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INSTITUTO SUPERIOR DE CIÊNCIAS DO TRABALHO E DA EMPRESA DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA O PENSAMENTO SOCIAL SOBRE O POLÍTICO EM MOÇAMBIQUE. ESTUDO DE CASO DA CIDADE DE TETE. Gabriel Sérgio Mithá Ribeiro Tese submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Estudos Africanos Interdisciplinares em Ciências Sociais, na especialidade de Política e Relações Internacionais em África Orientador Professor Doutor Franz-Wilhelm Heimer Professor Catedrático Jubilado Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE – Lisboa) Outubro de 2008

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INSTITUTO SUPERIOR DE CINCIAS DO TRABALHO E DA EMPRESA

DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

O PENSAMENTO SOCIAL SOBRE O POLTICO EM MOAMBIQUE. ESTUDO DE CASO DA CIDADE DE TETE.

Gabriel Srgio Mith Ribeiro

Tese submetida como requisito parcial para obteno do grau de Doutor em

Estudos Africanos Interdisciplinares em Cincias Sociais, na especialidade de

Poltica e Relaes Internacionais em frica

Orientador Professor Doutor Franz-Wilhelm Heimer

Professor Catedrtico Jubilado Instituto Superior de Cincias do Trabalho e da Empresa (ISCTE Lisboa)

Outubro de 2008

INSTITUTO SUPERIOR DE CINCIAS DO TRABALHO E DA EMPRESA

DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

O PENSAMENTO SOCIAL SOBRE O POLTICO EM MOAMBIQUE. ESTUDO DE CASO DA CIDADE DE TETE.

Gabriel Srgio Mith Ribeiro

Tese submetida como requisito parcial para obteno do grau de Doutor em

Estudos Africanos Interdisciplinares em Cincias Sociais, na especialidade de

Poltica e Relaes Internacionais em frica

Orientador Professor Doutor Franz-Wilhelm Heimer

Professor Catedrtico Jubilado Instituto Superior de Cincias do Trabalho e da Empresa (ISCTE Lisboa)

Outubro de 2008

O pensamento social sobre o poltico em Moambique Estudo de caso da cidade de Tete

Palavras-chave: estudos africanos; pensamento social; representaes sociais; cultura

poltica; estado; Moambique; Tete; colonizao portuguesa; processo de transio;

Frelimo; Renamo; Samora Machel; Joaquim Chissano; Armando Guebuza; Afonso

Dhlakama; socialismo; guerra; multipartidarismo; democracia; eleies.

Resumo

A investigao aborda o pensamento social sobre o poltico. A componente terica

estrutura-se em torno do conceito de representaes sociais (Moscovici), associado aos

conceitos de cultura poltica (Almond & Verba) e de estado (Weber; Bayart), bem como a

uma definio precisa de objecto de atitude (Chaiken & Eagly). A ancoragem da pesquisa

na realidade emprica fez-se na cidade de Tete (Moambique), sendo que a componente

essencial do trabalho de campo (2004) assentou em 61 entrevistas semi-estruturadas que

visaram captar, nos discursos do senso comum, juzos valorativos (tendencialmente

positivos ou negativos) de objectos polticos associados ao estado.

O tratamento do material emprico permitiu analisar um conjunto de themata (Moscovici &

Vignaux) dos discursos do senso comum atravs dos quais se revelam as representaes

sociais do macro-poltico em Moambique. Esses themata remetem, respectivamente, para

o perodo colonial (at 1974-1975); para o processo de transio para a independncia

(1974-1975); para a governao de Samora Machel (1975-1986); e para a governao de

Joaquim Chissano (1986-2004).

A investigao insere-se numa perspectiva epistemolgica de tendncia construtivista que

recusa considerar o poltico como essncia dada, mas antes aborda-o enquanto fenmeno

social em permanente reelaborao. Desse modo, a produo do poltico s pode ser

captada, na sua verdadeira essncia, olhando para e a partir das respectivas sociedades. O

estudo visa explicar como que o senso comum pensa a poltica ou, dito em linguagem

coloquial, analisa o que est na cabea das pessoas comuns sobre poltica em Moambique.

i

O pensamento social sobre o poltico em Moambique Estudo de caso da cidade de Tete

Key words: African studies; social thinking; social representations; political culture;

state; Mozambique; Tete; Portuguese colonization; process of transition; Frelimo;

Renamo; Samora Machel; Joaquim Chissano; Armando Guebuza; Afonso Dhlakama;

socialism; war; multiparty system; democracy; elections.

Resume

The research deals with the social thinking on politics. The theoretical approach is

structured around the concept of social representations (Moscovici), linked to the concepts

of political culture (Almond & Verba) and state (Weber; Bayart), as well as to a precise

definition of the subject of attitude (Chaiken & Eagly). The empirical was carried out in

the city of Tete (Mozambique). The main fieldwork (2004) implied 61 semi-structured

interviews designed to identify, in common sense speech, value (positive or negative)

judgements of political objects referred to the state.

The treatment of the empirical material allowed to distinguish, and analyze, a set of

themata (Moscovici & Vignaux) which reveal social representations of the macro-political

in Mozambique. These themata refer, respectively, to the colonial period (until 1974-1975)

to the process of transition to independence (1974-1975) to the government of Samora

Machel (1975-1986) and to the governance of Joaquim Chissano (1986-2004).

The research is epistemologically placed in a tendentially constructivist perspective that

refuses to consider the political as a given, but considers the political as a social

phenomenon in permanent re-elaboration. Thus, the production of the political can only be

understood in its true characteristics, looking to and from the societies themselves. The

study seeks to explain how the common sense thinks the political; in colloquial terms, it

analyzes what is in the minds of ordinary people with regard to politics in Mozambique.

ii

O pensamento social sobre o poltico em Moambique Estudo de caso da cidade de Tete

AGRADECIMENTOS

vasta a lista de pessoas e instituies que, pelo seu apoio, permitiram a realizao da

investigao que agora se apresenta. Sendo certamente injusta a omisso de muitas,

destaco algumas.

Na nica situao em que no hesito nas precedncias, deixo registado o agradecimento ao

meu Orientador, Professor Doutor Franz-Wilhelm Heimer, pelo apoio acadmico

completo. Apoio completo significa, em primeiro lugar, que o seu rigor e lucidez

intelectuais se traduziram em orientaes e crticas invariavelmente teis e construtivas, do

incio ao fim da investigao; em segundo lugar, porque a sua postura pedaggica tem sido

exemplar, nomeadamente ao ter incentivado e facultado sistematicamente a possibilidade

de eu participar em iniciativas acadmicas, nomeadamente em diversas conferncias,

colquios e debates sobretudo para apresentar partes da investigao que ia

desenvolvendo; em terceiro lugar, sem essa conjugao o meu amadurecimento como

investigador e a qualidade deste texto seriam seguramente mais pobres. Contacto com o

Professor Doutor Franz-Wilhelm Heimer h mais de uma dcada e reconheo nele

qualidades acadmicas raras, associadas disponibilidade pessoal, sentido de justia e de

responsabilidade, bem como apoio em pequenas questes que muitos talvez considerem

como meramente burocrticas ou comezinhas, mas que so decisivas para o sucesso do

trabalho acadmico.

Agradeo tambm a todos os investigadores africanistas com quem fui discutindo ao longo

destes anos questes relacionadas com as sociedades africanas, em especial aos que

integraram o projecto de investigao do Centro de Estudos Africanos do ISCTE

Recomposio dos espaos polticos na frica Lusfona: Antnio Correia e Silva; Arlindo

Carvalho; Carlos Cardoso; Elisete Marques da Silva; Elsio Macamo; Nelson Pestana; e o

coordenador do projecto, Franz-Wilhelm Heimer. Este trabalho tributrio dos muitos

debates que fomos mantendo entre 2001 e 2005.

Em Moambique, no posso esquecer o apoio dos meus familiares e amigos. Sem eles

talvez no realizasse com prazer, segurana e vontade um trabalho de campo que

iii

Agradecimentos

remonta a 1997. Nos agradecimentos individuais serei, sem dvida, injusto. Mas no posso

deixar de destacar o meu tio materno, Ismael Mith, e a minha prima materna em primeiro

grau, Fuzia Isac (Guida).

Em Moambique ainda devo agradecer, por um lado, aos que me ajudaram no trabalho de

campo, em especial ao meu guia/colaborador na cidade de Tete, Domingos Arroz, e a todas

as pessoas com quem conversei ao longo destes anos sobre os problemas que afectam a

sociedade (ou as sociedades) do meu pas natal.

Por ltimo, palavras de reconhecimento ao apoio de quatro instituies.

Embora seja um scio relativamente ausente, tenho tido no Centro de Estudos Africanos

(CEA) do Instituto Superior de Cincias do Trabalho e da Empresa (ISCTE) um

acolhimento afvel e competente desde que o comecei a frequentar em 1996. Rapidamente

percebi que o CEA-ISCTE (Lisboa) uma instituio de referncia a nvel internacional e

que, felizmente, conseguiu abrir, manter e aprofundar contactos profcuos no plano

acadmico com centros de investigao e investigadores dos pases africanos.

Como docente de histria do ensino bsico e secundrio em Portugal desde 1991, estou

parcialmente grato ao Ministrio da Educao por me ter concedido o estatuto de

equiparao a bolseiro nos anos lectivos de 2002-2003, 2003-2004 e 2004-2005, mas que

poderia ter sido prorrogado por mais dois anos, conforme legalmente previsto. Na fase

mais sobrecarregada da concluso da investigao, em 2005, a alterao governativa

entretanto ocorrida teve como consequncias, para o ano lectivo de 2005-2006, o

indeferimento do pedido de renovao da equiparao a bolseiro e, para o ano lectivo de

2006-2007, um novo indeferimento da solicitao de um ano de licena sabtica, deciso

sem fundamentos convincentes que a justificassem. Assim, alm da sobrecarga da

actividade lectiva a tempo inteiro, tornou-se impossvel prosseguir o trabalho de campo em

Tete nos moldes em que estava inicialmente planificado. Tendo em considerao o lugar-

comum do papel estratgico de frica para Portugal, a atitude do Ministrio da Educao

de Portugal desde 2005 em relao a esta investigao caracteriza a negao desse

desiderato. As atitudes responsabilizam quem as toma.

iv

O pensamento social sobre o poltico em Moambique Estudo de caso da cidade de Tete

Uma palavra de agradecimento Fundao para a Cincia e a Tecnologia (FCT) que, por

diversas vezes, financiou iniciativas importantes para o meu percurso de investigador nos

ltimos anos.

Em ltimo lugar, mas no menos importante, agradeo Fundao Luso-Americana para o

Desenvolvimento (FLAD) o apoio financeiro que permitiu suportar parte dos custos com

as viagens a Moambique em 2004.

Aos aqui referidos e a todas as pessoas e instituies que esto omissos e que me apoiaram

nesta investigao, os meus sinceros agradecimentos.

Gabriel Mith Ribeiro

Lisboa, Outubro de 2008

v

Agradecimentos

vi

O pensamento social sobre o poltico em Moambique Estudo de caso da cidade de Tete

NDICE

INTRODUO................................................................................................................................................................ 1 I PARTE TEORIA E METODOLOGIA...................................................................................................................5 1. Um ponto de partida..................................................................................................................................................7 2. A dimenso subjectiva da poltica.......................................................................................................................15 3. Perspectiva terica e instrumentos de anlise................................................................................................19

3.1. O conceito de representaes sociais: themata, comunicao, tempo e senso comum................ 20 3.2. Representaes sociais, cultura poltica e atitudes ............................................................................. 32 3.3. A cultura poltica ........................................................................................................................................... 37 3.4. As atitudes...................................................................................................................................................... 43 3.5. O estado .......................................................................................................................................................... 46

4. O estudo do pensamento social em frica e em Moambique .................................................................... 57 4.1. Uma perspectiva sobre frica.................................................................................................................... 57 4.2. Estudos sobre Moambique: hiptese de sistematizao................................................................... 67

5. Tete: provncia e cidade (Moambique) ............................................................................................................ 73 5.1. A regio de Tete ............................................................................................................................................ 73 5.2. A cidade de Tete ........................................................................................................................................... 86

6. O trabalho de campo ............................................................................................................................................. 99 6.1. A escolha dos entrevistados em 2004..................................................................................................... 101 6.2. A categoria social em estudo ................................................................................................................... 103 6.3. O registo e tratamento de dados............................................................................................................ 107

ENTRE TEORIA E EMPIRIA...................................................................................................................................111 7. Notas historiogrficas: uma introduo.......................................................................................................... 113 8. O estado em Moambique na longa durao ................................................................................................... 115

8.1. A constituio do estado no sculo XIX................................................................................................. 1168.2. A poltica colonial do Estado Novo.......................................................................................................... 122 8.3. O eplogo colonial e a luta pela independncia ..................................................................................... 126 8.4. A primeira repblica ps-colonial (1975-1992/4) ............................................................................... 134 8.5. A segunda repblica ps-colonial (desde incios dos anos 90) ......................................................... 143

9. Nota de abertura da anlise emprica (II a V partes) ................................................................................ 151

vii

ndice

II PARTE REPRESENTAES SOCIAIS DA POCA COLONIAL .......................................................... 153 10. Notas preliminares: atributos salientes da colonizao........................................................................... 155 11. Apropriao da herana civilizacional europeia........................................................................................... 157

11.1. O mal necessrio ......................................................................................................................................... 16511.2. Eles civilizaram-nos ................................................................................................................................... 170 11.3. Vida material e reelaboraes da colonizao .................................................................................... 173

12. Estado versus igrejas........................................................................................................................................ 179 13. Ns e os out os: o papel simblico das fronteirasr ..................................................................................... 183 14. Colonialistas portugueses e ingleses: a salincia do racismo.............................................................. 195 15. As caractersticas da sociedade ....................................................................................................................205 16. Colonialismo sem herdeiros polticos ........................................................................................................ 213 III PARTE REVOLUO E PENSAMENTO SOCIAL (1974-1975).......................................................... 217 17. As representaes sociais geradas na transio poltica (1974-1975) ................................................ 219 18. Aplicao emprica de uma teoria...................................................................................................................229 19. Ancoragem e objectivao do novo ................................................................................................................235

19.1. Ancoragem da nova representao social ............................................................................................235 19.2. Objectivao: a Frelimo tornada essncia ..........................................................................................248

20. A nova elite de um povo e de um estado velhos .........................................................................................265 IV PARTE O QUE PERMANECEU......................................................................................................................275 21. Um estado conservador ....................................................................................................................................277 22. Estado e mundo rural: relao com forte significado ..............................................................................283 23. Representaes sociais da ordem pblica ................................................................................................... 291 24. Estado, indivduo e propriedade.....................................................................................................................295 25. Moambique: um caso de continuidade histrica .......................................................................................299 V PARTE REPRESENTAES SOCIAIS DO PERODO PS-COLONIAL.............................................307 26. O perodo ps-colonial: nota de abertura ....................................................................................................309 27. Sintoma da guerra ..............................................................................................................................................311 28. Estado: a representao social de uma palavra .........................................................................................325

28.1. Relao de alteridade entre o poder e o povo....................................................................................325 28.2. Onde comea e onde acaba o estado? ................................................................................................329 28.3. Separar o Partido do estado sem discriminar o pblico do privado ...........................................333

29. Atributos do lder ou atributos do estado?................................................................................................343 29.1. Machel, Chissano, Guebuza e Dhlakama...............................................................................................353

30. Representaes sociais da participao eleitoral...................................................................................... 381 30.1. A bondade das eleies ...........................................................................................................................383 30.2. Participao eleitoral: contradies e especificidades .................................................................384 30.3. Democracia: uma palavra com valor .....................................................................................................396

CONCLUSES ...........................................................................................................................................................403 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................................................433 ANEXOS .....................................................................................................................................................................457 Anexo da I parte Guio, dados estatsticos e sociogrficos das entrevistas (2004). ........................459 Anexo da II parte Excertos de discursos sobre a poca colonial ............................................................485 Anexo da III parte Excertos de discursos sobre a transio para o ps-colonial ..............................503 Anexo da IV parte Excertos de discursos sobre continuidades entre o colonial e o ps-colonial ...509 Anexo da V parte Excertos de discursos sobre o perodo ps-colonial................................................... 517 Curriculum vitae do candidato .553

viii

O pensamento social sobre o poltico em Moambique Estudo de caso da cidade de Tete

INTRODUO

O estudo que se apresenta surge na sequncia de outro que decorreu entre 1997 e 20001.

Ento ficou a ideia de se ter enveredado por um domnio da investigao acadmica

praticamente inexplorado na perspectiva a que nos propusemos: analisar a dimenso

poltica do pensamento social em Moambique partindo, essencialmente, de dois

conceitos: o de cultura poltica e o de representaes sociais. De 2001 em diante demos

continuidade a essa primeira investigao que, vista aos olhos de hoje, no foi mais do que

uma fase preparatria de um percurso agora um pouco mais consolidado.

Da primeira para a segunda pesquisa corrigimos enfoques estruturais no sentido de assumir

de modo explcito e coerente uma posio epistemolgica de tendncia construtivista. No

plano terico a consequncia essencial foi a inverso dos termos: a primazia passou do

conceito de cultura poltica de Gabriel Almond e Sidney Verba2 para o conceito de

representaes sociais de Serge Moscovici3. Essa foi uma inverso decisiva, no s pela

rigidez normativa da proposta de Gabriel Almond e Sidney Verba, como tambm porque

um investimento persistente no conceito proposto por Serge Moscovici revelou-se

profcuo. Por outro lado, ainda no plano terico, outros dois instrumentos analticos foram

introduzidos: o de objecto de atitude a partir da definio proposta por Shelly Chaiken e

Alice Eagly4 e o modelo tripartido atravs do qual Albert Hirschman enquadra a aco

social (exit, voice & loyalty)5. Ao nvel da operacionalizao da abordagem, reforou-se o

conceito de estado6 por se tratar do referente central na delimitao do que se entende por

poltico na investigao. Caminhmos, desse modo, para a consolidao de um modelo de

anlise que marca diferenas qualitativas em relao pesquisa anterior para o mestrado7.

No plano metodolgico, mantivemos o trabalho de campo assente em entrevistas semi-

directivas que permitiam captar, nos discursos do senso comum, temas associados aco

do estado em Moambique desde o perodo colonial actualidade. Tambm houve, a esse

1 Ribeiro 2000. 2 Almond & Verba 1989 [1963], pp.1-44. 3 Moscovici 2000 [1984]; Moscovici & Vignaux 2000 [1994]. 4 Chaiken & Eagly 1993. 5 Hirschman 1970. 6 Bayart 1989; Idem 1996; Weber 1978 [1922]. 7 Ribeiro 2000.

1

Introduo

nvel e aps uma nova fase exploratria em 2003, uma mudana de enfoque em 2004. At

ento as recolhas empricas haviam decorrido em diferentes espaos do pas (nas

provncias de Maputo, Tete e Nampula, em espaos rurais e urbanos, com uma ida pontual

cidade de Lichinga na provncia do Niassa). Em 2004, para uma mais eficaz ancoragem

da pesquisa na realidade emprica, optmos pela focalizao num espao especfico: a

cidade de Tete. Essa constituiu a etapa mais importante das recolhas empricas. Realizmos

ainda um trabalho de campo complementar na cidade e em vrios distritos da provncia de

Tete em 2008 que permitiu validar, corrigir e complementar os dados anteriormente

recolhidos.

As vantagens metodolgicas que justificaram a focalizao na cidade de Tete tm a ver no

s com o facto de termos trabalhado continuamente nesse espao desde 1997, como

tambm porque as suas caractersticas (uma cidade pequena do centro-interior/noroeste do

pas onde o estado tem mantido uma presena forte desde a poca colonial) permitiam

delimitar com o rigor necessrio um universo de anlise. Os objectivos eram, por um lado,

captar a maior diversidade possvel do pensamento de determinado tecido social (a cidade

de Tete) e, por outro lado, analisar as caractersticas das representaes sociais sobre o

poltico que era possvel detectar nessa diversidade.

Assim sendo, o presente estudo de caso encontra as suas especificidades no s na

perspectiva analtica elaborada, nem apenas por se focalizar numa determinada realidade

emprica, mas tambm porque articula a diversidade social de um espao especfico no

contexto nacional (a cidade de Tete) com um referente do pensamento social que remete

precisamente para a formao territorial nacional (o estado em Moambique). Ou seja,

estar em anlise a dimenso poltica do pensamento social referenciado ao estado em

Moambique, a partir de um trabalho de campo levado a cabo, na sua essncia, na cidade

de Tete.

Nesta como na anterior investigao existe a conscincia de no se ter produzido nada de

definitivo. Na verdade, trabalhar a dimenso subjectiva do social, em particular a dimenso

poltica do pensamento social, faz perceber, ao mesmo tempo, por um lado, a fragilidade e

falibilidade dos instrumentos de anlise disponveis e, por outro lado, que a sociedade na

qual tm incidido as pesquisas est longe de corresponder a um tecido social sedimentado.

2

O pensamento social sobre o poltico em Moambique Estudo de caso da cidade de Tete

As dinmicas de recomposio social e poltica do ltimo meio sculo em Moambique

arriscam a que se desactualizem com relativa rapidez as anlises que tomam o poltico por

adquirido. Propomos, por isso, apresentar como que uma fotografia de uma realidade

dinmica captada num momento preciso. E as fotografias no cristalizam as realidades

sociais. As ltimas so intrinsecamente dinmicas e radicalmente autnomas.

Se esse conjunto de pressupostos implica estar-se perante uma investigao que s pode ter

a ambio de ser exploratria, essa tambm uma garantia da existncia de um terreno

social apelativo para a continuidade de pesquisas desta natureza. No menos relevante, o

trabalho tenta ainda contribuir para que se reforcem os debates tericos no mbito dos

estudos africanos. No basta afirmar que os instrumentos de anlise existentes so

inadequados para as sociedades africanas porque as ltimas so especficas. necessrio

test-los em estudos de caso para avaliar as suas potencialidades e limitaes. Nesse

sentido, apesar da sua matriz ocidental, esta pesquisa tem tambm como propsito chamar

a ateno para a pertinncia do conceito de representaes sociais no estudo das sociedades

africanas. At por se tratar de um conceito derivado de uma teoria suficientemente

consistente que pode contribuir para a consolidao de um campo de pesquisas no mbito

dos estudos africanos.

Quanto sistematizao e anlise dos dados empricos, o que se prope um percurso

(nem sempre de leitura fcil) por diversos temas identificados no material emprico, temas

esses que constituem ncleos a partir dos quais se elaboram e renovam, na actualidade,

conjuntos de representaes sociais das relaes entre o estado e as sociedades em

Moambique ao longo do tempo. uma tentativa de elaborar um mapeamento do que

existe na cabea das pessoas comuns sobre poltica. Nesses processos, se, por um lado, a

histria, as ideologias ou determinados acontecimentos constituem a matria-prima para

que os actores sociais elaborem as suas representaes do poltico; por outro lado, a

investigao encontra nos discursos do senso comum (aqueles discursos que circulam no

espao pblico e que resultam das interaces quotidianas) a fonte primordial que permite

captar de modo contextualizado o objecto de estudo.

O texto comea pela explicitao da perspectiva terica e metodolgica da investigao (I

parte). Segue-se o enquadramento no tempo e no espao da regio e da cidade em estudo

3

Introduo

(Entre a Teoria e a Empiria). Da em diante o estudo centra-se na abordagem da realidade

emprica, cujo material recolhido organizado com base numa sequncia cronolgica

iniciada com a anlise das representaes sociais do estado na poca colonial (at

1974/1975) (II parte); seguida da anlise das representaes sociais do processo de

transio para a independncia (1974-1975) (III parte); depois analisam-se as

representaes sociais que permitem sustentar a tese da continuidade entre o colonial e o

ps-colonial monopartidrio ao nvel do tipo de relacionamento entre as sociedades e o

poder que as tutela (IV parte); o estudo do material emprico termina com a anlise das

representaes sociais que se reportam aco do estado no perodo ps-colonial socialista

(1975-incios dos anos noventa) e multipartidrio (a actualidade iniciada nos anos noventa)

(V parte). Seguem-se as concluses, a bibliografia e os anexos.

4

I PARTE

TEORIA E METODOLOGIA

() there was a convergence between the Marxists and non-Marxists points of view: common knowledge is infectious, deficient and wrong. So, after the war, I reacted in a way against this point of view and tried to rehabilitate common knowledge which is grounded in our ordinary experience, everyday language and daily practices. But deep down I reacted against the underlying idea which had preoccupied me at a given moment, that is, the idea that le peuple ne pense pas,people are not capable of thinking rationally, only intellectualsare. I was grew up at a time when fascism reigned, so one could say that, on the contrary, it is intellectuals who are not capable of thinking rationally, since in the middle of the twentieth century they have produced such irrational theories as racism and nazism. () the problem for me became the following one: how is scientific knowledge transformed into common or spontaneous knowledge? () I saw the transforming of scientific knowledge into common knowledge as a possible and exciting area of study (Serge Moscovici in: Moscovici & Markov 2000 [1998], p. 228).

1. Um ponto de partida

6

O pensamento social sobre o poltico em Moambique Estudo de caso da cidade de Tete

1. Um ponto de partida

As obras tm igualmente uma dinmica prpria e imprevisvel, o que significa, que por mais elaboradas que sejam as teorias de partida, elas acabam por adquirir uma espcie de vida prpria, de onde resulta um todo final que mais um produto das circunstncias e condicionantes que da teoria (Antnio Jos Telo 2007, p.14).

O estudo do poltico tem sido dos mais apelativos no mbito da anlise social, sendo que a

perspectiva adoptada pela investigao a de considerar que quem analisa o poltico tem

de faz-lo olhando para e a partir das respectivas sociedades. Desse pressuposto decorre o

resto. Tais interesses analticos tendem a reforar-se nos perodos ou fases de alterao de

regimes polticos como tem acontecido na generalidade da frica Subsaariana desde finais

dos anos cinquenta do sculo XX, particularmente a partir das primeiras transies para as

independncias. Os processos de recomposio social e poltica em frica tm-se mantido,

desde essa altura, particularmente intensos. Constituem desafios permanentes para os

analistas de fenmenos sociais que tentam captar o sentido desses processos. Na maior

parte dos casos trata-se de tecidos sociais em transformao acelerada e, portanto, pouco

sedimentados, o que rapidamente tende a desactualizar as anlises e os instrumentos em

que se sustentam, tornando-as extraordinariamente falveis. Acrescente-se que o territrio

da maior parte dos pases hoje independentes abrange constelaes complexas e

heterogneas, o que dificulta adicionalmente as anlises orientadas para o nvel nacional.

Se podem, por isso, ser legtimas, de algum modo, as percepes de permanente

instabilidade de parte significativa das sociedades africanas, essa perspectiva torna-se

problemtica quando, a essas percepes, no se contrapem outras que busquem lgicas

de continuidade, mesmo e sobretudo na transio do colonial para o ps-colonial. Ir ao

encontro de perspectivas que apontem para uma constante interaco entre as

permanncias e as mudanas, constitui um dos desafios da investigao. Cremos no andar

longe da verdade se considerarmos que a reside um dos maiores interesses de

investigaes que versem sobre o social. Por seu lado, o terreno emprico para tais

pesquisas em sociedades da frica Subsaariana pode resumir-se a: vastido, riqueza e

complexidade.

7

1. Um ponto de partida

Obedecendo as anlises do poltico, nos mais diversos contextos, a um elevado potencial

de seduo, at pela sua complexidade e subjectividade, em frica quando a abordagem do

poltico se referencia ao estado, remetendo desse modo para as formaes territoriais

nacionais, s caractersticas que os processos sociais de natureza poltica envolvem,

importante acrescentar outras. Nomeadamente aquelas que apontam para o cruzamento

entre o endgeno e o exgeno; entre a herana colonial e as tradies autctones; entre

situaes onde o rural parece absorver o urbano; outras onde o urbano parece ganhar

ascendncia sobre o rural; entre fluxos migratrios permanentes, sazonais, conjunturais,

tanto internos quanto externos; entre contextos onde se sobrepem e complementam

mundos diferentes (um cosmopolita, outro regional e outro virado para o isolamento nos

espaos ancestrais), com actores sociais capazes de interagir nos diversos contextos; entre

dimenses da vida social como a religio, a poltica, os laos de parentesco ou vida

econmica separadas por referentes demasiado tnues. Esta listagem aleatria seria

interminvel.

Porm, o que se pretende sublinhar que a diversidade no interior das formaes sociais

africanas conceito que remete para a noo de indivduos ligados entre si por uma rede

de inter-relaes concretas historicamente constitudas, independentemente do seu grau de

complexidade8 obriga a precaues analticas que evitem abordar esse universo (ou esse

conjunto de universos) de forma indiscriminada, difusa ou por simples mimetismos a partir

de outros tipos de sociedade.

Opes tericas e metodolgicas conscientes, por um lado; e a ancoragem das pesquisas

num contexto social especfico (determinvel a partir de critrios como os que remetem

para referentes geogrficos, pertenas tnicas, religiosas ou polticas, por exemplo), por

outro lado constituem duas linhas fundamentais na estruturao da investigao que

permitem enquadr-la com relativa preciso. Uma preocupao de raiz a procura da

eficcia analtica pela construo de uma lgica interpretativa coerente ao longo do texto.

Inteno tanto mais relevante quanto a focagem da anlise incide sobre um domnio do

social que, por muito que se tente delimitar, no deixa de ser incomensurvel, subjectivo,

complexo, contraditrio: a dimenso poltica do pensamento social.

8 Cf. Gresle 1999, p.235.

8

O pensamento social sobre o poltico em Moambique Estudo de caso da cidade de Tete

Na I parte do texto far-se-o, no incio, algumas consideraes tericas. Depois uma

abordagem exploratria de algumas investigaes em domnios prximos do estudo do

pensamento social sobre o poltico. Ficar para o ponto seguinte a apresentao da

realidade emprica em estudo (a cidade e a regio de Tete Moambique). Por ltimo, uma

reflexo de cariz metodolgico sobre o trabalho de campo.

As clarificaes tericas e metodolgicas constituem uma componente essencial. Todavia,

deve ser sublinhado que o texto no tem a ambio de se centrar nesse tipo de

problemticas. Pretende-se apenas recorrer de modo pragmtico a um conjunto de

conceitos disponvel no mercado das ideias, conferir articulao a esse conjunto em funo

dos objectivos da investigao e explicitar os suportes metodolgicos do trabalho. , por

isso, importante que o leitor distinga, no texto, o que meramente instrumental (a

componente terica e metodolgica) do que essencial (o estudo de uma realidade

emprica especfica). Se um no pode existir sem o outro, e tendo em conta que a dinmica

entre eles implica um condicionamento mtuo (tanto pode ser a teoria a condicionar as

percepes da realidade social como o inverso), opta-se conscientemente por privilegiar a

realidade social, o que confere investigao o carcter de estudo de caso eminentemente

emprico.

Sublinhe-se, nesse sentido, que o trabalho procurou distanciar-se do que se pode estar a

tornar um lugar-comum entre os africanistas, concretamente a ideia de que os quadros

tericos e conceitos considerados de matriz ocidental no serem aplicveis s sociedades

africanas. Se tal pressuposto contm uma verdade parcial evidenciada pelas dificuldades

agregadas transposio acrtica de modelos e conceitos de umas sociedades para outras,

torna-se problemtico se tais preocupaes, ainda que legtimas, tenderem a induzir os

investigadores a no se preocupar com debates e aprofundamentos tericos continuados

nos estudos africanos, como em qualquer rea do saber. Essa uma via essencial para que

as abordagens ganhem sustentabilidade.

Chamando desde j a ateno para o papel central que um conceito de matriz ocidental o

conceito de representaes sociais desempenhar neste estudo sobre uma sociedade

africana, til parafrasear o autor e principal terico do conceito, Serge Moscovici: To

9

1. Um ponto de partida

clarify my view, I should perhaps simply state my preference for any theory to absence

of theory9. Frase significativa tambm por ter sido escrita em 1972 quando Serge

Moscovici buscava ainda um rumo que considerava inexistente na psicologia social e antes

de, em 1984, publicar o texto em que elaborava de forma consequente o conceito de

representaes sociais. Exemplo de como o enfoque nas questes tericas levou a que se

constitusse uma rea de pesquisa relativamente slida como hoje a das representaes

sociais. A situao permite ilustrar a importncia da agenda africanista ser pautada por

ambies de natureza equivalente.

Embora existam, nos estudos africanos, contributos nesse sentido de diferentes reas

(antropologia, histria, sociologia, economia, cincia poltica), a verdade que se continua

longe de um esforo de coeso analtica que permita autonomizar a anlise terica (e

conceptual) das abordagens empricas propriamente ditas. Nesse mbito, o estudo do

poltico em frica constitui um dos domnios em que se revelam, de modo particular,

algumas fragilidades. A questo manifesta-se com especial acuidade quando se pretende

estudar a dimenso subjectiva do poltico, a que tem a ver com o pensamento social.

Uma tentativa de equacionar de modo consequente essas questes, quer reconhecendo os

problemas tericos e metodolgicos dos estudos africanos, quer tentando avanar com um

espao relativamente slido de reflexo e de lanamento de bases para se ultrapassar, na

medida do possvel, o statu quo, foi o projecto Recomposio dos espaos polticos na

frica Lusfona. Envolveu investigadores que trabalham sobre Angola, Moambique,

Guin-Bissau, S. Tom e Prncipe e Cabo Verde10.

Da dinmica imprimida entre 2000 e 2005, com enquadramento institucional do Centro de

Estudos Africanos (CEA) do ISCTE11 em Lisboa, possvel fazer um balano positivo. Os

9 Moscovici 2000 [1972], p. 103. 10 Projecto de investigao foi financiado pela Fundao para a Cincia e a Tecnologia (FCT). Decorreu no

Centro de Estudos Africanos (CEA) do Instituto Superior de Cincias do Trabalho e da Empresa (ISCTE Lisboa) entre 2000 e 2005. Eram membros e investigadores Franz-Wilhelm Heimer (coord. Alemanha/Portugal), Nelson Pestana (Angola), Elsio Macamo (Moambique), Carlos Cardoso (Guin-Bissau), Antnio Correia e Silva (Cabo Verde), Arlindo Carvalho (S. Tom e Prncipe), Elisete Marques da Silva (Portugal/Angola) e Gabriel Mith Ribeiro (Portugal/Moambique).

11 Instituto Superior de Cincias do Trabalho e da Empresa.

10

O pensamento social sobre o poltico em Moambique Estudo de caso da cidade de Tete

debates internos que envolveram os oito elementos do projecto referido foram bastante

profcuos, consistentes, persistentes no tempo e lanaram linhas de continuidade12.

Esta investigao tenta rentabilizar alguns dos ganhos conseguidos ou consolidados no

mbito desse projecto. Conferir articulao a um conjunto que envolvia diversos

investigadores, com formaes de base diferentes na rea das cincias sociais, interessados

em analisar sociedades africanas distintas e com perspectivas diversificadas para a

abordagem do poltico acabou por ser um mecanismo de presso que conferiu papel

central teoria e metodologia, pois isso possibilitava aproximaes progressivas em

torno de referentes comuns e consensuais, indispensveis aferio da produo

intelectual de cariz acadmico. Tomou-se conscincia da importncia desse tipo de

preocupaes nos estudos das sociedades africanas.

Ficou claro equipa do projecto que partir para abordagens analticas assentes em estudos

de caso sem uma preocupao problematizante a anteceder-lhe, comportava, pelo menos,

dois riscos muito presentes nos estudos africanos: por um lado, o da atomizao ou

fragmentao das abordagens (cada caso um caso, num continente marcado pela

diversidade no s entre os pases, mas tambm no seu interior); por outro lado, o do

mimetismo atravs da transposio de linhas de anlise testadas noutros contextos (as

abordagens por analogia).

A nossa opo metodolgica () limita de forma drstica as opes tericas. Noutros termos, () no d o poltico por adquirido. Antes pelo contrrio, parte de dois pressupostos: o primeiro consiste na ideia de que a realidade social se constitui atravs da aco dos indivduos. Nesse sentido, o poltico apenas passvel de observao a partir da aco que o constitui. O segundo v no poltico um processo sempre em constituio, no podendo, por isto, ser uma essncia perene13. () No primeiro caso, isto , na histria por analogia, o interesse analtico est virado para a descrio de aspectos sociolgicos que tornam as unidades sociais africanas diferentes das ocidentais. Com base nessas diferenas nega-se a estas sociedades a possibilidade de uma democratizao segundo o padro ocidental. As formas polticas africanas ganham no contexto desta histria por analogia o carcter de uma anomalia. () No segundo caso, a saber o poltico como artefacto de constrangimentos estruturais, a anlise parte de unidades conceptuais previamente definidas, que impem formas de conduta e limitam a compreenso das opes dos actores sociais. A sociedade, o Estado e a economia surgem neste contexto como quadros de aco independentes da vontade, anseios e intenes dos actores sociais. Estes no exercem

12 Cf. Cardoso et alii 2002. 13 Serge Moscovici aponta no mesmo sentido: I have tried to show that there is a functionalist model

underlying the theories of knowledge and influence in social psychology, and I thought that it should be replaced by the genetic model; that is to say, by a model which considers society as a more or less structured network and which views relationships as in the making, not as already made. In this model, social influence is viewed as a reciprocal action or negotiation, not as a form of pressure exerted by the group or the individual to re-establish the equilibrium (Moscovici in: Moscovici & Markov 2000 [1998], p.272).

11

1. Um ponto de partida

nenhuma influncia sobre estes quadros de aco, mas submetem-se sua vontade. () As abordagens dominantes em frica no vo para alm de uma descrio. Qualquer explicao que tentam fazer tem a tendncia de ser circular ou pouco relevante. Ora, a anlise sociolgica no se define apenas pela sua capacidade de fazer constataes, mas sim, e sobretudo, pelo seu potencial explicativo. Com efeito, a anlise sociolgica procura explicar porque que o fenmeno social se apresenta como ele se apresenta. Essa explicao normalmente diacrnica.14

Sublinhe-se ainda que se est perante um esforo de convergncia inicial que se traduzir

em compromissos constatveis nos percursos de cada investigador, uma espcie de agenda

prvia para ser respeitada, reinterpretada, renovada de modo consciente. No s a agenda

em si que est em causa, mas o prprio debate sobre os seus significados e alcances.

Recusar a perspectiva do social enquanto produto acabado, dado que a percepo do social

oscila entre algo esttico ou, em sentido contrrio, transformando-se com base num

percurso teleolgico de um determinado estdio a outro (por exemplo, no plano poltico,

do tradicional para o autoritrio e deste para o democrtico); recusar a anlise definitiva;

ou evitar a generalizao abusiva. Em contrapartida, perceber as lgicas de regulao

social partindo da perspectiva dos actores sociais envolvidos, nas suas especificidades e

contradies, sem a mera preocupao de confirmar pr-conceitos ou pr-definies que

procuram nas sociedades africanas aquilo em que elas obedecem, manifestam

insuficincias ou falham em relao a modelos de matriz ocidental; manter as anlises ao

nvel do possvel, do que pode ser empiricamente constatvel, e no ao nvel do que

hipoteticamente seria desejvel15. Portanto, busca-se um conjunto de procedimentos que

permitam ultrapassar anlises efmeras, com a conscincia de que a renovao permanente

das sociedades africanas na negociao da sua modernidade16 implica uma renovao

tambm contnua dos estudos sobre essas mesmas realidades.

O presente estudo de caso tomou como ponto de partida as linhas gerais do projecto

Recomposio dos espaos polticos na frica Lusfona e assume ser essa uma decisiva

base de trabalho. Direccionou-as para a especificidade desta investigao: a dimenso

subjectiva do social, isto , a dimenso poltica do pensamento social. Quando no se d o

poltico por adquirido; quando se considera que a realidade social , antes de mais, uma

realidade dinmica que se constitui pela aco social dos indivduos, a partir da qual se

produz e permanentemente se reelabora o poltico; assim sendo, a vastido e complexidade

14 Cardoso et alii 2002, pp.11, 15 e 17. 15 Essas preocupaes estiveram muito presentes nas intervenes do coordenador, Franz-Wilhelm Heimer. 16 Cf. Macamo 2005.

12

O pensamento social sobre o poltico em Moambique Estudo de caso da cidade de Tete

do que est em causa obriga a outras clarificaes com vista a uma focagem progressiva no

objecto de estudo, de modo a conferir eficcia analtica investigao.

disso que tratam os pontos seguintes.

13

1. Um ponto de partida

14

O pensamento social sobre o poltico em Moambique Estudo de caso da cidade de Tete

2. A dimenso subjectiva da poltica

Dizer que no h verdade absoluta, que todo o conhecimento, cientfico ou no, adopta um ponto de vista particular, uma coisa. Deduzir da que, por esta razo, todos os conhecimentos se equivalem uma outra coisa (Luc van Campenhoudt 2003 [2001], p. 38).

A primeira das clarificaes consiste em distinguir analiticamente duas dimenses. Por um

lado, a dimenso comportamental do poltico que corresponde s prticas dos actores

sociais. Albert Hirschman prope um olhar especfico sobre elas, considerando que a sua

captao enquanto objectos de anlise acontece em organismos ou instituies formais

e/ou informais que agregam os indivduos e nas quais eles participam sempre (por aco ou

por omisso, de acordo com um modelo tripartido: exit, voice & loyalty): estado, partidos

polticos, empresas, organizaes religiosas, associaes cvicas, famlias, etc.17. Por outro

lado, a dimenso subjectiva do poltico que tem a ver com o pensamento social (tambm

designado, de acordo com a perspectiva de Serge Moscovici, por pensamento de senso

comum), isto , como que os actores sociais inseridos em contextos especficos pensam a

poltica (ou, em sentido mais amplo, como constroem socialmente a realidade18). Dito de

modo coloquial, no ltimo caso procura-se saber o que est na cabea das pessoas comuns

sobre poltica. precisamente esta segunda dimenso que nos interessa de modo

especfico.

evidente que no possvel estabelecer barreiras estanques entre o pensamento social e

as prticas sociais. Desse modo e desde logo, pretendemos evidenciar a conscincia da

existncia dessas duas dimenses. No sendo possvel pr de lado as prticas sociais, elas

aparecero, na nossa investigao, tanto quanto possvel, num plano secundrio em relao

ao pensamento social.

Serge Moscovici, num texto relativamente recente (Moscovici 1998), tendo em conta a

longa maturao das suas reflexes que se estenderam por quatro dcadas, e embora no

17 Hirschman 1970. 18 Cf. Berger & Luckmann 1999 [1966]; Moscovici 2000 [1984], pp. 64-65.

15

2. A dimenso subjectiva da poltica

versando de modo especfico o poltico, prope uma perspectiva interessante sobre o que

est em causa quando se aborda o pensamento social:

First, individuals are not monophasic, capable of only one privileged manner of thinking, with other ways being accessory, pernicious, even useless survivals of early ones. Second, in our psychological theory, we suppose, as did August Comte, that eventually one single form of thought, that is, science, will prevail and the rest will die out. Such is the law of progress and of rationalization. Now there is no reason why, in the future, only one form of true thinking should predominate, logos being definitely substituted for mythos, since, in every known culture, several forms of thinking coexist. In short, cognitive polyphasia, the diversity of forms of thought, is the rule, not the exception. () The hypothesis of cognitive polyphasia assumes that our tendency to employ diverse and even opposite ways of thinking such as scientific and religious, metaphorical and logical, and so on is a normal state of affairs in ordinary life and communication. Consequently, the logical or cognitive unity of our mental life, which is taken for granted by most psychologists, is a desideratum, not a fact19. , portanto, a complexidade do pensamento e do conhecimento de senso comum que esto

em causa. Por isso, isolar, na medida do possvel, a dimenso subjectiva do social (ou o

pensamento social) e, dentro dela, a dimenso poltica, constituem opes preliminares

importantes, algo que tentaremos clarificar ao longo da I parte do texto.

Uma segunda clarificao que se pretende estabelecer de incio, dado estarem em causa

objectos polticos, a que separa, ao nvel do pensamento social, as representaes sociais

das ideologias (em especial das ideologias dominantes)20. As primeiras tm a ver com os

universos consensuais ou com a afiliao e implicam um papel activo dos actores sociais;

as ltimas tm a ver com os universos reificados ou com a alienao e implicam a

imposio de vises parcelares de determinados segmentos sociais ou instituies sobre os

restantes21. Portanto, as ideologias sero importantes apenas e na medida em que fornecem

matria-prima para as representaes sociais22. So as ltimas que verdadeiramente

interessam pesquisa.

19 Moscovici 2000 [1984], pp. 242 e 245. 20 Cf. Heywood 2003 [1992/1998]; Flick 1998; Bar-Tal 2000. 21 Cf. Moscovici & Markov 2000 [1998], pp. 237 e segs. 22 The denial that society thinks can assume () that groups and individuals are always and completely

under the sway of a dominant ideology which is produced and imposed by their social class, the State, the Church or the school, and that what they think and say only reflects such an ideology. In other words, it is maintained that they dont as a rule think, or produce anything original, on their own: they reproduce and, in turn, are reproduced. () So what we are suggesting is that individuals and groups, far from being passive receptors, think for themselves, produce and ceaselessly communicate their own specific representations and solutions to the questions they set themselves. () Events, science and ideologies simply provide them with food for thought (Moscovici 2000 [1984], pp.29-30).

16

O pensamento social sobre o poltico em Moambique Estudo de caso da cidade de Tete

A terceira e ltima clarificao preliminar tem a ver com os conceitos que permitem captar

o lado subjectivo da poltica. Quando se refere a existncia de preocupaes tericas, a

investigao estabelece partida uma limitao: pe de lado discusses meta-tericas ou

de paradigmas e centra-se de modo muito limitado, por um lado, em torno de conceitos que

permitem captar a realidade emprica que suporta o estudo de caso (o pensamento social

sobre o poltico na cidade de Tete Moambique) e, por outro lado, os diferentes conceitos

que sustentam o estudo s fazem sentido se permitirem uma utilizao articulada e

consequente. Caso contrrio, aumentam os riscos de desarticulao, de contradio e de

disperso em que uma investigao sobre a dimenso subjectiva do social invariavelmente

incorre. Se no se pode fugir a tais riscos, ao menos que se tentem limitar os seus efeitos.

17

2. A dimenso subjectiva da poltica

18

O pensamento social sobre o poltico em Moambique Estudo de caso da cidade de Tete

3. Perspectiva terica e instrumentos de anlise

No so as conexes materiais das coisas massim as conexes conceptuais dos problemas, que constituem a base da delimitao dos domnios do trabalho cientfico (Max Weber [1904], A objectividade do conhecimento nas cincias sociais e em poltica social in: Cruz 2004, p.619).

A investigao parte de uma posio epistemolgica de tendncia construtivista. Importa,

por isso, sublinhar que se considerar o social enquanto realidade em construo

permanente tendo em conta o papel do conhecimento nessa construo23. Desse modo, a

realidade social, e dentro dela os processos polticos, resulta sempre da aco colectiva.

Foi esse ponto de partida que condicionou o que central na investigao, a saber: a

seleco dos instrumentos de anlise; o modo como cada um desses instrumentos foi

utilizado e, em conjunto, como foram organizados num todo coerente em funo dos

objectivos da pesquisa; a definio de linhas de indagao da realidade emprica; e a

apresentao dos resultados.

Pelo seu significado para o estudo, clarificamos, desde j, o sentido com que se utilizaro,

ao longo do texto, trs termos: sociedade, formao social e tecido social. O termo

sociedade serve para captar a abrangncia de uma realidade social o que implica a

referncia a determinados nveis identificados atravs de sistemas de relaes de ordem

poltica, econmica, religiosa e, num plano mais geral, cultural. Formao social reporta-se

a uma sociedade concreta ou histrica (que de facto existiu ou existe) como, por exemplo,

o feudalismo europeu que identificado atravs de formaes sociais precisas (inglesa,

francesa ou alem). De qualquer modo, quando utilizados de forma heurstica, esboroa-se a

diferena entre os termos sociedade e formao social. Quanto ao termo tecido social

assinala uma realidade social complexa que resiste reduo a um s princpio estruturante

(como classe, estrato, etnia, casta, etc.)24.

23 Berger & Luckmann 1999 [1966]. 24 Cf. Akoun 1999.

19

3. Perspectiva terica e instrumentos de anlise

3.1. O conceito de representaes sociais: themata, comunicao, tempo e senso

comum

A teoria das representaes sociais constitui o ponto de partida em torno do qual foi

construdo o modelo de anlise subjacente investigao. Trata-se de uma teoria

sustentada num conjunto de reflexes estruturadas, com destaque para as propostas de

Serge Moscovici25, que nos faculta um quadro analtico com forte potencial para

consolidar um campo de pesquisas sobre o pensamento social em frica.

Dada a complexidade que a teoria assumiu, e no sendo o nosso propsito aprofundar essa

perspectiva, mas antes seleccionar e conferir coerncia ao que serve a nossa investigao,

optmos por sistematizar o conceito de representaes sociais tendo em conta o

subconceito de themata e seleccionando trs pressupostos dos quais dependem as

representaes sociais enquanto fenmenos cuja existncia empiricamente verificvel: os

intercmbios comunicativos; a dimenso tempo; e o senso comum.

Apesar da extensa produo escrita que remonta aos anos sessenta do sculo XX, os dois

textos fundamentais da teoria foram elaborados por Serge Moscovici, o seu criador e

principal terico, no intervalo de uma dcada. Primeiro atravs da sistematizao do

conceito de representaes sociais (1984) e, mais tarde, complementado pelo subconceito

de themata (clarificado em 1993/1994 em parceria com Georges Vignaux). O ltimo texto

retomou as teses centrais do primeiro e acrescentou a definio dos themata (plural de

thema, do grego).

Embora Serge Moscovici designe os themata por conceito no ttulo do artigo, mas ao no

lhe conferir a mesma importncia para a teoria que confere ao conceito de representaes

sociais, consideramos themata um subconceito. O ltimo no se apresenta como um

instrumento de anlise autnomo, dado que s existe e s funcional quando considerado

enquanto aspecto especfico do conceito mais vasto e autnomo de representaes sociais.

Ou seja, quando se abordam os themata est a abordar-se o conceito de representaes

sociais propriamente dito. O mesmo vale para outros termos associadas ao conceito que

25 Moscovici 2000. Cf. Vala 1993 & 1997; Duveen 2000; Minayo 1999; Moscovici 1999 [1994]; Baczko

1985a e 1985b.

20

O pensamento social sobre o poltico em Moambique Estudo de caso da cidade de Tete

apresentaremos de seguida (os intercmbios comunicativos, a dimenso tempo e o senso

comum).

A ideia inicial com que se deve ficar do conceito de representaes sociais que ele

permite captar a forma como os actores sociais constroem, no domnio do pensamento

social, a sua prpria realidade26. As representaes so factores produtores da realidade,

dado que as dinmicas sociais condicionam as representaes e em funo destas que os

indivduos interpretarem o mundo que os rodeia, determinando em grande parte as

respostas ao que julgam ter acontecido27.

() it is no longer appropriate to consider representations as a replica of the world or a reflection of it, not only because these positivist conception is the source of numerous difficulties, but also because representations also evoke what is absent from this world, they form it rather more than they simulate28.

Dito por outras palavras, uma representao no se limita apenas a ser o reflexo de um

objecto na mente dos indivduos, mas tambm a criao do prprio objecto para o

sujeito29. As representaes sociais tm a ver com o conhecimento colectivamente gerado,

partilhado e reelaborado30, isto , com conhecimento que os actores sociais produzem a

partir das interaces que constituem a essncia da aco social.

26 Cf. Berger & Luckmann 1999 [1966]. 27 Vala 2002, pp. 461-463. Cf. Heimer et alii 1990, p. 20. Nas palavras de Moscovici: () social

representations determine both the character of the stimulus and the response it elicits, just as in particular situation they determine which is which. () It is quiet clear that the situation determines both the questions we will ask and the answers these will elicit (Moscovici 2000 [1984], pp. 70-71). Berger & Luckmann referem, por seu lado, que a () relao entre o conhecimento e a sua base social dialctica; isto , conhecimento um produto social e conhecimento um factor de transformao social. (Berger & Luckmann 1999 [1966], p.96).

28 Moscovici 2000 [1998a], p.154. 29 Cf. Moscovici 2000 [1998a], pp.131 e segs. 30 Cf. Berger & Luckmann 1999 [1966]; Durkheim 1982 [1895]; Idem 1974 [1898]. Segundo Gerard

Duveen (2000, pp. 6 e segs.) foi da separao entre as representaes colectivas e as representaes individuais com gnese em Durkheim que derivou uma tendencial separao entre a psicologia (que trataria das representaes individuais) e a sociologia do conhecimento (que teria como objecto as representaes colectivas), perspectiva que o conceito de representaes sociais de Moscovici tenta ultrapassar. A diferenciao deixou de fazer sentido dado que o individual e o colectivo mantm uma interaco permanente e, por isso mesmo, no retommos o conceito de Durkheim de representaes colectivas, optando pelo conceito de representaes sociais. Sublinhe-se que o construtivismo (nomeadamente a produo terica que nos interessa relacionada com o pensamento social, cf. Berger & Luckmann 1999 [1966]; Moscovici 2000) visa, precisamente, ultrapassar esquemas dualistas que, ao privilegiarem inevitavelmente uma ou outra dimenso, assumiam carcter artificial, conduzindo as perspectivas de anlise do social a um impasse, como acontecia com o pensamento de Marx (infra-estruturas versus superstruturas)

21

3. Perspectiva terica e instrumentos de anlise

Individuals and groups create representations in the course of communication and cooperation. Representations, obviously, are not created by individuals in isolation. Once created, however, they lead a life of their own, circulate, merge, attract and repel each other, and give birth to new representations, while old ones die out. As a consequence, in order to understand and to explain a representation, it is necessary to start with that, or those, from which it was born. () So what we are suggesting is that individuals and groups, far from being passive receptors, think for themselves, produce and ceaselessly communicate their own specific representations and solutions to the questions they set themselves. In the streets, in cafs, offices, hospitals, laboratories, etc., people analyse, comment, concoct spontaneous, unofficial philosophies which have a decisive impact on their social relations, their choices, the way they bring up their children, plan ahead and so forth. Events, science and ideologies simply provide them with food for thought31. Tal ponto de partida reduz drasticamente os riscos de mimetismo, preocupao que tem

marcado os estudos sobre as sociedades da frica Subsaariana. As anlises por analogia

essencialmente a transposio de modelos, teorias ou conceitos de matriz ocidental para

outras sociedades constituem a negao liminar da teoria das representaes sociais,

dado que as ltimas implicam sempre o papel activo dos actores sociais. Da que a teoria se

apresente como particularmente til aos estudos africanos.

Themata

Os indivduos focalizam a sua ateno em determinados objectos que se tornam princpios

organizadores a partir dos quais se constituem ou renovam as representaes sociais. O

thema o que escolhido e privilegiado entre as mltiplas possibilidades existentes no

mundo quotidiano e que ganha, desse modo, relevncia social atravs dos discursos que

circulam no espao pblico. a seleco de determinados themata pelos prprios actores

sociais que permite conferir contedos precisos s representaes. O thema o que

caracteriza a relao entre, por um lado, aquilo que estvel e central nas representaes

(o ncleo) e, por outro lado, o que perifrico e, por isso, menos resistente presso da

comunicao e da mudana32.

Para compreender as especificidades de cada representao social (ou de conjuntos de

representaes sociais), compete aos analistas proceder com clareza identificao e

ou de Durkheim (colectivo versus individual). Cf. Moscovici in: Moscovici & Markov 2000 [1998], pp.254 e segs.

31 Moscovici 2000 [1984], pp. 27 e 30. 32 Moscovici & Vignaux 2000 [1994], pp.156-183.

22

O pensamento social sobre o poltico em Moambique Estudo de caso da cidade de Tete

sistematizao dos diversos themata. O processo implica a definio de limites em relao

a campos j existentes ou conhecidos e a apresentao argumentativa dos objectos que

validam esses campos pelas propriedades atribudas pelos indivduos que os tornam tpicos

ou mesmo exclusivos33. Importa, desse modo, explicitar os mecanismos que fazem as

sociedades distinguir as mensagens significantes das mensagens no-significantes34.

Numa perspectiva mais ampla, consideramos que o processo referido corresponde ao

funcionamento do pensamento social. legitimo considerar que o ltimo tem a ver com

conjuntos de representaes que, por sua vez, se organizam em torno de themata. por

isso que, no vocabulrio a que recorreremos ao longo do texto, os termos dimenso poltica

do pensamento social (ou pensamento social sobre o poltico) e representaes sociais do

poltico so equivalentes.

Por outro lado, a natureza dinmica das representaes sociais tem a ver com o facto dos

themata funcionarem como ideias elementares (ou ideias primrias) assentes em

proposies ou conceitos que estabelecem entre eles relaes dialcticas explcitas ou

subentendidas, num leque infinito de possibilidades, sendo que a sua validade conferida

pela relevncia que os actores sociais lhes conferem35. Constituem exemplos elucidativos o

modo como se manifestam nos discursos do senso comum, por exemplo, as associaes

entre colono/colonizado; liberdade/opresso; sade/doena; loucura/lucidez; rico/pobre;

dominante/dominado; guerra/paz; portugueses/Frelimo ou Frelimo/Renamo; elites/povo;

etc. Compreender os sistemas de oposies das diferentes representaes sociais captar o

processo que as mantm permanentemente vivas enquanto fenmenos sociais36.

Porque a dimenso subjectiva do real que se pretende captar (o pensamento social)

comporta invariavelmente um lado opaco, obscuro, subjectivo, instvel para esses

domnios que aponta quer o subconceito de themata37, quer o conceito de representaes

33 Moscovici & Vignaux 2000 [1994], p. 178. 34 Moscovici 2000 [1984], pp.21 e segs. 35 Cf. Feliciano 1998, pp.22 e segs. 36 Cf. Moscovici & Vignaux 2000 [1994], pp.156-183, em especial pp.179 e segs. 37 Themata never reveal themselves clearly; not even part of them is definitively attainable, so much are

they intricately interwoven with a certain collective memory inscribed in language, and so much are they composites, like the representations they sustain, at once both cognitive (invariants anchored in our neurosensory apparatus and our schemes of action) and cultural (consensual universals of themes objectified

23

3. Perspectiva terica e instrumentos de anlise

sociais , a teorizao de Serge Moscovici apresenta-se, tambm ela, em elaborao

contnua. O que estvel nessa teorizao a exigncia de uma contnua interaco entre a

teoria e as realidades empricas para captar as especificidades do real. Est-se, portanto,

perante um processo de consolidao terica iniciado nos anos sessenta e que se mantm

em aberto. tambm essa caracterstica que torna a teoria congruente com perspectivas de

tendncia construtivista.

Os intercmbios comunicativos

A teoria das representaes sociais sustenta-se na importncia que atribui comunicao

enquanto caracterstica inerente aos fenmenos sociais38. Por um lado, a dinmica das

representaes depende da comunicao e, por outro lado, os intercmbios comunicativos

reflectem a natureza dos processos sociais que lhes so subjacentes39, permitindo aos

actores sociais a organizao significante do real40. Ou seja, as representaes sociais

geram juzos valorativos sobre o meio que no funcionam como algo exterior estrutura

social, mas so incorporados e objectivados por ela41.

A dispersa construo terica de Serge Moscovici que foi surgindo ao longo do tempo teve

a sorte de encontrar um analista, Gerard Duveen (2000), que organizou e publicou uma

colectnea contendo os textos essenciais da produo terica de Serge Moscovici,

compilao fundamental para a sobrevivncia de uma teorizao com essas caractersticas.

Foi Gerard Duveen quem sintetizou de modo particularmente eficaz o que est em causa:

() it is the relationship between communication and representation which is central. () In all communicative exchanges there is an effort to grasp the world through particular ideas and to project those ideas so as to influence others, to establish a certain way of making sense so that things are seen in this way rather than that way. Whenever knowledge is expressed it is for some purpose; it is never disinterested.42

by the temporalities and histories of the longue dure [itlico original]) (Moscovici & Vignaux 2000 [1994], p. 182).

38 Moscovici 2000 [1972], p.110; Moscovici in: Moscovici & Markov 2000 [1998], pp.259 e segs.; Moscovici 2000 [1998a], pp.149 e segs. Cf. Berger & Luckamnn (1999) [1966], pp.40-57.

39 Moscovici 2000 [1998a], p.152. 40 Alm da organizao significante do real, s representaes sociais so atribudas as funes: da

comunicao, dos comportamentos representacionais e da diferenciao social (Vala 2002, pp.364-367). 41 Vala 2002, p. 365. 42 Duveen 2000, p.17. Cf. Moscovici & Vignaux 2000 [1994], pp. 159 e segs.; Moscovici & Markov 2000

[1998], pp. 273 e segs.

24

O pensamento social sobre o poltico em Moambique Estudo de caso da cidade de Tete

Todavia, no plano analtico, importante existir a predisposio para separar os

intercmbios comunicativos (em particular os discursos do senso comum que circulam nos

espaos de sociabilidade) das representaes sociais propriamente ditas (ou o que est na

cabea das pessoas). Isto , mesmo que seja pouco vivel, na prtica, estabelecer uma

diferenciao entre o que os indivduos dizem e o que os indivduos pensam, no estudo do

pensamento social a dimenso do reprimido ou dos interditos (no sentido do no-dito que

se torna relevante precisamente por ser silenciado) no deve ser subestimada, o que implica

uma capacidade interpretativa por parte dos analistas capaz de ir alm do verbalmente

explcito.

A dimenso tempo ou a procura do momento original

As representaes, enquanto fenmenos sociais, tm necessariamente de ser

contextualizadas no tempo. No seu tempo de vida, mas tambm no tempo histrico das

sociedades onde se manifestam. por isso que a questo da origem das representaes

sociais o momento inicial em que se manifestaram ou as pr-representaes de onde

derivam relevante para a sua compreenso.

Essa focalizao na dimenso tempo, tendo em conta o modo como se equaciona na teoria

das representaes sociais de Serge Moscovici43, congruente com uma preocupao

recorrente nos debates sobre as sociedades da frica Subsaariana. No ltimo caso

sistemtica a tendncia de fazer derivar as anlises do social, directa ou indirectamente, das

interaces entre as heranas ancestrais africanas e os impulsos de modernidade

proporcionados pela colonizao europeia. Para o perodo ps-colonial a ltima

condicionante tem-se metamorfoseado numa srie de argumentos que tendem a

sobrevalorizar o impacto dos factores exgenos nas sociedades africanas suposta e quase

eternamente tidas como de matriz tradicional. Mesmo que mantenham alguma utilidade,

trata-se de argumentos que vo-se perpetuando desde a ocupao colonial efectiva iniciada

43 Berger & Luckmann quando propem uma teorizao para a sociologia do conhecimento, tambm

consideram essencial a dimenso tempo: O mundo da vida quotidiana estruturado tanto em termos espaciais como temporais. A estrutura espacial tem pouca importncia nas nossas presentes consideraes. () A temporalidade uma propriedade intrnseca da conscincia. () O tempo-padro pode ser compreendido como a interseco entre o tempo csmico e o seu calendrio estabelecido pela sociedade () / () A mesma estrutura temporal () coerciva. No posso inverter, minha vontade, as sequncias por ela impostas () (Berger & Luckmann 1999 [1966], pp.38-39).

25

3. Perspectiva terica e instrumentos de anlise

em finais do sculo XIX e que podem e devem ser repensados. Importa questionar, na

actualidade, em que medida a matriz tradicional central ou perifrica para a percepo

dos processos polticos associados ao estado e em que medida essas caractersticas

interagem nos diferentes contextos sociais da frica Subsaariana.

Mais de um sculo passado, do qual seguramente mais de um tero corresponde ao perodo

ps-colonial, foroso reconhecer ser esse um intervalo de tempo suficientemente amplo

para que as sociedades africanas tenham sofrido recomposies profundas pautadas pela

existncia dos estados autnomos. No existem hoje, por isso, razes convincentes para

que tais sociedades no sejam abordadas, no plano analtico associado ao pensamento

social, ao nvel das demais sociedades da contemporaneidade. Os argumentos de carcter

histrico que legitimam, no caso das sociedades africanas, um tipo de anlise

essencialmente assente no contraponto entre o tradicional e o moderno, ganham acentuada

relatividade na fundamentao apresentada por Serge Moscovici para a sua teoria:

Our past experience and ideas are not dead experiences or dead ideas, but continue to be active, to change and to infiltrate our present experience and ideas. In many respects, the past is more real than the present. The peculiar power and clarity of representations that is, of social representations derives from the success with which they control the reality of today through that of yesterday and the continuity which this presupposes. () [But] The social representations with which I am concerned are neither those of primitive societies, nor are they survivals, in the subsoil of our culture, from prehistoric times. They are those of our current society, of our political, scientific, human soil, which have not always had enough time to allow the proper sedimentation to become immutable traditions. And their importance continues to increase, in direct proportion to the heterogeneity and fluctuation of the unifying systems official sciences, religions, ideologies and to the changes which these must undergo in order to penetrate everyday life and become part of common reality44. Aps ter expressado essas ideias em 1984, o autor voltou a insistir nelas em 1998,

compondo um texto, tal como os outros, mas este em particular, merecedor de anlise no

mbito dos estudos africanos45. Depois de uma resenha sobre a evoluo do conceito de

representaes colectivas que antecedeu o de representaes sociais46, e da diferenciao

44 Moscovici 2000 [1984], pp. 24 e 32. 45 Moscovici 2000 [1998a], pp. 120-155 e sobretudo pp. 131-149. 46 A substituio do termo colectivas por sociais marca, assim, a original diferena estabelecida em

relao a Durkheim. () Ora, para Moscovici, as representaes nunca seriam de outra natureza: elas seriam da natureza mesma dos grupos sociais que as criam, e sua eficcia tanto prtica como simblica dependeria dessa insero, e no poderia jamais ter um sentido universal. Com este argumento, Moscovici acabou por demonstrar que as representaes no derivam de uma nica sociedade, ultrapassando-a, como insistiu Durkheim, mas das diversas sociedades que existem no interior da sociedade maior, e, portanto, no podem ultrapass-la. (Oliveira 2004, pp. 180-186).

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O pensamento social sobre o poltico em Moambique Estudo de caso da cidade de Tete

que ento se estabelecia entre sociedades primitivas e modernas, Serge Moscovici

escreveu:

() I prefer simply to state my disagreement with the idea that collective representations should have a meaning in distant societies or in former times, but not in our own, with is deification of scientific beliefs. () it seems to me legitimate to suppose that all forms of belief, ideologies, knowledge, including even science, are, in one way or another, social representations. It seemed then (Moscovici, [1961]/1976) and it seems all the more so today, that neither the opposition of the social to the individual, nor the evolution from the traditional to the modern, had, in this regard, the importance which is given to them47. Neste debate, insistimos na necessidade das investigaes se reportarem s origens para

que se compreendam e se expliquem as representaes sociais48, bem como na necessidade

de se considerar tambm o facto dos tecidos sociais assentarem em contnuos histricos,

pressupostos que relativizam, e muito, a noo de origem. Na perspectiva em que a noo

de origem vai ser por ns abordada (e na perspectiva em que ela pode e deve ser abordada

noutros estudos sobre o pensamento social), no constitui premissa vlida estabelecer-se

uma relao directa e imediata entre, por um lado, a noo de momento original e, por

outro lado, as tradies de matriz pr-colonial (ou ancestral) das sociedades africanas49,

nem as ltimas so necessariamente o mais relevante nimporte quoi.

Se o caminho pode ser esse, para compreender o fenmeno das representaes sociais

existem tambm outras possibilidades de considerar as origens, no s quando esto em

causa as sociedades ditas de tipo ocidental, como quando estiverem em causa quaisquer

outros tipos de sociedades como as africanas. Partindo do caso de Moambique,

identificam-se momentos que desempenham (e desempenharam) a funo de momentos

originais associados construo simblica da formao territorial independente. Esses

momentos (no geral relacionados com a conquista da independncia) so relevantes

precisamente porque, sendo considerados genuinamente africanos, surgem desligados, aos

olhos dos prprios actores sociais, das tradies ancestrais africanas. A verdade que

estamos sempre perante mecanismos do domnio do simblico incorporados na estrutura

social, quer quando a referncia ao tempo ancestral africano valorada de modo positivo,

quer quando essa valorao negativa.

47 Moscovici 2000 [1998a], pp.142-143. 48 Moscovici 2000 [1984], p. 27. 49 Cf. Feliciano 1998.

27

3. Perspectiva terica e instrumentos de anlise

O simblico (termo que usaremos de forma heurstica como sinnimo de pensamento

social) das sociedades africanas da actualidade est muito longe de se esgotar na dimenso

tradicional. Para alm disso, a noo de tradicional, em si, cada vez mais suscita

dificuldades de caracterizao, em particular quando associada s dinmicas do estado

(polticas, sociais, culturais, econmicas). A verdade que existe uma dimenso do

simblico que remete para a contemporaneidade (ou para o passado recente), to vlida e

to significativa para as sociedades africanas como para quaisquer outras, desde que as

prprias sociedades consigam enquadr-la na sua noo de tempo histrico.

Essa busca sempre relativa das origens legitimou que, no estudo do pensamento social

sobre o estado em Moambique, se atribusse relevncia s representaes sociais

relacionadas com o processo de transio para a independncia (1974-1975) e com a luta

armada de libertao nacional que o antecedeu (1964-1964). Esto em causa

acontecimentos aos quais os prprios actores sociais conferem, na actualidade (e durante

todo o perodo ps-colonial), um papel significativo na interpretao que fazem da

evoluo histrica do pas. pela anlise do que existe na cabea das pessoas comuns

sobre essa conjuntura que se pode aferir o que est em causa, sendo que se trata de um

momento original devido ao seu forte impacto no pensamento social em Moambique.

Todavia, ele no pode ser analisado apenas como momento de ruptura simblica, mas

enquanto processo social complexo no qual interagem, em simultneo, diversas

possibilidades. Elas oscilam entre uma dimenso de ruptura com o passado, passam por

uma outra dimenso que a da renovao do que existia e por uma outra dimenso ainda

que remete para a perpetuao do velho no novo (isto , para a perpetuao do colonial no

ps-colonial, assim como o pr-colonial se perpetuou, em algumas das suas dimenses, no

colonial). O que o presente estudo do fenmeno das representaes sociais do estado visa

demonstrar que o momento original pode resultar da interseco de conjuntos de

variveis que, num dado momento, alteram a relao de foras entre eles. Muitas vezes no

mago da construo colectiva do momento original no est mais do que a generalizao

e reelaborao de representaes sociais que at a eram prprias de uma minoria ou de um

conjunto restrito de minorias sociais50.

50 Os dois processos maiores na formao das representaes sociais so a ancoragem e a objectivao,

aspectos especficos da teoria que sero explicitados na III parte do texto.

28

O pensamento social sobre o poltico em Moambique Estudo de caso da cidade de Tete

A relevncia atribuda ao estado nos discursos do senso comum permite, inclusivamente,

sustentar a tese segundo a qual o pensamento social em Moambique tende a identificar

muito mais facilmente nos momentos associados histria do pas uma natureza fundadora

ou original, do que nos referentes associados s diversas tradies ancestrais africanas.

Acrescente-se que, numa dada sociedade, as representaes sociais tanto permitem

momentos de consenso como de ruptura51, como podem ainda permitir suportar a

simultaneidade de tendncias contrrias. Ou seja, o reforo de uma tendncia de ruptura

numa determinada dimenso do social pode ser suportado pelo reforo de uma determinada

tendncia contrria de continuidade numa outra dimenso, directa ou indirectamente

associada primeira. Em qualquer caso ambas se reflectem no pensamento social.

Em sntese, ao implicar uma perspectiva de evoluo no tempo, o estudo das

representaes sociais remete para a necessidade de identificao do(s) momento(s)-chave

na renovao de determinadas dimenses do simblico das sociedades, sendo que isso

deve ser feito de acordo com os objectivos da cada pesquisa. Porm, tendo em conta tanto

a perspectiva dos actores sociais, quanto a dos analistas, o carcter subjectivo do que se

considera como momento original no lhe diminui a importncia para a compreenso do

fenmeno das representaes sociais.

O senso comum

Clarificar o significado do termo senso comum no contexto da teoria das representaes

sociais constitui um outro pressuposto importante. A questo aponta num duplo sentido:

um relacionado com a forma como se produz o conhecimento do senso comum nas

sociedades contemporneas; outro associado importncia dos discursos do senso comum

enquanto vector principal a partir do qual se produzem, circulam e captam as

representaes sociais. Esses dois aspectos so complementares.

A teoria recorre a uma perspectiva que reequaciona o modo como usualmente se concebe a

produo do conhecimento do senso comum, acabando por apresentar alguma

51 Cf. Moscovici & Vignaux 2000 [1994], pp. 169 e segs.; Moscovici 2000 [1998a], p.151.

29

3. Perspectiva terica e instrumentos de anlise

originalidade epistemolgica. Serge Moscovici tende a situar a produo do senso comum

de cima para baixo, isto , esse tipo de conhecimento social tem tambm origem, e cada

vez mais nas sociedades contemporneas, em teorias cientficas52 ou academicamente

elaboradas que as elites popularizam. Relativiza-se, por isso, o papel hegemnico

tendencialmente atribudo aos saberes de origem popular propriamente ditos nesses

processos.

Tendo ns o cuidado de circunscrever a questo aos processos polticos que remetem para

o estado, isto , sem generalizarmos a outros domnios do pensamento social, dado que se

trata como refere Serge Moscovici de uma caracterstica particularmente saliente (mas

no apenas) nas sociedades where scientific and technical knowledge is popularized53, os

dados empricos de que dispomos levam-nos a afirmar com segurana que no possvel

colocar, na actualidade, as dinmicas polticas em curso nas sociedades africanas margem

dessas realidades. Existe, portanto, uma dimenso do senso comum nas sociedades

africanas cuja origem remete para teorias cientficas ou para saberes estruturados de

natureza acadmica que as elites popularizaram (e popularizam), por muito que o discurso

das elites se suportasse (e suporte) em verses simplificadas (ou mesmo ultra-

simplificadas) dessas mesmas teorias ou saberes.

No caso de Moambique, serve de exemplo, no processo de transio para a independncia

e na primeira dcada ps-colonial durante a governao de Samora Machel (1975-1986), a

divulgao da noo de socialismo, numa interpretao tributria do marxismo-

leninismo54. Mas serve tambm de exemplo, na ltima dcada e meia, a divulgao da

noo de democracia. claro que as formas e o impacto social das teorias de onde derivam

esses termos so discutveis. O que no parece discutvel que, sem dvida, o tipo de

52 Moscovici in: Moscovici & Markov 2000 [1998], pp.248 e segs. 53 () we concentrated on the emergence of social representat