insubordinaÇÃo no espaÇo masculino: lidiane ramos … · o espaço social a ser ocupado pela...

12
INSUBORDINAÇÃO NO ESPAÇO MASCULINO: agora é a vez das mulheres na altinha Lidiane Ramos Lima 1 Adyla Barbosa Lucas 2 RESUMO: Em meio as mudanças ocorridas entre os espaços públicos e privados que exigem atualmente novas formas de participação feminina, pode-se dizer, que estas mudanças ainda acontecem de forma lenta, e dentre os espaços a serem conquistados, o meio esportivo, ainda fomenta velhos e novos desafios. A partir de um recorte da investigação de natureza qualitativa, sobre o envolvimento de mulheres numa modalidade esportiva praticada na orla da cidade de Paracuru-Ce, observa- se que estas foram desafiadas a irem além dos valores masculinizadores, encontrados nos dispositivos existentes nas relações construídas nas areias da praia, estas mulheres, insubordinaram-se as exigências e modelos estabelecidos. Palavras-chave: Mulher. Insubordinação. Altinha. ABSTRACT: Amid the changes that have taken place between the public and private spaces that currently require new forms of female participation, it can be said that these changes still happen slowly, and among the spaces to be conquered, the sporting environment still fosters old and new challenges. Based on a qualitative research on the involvement of women in a sporting modality practiced on the edge of the city of Paracuru- Ce, it is observed that these were challenged to go beyond the masculinizing values found in the existing devices in built relationships in the sands of the beach, these women, insubordinate the established requirements and models. Keywords: Woman. Insubordination. Altinha. 1 INTRODUÇÃO Este artigo é mediado pelas reflexões feitas a partir de uma pesquisa que foi apresentada para obtenção do título de Mestre em Políticas Públicas e Sociedade, vinculado 1 Assistente Social da Prefeitura de Paracuru. Mestre em Políticas Públicas e Sociedade, Especialista em Serviço Social, Direitos Sociais e Competências [email protected] 2 Terapeuta Ocupacional da Prefeitura de Itapipoca. Especialista em Saúde Mental. [email protected]

Upload: others

Post on 19-Jul-2020

10 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: INSUBORDINAÇÃO NO ESPAÇO MASCULINO: Lidiane Ramos … · o espaço social a ser ocupado pela mulher pode ir além do meio privado; ... Que espaços existem ou incentivos, para

INSUBORDINAÇÃO NO ESPAÇO MASCULINO: agora é a vez das mulheres na altinha

Lidiane Ramos Lima1

Adyla Barbosa Lucas2

RESUMO: Em meio as mudanças ocorridas entre os espaços públicos e privados que exigem atualmente novas formas de participação feminina, pode-se dizer, que estas mudanças ainda acontecem de forma lenta, e dentre os espaços a serem conquistados, o meio esportivo, ainda fomenta velhos e novos desafios. A partir de um recorte da investigação de natureza qualitativa, sobre o envolvimento de mulheres numa modalidade esportiva praticada na orla da cidade de Paracuru-Ce, observa-se que estas foram desafiadas a irem além dos valores masculinizadores, encontrados nos dispositivos existentes nas relações construídas nas areias da praia, estas mulheres, insubordinaram-se as exigências e modelos estabelecidos.

Palavras-chave: Mulher. Insubordinação. Altinha.

ABSTRACT: Amid the changes that have taken place between the public and private spaces that currently require new forms of female participation, it can be said that these changes still happen slowly, and among the spaces to be conquered, the sporting environment still fosters old and new challenges. Based on a qualitative research on the involvement of women in a sporting modality practiced on the edge of the city of Paracuru-Ce, it is observed that these were challenged to go beyond the masculinizing values found in the existing devices in built relationships in the sands of the beach, these women, insubordinate the established requirements and models.

Keywords: Woman. Insubordination. Altinha.

1 INTRODUÇÃO

Este artigo é mediado pelas reflexões feitas a partir de uma pesquisa que foi

apresentada para obtenção do título de Mestre em Políticas Públicas e Sociedade, vinculado

1 Assistente Social da Prefeitura de Paracuru. Mestre em Políticas Públicas e Sociedade, Especialista em Serviço Social, Direitos Sociais e Competências [email protected] 2 Terapeuta Ocupacional da Prefeitura de Itapipoca. Especialista em Saúde Mental. [email protected]

Page 2: INSUBORDINAÇÃO NO ESPAÇO MASCULINO: Lidiane Ramos … · o espaço social a ser ocupado pela mulher pode ir além do meio privado; ... Que espaços existem ou incentivos, para

à Universidade Estadual do Ceará-UECE. O estudo focou a atenção sobre a participação

política das mulheres da classe popular que participavam na condição de usuárias da Política

de Assistência Social na cidade de Paracuru. A partir daí, foram se intensificando o olhar sobre

a mulher nos seus mais diversos contextos e práticas existentes na cidade. Como o

envolvimento da mulher na política, também chamou-me a atenção o envolvimento da mulher

no esporte. É uma cidade marcada pela presença feminina nos espaços de poder, como

também vem sendo marcada pelos casos de feminicídios no litoral oeste do Estado do Ceará.

Ocorrências estas registradas justamente no mês de março, período de mobilizações e lutas

pela visibilidade dos direitos das mulheres.

Contudo, é possível pensar que nos mais diversos espaços há anos, mulheres da

cidade marcam com suas atitudes, pensamentos e experiências as vidas de seus pares.

Driblam os arquétipos e dispositivos sociais que foram potencializadores ao longo dos anos

das questões de gênero mais conhecidas e popularizadas, que destinavam a mulher apenas

aos espaços privados. Sendo assim, este estudo, dedica-se a categoria insubordinação, a

partir da compreensão sobre subordinação, acreditando-se que esta também pode ser

mutável, a partir daí, sugere-se dizer que as condições para esse estado de subordinação e

inserção social também podem ser modificados tanto por homens como por mulheres, isto é,

o espaço social a ser ocupado pela mulher pode ir além do meio privado; ela assume seu

reconhecimento político, ancorando-se na “ideia de que o que une as mulheres ultrapassa,

em muito, as diferenças entre elas [...].” (PISCITELLI, 2004, p. 46).

Sendo assim, a mulher na sua inserção política, torna-se sujeito de mudanças, não

obstante, foram transformadas em sujeitos políticos principalmente a partir do movimento

feministas, ao politizar as desigualdades de gênero como remete Carneiro (2004, apud

FERREIRA, 2018). Contudo, Woolf (2018, p.01) já dizia

O que é uma mulher? Eu lhes asseguro, eu não sei. Não acredito que vocês saibam. Não acredito que alguém possa saber até que ela tenha se expressado em todas as artes e profissões abertas à habilidade humana.

Neste estudo, estas mulheres estão sendo pensadas a partir das suas

pluralidades, reconhecendo suas várias identidades e experiências, principalmente as suas

várias lutas, a partir desta vertente, chamou-me atenção o envolvimento de mulheres,

adolescentes em jogos de praia, ou esportes praticados na praia ou no mar. Ao considerar

que Paracuru já teve entre as melhores surfistas do mundo uma de suas nativas, que começou

Page 3: INSUBORDINAÇÃO NO ESPAÇO MASCULINO: Lidiane Ramos … · o espaço social a ser ocupado pela mulher pode ir além do meio privado; ... Que espaços existem ou incentivos, para

a prática sobre uma tabua de madeira. As vivencias na orla de Paracuru partiu dos seguintes

questionamentos: onde estão as demais meninas e mulheres do surf de Paracuru, que outras

modalidades estas mulheres se interessam? Que espaços existem ou incentivos, para que as

mesmas possam ser reconhecidas tecnicamente? Perguntas como estas nortearam por vezes

os pensamentos e o engajamento em ações pontuais na orla da praia de Paracuru, a partir

do envolvimento num Coletivo de pessoas atentas a desenvolver atividades de mobilização

em prol da fauna e flora na cidade, Coletivo este, que na sua maioria é constituído por

mulheres, nomeado como Serei Amor. Daí surgiu, o interesse sobre a modalidade esportiva

Altinha. Quando buscou-se saber exatamente o que esta modalidade causa de impacto na e

para participação da mulher na vida esportiva, tendo em vista, sua ascensão entre os jogos

praticados nas praias de Paracuru.

Altinha, é uma terminologia mais conhecida na região nordeste, segue uma

mistura de diversão e esporte, seria, portanto, neste trabalho a modalidade em destaque,

tendo em vista, que a mesma tem sido um espaço para maior engajamento de mulheres

praticando esportes na praia. Ao ser considerado que ainda é um campo de dominação

masculina, seja na prática do futebol de areia, vôlei, futevôlei e outros. Altinha surgiu no Rio

de Janeiro, exigindo do (a) jogador (a) habilidade, controle de bola e equilíbrio corporal em

um jogo em que a equipe precisa deixar a bola o maior número de vezes no alto. A Altinha se

caracteriza por unir as noções básicas do futevôlei, em forma de círculo, valendo qualquer

movimento tais como chutes, joelhadas e cabeçadas, geralmente composta em competições

por quatro pessoas (ABRAHAM 2019). Não há uma definição especifica quanto a idade para

a prática, em Paracuru é comum a participação de crianças até as mães dessas crianças no

exercício do jogo de Altinha.

Para uma aproximação com a realidade, este trabalho teve, portanto, sua base

metodológica na abordagem qualitativa, pois segundo Hernández Sampieri (2013 apud LIMA

et al, 2015), uma pesquisa qualitativa sugere que se fique atento ao olhar, que se treine para

observar o que é diferente da simples visualização, pois propõe a utilização de todos os

sentidos para entrar profundamente em situações sociais e, de forma ativa, para chegar a

uma reflexão permanente. Desta forma, buscou-se a partir de uma perspectiva ancorada na

busca bibliográfica, documental e de vivência no campo relatado, por meio de uma proposta

atuante e participativa junto à realidade em estudo, com foco na inserção em espaços de

dominação masculina, apropriando-se de diálogos, narrativas expostas pelos participantes de

jogos e observadores (as) da orla de Paracuru. Destarte, o estudo que se apresenta, segue

para uma exposição breve sobre o pretendido a partir da própria introdução, seguido por

Page 4: INSUBORDINAÇÃO NO ESPAÇO MASCULINO: Lidiane Ramos … · o espaço social a ser ocupado pela mulher pode ir além do meio privado; ... Que espaços existem ou incentivos, para

sessões que trabalham questões pertinentes as discussões sobre os espaços públicos e

privados destinados a mulher e por outra sessão que fala do poder exercido por esta e o seu

papel no processo de insubordinação através do corpo, alinhada ao vivenciado com a Altinha,

e por fim, as conclusões que apontam para um processo de ruptura com dispositivos

normatizadores, principalmente masculinizadores que recaem sobre as mulheres.

2 O PÚBLICO E O PRIVADO: noções básicas para entender as lutas das mulheres

Os significados dos termos público e privado tornaram-se importantes nos estudos

sobre as relações e condições de vida entre mulheres e homens em sociedade, entretanto,

pode-se dizer que, durante longos anos de estudos, sofreram várias interpretações. Nos

estudos de Arendt (2010 apud LIMA, 2015), precisamente na literatura sobre a condição

humana, estes termos estão relacionados às esferas do lar (família) e da vida na pólis

(política). Segundo a autora, no período antigo, precisamente na Grécia, a linha que

assinalava uma distinção entre a esfera do lar e a da pólis era que, na primeira, os homens

viviam juntos por serem a isso compelidos diante das suas necessidades: “A comunicação

natural do lar nascia da necessidade, e a necessidade governava todas as atividades

realizadas nela” (ARENDT, 2010, p. 36).

Já no domínio da pólis, ao contrário da esfera do lar, era o âmbito da liberdade que

predominava, de maneira que nessa só conhecia iguais; existindo na dimensão do lar, da vida

privada, a mais severa desigualdade. Assim, no domínio do lar, a liberdade não existia, pois

seu chefe, seu governante (no caso o homem), só era considerado livre na medida em que

tinha o poder para deixar o lar e ingressar no domínio político, no qual todos eram iguais.

Nessas circunstâncias, mulheres e escravos estavam destinados apenas ao espaço privado.

Arendt (2010, p. 40) analisa que, no mundo moderno, os domínios sociais (lar,

família) e político vão se diferenciar menos entre si. Para ela, os dois domínios (público e

privado) “constantemente recobrem um ao outro, como ondas no presente fluir do processo

da vida”. Por fim, a vida pública passa a estar a serviço da vida privada. Nesse âmbito, convém

referendar Rabay (2008), quando afirma que a dicotomia entre o público e o privado tornou-

se menos rígida a partir da Idade Média e no final do século XIX, de maneira que as atividades

relacionadas com a sobrevivência foram se tornando de interesse também da esfera pública,

passando as autoridades privadas e públicas a se fundirem de toda forma até se confundirem

com o poder público. Para autora, citando Costa, “privado passa a ser somente uma esfera

da intimidade”, contudo, a autora enfatiza que “as mulheres permaneciam excluídas da

cidadania, sujeitas a toda uma série de restrições e normas legais, que limitam seus direitos

Page 5: INSUBORDINAÇÃO NO ESPAÇO MASCULINO: Lidiane Ramos … · o espaço social a ser ocupado pela mulher pode ir além do meio privado; ... Que espaços existem ou incentivos, para

dentro e fora da família” (COSTA, 1998, p. 55 apud RABAY, 2008, p. 166). Rabay (2008)

assevera que, mesmo com todo o processo de mudança ocorrida no decorrer da história, o

acesso a certos segmentos do espaço público, ainda é muito restrito às mulheres. Seja no

sentido do domínio do poder público institucionalizado e das relações pessoais, seja no

sentido da visibilidade política social, até recentemente, a mulher foi restringida à esfera

privada, doméstica. Sua atuação, rompendo o âmbito privado, na modernidade, ainda não

conquistou plenamente a visibilidade necessária ao exercício do poder na contemporaneidade

(RABAY, 2008, p. 167).

Em âmbito nacional, pode-se dizer que a sociedade brasileira, a partir do século

XIX, sofreu forte influência do Estado em sua formação cultural, por meio da medicina social,

sendo possível observar a fomentação e o desenvolvimento de uma sociedade burguesa e

de um Estado Nacional preocupado com a “estatização dos indivíduos” (COSTA, 1983, p. 33).

É significativo referendar que, mesmo incluso num contexto familiar patriarcal, os

papéis para homens e mulheres caracterizavam-se pela distinção entre eles e pela separação

profunda entre o espaço público e o privado, como observa Costa (1983, p. 83):

O ‘estar’ da família colonial [...] regulava-se pela distinção social do papel do

homem e da mulher e pela natureza das atividades domésticas. O homem, a quem era

permitido um maior contato com o mundo, com a sociabilidade, permanecia menos tempo em

casa. Os cuidados da residência eram entregues à mulher, que, entretanto, não podia imprimir

aos aposentos a marca de sua necessidade.

Segundo Lima (2001), a estratégia de intervenção do modelo higienista, a partir

do século XIX, provocou mudanças na estrutura da casa e da própria intimidade familiar,

passava-se os costumes de uma sociedade agrária para os produzidos por uma burguesia

emergente em pleno século XIX. Numa sociedade burguesa que “buscava impor freios morais

ao patriarca, cuja incontinência sexual estava associada à prostituição, sífilis e mortalidade

infantil” (COSTA, 1983, p. 244), este homem seguiu valores burgueses correspondentes à

importância do trabalho e de sua competência como profissional; valorizou o aspecto físico,

estimava pela competição e gostos diversos em torno do saber e cultura em um segmento de

valores morais que nortearam comportamentos em específico como a valorização do afeto

junto aos filhos; enquanto a mulher permaneceu em casa, embora considerada como “rainha

do lar”, exercendo várias funções, “como enfermeira e professora” (COSTA, 1983, p. 244),

submetida ao domínio de alguém ou da ordem médica vigente.

Para Fonseca (2012), no século XIX, a norma oficial acabava ditando que a mulher

devia ser resguardada em casa, responsável pelos afazeres domésticos enquanto ao homem

cabia assegurar o sustento da família. Esse modelo, entretanto, tratava-se de um estereótipo

Page 6: INSUBORDINAÇÃO NO ESPAÇO MASCULINO: Lidiane Ramos … · o espaço social a ser ocupado pela mulher pode ir além do meio privado; ... Que espaços existem ou incentivos, para

baseado nos valores da elite de resquícios coloniais, longe de retratar a realidade da mulher,

sobretudo da pobre. Para a autora, era um instrumento ideológico inclusive espalhado pelos

viajantes europeus com a função de marcar a distinção entre as mulheres burguesas e as

mulheres pobres. Com isso, ela ainda descreve que a “mulher pobre, diante da moralidade

oficial completamente deslocada de sua realidade, vivia um dilema imposto pela necessidade

de escapar à miséria com o seu trabalho e o risco de ser chamada de ‘mulher pública’”

(FONSECA, 2012, p. 519).

Samara (1986), em obra acerca da família brasileira, já dizia, no capítulo sobre o

mito da mulher submissa e do marido dominador que, provavelmente, houve certo exagero

dos estudiosos quanto aos estereótipos transmitidos sobre as condições de dominação e

submissão entre os gêneros. Esta pesquisadora afirma que “as variações nos padrões de

comportamento de mulheres provenientes dos diferentes níveis sociais indicam que muitas

delas trouxeram situações de conflito para o casamento, provocadas por rebeldia e mesmo

insatisfação” (SAMARA, 1986, p. 57).

Nessa perspectiva, em meio às relações permeadas por resíduos de uma cultura

moralizadora a serviço do âmbito doméstico e sob controle dos preceitos e dispositivos legais

é totalmente possível visualizar que muitas mulheres ao longo dos séculos assumiram novas

práticas sociais no processo de socialização. A partir de uma interlocução entre Foucault e

Deleuze, a partir do ato de pensar esta realidade, é possível até mesmo argumentar que estes

dispositivos atravessam as pessoas e instituições, impactam também em razão de serem

estes “como componentes linhas de visibilidade, linhas de enunciação, linhas de força, linhas

de subjetivação, linhas de ruptura, de fissura, de fratura que se entrecruzam e se misturam[...]”

(DELEUZE 1990, p. 02).

Tal reflexão provoca a ideia de que as subjetividades, o saber e o poder não têm

contornos definitivos, tampouco são representações universais de uma verdade. Dessa forma,

pode-se pensar que, as mais diversas mulheres estudadas no município de Paracuru, ainda

se submetem a certos princípios de conduta, mas existem as que caminham num processo

de reinvenção, de resistência a determinadas subjetividades moralmente constituídas.

3 ALTINHA, UM CAMPO PARA A INSUBORDINAÇÃO AOS VALORES MORAIS

Para Foucault (2014), as regras e valores podem, ao mesmo tempo, ser

formuladas de forma coerente, doutrinariamente, como também podem ser transmitidas de

forma difusa, sem uma sistematização, passando a constituir-se num jogo complexo de

elementos que acabam por se compensarem, anularem-se e cederem a compromissos ou

Page 7: INSUBORDINAÇÃO NO ESPAÇO MASCULINO: Lidiane Ramos … · o espaço social a ser ocupado pela mulher pode ir além do meio privado; ... Que espaços existem ou incentivos, para

escapatórias. De maneira que para Foucault (2014, p. 32), a partir dessas ressalvas, moral é

compreendida igualmente como,

comportamento real dos indivíduos em relação aos valores e regras que lhes são propostos: designa-se, assim, a maneira pela qual eles se submetem mais ou menos completamente a um princípio de conduta, pela qual eles obedecem ou resistem a

uma interdição ou a uma prescrição.

Esta reflexão abre caminhos para exposição acerca do espaço e lócus das

observações realizadas para fins deste estudo, ou seja, a praia de Paracuru, precisamente as

areias da orla de Paracuru, onde se pratica a modalidade esportiva Altinha. Esta, originada

nas areias fluminenses, tem uma proximidade com o futevôlei, como o futebol, um esporte

que tem na sua base, caraterísticas marcantes dos valores masculinos, constituída a partir do

despertar masculino. Como o futevôlei a Altinha foi pensada por um grupo masculino, na

década de 1990, contudo, ao ganhar expressividade pelas praias do Rio de Janeiro, expandiu-

se para o nordeste, precisamente para João Pessoa, e nesta terra, o reinado é feminino. No

Ceará, pouco se sabia sobre a modalidade, precisamente não tinha conotação competitiva,

até o ano de 2018. Quando também, fora realizado pela primeira vez um campeonato na

cidade de Paracuru. A modalidade, consiste em manter o máximo possível a bola no alto, sem

ter que tocá-la com as mãos, onde os (as) jogadores (as) que devem constituir um quarteto,

sob uma formação circular, precisam destacar habilidade, controle de bola, equilíbrio corporal,

dinâmica, agressividade, criatividade. Dentre os passes mais comuns podem-se destacar: os

chutes, joelhadas e cabeçadas. De acordo com Murilo Abraham (2019), coordenador de

competições em Niterói, Rio de Janeiro, há necessidade de se observar sobretudo, a técnica

e criatividade para não deixar a bola cair.

Diante desta breve exposição sobre a Altinha, destaca-se que a modalidade nas

sus competições exige atualmente que tenha pelo menos uma mulher, ou pessoa que se

identifique com o gênero feminino em cada quarteto. Abrindo assim um novo espaço para

aproximação do mundo feminino com a bola. A atenção dada a esta modalidade se deve

exatamente a esta condição nas competições, o que fez a mesma ser abraçada por mulheres

na cidade de Paracuru, para que fosse realizado o primeiro campeonato de Altinha,

envolvendo doze quartetos, contando todos com a participação mínima de uma mulher. Ao

transpor um pouco dos modelos até então vistos para realizações de competições de esportes

de praia- desde o surf, ao futevôlei na cidade, também foi o primeiro campeonato nas últimas

Page 8: INSUBORDINAÇÃO NO ESPAÇO MASCULINO: Lidiane Ramos … · o espaço social a ser ocupado pela mulher pode ir além do meio privado; ... Que espaços existem ou incentivos, para

décadas realizados por mulheres. Estas mulheres, conseguiram romper com as construções

sociais em torno do papel de mera expectadoras, para serem sujeitos pensantes e executoras

de direitos aos mais diversos segmentos, nas mais diversas idades na prática oficial do

esporte.

Já se sabe que o momento constituiu-se fora das regras e padrões das

competições até então vistas na cidade, ou seja, a organização fora feminina e conseguiu-se

ter a participação feminina nos quartetos. Restava saber os impactos destas participações, os

rebatimentos sobre os doutrinamentos dos corpos destas mulheres participantes. Tendo como

exemplo o futebol, sabe-se que para inserção feminina o imaginário masculino e os discursos

reproduzem a necessidade da masculinização das mulheres ou buscam reconhece-las pelo

processo de erotização dos seus corpos, o que não deve ser tão distante nas demais

modalidades. A exposição das participantes, chamou a atenção pela técnica ou pela beleza

jovial exibida a cada jogada? Na tentativa de responder certas questões, o estudo

bibliográfico e documental ajudou na compreensão acerca das limitações postas as mulheres

para prática esportiva, e os dispositivos existentes para que os códigos morais por muito

tempo ainda em evidencia cheguem a prevalecer em certos habitus e lócus (BOURDIEU,

2014), contudo, não se pode perder de vista jamais o pensamento de que estes não serão

para sempre incorporados e imutáveis.

De acordo com Batista e Devide (2009, p.08), a mulher sofreu uma exclusão na

área esportiva, pois não conheciam os seus organizadores e influenciadores o corpo feminino

nos séculos XIX e início do século XX, sendo sobre “bases biológicas que se construíram os

discursos que normatizavam a participação das mulheres no exercício físico e no esporte,

inclusive sob o formato de decretos.” Os mesmos autores expõem que

acreditava-se que algumas práticas esportivas poderiam masculinizar as mulheres, além de afetar o sistema reprodutivo feminino, cabendo às mulheres apenas o papel social de mãe e protetora do lar. Novas concepções na área biomédica interligadas com a política contribuíram para uma nova fase na Educação Física brasileira, o higienismo, que através de um discurso eugênico, compreendia que a atividade física beneficiava a saúde das mulheres, que com um corpo forte e sadio poderiam gerar filhos saudáveis, tornando a raça brasileira mais forte. Comprovados os benefícios da prática esportiva para as mulheres, as atividades indicadas à Educação Física Feminina eram relacionadas ao desenvolvimento da beleza, feminilidade e maternidade (GOELLNER, 2003), tais como a dança, a ginástica e a natação (DEVIDE, 2004). No entanto, apesar dos avanços históricos em termos de participação, restaram os preconceitos culturais sobre a inserção de mulheres em algumas modalidades esportivas consideradas masculinas, como o futebol (BASTISTA E DEVIDE, 2009, p.08).

Page 9: INSUBORDINAÇÃO NO ESPAÇO MASCULINO: Lidiane Ramos … · o espaço social a ser ocupado pela mulher pode ir além do meio privado; ... Que espaços existem ou incentivos, para

Ao entender que estas questões transformam o universo da mulher ou destinam-

nas apenas a um espaço no processo de socialização, como o espaço privado, deve-se dizer

que as condições para esse estado de subordinação e inserção social também podem ser

modificados, isto é, o espaço social a ser ocupado pela mulher pode ir além do meio privado;

Sendo assim, pode-se dizer que, mesmo existindo diferenças apresentadas pelas

mulheres envolvidas no processo em análise como organizadoras de um campeonato de uma

modalidade esportiva, ou o simples fato de se apresentarem como jogadoras de Altinha nas

areias de Paracuru, pode-se dizer que estas mulheres se aproximaram pelo que lhes é

oportuno, aguçavam-lhes e impulsionavam-lhes a trilhar; por semelhanças pautadas na

condição de vida, de direitos negados, já expressados anteriormente, bem como, no fato de

poderem usar o espaço como imposição também ao direito de serem reconhecidas

tecnicamente, capazes de realizarem ou estarem onde quiserem. A necessidade de praticar

algum esporte para distanciarem-se da vida sedentária, no caso de mães que simplesmente

acompanhavam seus filhos aos jogos e viram na Altinha uma possibilidade de melhorar o

condicionamento físico, bem como, aquelas que estavam vivenciando as descobertas da sua

sexualidade, entregues aos desejos de serem desejadas, visto portanto, as duas perspectivas

como empoderamento feminino diante do universo predominantemente masculino existente

na prática de esportes de praia. Diante do espectro, por que não considerar a citação de

Gohn (2012, p. 23), quando afirma que “experiências vividas no passado, como opressão,

negação de direitos etc., são resgatadas no imaginário coletivo do grupo, de forma a fornecer

elementos para a leitura do presente”. Estas mulheres, meninas, estão se aproveitando de

elementos experimentados no passado, bem como novos elementos do presente e criando

novos devires, num processamento de novos territórios, fortalecendo a passos curtos um

discurso de identidade. Pode-se dizer que em Paracuru há chamas para um compromisso

com a perspectiva de ruptura do espaço privilegiado e moralizador exclusivo para homens, ou

seja, o espaço público também é destinado às mulheres. Portanto, para além de como foram

vistas, sejam pelas belezas, pelo cuidado com a saúde e até mesmo pela vivencia familiar,

estas solidificaram a participação na modalidade e disputam saberes e emancipação na

conjuntura atual. O corpo, portanto, expressa uma mensagem na sua simples aparência

estética, de que está entrelaçado a uma luta ética e de convicções sociais, sobretudo de

posicionamentos acerca do espaço que é de direito da mulher (LIMA, 2015), portanto, como

diz Ferreira (2013), de confrontação social, numa revelação de forças tanto de controle como

de resistência, de subordinação e de emancipação. O mesmo autor ao citar-se afirma que se

deve olhar o corpo como um lugar que vai além de uma atuação disciplinar, devendo ser

olhado

Page 10: INSUBORDINAÇÃO NO ESPAÇO MASCULINO: Lidiane Ramos … · o espaço social a ser ocupado pela mulher pode ir além do meio privado; ... Que espaços existem ou incentivos, para

também como lugar de oposição, resistência e emancipação social. A mobilização social do corpo não está efetivamente reduzida a mecanismos que operam no sentido da sua sujeição e contenção, nomeadamente quando o sujeito investe em usos corporais que têm na sua base a intenção de desafiar a ordem corporal e social existente [...] (FERREIRA, 2013, p. 509).

Ferreira (2013), em suas análises, ao citar Hardin (1999 apud LIMA, 2015, p.112),

“vai conceituar que o corpo é passível socialmente de ser apropriado e reagir enquanto uma

instância de contra-poder, podendo existir reações e enunciações”. No caso das mulheres e

meninas participantes da Altinha, o que se observa ainda é um corpo que se utiliza de

estratégias de poder, estratégias mediadas por artefatos externos como a “própria roupa

utilizada, para manter-se proprietária do seu corpo e do seu olhar para si”, embora ainda não

tenham consciência de si, desse olhar para si e tão pouco do contra-poder como um processo

de insubordinação, contudo, esta existe nas suas mais variadas refrações.

3 CONCLUSÃO

Pode-se dizer o quanto é desafiante adentrar no universo em estudo, tendo em

conta, as diversidades de elementos envolvidos, ao considerar um espaço tão pouco

estudado nesta cidade e tão pouco visto como importante a sistematização das construções

sociais desta realidade em questão. Em meio aos caminhos de retrocessos no país, e na

cidade de Paracuru, o contexto não está diferente, tendo em vista, que fora praticamente

extinta das mesas técnicas de discussões a pauta da mulher, ou mesmo, não há uma política

pública que olhe para os direitos das mulheres e promovam as igualdades necessárias entre

os gêneros.

Contudo, pode-se enfatizar que no meio dos turbilhões de emoções e questões

objetivas postas quanto a participação feminina em espaços como o esportivo, precisamente

da Altinha em Paracuru, fora possível perceber que há anseios, desejos e vontades das

mulheres deste estudo, como um processo que se aproxima da contestação de seus corpos

aos poderes disciplinadores. Mulheres que lutam contra valores e arquétipos que os tornaram

exclusivos do gênero feminino, que as levaram à subordinação, ou mesmo a perfis

estereotipados e preconceituosos, passando a ser marginalizadas, no caso do esporte muitas

vezes masculinizadas e erotizadas. Hoje, porém, encontram-se num processo de reação e

enunciação de novas territorializações, resistentes e ressignificando seus espaços.

Page 11: INSUBORDINAÇÃO NO ESPAÇO MASCULINO: Lidiane Ramos … · o espaço social a ser ocupado pela mulher pode ir além do meio privado; ... Que espaços existem ou incentivos, para

REFERÊNCIAS

ABRAHAM, Murilo. Altinha na praia: Prazer e exercício à beira-mar! Conheça mais sobre o

esporte! In: Conquiste sua vida. Disponível em:<

https://www.conquistesuavida.com.br/noticia/altinha-na-praia-prazer-e...a.../.> Acesso em: 30

abr. 2019.

ARENDT, H. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro. Forense

Universitária, 2010.

BATISTA, Renata Silva, DEVIDE, Fabiano PRIES. Mulheres, futebol e gênero: reflexões sobre

a participação feminina numa área de reserva masculina. In: Revista Digital - Buenos Aires -

Año 14 - Nº 137 - Octubre de 2009. Disponível em:

<https://www.efdeportes.com/efd137/mulheres-futebol-e-genero.htm.> Acesso em: 30 abr.

2019.

BOURDIEU, P. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. Ed. Rio de

Janeiro: BestBolso, 2014.

COSTA, C. de L. O tráfico do gênero. In: Cadernos Pagu, 11, 1998.

COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. 2 ed.Rio de Janeiro:Graal,1983.

DELEUZE, Gilles. Que és un dispositivo? In: Michel Foucault, filósofo.

Barcelona: Gedisa, 1990, pp. 155-161. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento.

Disponível <http://escolanomade.org/2016/02/24/deleuze-o-que-e-um-dispositivo/. > Acesso

em: 05 abr. 2019.

FERREIRA, Beth (Org.). HISTORIA NO VERBO MULHER NEGRA. In: CARNEIRO, Sueli. “A

mulher negra na sociedade brasileira – O papel do movimento feminista na luta antiracista”.

Disponível apenas em versão impressa In: MUNANGA, Kabengele (Org.). História do Negro

no Brasil. Brasília: Publicação da Fundação Cultural Palmares-Minc, com apoio do CNPQ,

2004, v. 1, p.1-14 2. UNIVERSIDADE LIVRE FEMINISTA. 2018. Disponível em:<

https://universidadefeminista.org.br/login/index.php> Acesso em: 11 out 2018.

FERREIRA, V. S. Resgates sociológicos do corpo: esboço de um percurso conceptual.

Análise social. Lisboa, Portugal, 208, XLVIII (3º), 2013. Disponível em:

<http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/AS_208_a01.pdf.>. Acesso em: 03 out. 2015.

FONSECA, J. P. A. da. Considerações sobre a constituição do sujeito do cuidado de si no

pensamento de Michel Foucault. In: Veritas, v. 57, n.º 1, jan./abr. 2012, p. 143-152.

Page 12: INSUBORDINAÇÃO NO ESPAÇO MASCULINO: Lidiane Ramos … · o espaço social a ser ocupado pela mulher pode ir além do meio privado; ... Que espaços existem ou incentivos, para

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto

Machado. São Paulo: Graal, 2012.

_____, M. História da sexualidade: a vontade do saber. Tradução de Maria Thereza da Costa

Albuquerque; revisão técnica de José Augusto Guilhon Albuquerque. 1. ed. São

GOHN, M. da G. Movimentos sociais e educação. São Paulo: Cortez, 2012. (Coleção

questões da nossa época; v. 37).

HERNÁNDEZ SAMPIERI, R.; COLLADO, C. F.; LUCIO, M. del P. B. Metodologia de

pesquisa. Tradução de Daisy Vaz de Moraes; revisão técnica de Ana Gracinda Queluz

Garcia, Dirceu da Silva e Marcos Júlio. Porto Alegre: Penso, 2013.

LIMA. L. R. Mulheres Agentes Sociais de Paracuru: uma trajetória de significados para além

do espaço privado. Fortaleza, 2015. 191f. Dissertação ( Curso Mestrado Acadêmico em

Políticas Públicas e Sociedade com área de concentração em políticas públicas e sociedade)

Universidade Estadual do Ceará-UECE. Fortaleza, 2015, p. 119-125.

______.; CASTRO, F. M. F. M. POLÍTICAS PÚBLICAS COMO ESPAÇO DE

DESCONSTITUIÇÃO DAS RELAÇÕES DESIGUAIS DE GÊNERO: exercício de participação

e poder. In: Educação em Direitos Humanos, Gênero e Diversidade: Experiência e

Desafios. Fortaleza, Governo do Estado do Ceará e UFC virtual. 2015.

_____. As representações da masculinidade e os caminhos trilhados pelo homem da

classe popular. Monografia (Graduação em Serviço Social). Universidade Estadual do

Ceará. Fortaleza, 2001.

SAMARA, E. de M. A família brasileira. Editora Brasiliense S.A., 1986.

PISCITELLI, Adriana. Reflexões em torno do Gênero e Feminismo. In: COSTA, Claudia de

Lima; SCHMIDT, Simone Pereira (Orgs). Poéticas e políticas feministas. Florianópolis: Ed.

Mulheres, 2004, p.43-66.

RABAY, G. de L. F. Mulheres na política e autonomia. Tese (Doutorado em Ciências

Sociais) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas Letras

e Artes. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Área de Concentração: Cultura e

Representações. Natal/ RN. 2008.

WOOLF, Virginia. Pensamentos feministas: sobre as mulheres e o feminismo. In: Curso

Feminismo com quem tá chegando – 2018. UNIVERSIDADE LIVRE FEMINISTA.

Disponível em:< https://universidadefeminista.org.br/login/index.php> Acesso em: 11 out

2018.