diante.Isto acontece no campo religioso, político, moral, econômico eaté no campo científico. Podemos partir para uma outradefinicão, e dizer que um país tem uma cultura própria quandoele tem um número suficiente de pessoas capazes de perceber averdade por si mesmas, e que não precisam ser persuadidas porninguém. Estas pessoas funcionam como uma espécie de fiscaisda inteligência coletiva. Em nosso país o número de pessoasassim é escandalosamente reduzido. As pessoas encarregadasde perceber a verdade por si mesmas devem ter umainteligência treinada para isto, devem ter uma inteligência dócilà verdade e ser as primeiras a perceber e compreender o que sepassa. Isto é que constitui uma inteligência nacional, umaintelectualidade nacional. A intelectualidade autêntica não éconstituída necessariamente pelas pessoas que exercem

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profissões ligadas à cultura ou à inteligência, mas sim pelaspessoas que, exercendo ou não essas profissões, realizam asações correspondentes a elas. Não é preciso ir muito longe paradizer que a sorte global de um país depende de que haja umacamada de pessoas assim, para poder, nos momentos dedificuldade, dar esta contribuição modesta que é simplesmentedizer a verdade. No Brasil temos um número assombroso depessoas que trabalham em atividades culturais, escritores,professores, artistas, em geral subvencionados pelo governo,mas que nem de longe pensam em cumprir as obrigaçõeselementares da vida intelectual; tudo o que fazem é apoiar-seuns aos outros num discurso coletivo, reafirmar as mesmascrenças de origem puramente egoista e subjetivista, expressardesejos e preconceitos coletivos e pessoais, promover a moda.Essas pessoas vivem reclamando de que neste país há poucasverbas para a cultura. Mas, para fazer isso que elas chamam decultura, já recebem muito mais dinheiro do que merecem. Oscineastas, diretores de teatro, etc., constituem uma castaprivilegiada, que é estipendiada pelo governo para exibir empúblico emoções baratas, afetar indignação e posar como"pessoas maravilhosas" em apartamentos da av. Vieira Souto.

É claro que os povos sempre têm a liberdade de escolher entre averdade e a mentira, e mesmo sabendo da verdade eles podemnovamente se enganar a si mesmos; porém a possibilidade deque se enganem é muito maior quando ninguém lhes diz averdade jamais. O que acontece quando pessoas que exercemprofissões intelectuais ou culturais somente as exercem nosentido de fazer delas um instrumento de apoio para suaprópria mentira interior, ou seja, exercem esses trabalhos nosentido puramente oratório ou retórico de induzir o povo aerros e ilusões? Afirmo, peremptoriamente, que este é o caso daintelectualidade brasileira, que na sua quase totalidade seutiliza de profissões culturais para fazer com que povo e aopinião brasileira a sirvam, confirmando suas crenças, dasquais ela não tem certeza pessoal alguma, e para as quaisjustamente por isso procura angariar um apoio coletivo.Existem setores onde é possível uma insegurança muito vasta ea livre troca de opiniões de valor simliar, mas em outros setoresnão. Porém o fato é que quando a intelectualidade como umtodo se coloca perante o público numa atitude de persuasãolisonjeira, então a vida intelectual está sendo prostituída, equando ela é prostituída, pergunto: como podemos desejar

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mais ética, mais honestidade, na política ou nos negócios, seamplas faixas de população atuante não têm a menor noção doque é verdadeiro ou falso? Como é que a intelectualidade podeao mesmo tempo pregar um relativismo dissolvente, onde oscritérios do verdadeiro e do falso se diluem a ponto de setornarem indistinguíveis, e ao mesmo tempo exigir que ospolíticos sejam honestos e digam a verdade ao povo? Aspessoas, nessa situação, não poderiam ser honestas nemmesmo que quisessem, porque não sabem o que é certo, nãotêm consciência moral, são grosseiras e insensíveis do ponto devista moral. Então não resta dúvida de que a corrupção dasociedade começa com a corrupção da camada intelectual, nãocom a corrupção dos negócios ou da política: ao contrário,existem países onde os homens ricos e poderosos são muitocorruptos e ainda assim o país funciona direito; existem paísesonde os políticos são corruptos e no entanto o país não seengana grosseiramente na solução de seus próprios problemas.Mas num país onde a camada intelectual, que é a camadaencarregada profissionalmente de examinar a verdade e dedizê-la, começa a se enganar a si mesma, então não vai adiantarabsolutamente nada que todos os políticos sejam honestos.

Se do ponto de vista de utilidade para o indivíduo o objetivodeste curso é o desenvolvimento da sua inteligência, do pontode vista social, cultural, o objetivo do curso é fornecer gentepara uma futura elite intelectual verdadeira.O que é uma eliteintelectual? É gente tão treinada para perceber a verdadequanto um boxeador está treinado para lutar e um soldado parafazer a guerra. Neste sentido, todas as nações que obtiveramum lugar de grandeza na história tiveram uma elite assim,formada muito antes de que o país alcançasse qualquerprojeção econômica, política, militar, etc. Pois não é possívelresolver os problemas primeiro e se tornar inteligentedepois.Em todo debate sobre problemas nacionais queatualmente está em curso só há uma coisa que todos estãoesquecendo: Quem vai resolver estes problemas? Quem vaiexaminá-los? Quem tem a capacidade de examiná-los comefetiva inteligência?Se estas pessoas não existem, então oproblema inicial é formá-las. O objetivo prioritário deste cursoé exatamente isto, se não formar, pelo menos contribuir paraformar, amanhã ou depois, ao longo de talvez vinte ou trintaanos, uma verdadeira elite intelectual.

 

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7. "Opinião própria" e "julgamento autônomo"

Vistos os objetivos do curso, é preciso, com relação aoindivíduo, não somente desenvolver a inteligência, mas fazercom que ela se torne a espinha dorsal do comportamento desseindivíduo, ou seja, que ele leve uma vida dirigida pelainteligência. Com isto ele se tornará finalmente autônomo econfiável em seus julgamentos, dentro da medida possível aoser humano.Uma distinção importante é a que existe entrejulgamento próprio, ou seja, você ser capaz de pensar por simesmo, e o que é apenas uma opinião própria. Hoje em diatodo mundo faz questão de ter uma opinião própria, mas issonão é o mesmo que pensar por si mesmo. Pensar por si mesmonão é apenas você ter uma expressão, uma opinião que expressea sua preferência, o seu gosto ( aliás geralmente muito menospessoal do que se proclama ) ou a sua individualidade, mas évocê ser capaz de, sozinho e sem ajuda, examinar uma questãoe chegar a uma conclusão verdadeira ou suficiente sobre ela, eque, longe de buscar ser diferente da opinião alheia, coincidamais ou menos com as opiniões de outras pessoas que por simesmas examinaram o assunto, de modo que cada um,examinando por si e sem nenhuma coerção externa, cheguemais ou menos às mesmas conclusões. Pensar por si mesmo éser capaz de alcançar a verdade sozinho, e não de inventarapenas uma mentira personalizada. Aliás uma das condiçõespara o desenvolvimento da inteligência é você não fazerquestão de ter uma opinião própria, ou seja, você não fazerquestão de que sua opinião seja diferente da das outras pessoas,ao contrário, apenas fazer questão de examinar as coisas por simesmo, sem precisar de muletas, sem precisar da aprovação damaioria ou de quem quer que seja, para no final chegar a umaconclusão, de maneira que você expresse menos umaconcordância ou discordância natural, mas que a concordânciaou discordância seja produzida por um exame refletido doassunto. Ser capaz de examinar por si próprio é maisimportante do que ter uma opinião diferente da dos outros.

 

 

8. O estado de dúvida

O desenvolvimento da inteligência exige ainda uma outra coisa,que é a tolerância para com o estado de dúvida, que é um

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estado psicológico que se define por duas afirmaçõescontraditórias e simultâneas de credibilidade aparentementeigual. Ou seja, ao examinar uma questão, dizer um sim e umnão com igual convicção, isto é, acreditar tanto numa hipótesecomo na hipótese contrária, ter iguais razões a favor e contra.Na quase totalidade dos assuntos com os quais lidamos, não hátempo e não há condição prática de sair do estado de dúvida. Oindivíduo que ou não tem vocação para a vida da inteligênciaou se desviou dela por um motivo qualquer, sente como muitourgente sair do estado de dúvida; ele precisa ter uma opiniãode qualquer jeito, precisa se pronunciar, precisa chegar a umsim ou um não, e esta necessidade é vivida como mais urgentedo que a de conhecer a verdade. Neste caso a inteligência não sedesenvolve, pois ela é substituída pela simples busca desegurança, já que a dúvida é um estado de insegurança. Sequeremos desenvolver a inteligência, temos de fazer umaescolha: a de preferir antes permanecer em dúvida do que teruma pseudocerteza. É óbvio que a certeza é preferível à dúvida,mas ela só é preferível realmente quando é uma certezaautêntica, e não uma simples preferência individual. Então umaoutra exigência para o desenvolvimento da vida intelectual éuma espécie de voto de pobreza em matéria de opiniões, umvoto de ter opinião sobre muito pouca coisa e se reservar paraopinar sobre coisas em que você teve efetivamente tempo depensar, e no resto você consentir em permanecer em dúvida,até mesmo, se for preciso pelo resto de sua vida. Uma certezafirme é preferível a um milhão de dúvidas mas,lamentavelmente, se quisermos desenvolver a inteligênciateremos de tolerar o estado de dúvida, o estado de incerteza,por mais tempo do que as pessoas geralmente toleram. Além defazer este voto de pobreza em matéria de opinião, é necessárioainda um outro tipo de voto de pobreza que é a renúncia àbusca de apoio, ou seja, você não acreditar que o número daspessoas que o apoiam representa um argumento efetivo emfavor da veracidade do que você está dizendo. Em todas asquestões mais difíceis a maioria geralmente está errada, ouseja, em geral o consenso mais imediato é feito em torno dealgum erro. Por que? Já dizia Sto. Tomás de Aquino: A verdadeé filha do tempo. A verdade geralmente demora para aparecer.Se for preciso, se for absolutamente preciso buscar apoio numaopinião majoritária, então é preferível escorar-se nas opiniõesque a humanidade conservou intactas ao longo dos tempos, queresistiram incólumes às mudanças e aos desgastes do tempo, do

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que naquelas que simplesmente formam a voz majoritária donosso tempo, e que correm o grave risco de tornar-seminoritárias amanhã ou depois. Dito de outro modo: se algumvalor tem a opinião da maioria, não é a da maioriamomentânea, da maioria mercadológica, fugaz e inconstante,mas sim a da maioria humana, da maioria da espécie humanaem todas as épocas e lugares: quod semper, quod ubique, quodab omnibus credita est, "aquilo em que todos, em toda parte,sempre acreditaram".

Ainda com relação à formação de uma elite intelectual, não épreciso dizer que não é absolutamente necessário que osmembros de uma elite deste tipo tenham opinões concordantes,aliás se tiverem opiniões discordantes talvez até seja melhor emdeterminadas circunstâncias. Mas existem alguns pontos comos quais é preciso estar de acordo, no que se refere, emprimeiro lugar, ao valor da inteligência, ao valor da verdade, e àpossibilidade do ser humano descobrir a verdade. A fé no poderde alcançar a verdade é a condição inicial de qualquerinvestigação filosófica, dizia Hegel. Se não acreditarmos napossibilidade de alcançar a verdade não faremos esforços parabuscá-la. É preciso se persuadir de que é possível descobrir averdade, mas nem sempre a verdade final, nem sempre averdade absoluta, e sobretudo nem sempre a verdade sobretodas as coisas. Em muitas coisas é possível alcançar umaverdade final absoluta, em muito mais coisas do que se costumaimaginar, porém em muito menos do que nós desejaríamos. Namaior parte dos casos teremos de nos contentar com umacerteza probabilística, e às vezes apenas com umaverossimilhança, e às vezes com muito menos do que isto, etalvez nos contentarmos com uma dúvida que nosacompanhará ao túmulo.Porém, na mesma medida em que oindivíduo confia na inteligência humana em geral, ele devedesconfiar da sua própria opinião, o que é um pouco ocontrário da atitude que se dissemina hoje em dia, onde aspessoas dizem não acreditar em verdades absolutas masacreditam com fé absoluta naquelas verdades relativas que lhesagradam: há aí uma mistura repugnante de relativismointelectual com um dogmatismo emocional fanático. Ainda quereconheçamos a dificuldade de alcançar a verdade com relaçãoà quase totalidade dos assuntos, temos de admitir que, pelomenos com relação a algumas coisas modestas, podemosverificar a possibilidade humana de alcançar a verdade, desde o

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momento em que cultivamos a noção da evidência e,sobretudo, cultivamos a norma de jamais negar que sabemosaquilo que efetivamente sabemos.

 

9. A autoconsciência, terra natal da verdade

É importante aprender a admitir aquilo que você sabe que éverdadeiro. Ainda que sejam verdades insignificantes, vocêmeditar sobre o óbvio é talvez a melhor maneira de se habituarà verdade e perder o medo dela e a desconfiança injusta quantoao poder da inteligência. Por exemplo, ainda que quase todos osconhecimentos que existam sejam relativos ou duvidosos, vocêsabe que não pode duvidar seriamente de que está aqui nestemomento; você pode fazer de conta que não está, mas não podeduvidar efetivamente. Se existem tantos conhecimentos óbviossobre coisas insignificantes, imaginem aonde poderíamoschegar se alcançássemos evidências deste tipo com relação acoisas verdadeiramente importantes! O senso da verdade sedesenvolve a partir do próprio senso da evidência, e o senso daevidência tem a sua raiz naquilo que você já sabe e sabe quesabe. Quando você sabe realmente uma coisa, automaticamentesabe que sabe, e se você sabe que sabe, você sabe que sabe quesabe. Isto quer dizer que qualquer conhecimento efetivoimplica também a consciência deste conhecimento e a plenaadmissão da sua veracidade.A inteligência tem, portanto,também um aspecto volitivo, inseparavemente ligado aoaspecto cognitivo.

Por onde começa o treinamento da consciência para admitir averdade? O primeiro grau no aprendizado da verdade consisteem você aprender a reconhecer aquelas verdades que só vocêsabe e que ninguém, fora você, pode confirmar ou negar. Porexemplo, só você conhece suas intenções, só você conhece osatos que praticou em segredo, só você conhece os sentimentosque não confessou. Você, nesses casos, é a única testemunha, eé aí que você vai conhecer a diferença radical e intransponívelentre verdade e falsidade. As pessoas que vivem negando aexistência de verdades não conhecem essa experiência, nuncaderam senão falso testemunho de si mesmas ante o tribunal daconsciência, mentem para si mesmas e por isto sentem quetudo no mundo é mentira. Hegel dizia: a autoconsciência é aterra natal da verdade. E Giambattista Vico observava que só

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conhecemos perfeitamente bem aquilo que nós mesmosfizemos: conhecer perfeitamente bem a natureza só Deusconhece, pois Ele a fez. Porém nossos próprios atos somentenós mesmos podemos conhecer, assim como nossospensamentos e nossos estados interiores. Não há ali ninguémque possa nos fiscalizar, não há ninguém que possa nosdefender de nós mesmos.

 

10. Os graus de certeza

Se quisermos desenvolver o senso da certeza temos portanto denos perguntar exatamente sobre aquelas coisas que só nóssabemos e que ninguém pode saber melhor do que nósmesmos. Estas vão dar o modelo para todas as outras certezas.O aprendizado de qualquer saber é perfeitamente inútil se nãohouver a consciência reflexiva, que consiste na frase: Eu sei quesei, ou então na sua oposta complementar, que é Eu sei que nãosei.

Mesmo em assuntos duvidosos, com um pouquinho de reflexãovocê pode demarcar o limite entre o conhecimento possível e oimpossível. Bastaria que conseguíssemos captar o grau decerteza ou de dúvida que existe em cada conhecimento jápossuído.Existem quatro graus de certeza possíveis:

1. certeza;

2. probabilidade;

3 verossimilhança;

4. conjeturação do possível.

Certeza é por exemplo esta que diz "Eu estou aqui agora" ou"Eu sou eu mesmo e não outro".

Que é uma opinião provável? É uma opinião onde você pode sóter uma certeza evidente ( apodítica ) com relação a um grau deprobabilidade determinado ou determinável.

Em outros casos você não pode nem ter isso, você só pode teruma probabilidade indeterminada, isto é, verossímil, não umaprobabilidade rigorosa.

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E, finalmente, em alguns casos só podemos ter conjeturas,como por exemplo perguntar se há vida inteligente em outrosplanetas. Alguns dirão que sim, outros que não, e aqueles quedizem sim têm tanta razão quanto aqueles que dizem não. Aíconhecemos somente uma possibilidade genérica, impossívelde graduar probabilisticamente.

Eis aqui uma boa maneira de você fazer uma faxina no seuuniverso intelectual, para recomeçar em boa ordem. Trata-se defazer a si mesmo as seguintes perguntas: Do conjunto de coisasque você já estudou, quais são aquelas que você conhece comcerteza absoluta? Quais as que conhece como probabilidaderazoável? Quais as que conhece como conjetura verossímil?Quais as que conhece como mera possibilidade? Em suma:quanto vale cada um dos conhecimentos que você tem?

Eis uma verdade amarga: se, a respeito de um assunto, você crêpossuir certo conhecimento mas não sabe se esseconhecimento é certo, verossímil, provável ou conjectural,você não sabe absolutamente nada sobre o assunto. Aavaliação dos conhecimentos faz parte do próprioconhecimento. Se não existe uma avaliação clara dosconhecimentos já adquiridos, você não sabe a distinção entre oque sabe e o que não sabe, e isto é o mesmo que não sabernada. Seria o caso de perguntar: O que adianta uma educaçãoque lhe ensina um monte de coisas, mas que não o ensina aavaliar e julgar o que aprende? Não existe nenhuma diferençaentre você saber alguma coisa e você conseguir separar nela overdadeiro do falso, pois saber é saber distinguir o verdadeirodo falso, é isto e nada mais além disto. Se você aplicasse estagrade de distinções a tudo o que já leu ou estudou, seclassificasse por ela todas as suas opiniões, imagine amontanha de conhecimentos verídicos que você teria no fim.

Formar convicção é formar graus de convicção. Exemplo: Vocêsabe que Deus existe com a mesma certeza com que você sabeque você existe?Se Deus existe, Ele é bom: isto é óbvio. Seriabom que Deus existisse: isto também é óbvio. Agora, entrepensar seria bom que Deus existisse e pensar que Deus existeefetivamente há uma distância muito grande. Então, porexemplo, se tenho uma discussão com uma pessoa e penso queeu estou certo e ela errada, o que estou querendo dizer? Estouquerendo dizer: Seria bom que eu estivesse certo e ela estivesseerrada, ou melhor, seria bom para mim. Agora, entre pensar

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que seria bom que eu estivesse certo e estar absolutamentecerto de fato, a distância também é enorme. Então,lamentavelmente, não podemos estar tão certos em tantascoisas como geralmente fingimos que estamos. Só que se vocêextirpar de seu universo de crenças um monte de falsascertezas, vai ver que no fim sobram algumas certezasinabaláveis, e estas valem muito. Mas se você desejarpreservar todas as suas convicções igualmente, no mesmoplano, sem escalaridade crítica, no fim vão estar todasmisturadas, você não vai ter certeza legítima de nenhuma, evai acabar duvidando até de que dois mais dois são quatro, deque você está aqui neste momento e até de que você existe. Afalsa certeza é a mãe da dúvida patológica.

Muitas vezes o que acontece é que o indivíduo acaba tendocerteza absoluta de coisas inteiramente conjeturais, e tendodúvidas sobre coisa óbvias e inegáveis, porque não sabeequacionar as suas certezas e suas dúvidas conforme asegurança maior ou menor do conhecimento em si. É claro queexistem coisas sobre as quais gostaríamos de ter certeza. Vocênão gostaria de ter certeza, por exemplo, da imortalidade daalma? Muitas vezes precisamos de um conhecimento, e esteconhecimento se furta, se nega. Mas outras vezes háconhecimentos de que você crê não precisar e eles vêmacompanhados de certeza absoluta: então por que você não osaceita? Um conhecimento aparentemente inútil, mas certo, émenos prejudicial do que um conhecimento aparentementeútil, mas falso. Se aprendermos a avaliar os graus de certezanão conforme simplesmente o nosso desejo, mas conforme àcoisa mesma, conforme o assunto mesmo admita maior oumenor certeza, teremos feito da nossa mente um instrumentodócil aos graus de certeza oferecidos pela própria realidade.Isso inclusive pouparia um trabalho enorme. Pouparia otrabalho de você ter de argumentar em favor de coisas que sãoóbvias e que não precisam de argumento nenhum parasustentá-las, bem como pouparia o trabalho de argumentar emfavor do indefensável, do arbitrário, do nonsense.

Este senso de docilidade à verdade apreendida pela própriaconsciência é transmitido aos alunos deste curso como umaprática, não apenas como uma lição de casa para se fazer dehoje para amanhã, mas como uma prática para o resto da vida.Dado qualquer conhecimento, o aluno é convidadoincessantemente a fazer as quatro perguntas decisivas: Isto é

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verídico? É provável? É verossímil? É possível?O critério dosgraus de certeza é usado o tempo todo neste curso; é a primeiralição e também a última. E a primeira coisa que deve ser revistacom este critério é qualquer assunto que você já tenha estudadoformalmente. Somente com esta revisão você já vai ver que amassa de conhecimentos, de informações adquiridas, começa aadquirir forma orgânica, inteligível, e você pela primeira veztem uma idéia clara da cultura que possui e da que lhe falta:quando o universo dos seus conhecimentos adquire uma forma,você adquire consciência reflexiva do que sabe e do que nãosabe.

 

 

11. A topografia da ignorância

 

O desenvolvimento da consciência reflexiva pode serexemplificado na seguinte prática que dou aos alunos destecurso:

O tempo todo estamos adquirindo informações que nos vêmatravés dos cinco sentidos, da leitura, do ouvir-dizer, etc.,porém a algumas delas prestamos atenção e damos um valor, ea outras não. Então pergunto eu: para onde você olha sempre,para onde olha com frequência, para onde olha de vez emquando e para onde não olha jamais? É justamente aconsciência desta seleção que lhe dará a topografia do mundo,do seu mundo. Nenhum mundo pessoal coincideextensivamente, quantitativamente, com o mundo objetivo.Mas um mundo pessoal íntegro, dotado de unidade como umorganismo vivente, já se parece com o mundo objetivoprecisamente por essa unidade orgânica e, essencialmente aomenos, é um adequado mapa do mundo, ao passo que omundo interior quebradiço, fragmentário e mecânico não separece com nada senão com ele mesmo, com as fantasias decriação humana. A diferença não está na quantidade deinformações, mas justamente em sua topografia.

A topografia autoconsciente produz um sentido de perfil, declareza das coisas. É exatamente isto que a consciência reflexivafará com seus conhecimentos. A partir da hora em que você

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sabe que sabe, você efetivamente sabe. E saber que sabe étambém saber quando não sabe.A proclamação genérica e vagade ignorância é apenas uma vaidade intertida, mas o repertórioorganizado e crítico da nossa ignorância é um conhecimento,um conhecimento efetivo e importantíssimo. O desenho daignorância, o perfil da ignorância, é um primeiro saber. E esteperfil da ignorância se faz exatamente aplicando a grade dosgraus de certeza. Se você consegue mapear, de um lado, a suaignorância, e de outro, o valor possível de seus conhecimentosadquiridos, você terá inaugurado as bases de uma vidaintelectual brilhante. Percebe agora qual a diferença entre umensino voltado às faculdades cognitivas ( memória, imaginação,raciocínio etc. ) e um ensino voltado à inteligência? O queinteressa aqui não é tanto o conhecimento, mas a consciênciado conhecimento. Consciência, cum + scientia, é isto: saber quesabe o que sabe.

Uma consciência desperta não torna somente mais claros osconhecimentos que você já tem, mas o deixa preparado e comoque potencializado para a aquisição de novos conhecimentoscom muito mais aproveitamento do que antes; e então, paravocê poder dominar todo um novo setor da ciência, da história,da arte, às vezes não precisará nada mais do que ter ajuda parachegar aos primeiros princípios daquela área, o resto vocêdescobrirá sozinho, porque terá conquistado o senso, o "faro"da unidade do conhecimento, e aprenderá muitas coisas deuma maneira mais ou menos sintética e simultânea, onde antesprecisava de explicações detalhadas, repetições, exercícios, etc.É claro que essa maior integração da consciência, com oconsequente aumento da capacidade de aprendizado, não se dásó na área dos estudos formais, mas em todas as áreas da vida,que aos poucos irão revelando suas interconexões. O benefícioque isto traz não é só de ordem intelectual, mas se estende atoda a psique, a toda a personalidade.

Partindo do princípio de que todo mundo já sabe alguma coisa— sabe por viver, sabe porque tem memória, porque assistiu aacontecimentos, porque leu algum livro, porque ouviu falar,porque viu televisão, porque leu jornal, e enfim alguma coisasempre se sabe —, então resta transformar esse saber emautoconsciência. Se o saber efetivo, se a inteligência seidentifica fundamentalmente com a autoconsciência, o saberque você possui só se tornará um saber inteligente se for um

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saber autoconsciente, ou seja, se você passar todo este saber napeneira das seguintes perguntas:

1. Até que ponto sei isto realmente?

2. Quanto vale este conhecimento?

3. O que faltaria para que ele fosse completo?

Ou seja, começar fazendo uma revisão das coisas que vocêacredita que sabe. Vale ressaltar que estes conhecimentos nãose referem apenas às coisas estudadas formalmente através decanais oficiais de educação, mas sobretudo àqueles estudos,experiências e pensamentos que sedimentaram em vocêdeterminadas convicções.Outro ponto importante a ressaltar éo fato de que quando você dedica, por obrigação profissional ouescolar não assumida interiormente mas somente imposta defora, uma atenção maior a tópicos que não lhe interessamprofundamente, e não chega a desenvolver um interesseautêntico, mas trata do assunto com uma atenção periférica ecomo que ligada no piloto automático, você prejudica suainteligência e se afasta quase que necessariamente da verdade.Porque, se a inteligência é capacidade de captar a verdade e decaptá-la numa situação verdadeira, o simples fato de vocêdedicar ao assunto uma atenção falsa já é um impedimento aoconhecimento da verdade, é um vício que não o ajuda em nadaa desenvolver a inteligência.Só podemos usar a inteligênciacom cem por cento da sua força onde houver cem por cento deinteresse, e infelizmente o interesse não depende inteiramentede nós, porque o interesse que temos por este ou aqueleproblema pode provir de uma situação externa, de umacasualidade, de uma contingência, de um temor, de um desejofortuito, e assim por diante. Isto quer dizer também que oprocesso do desenvolvimento da inteligência não pode seguirum programa predeterminado como no estudo de umadisciplina em particular. Ele tem de ir e vir, mais ou menos aosabor do fluxo dos interesses reais do momento e dapossibilidade de desenvolver novos interesses.

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