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INSTITUTO PACKTER INSTITUTO INTERSEÇÃO SÃO PAULO CURSO BÁSICO DE FORMAÇÃO EM FILOSOFIA CLÍNICA Márcia Avelino EXPRESSÃO E SIGNIFICADO E FILOSOFIA CLÍNICA São Paulo 2010

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INSTITUTO PACKTER

INSTITUTO INTERSEÇÃO – SÃO PAULO

CURSO BÁSICO DE FORMAÇÃO EM FILOSOFIA CLÍNICA

Márcia Avelino

EXPRESSÃO E SIGNIFICADO E FILOSOFIA CLÍNICA

São Paulo

2010

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2 Expressão e Significado e Filosofia Clínica

Márcia da Conceição Avelino

EXPRESSÃO E SIGNIFICADO E FILOSOFIA CLÍNICA

Monografia, no formato artigo, apresentada como

requisito parcial para conclusão do Curso Básico

de Formação em Filosofia Clínica, orientado pela

professora Monica Aiub e pelo professor César

Mendes da Costa.

São Paulo

2010

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3 Expressão e Significado e Filosofia Clínica

Márcia da Conceição Avelino

EXPRESSÃO E SIGNIFICADO E FILOSOFIA CLÍNICA

São Paulo, 10 de Janeiro de 2010.

Professora Orientadora (Monica Aiub)

Professor Orientador (César Mendes da Costa)

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4 Expressão e Significado e Filosofia Clínica

Ao professor Meramolim, pelas ações que despertaram em mim desejo e amizade pela sabedoria.

Ao reverendo Elias, pelo exercício da inação ao ensinar que a sabedoria apenas abarca a razão.

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5 Expressão e Significado e Filosofia Clínica

Os agradecimentos neste trabalho abraçam, antes de todos, aos que incentivaram e

orientaram a construção deste texto, os amigos Monica Aiub e César Mendes da Costa. O

abraço estende-se ainda ao elenco que circunstancialmente contribuiu para sua gestação: os

companheiros de curso e os colegas virtuais na Filosofia Clínica, com os quais pude discutir

algumas das ideias que compõem este trabalho. Em especial, a Andréia Cristina Kubota pela

disposição em corrigir os elementos pré-textuais, e pelas conversas. Aos meus pais por tudo.

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“Nem toda realidade é objetiva, parte dela é subjetiva.” John Searle

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7 Expressão e Significado e Filosofia Clínica

AVELINO, M. C. EXPRESSÃO E SIGNIFICADO E FILSOFIA CLÍNICA. 2010. 22f.

Monografia / Artigo (Especialização em Filosofia Clínica) – Instituto Packter / Instituto

Interseção, São Paulo, 2010.

RESUMO

A linguagem é construída pelo uso, tal como sugere o conceito de jogos de linguagem. Sendo

uma propriedade fundamental cujo propósito maior é a comunicação, sua estrutura é

essencialmente intencional. Observa-se um paralelo entre significação literal e estados

intencionais, porque a noção de significado literal é a noção de intencionalidade

convencional. A concepção Searleana de significado literal demonstra a contingência

institucional e traz contribuições para a Filosofia Clínica, por deixar o significado sujeito ao

contexto. Finalmente, é importante conhecer a dinâmica do significado frente às

possibilidades de construção autônoma, pois a linguagem humana implica e supõe intenções

e ações.

PALAVRAS-CHAVE: Intencionalidade. Significado. Jogos de linguagem. Filosofia Clínica.

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8 Expressão e Significado e Filosofia Clínica

AVELINO, M. C. EXPRESSION AND SIGNIFICANCE AND CLINICAL

PHILOSOPHY. 2010. 22f. Monograph / Article (Specialization in Clinical Philosophy) -

Institute Packter / Intersection Institute, São Paulo, 2010.

ABSTRACT

The language is constructed by using, as suggested by the concept of language games. As a

fundamental property whose main purpose is communication, its structure is essentially

intentional. Observed a parallel between literal meaning and intentional states, because the

notion of literal meaning is the conventional notion of intentionality. The conception of literal

meaning in the Searle demonstrates the contingency institutional and features contributions

for the Clinical Philosophy, by leaving the meaning subject to the context. Finally, it is

important to know the dynamics of meaning in the face of possibilities of building

autonomous, because the language human implies and presupposes intentions and actions.

KEYWORDS: Intentionality; Meaning; Language games; Clinical Philosophy.

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Expressão e Significado e Filosofia Clinica

Ao contrário do que defendem os que acreditam ser a linguagem um presente da

natureza de Deus ao homem1 – portanto recebida –, a tese mais aceita a respeito do

surgimento da linguagem afirma sua origem por evolução, partindo de sons onomatopeicos.

Isto é, as primeiras palavras utilizadas pelo homem teriam sido elaboradas por ele mesmo, a

partir da imitação de sons que ecoavam aos seus ouvidos nos primeiros tempos, assim como a

criança logo substitui seus primeiros sons por palavras que denotam um significado comum

em seu contexto. Nos termos de Wittgenstein, as palavras ganharam um significado a partir de

seu uso, sem atribuições pontuais – como “prender uma etiqueta a uma coisa” –, mas nos

jogos linguísticos. Desta forma, a linguagem é uma propriedade primária e fundamental por

meio da qual o homem coloca-se em relação aos outros seres no mundo.

Diferentemente dos animais, que a utilizam como instrumento de sobrevivência, entre

os homens a linguagem tem finalidades e modos bastante variados: como instrumento de

expressão de si mesmo, dos próprios sentimentos, desejos, ideias, para se comunicar com os

outros, descrever as coisas, perguntar, educar, rezar, cantar, como instrumento de luta,

propaganda, diversão, etc. Por isso mesmo, para filósofos como John Rogers Searle (1932-), o

propósito da linguagem é exatamente a comunicação. E sendo a linguagem um sistema de

signos que opera como meio de comunicação, ela comporta uma estrutura essencialmente

intencional – aliás, a linguagem parece ser o instrumento ideal da intencionalidade humana,

uma vez que somos seres ser abertos e em constante movimento em direção à realidade.

Assim denominado por Austin (1911-1960), o ato de fala ilocucionário (a menor

unidade completa possível da comunicação linguística realizada intencionalmente [apud

SEARLE 2000:127]) designa a unidade da comunicação pela linguagem, na qual se inscreve a

intencionalidade. Na teoria dos atos de fala de Austin, o ato ilocucionário é precedido pelo ato

locucionário, a partir do qual é possível reconhecê-lo, ou não, como tal; trata-se do simples

ato do proferimento nem sempre comprometido com o significado, tal como acontece com os

papagaios. Os atos ilocucionários, por sua vez, podem causar nos ouvintes atos

perlocucionários. Reconhecemos estes últimos como aqueles efetuados por alguém em

1 Para Wilhelm Von Humboldt, por exemplo, a linguagem não pode ter sido inventada pelo próprio homem, pois

o homem é homem somente por meio da linguagem; Assim, para inventar a linguagem, ele deveria já ser

homem. Humboldt (1767-1835) foi um linguista alemão, reconhecido como sendo o primeiro linguista europeu a

identificar a linguagem humana como um sistema governado por regras, e não simplesmente uma coleção de

palavras e frases acompanhadas de significados.

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decorrência do ato ilocucionário. Ordenar, por exemplo, é um ato ilocucionário que pode

causar a obediência a tal ordem, o ato perlocucionário, então. Desse modo, atos ilocucionários

são sempre realizados intencionalmente. Já os atos perlocucionários são intencionais somente

quando o ato ilocucionário que o causou é unidade de significado na comunicação. Então,

quando o falante torna seu proferimento mais que um mero som (ato locucionário), fazendo-

se entender em seu ato de fala, realiza um ato ilocucionário. Há, portanto, uma relação

necessária entre atos ilocucionários, intenção e significado. Desse modo, o propósito de uma

teoria da linguagem não se limita a especificar o conjunto de regras que relacionam sons e

significados, mas sua grande tarefa está em descrever como passamos dos sons aos atos

ilocucionários.

A dualidade presente no âmbito da linguagem humana apresenta como possibilidades

um caminho dado, estático e a priori, e outro no qual a linguagem significa possibilidades de

construção por conta da abertura que propicia. Ora, o segundo caminho, além de nos parecer

mais adequado à linguagem do ser racional, coincide com o defendido por Wittgenstein

(1889-1951) ao conceber o conceito de jogos de linguagem, na segunda fase de sua filosofia,

frente à descoberta de que a análise lógico-estrutural não dá conta de dizer as coisas no

mundo – uma vez que no cotidiano o discurso está no âmbito da linguagem ordinária e não no

da ideal, científica2.

Os jogos de linguagem se dão em cada grupo social. Em cada um deles se estabelece

um tipo de linguagem em que as palavras ganham um sentido específico. Os jogadores, por

sua vez, aprendem a jogar jogando. Dessa forma, simultaneamente apreendemos uma

linguagem e a criamos, como uma via de mão dupla. Tal concepção não diz respeito apenas a

sociedades diferentes utilizando um mesmo termo de modos diferentes, pois, em uma mesma

sociedade, há vários jogos de linguagem, nos quais as mesmas palavras podem tomar

diferentes significados. Um exemplo clássico: em um jogo de voleibol as equipes devem

evitar ao máximo o contato da bola na rede. Isto significa um erro no contexto do jogo. Já em

um jogo de futebol, todos os esforços estão em lançar a bola na rede. Isto significa gol: o

objetivo do jogo. É o mesmo que acontece em nosso cotidiano; palavras que utilizamos com

um significado e objetivo específicos em nosso trabalho são utilizadas por nós mesmos em

nossa casa, com nossos familiares tomando novos sentidos. Em decorrência disso, o indivíduo

2 Concepção defendida pelos primeiros filósofos da linguagem, segundo a qual a objetividade da linguagem

permite descrever as coisas exatamente como “são”, possibilitando pensar a linguagem como instrumento

científico. Russell é um dos que defenderam esta ideia.

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pode significar uma mesma palavra de formas diversas, na medida em que transita vários

âmbitos de uma mesma sociedade.

Desse modo, podemos dizer que, além de a linguagem ter sido desenvolvida pelos

próprios humanos em sociedade, ela não é estática, isto é, a palavra utilizada para fazer

referência a algo, por si só, proferida ou escrita, não designa exatamente o que as coisas são,

mas requer uma série de elementos outros que estão para além dela própria.

Para Searle, é o conhecimento de regras gramaticais que nos permite passar da

produção dos ruídos à realização dos atos ilocucionários da comunicação – o que evidencia a

teoria dos atos de fala dentro da gramática. Por conseguinte, tal teoria oferecerá também o

conjunto das regras de realização de atos ilocucionários, cujas consequências serão

observadas na sintaxe. Segundo ele, a linguagem se relaciona com realidade em virtude do

significado, mas é o significado também a propriedade que transforma os proferimentos em

atos ilocucionários – e isto confere ao significado o lugar central em sua teoria da

comunicação.

Apesar de o significado da frase depender inteiramente das convenções da linguagem,

as frases são instrumentos de comunicação carregados de intencionalidade, como já

adiantávamos no início do texto. Ou seja, as palavras não têm apenas um significado

convencional, mas também um significado desejado pelo falante, na medida em que este

imprime nestes símbolos sua intencionalidade. Por isso, o conjunto intencional por trás da

significação possui um papel importantíssimo na produção do significado, sendo ela mesma

sua determinante.

Ao continuarmos nossa reflexão, é importante definirmos a que Searle se refere ao

falar de intencionalidade, sobretudo ao considerarmos o peso histórico do termo e as

frequentes confusões entre intencionalidade (com c) e intensionalidade (com s).

Intencionalidade é uma característica da mente pela qual a consciência (elemento primeiro da

mente, e de caráter essencialmente subjetivo [SEARLE 1998: 33; 2000: 45]), pode se

relacionar com o mundo. Numa definição preliminar, intencionalidade “é a propriedade de

muitos estados e eventos mentais pela qual estes são dirigidos para, ou acerca de, objetos e

estados de coisas no mundo”( SEARLE 2002b: 1). Já o termo intensionalidade aplica-se a um

determinado modo como se apresentam as formas linguísticas. Sentenças e enunciados

intensionais são caracterizados por representarem uma interpretação da qual [o enunciado]

não permite uma generalização existencial, uma vez que seus termos fazem referência à

representação de quem enuncia, de modo que substituir os termos significa tomar outra

referência. “Diz-se que uma sentença é intensional-com-s quando deixa de satisfazer certos

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testes de extensionalidade, tais como a substituibilidade de idênticos e a generalização

existencial” (SEARLE 2002b: 31).

Segundo o autor de “Intencionalidade” a confusão se dá pelo fato de algumas

sentenças sobre intencionalidade serem também intensionais. (porque os estados intencionais

são representações de suas condições de satisfação, ao passo que declarações sobre estados

intencionais são representações dos estados intencionais, ou seja, representações das

representações das condições de satisfação). Não há, portanto, algo intrinsecamente

intensional na intencionalidade, uma vez que todo estado intencional é tão extensional3

quanto possível. Um estado intencional não depende do que se possa partilhar objetivamente

ou do possam pensar outras pessoas, pelo contrário, é independente dos observadores.

Outra sutileza pontuada por Searle esclarece que a intencionalidade a que nos

referimos não diz respeito a uma intenção, objetivo (tal como a intenção de ir ao cinema), mas

se trata de uma instância que reúne em seu interior estados subjetivos como amor, ódio,

medos, crenças, desejos, percepções, e a própria intenção4.

O conceito de intencionalidade será melhor esclarecido no decorrer do texto quando

serão abordados outros conceitos necessariamente atrelados à sua constituição, assim

apresentada. Por ora, uma das definições de Searle nos parece bastar: “A intencionalidade,

conforme a defini, é simplesmente o aspecto dos estados mentais pelo qual eles são

praticamente dirigidos para objetos e situações outros que não eles próprios” (SEARLE 2000:

95).

Observamos que a abordagem searleana sobre o significado tem como pressuposto a

intenção do agente de que as produções de sinais e de sons sejam a realização de um ato de

fala. Nessa abordagem do significado, existe um duplo nível de intencionalidade: o nível

expresso pelo estado intencional e o nível de realização do ato intencional no momento da

emissão de uma sentença. A junção destes níveis se dá na intenção de significação, na qual

ambos se expressam simultaneamente: um estado intencional com um grau ou força de

3 O uso do termo extensional tem como critério o teste da Lei de Leibniz e o teste de inferência existencial. Na

Lei de Leibniz o valor de verdade de uma declaração pode ser mantido, mesmo que esta declaração seja

substituída por outra que se refira à mesma coisa – o tipo de liberdade comum e útil em áreas como a

matemática, onde sempre se pode substituir iguais por iguais. Em complemento, no teste de inferência

existencial a declaração sobre algum aspecto do mundo pressupõe que esse aspecto do mundo possui a

propriedade inferida na declaração. Assim, intensão está relacionada ao significado de uma palavra, enquanto a

extensão é aquele objeto referencial vinculado à compreensão de um significado. 4 O termo Intencionalidade, proveniente da língua alemã, em sua tradução para línguas como o inglês – também

a língua portuguesa – terminam por confundir em um mesmo termo dois significados. Searle em “Mente,

linguagem e sociedade” (2000:83) pontua a importância desta distinção quanto ao termo Intencionalidade, que

no alemão tem duas formas de uso: Absicht, que se refere a um propósito, objetivo, intento, intenção, intuito; e

Itentionalität, que se refere ao conjunto das volições.

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realização do ato, de modo que as condições de satisfação do estado intencional expresso na

realização do ato de fala são as mesmas condições de satisfação do próprio ato de fala.

As condições de satisfação são exatamente o aspecto que caracteriza os estados

intencionais, de tal forma que, “se queremos saber exatamente qual o estado intencional de

uma pessoa, devemos nos perguntar quais as condições exatas pelas quais ele poderia ou não

ser satisfeito” (SEARLE 2000: 99). O que torna um enunciado verdadeiro ou falso, uma

promessa cumprida ou não, uma ordem ser obedecida ou não? Isto depende do “sucesso ou

fracasso de um ato ilocucionário em corresponder à realidade na direção particular do ajuste

fornecida pelo propósito ilocucionário” (SEARLE 2002b: 14). Ou seja, a partir de minhas

crenças, o que representa condição de verdade, será exatamente o que representará a condição

de satisfação para o meu desejo. Assim, se desejo escrever este texto, tenho como condições

de verdade desse desejo, o próprio fato de escrever este texto – condição de satisfação.

Um aspecto estrutural dos estados intencionais que surge aqui, necessariamente

atrelado às condições de satisfação, é a direção de ajuste ou adequação. A direção de ajuste é

definida pelo tipo de estado intencional, que indicará um modo de relação com o mundo.

Crenças, por exemplo, têm uma direção de ajuste mente-mundo: só poderá ser avaliada

observando se o mundo é realmente da maneira como a crença o representa; já na direção de

ajuste mundo-mente, espera-se que as coisas no mundo se adéquem ao que se passa na mente.

Este é o caso dos desejos e intenções. Esta mesma terminologia – também concebida por

Austin –, pode ser imediatamente proferida nos termos mundo-palavra e palavra-mundo. É

notório, então, que os estados intencionais dependem de uma direção de ajuste para serem

satisfeitos – e intencionais –, a menos que se trate de estados intencionais tais como estar

contente ou arrependido, casos em que a direção de ajuste é nula.

Concluímos, então, que, o fato de atribuirmos significado a um proferimento qualquer,

ou seja, tornar ilocucionário um ato locucionário, depende de uma rede intencional em que

são consideradas as condições de satisfação – e de adequação – como condição mesma de ser

ele um estado intencional. Então, quando o falante diz X querendo emitir X, ele está

realizando um ato intencional. E os sons que emite fazem parte das condições de satisfação de

sua intenção de emissão. No entanto, quando faz um proferimento significativo, impõe

condições de satisfação aos sons emitidos. Se, além disso, o falante tiver uma intenção

comunicativa, uma terceira intenção de seu proferimento será a de que o ouvinte compreenda

o que quer dizer com seu proferimento.

Em cada caso, a intenção de significação é uma intenção de realizar apenas a primeira

metade – fazer um enunciado, dar uma ordem, fazer uma promessa – e, no entanto, de

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14 Expressão e Significado e Filosofia Clínica

um certo modo, essa intenção de fazer um enunciado específico deve determinar o

que se passa por verdade do enunciado (SEARLE 2002b: 229).

A chave do problema do significado parece estar, então, em perceber que as condições

de satisfação do estado intencional expresso são idênticas às dos atos de fala, uma vez que, na

realização de um ato de fala, impomos intencionalidade à expressão puramente física do

estado mental expresso, determinando como mesmas as condições de satisfação do próprio

estado mental e do enunciado emitido. Nas palavras de Searle:

Acredito que a chave para compreender a intencionalidade são as condições de

satisfação. Um estado intencional é satisfeito se o mundo é da maneira como é

representado pelo estado intencional. Crenças podem ser verdadeiras ou falsas,

desejos satisfeitos ou frustrados, intenções executadas ou não. (SEARLE 2000: 99)

Grosso modo, o reconhecimento gramatical do som que ouvimos quando há o proferimento

de uma palavra não é suficiente para compreendermos o que o proferimento da palavra

significa.

Contudo, ao falarmos de comunicação humana, não podemos deixar de dizer que, em

meio à produção de som e escrita, é a mente que lhes impõe intencionalidade, isto é,

capacidade representacional, pela imposição das condições de satisfação do estado mental na

produção destes fenômenos físicos. E são essas as características que, segundo o autor,

devemos levar em conta ao falar em intenções de significação. Assim, temos, nesse nível

duplo de intencionalidade, um estado psicológico que é expresso – trata-se de condições de

sinceridade –, e o outro que está na intenção com que o ato é realizado – a intenção de

significação propriamente dita –, e que torna o ato de fala tal como o desejado. Deste modo,

também o conteúdo da intenção de significação deverá determinar que tanto o ato de fala

quanto as condições de sinceridade tenham suas condições de satisfação, e que estas

coincidam entre si.

Não por acaso, no pensamento do filósofo, o sentido literal é tema polêmico e de

muitas páginas. Tema que, aliás, convém à nossa reflexão, pois exemplifica de modo claro a

necessidade de se considerar os contextos ao imprimir significado aos proferimentos.

Searle propõe uma forma de conceber o sentido literal, que diverge da forma como o

vê a maioria dos linguistas. Para estes, dada uma sentença, seu significado literal pode ser

definido como o significado que ela tem independentemente de qualquer contexto. Ou seja, o

significado literal de uma sentença é o significado que ela tem num contexto “zero”, nulo.

Para Searle, a noção de significado literal da sentença só tem aplicação relativamente a um

conjunto de suposições de base e contextuais. Há um número considerável de sentenças cujo

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15 Expressão e Significado e Filosofia Clínica

contexto de interpretação não é zero ou nulo. Só as entendemos sob um pano de fundo de um

conjunto de suposições de base acerca dos contextos.

De acordo com a opinião contrária, as sentenças têm um significado literal

determinado pelo significado de suas próprias palavras e pelas regras sintáticas, segundo as

quais esses elementos se combinam. Assim, a sentença: ”Sally é um bloco de gelo”, deveria

significar que há um bloco de gelo cujo nome é Sally. Este tipo de compreensão da linguagem

não permitiria, por exemplo, o uso de metáforas, de atos de fala indiretos, ou emissões

irônicas. Dado que utilizamos tais formas de emissão diariamente como forma de

comunicação, frente a diversas necessidades, nos parece ao menos razoável admitir que nosso

modo de compreensão ultrapassa os limites da literalidade. Além disso, uma sentença pode ter

mais que um significado literal – como já percebia Wittgenstein –, podendo inclusive, ser

defectivo ou não interpretável.

Nesta mesma opinião, no caso do indicativo, os significados da sentença

determinariam um conjunto de verdades e condições, de modo que, ao enunciar a sentença,

esta será verdadeira se, e somente se, tais condições de verdade forem satisfeitas. Dessa

forma, conhecer a verdade da sentença significa conhecer o conjunto de condições de verdade

da sentença – mesmo em sentenças de ocorrência indexicais, como “eu estou faminto”, cuja

veracidade não deveria ser avaliada de forma objetiva. A noção de significado não depende do

contexto, sendo, portanto, o mesmo em qualquer situação.

É assim que nos apercebemos de que todo estado intencional requer um fundo de base

que o suporte. “A noção de significado literal de uma sentença não é uma noção independente

do contexto; tem apenas uma aplicação relativa a um conjunto de pressupostos e práticas pré-

intencionais de Background” (SEARLE 2002b: 201). O Background é, assim, a base sobre a

qual os estados intencionais se constituem. Por outras palavras, é um conjunto de capacidade

desenvolvida pela pessoa a partir da leitura do contexto que nos permite lidar com o mundo.

Um exemplo cotidiano: tenho a intenção de sair do trabalho apressadamente hoje, pois desejo

passar na pizzaria e saborear uma pizza. Este meu estado intencional pressupõe um aparato

não especificado em minha fala: desejo uma pizza de um sabor específico e, por algum

motivo, acredito que aquela pizzaria sirva a melhor pizza. “Subjacente a esses pensamentos

conscientes, há um aparato que, em certo sentido, é fundamental demais para ser considerado

simplesmente outras crenças e desejos” (SEARLE 2000:103). Trago comigo um know-how:

sei andar e me comportar em pizzarias; e isto decorre da certeza que tenho de que o chão sob

o qual piso me sustentará; de que minha mão não cairá ao tentar tocar a pizza; de que para

saboreá-la a levo à boca e não a qualquer outra parte de meu corpo.

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16 Expressão e Significado e Filosofia Clínica

Assim, nossas habilidades mais básicas, como a de saborear uma pizza, têm subjacente

uma imensa quantidade de pressupostos que são construídos em nossa relação contextual

onde elas se dão, embora alguns desses pressupostos sejam universais. Por exemplo, o fato de

andarmos em pé. É a partir desse pressuposto partilhado, convencional, que posso conceber

minha intenção de ir à pizzaria: de proferir literalmente meu pedido ao chegar à pizzaria e

meu desejo ser compreendido e atendido sem que me tragam um chapéu à pizza, ou ainda que

me tragam uma pizza tão grande que não possa segurá-la.

Desse modo, vemos como o uso da linguagem está diretamente ligado às nossas

capacidades de suposição; e todas as vezes que usamos a linguagem, agindo intencionalmente

(pelo fato de a intencionalidade depender do Background), afirmamos a posição e importância

do fundo de capacidades na dinâmica da linguagem. Deste modo, notamos, intrínsecas, mente

e linguagem por meio da intencionalidade, sustentando-se e possibilitando-se – pois não

poderíamos estar conscientes de determinada coisa sem que, por meio da linguagem,

pudéssemos identificar que estamos conscientes; todavia, não poderíamos, sem as

capacidades mentais, fazer uso da linguagem. Assim, o possível círculo vicioso é solucionado

por Searle ao apresentar a dinâmica intencional fundamentada no Background.

Ao justificar sua tese, Searle utiliza exemplos nos quais a literalidade parece óbvia

segundo outras concepções. O mais famoso talvez seja a sentença indicativa “O gato está

sobre o capacho”. Para sua compreensão, ele aponta a necessidade de saber que gato, que

capacho, em que lugar (espaço), em que tempo (tempo) se faz referência. Todos estes são

elementos pressupostos realizados nos elementos semânticos da sentença, mas que nos

passam despercebidos, dada nossa familiaridade com as palavras. Como demonstra o autor,

evidenciá-los exige tão somente acrescentar outros elementos indexicais à sentença (este gato

que está agora bem aqui sobre este capacho que está bem aqui) ou eliminar os traços

explicitamente indexicais e substituí-los por descrições e coordenadas de tempo e espaço (o

gato que tem tais e tais características está no capacho que tem tais e tais características em tal

e tal momento e tal e tal lugar). Estes mesmos elementos indexicais serão responsáveis por

buscar o significado descritivo constante e invariável, presente na sentença em contextos e

emissões específicas.

Para a tese do significado literal, independente do contexto, mesmo que o gato

estivesse sentado ou de pé sobre o capacho, ou ainda se apenas meio gato estivesse sobre o

capacho, as condições de verdade da sentença não seriam comprometidas. No entanto, se o

gato estivesse na posição descrita, porém fora do campo gravitacional, a cena seria bem

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17 Expressão e Significado e Filosofia Clínica

retratada tanto se girássemos sua fotografia para o lado, quanto se a puséssemos de ponta

cabeça.

Nesta nova configuração, talvez não disséssemos mais que o gato está sobre o

capacho, além de chegarmos à conclusão de que mesmo que o campo gravitacional não esteja

retratado na figura, ele é pressuposto. Isso implica dizer que a noção de significado literal da

sentença não tem aplicação clara se não fizermos suposições suplementares. Igualmente, nota-

se que a sentença não tem aplicação clara no contexto especificado e por isso não determina

um conjunto preciso de condições e verdade. Por certo, nem sempre a aplicação literal da

sentença requer um campo gravitacional, pois poderíamos estar em situações diferentes da

que ocupamos agora, por exemplo, em uma nave espacial, como sugere o criativo Searle5. E

por mais que pudéssemos representar todas as suposições sobre campos gravitacionais como

partes do conteúdo semântico da sentença, restaria ainda um número indefinido de outras

suposições contextuais das quais teríamos que dar conta.

Com os mesmos exemplos, demonstra que em um grande número de sentenças não

ambíguas, a noção de significado literal da sentença só tem aplicação relativamente a um

conjunto de suposições de base. E que suas condições de satisfação sofrem mudanças

conforme a variação dessa suposição. As condições de satisfação da sentença não dependem

da presença ou ausência das suposições de base, pois estas variações não têm relação com a

indexicalidade, ou qualquer questão que se aponte na sentença. Assim, o paralelo entre

significação literal e estados intencionais, é possível pelo fato de a noção de significado literal

de uma sentença ser a noção de intencionalidade convencional (fungível) – embora passível

de reformulações –, que é o que permite a representação pública de uma sentença. Searle

enfatiza ainda que o discurso sobre o significado literal pode ser aplicado aos estados

intencionais em geral.

Com efeito, em relação ao sentido literal, o diálogo parece ser o mesmo de antes, entre

o já estabelecido e as possibilidades. Pois, por mais que teses como a de Searle se mostrem

pertinentes, somos tentados, tal como os primeiros filósofos da linguagem, a buscar exatidão

no significado das palavras e a adequação de seu uso. Assim apresentada, a questão da

literalidade é prova de que, embora seja necessário falar de forma objetiva, qualquer precisão

está sujeita a suposições contextuais, logo passíveis de reformulações.

5 Os exemplos aqui utilizados a respeito da literalidade são os mesmos apresentados por Searle em Expressão e

Significado (2002a:189-197) no capitulo sobre sentido literal.

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Assim apresentado, o pensamento de Searle a respeito da linguagem parece uma

continuidade da ideia lançada por Wittgenstein em sua obra “Investigações Filosóficas”,

citada ao início de nossa reflexão. Para este último, os erros linguísticos são causados pela

especulação metafísica a que se refere logo nas primeiras frases do livro – os mesmos que

posteriormente serão apontados como sendo os causadores de desarranjos mentais. Ao mesmo

tempo em que aponta a inexistência da linguagem privada, chama a atenção para uma

subjetividade contida nas palavras que emitimos. Assim, é possível termos noção do que a

pessoa quer expressar, mas apenas como conjetura, pois, o que ela quis significar de seus

estados mentais, só ela própria tem acesso. Conclui, então, que o sentido das palavras não se

limita à relação que têm com o objeto, mas depende da forma como é empregada para inferir

sentidos. Dito de outra forma, é no próprio uso que se atribui sentido às palavras.

Assim apresentadas, essas observações demonstram uma grande aproximação do

pensamento abordado, em sua teoria do significado, com a Filosofia Clínica, sobretudo

quanto ao cuidado que ela tem em investigar os significados contidos no que o partilhante traz

como informação; não apenas quanto aos termos utilizados, mas em um sentido amplo: no

todo, acredita, tanto quanto Wittgenstein e Searle, que o significado das palavras está sujeito à

sua conexão com os contextos, em detrimento de uma definição cristalizada.

A partir do reconhecimento de que nada se sabe a respeito da pessoa que procura o

atendimento (todo o conhecimento sobre ele se dá a partir da clínica, de sua própria

colocação, significação), o filósofo clínico se dispõe a coletar os dados da pessoa, buscando o

maior número de informações possíveis, a fim de compreender acerca da pessoa e de suas

questões, ou seja, o filósofo clínico busca reunir o máximo de elementos que o possibilite

aproximar-se do mundo do partilhante, compreendendo como este entende, significa, valora

seu entorno. Isto é propriamente compreender suas questões. Logo, se não se considera seu

contexto, não será possível pensar junto sobre suas questões: tão somente a partir de nosso

olhar elas poderiam deixar de ser questões.

Desta forma, a importância do significado perpassa todos os eixos metodológicos que

compõem da Filosofia Clínica, na medida em que se correlacionam em um movimento

constante de leitura dos fatos e estruturação pessoal a partir daí (Estrutura de Pensamento), e

modos de ação (Submodos) dentro de um determinado contexto (Exames Categoriais).

Para tanto, o filósofo clínico empenha-se na escuta atenta da Historicidade da pessoa

investigando sua constituição, a partir de suas vivências e história; estudando os elementos

que compõem seu entorno e a gênese de suas questões. Fugindo ao máximo das

interpretações, o filósofo clínico considera a fala do partilhante literalmente. Porém, esta

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19 Expressão e Significado e Filosofia Clínica

consideração literal não se casa com a concepção de que as palavras denotam as coisas no

mundo de modo objetivo; pelo contrário, a literalidade aqui é um esforço do filósofo clínico

em suspender seus juízos e considerar ao máximo a singularidade da pessoa: seu modo de ser,

falar, usar determinados termos. Sobremodo, nos enraizamentos será possível compreender o

significado dos termos para o partilhante. Só então a literalidade será possível.

Todo o empenho em compreender exclusivamente cada pessoa em sua constituição,

põe a literalidade presente na Filosofia Clinica em afinação com o que nos indica John Searle:

o significado literal da sentença só tem aplicação relativamente a um conjunto de suposições

de base e contextuais. Isto quer dizer que a literalidade presente na narrativa da pessoa

depende das informações trazidas por ela própria nesta mesma narrativa, quando surgem

informações a cerca de seu contexto geral.

Esta é a deixa para os Exames Categoriais cuja finalidade é localizar existencialmente

a pessoa, conhecendo o contexto no qual está inserida, por exemplo, onde mora, qual o

idioma, situação histórica, política e cultural em seu país; que lugares frequenta e como se

sente ao frequentá-los (física e existencialmente); como é seu tempo subjetivo; com quais

pessoas ou animais se relaciona; qual o motivo de procurar a clínica filosófica, etc. Estas são

algumas das observações pertinentes às categorias Circunstância, Lugar, Tempo, Relação e

Assunto, que se desenham em conjunto. Tendo em conta a construção de um critério singular

de clínica, nos Exames Categoriais está a fundamentação básica das demais observações e

procedimentos, que permitirão uma maior compreensão das formas de ser do partilhante

(AIUB 2004: 64-81).

Podemos dizer que os Exames Categoriais estão para a Estrutura de Pensamento tal

como o Background para os estados intencionais. A Estrutura de Pensamento,

desdobramentos desse entorno conhecido do partilhante em relação à forma que ele tem de

recepcionar e se constituir em suas circunstâncias, o modo de ser da pessoa, só pode ser

conhecido a partir dos Exames Categoriais (AIUB 2004: 81-93). Ao observarmos os

conteúdos dos tópicos que a constituem (Pré-juizos, Emoções, Busca, Axiologia, etc.) e toda

uma rede de relações intertopicais, estamos olhando para estados mentais constituídos sobre

um pano de fundo de outras crenças: a Circunstância propriamente dita; estados intencionais

(crença, desejo, intenções) que só se constituem em relação a toda uma rede de outros estados

intencionais estabelecidos a partir das experiências às quais se faz referência ao determinar as

condições de satisfação. Logo, se queremos compreendê-los, situá-los no processo clínico-

filosófico, necessariamente devemos considerar o contexto no qual foram/são possíveis.

Circunstânc

ia

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Tendo o significado ocupado o ponto central em nossa discussão, na medida em que é

ele mesmo o elemento que possibilita a comunicação, podemos dizer que esta dinâmica de

compreensão e sua importância aplicam-se a todos os tópicos da Estrutura de Pensamento6.

De modo mais pontual, porém, esta reflexão está presente na fundamentação do tópico

Significado, que assim como o tópico Semiose, tem como referência o signo; refere-se à

interpretação feita a respeito de uma expressão, uma mensagem, um gesto, ou de qualquer

outra expressão trazida pelo partilhante nos mais variados veículos de Semiose. Aqui, o

filósofo clínico observa como o partilhante recepciona e atribui significado a uma mensagem

dotada de forma – também significativa – e conteúdo. As possibilidades de significação são

tão diversas quanto os significantes. Por isso, a observação do filósofo clínico na investigação

dos significados deve ser isenta de opiniões pessoais ou comparativas, isto é, o que ele

próprio ou outro partilhante significaram a respeito de um filme, uma placa ou um termo não

pode ser parâmetro para o que significarão outras pessoas a respeito das mesmas coisas.

Há diversas maneiras de utilizamos a linguagem, adotando regras próprias para cada

uma delas – o que destaca a primazia da linguagem sobre as palavras. A linguagem é um

símbolo e, como tal, necessita de decodificação na investigação do que se apresenta. Aqui

relembramos o conceito de jogos de linguagem, que nos permitem uma visão de conjunto do

funcionamento das palavras, por sua vez, sempre renovadas. Este mesmo modo de

compreensão aplica-se à linguagem não verbal, de modo que, se queremos compreender o

significado das palavras, gestos – e até os olhares –, não é ao objeto que denota que devemos

recorrer, mas ao Jogo de linguagem a que pertençam.

Em filosofia Clínica o processo de Enraizamentos atende a esta necessidade. Por meio

deste caminho epistemológico, o filósofo clínico aprofunda sua compreensão do significado

dos termos utilizados pelo partilhante, a colocação desses termos na estruturação de seu

discurso, o significado das particularidades de sua linguagem, inclusive não verbal, o

significado dos tópicos da Estrutura de Pensamento e suas inter-relações, estendendo-se ainda

à pesquisa e utilização dos Submodos (PAULO 1999:29-31). É a partir deste olhar específico

que o filósofo clínico compreenderá as questões do partilhante de forma – tanto quanto

possível – singular. Isto é, a possibilidade da clínica inscreve-se a partir da compreensão dos

elementos que compõem uma existência.

Finalmente, podemos estender o mesmo quadro comparativo também aos Submodos.

Estes denotam os modos como que o partilhante já vivencia em seu próprio modo de ser,

6 Embora no decorrer do texto sejam citados poucos Tópicos, a Estrutura de Pensamento é composta de 30

Tópicos nos quais é possível encontrar esta dinâmica de intencionalidade.

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posteriormente utilizados pelo filósofo clínico. São então, ferramentas de trabalho do filósofo

clínico, ajustadas entre o que o partilhante procura e seu modo de ser, constituído

contextualmente (AIUB 2004: 93-109). Podemos dizer que aquilo que o partilhante procura, o

que busca em clínica, carrega condições de satisfação traçadas a partir de suas crenças, suas

verdades. Logo, lidar bem com sua questão passa pelo crivo da direção de ajuste, isto é, o que

ele tem como questão exige uma adequação sua às condições do meio em que vive à sua

realidade (mundo-mente): sua questão pode ter como gênese uma total disparidade entre o seu

modo de ser e seu contexto familiar, escolar ou de trabalho – novamente, a importância da

leitura contextual. Se o modo de ser da pessoa lhe proporciona uma leitura da realidade

totalmente diferente das que fazem as pessoas com as quais se relaciona – e constituem esta

realidade –, suas crenças e hipóteses, que exigem uma direção de ajuste do tipo mente-mundo,

dificilmente serão satisfeitas.

Isto não quer dizer que seus desejos, buscas, volições, não sejam estados intencionais,

pois toda a leitura da realidade também é uma crença tal como vimos na definição de

Background; há apenas uma “inadequação” na leitura de suas possibilidades. Ou seja, os

estados intencionais do partilhante se constituíram a partir de sua leitura do entorno, traçando

possibilidades que pertençam também ao seu modo de ver a realidade, mas é possível que esta

seja uma leitura desconectada com as “possibilidades reais” de seu contexto (desenvolvida em

ideias complexas, por exemplo).

São muitas as possibilidades clínicas. O trabalho do filósofo clínico dependerá de sua

investigação a respeito do partilhante, considerando sua constituição singular: poderia propor,

por exemplo, uma releitura de seu contexto e reformulação do Background, que implicaria em

uma mudança em seu modo de ver as condições de satisfação, e daí uma mudança de seus

estados intencionais, logo, em suas questões; ou ainda, o partilhante poderia modificar sua

circunstância encontrando pares com os quais seu modo de ler a realidade seja compartilhado.

Neste caso, a movimentação contextual traria condições de satisfação a partir das quais seus

estados intencionais são possíveis. Em clínica isto também será definido pelo partilhante.

Então, os Submodos utilizados como procedimento clínico terão o efeito desejado somente a

partir da consideração da leitura metodológica completa.

Retomando nossas observações ao início do texto, vemos as contribuições destes

modos de lidar com a realidade e suas questões, tornando evidente a importância do

significado, nas formas como o humano – ser autônomo – se constitui e constitui seu mundo

em meio às concepções que nem sempre favorecem sua plasticidade. Tanto a leitura proposta

por Searle, quanto o método da Filosofia Clinica, favorecem à melhor compreensão das

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realidades e propiciam uma gama maior de possibilidades de movimentação existencial e

realização; favorecem o exercício da autonomia.

Assim como o significado literal de uma sentença determina diferentes condições de

verdade ou obediência relativamente a diferentes conjuntos de suposições, também uma

crença ou expectativa terá diferentes condições de satisfação relativamente a diferentes

conjuntos de suposições. Do mesmo modo, a vivência social de quem se coloca no mundo

tomando toda e qualquer forma de comunicação como dada, não só priva-se da possibilidade

de construção por conta de serem suas crenças limitadas, mas também não enriquece o

conjunto de suposições de seu contexto. Por outras palavras, a fala já não significa expressão

de si no sentido ontológico. A outrora mediadora entre mente e sociedade, cujo desígnio via

realizar-se na comunicação simultânea de subjetividade e objetividade, passaria à função de

mera situante aos que desejam ler as etiquetas presas às coisas.

Transitar num mundo de relações sociais, de negociação, aprendizagem, política e de

afetividade dependentes de suposições “supõe” em grande medida o conhecimento dessa

realidade, se desejamos ainda sermos seres caracterizados pela possibilidade e direito de

expressar suas intenções. Do contrário, talvez fosse conveniente voltar à nossa colocação

inicial e optar pela ideia de que a linguagem é um dom de Deus aos homens com intuito de ser

um instrumento que melhor possibilite cumprir seus desígnios.

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