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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO TRANSFORMAÇÃO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS NO JARDIM JULIETA, VILA MARIA, SÃO PAULO Rafael Gustavo Silva Siqueira Orientação: Professor Doutor Euler Sandeville Jr São Paulo, 2012 1

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Transformação da Paisagem e Apropriação dos Espaços Públicos na Vila Maria, São Paulo Rafael Siqueira Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade - FAU USP

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Page 1: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO

TRANSFORMAÇÃO DA PAISAGEM E APROPRIAÇÃO DOSESPAÇOS PÚBLICOS NO JARDIM JULIETA, VILA MARIA,

SÃO PAULO

Rafael Gustavo Silva Siqueira

Orientação: Professor Doutor Euler Sandeville JrSão Paulo, 2012

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Sumário

Pag 1 Introdução....................................................................................................... 4

2 Método............................................................................................................ 10

3 Jardim Julieta: Caracterização....................................................................... 14

4 Jardim Julieta: Estrutura Urbana e Políticas Públicas.................................... 17

5 Coletivo CICAS............................................................................................... 25

6 Projetos Propostos para a Faixa Pública Ocupada........................................ 35

7 Grupos Sociais e o Poder Público.................................................................. 45

8 Apropriações dos Espaços Públicos.............................................................. 51

9 Uso e Ocupação do Solo............................................................................... 68

10 Considerações Finais.................................................................................... 73

11 Referências Bibliográficas............................................................................. 77

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Introdução

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O contato do pesquisador com o tema abordado nesse trabalho teve início antes da

concretização desse como projeto de pesquisa. Partiu, em princípio, de uma aproximação

de um Coletivo de jovens artistas nomeado CICAS (Centro Independente de Cultura

Alternativa e Social) com o Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade – Núcleo

Poéticas e Conflitos na Cidade, o qual o pesquisador faz parte, em meados de 2010. A

aproximação tinha por finalidade o pedido de apoio institucional do laboratório para a

regularização do espaço público abandonado e ocupado pelo Coletivo, no bairro Jardim

Julieta, São Paulo, que na ocasião estava fortemente ameaçado de remoção pela

Subprefeitura Vila Maria - Vila Guilherme.

O resultado dessa interlocução foi o estudo e aprofundamento da atuação do

Coletivo no bairro e sua situação de informalidade. Observou-se que o Coletivo, através

das atividades propostas, possibilitou uma rede de confiança e relações afetivas com a

comunidade de entorno, através das diversas atividades de educação popular, ambiental,

recreativas, lúdicas e artísticas, em uma região sujeita a um contexto urbano complexo.

Observou-se, também, que a proposta de trabalho dos jovens e o interesse em

estabelecer vínculos com a Universidade tinha forte ligação com as premissas do

laboratório, que pode ser explicitada através das citações abaixo:

São duas linhas de ação principais que se interpenetram: uma voltada para

estudos sobre história da paisagem, em sua relação com a cultura, as artes

e o projeto; e outra voltada para pesquisas sobre as condições

contemporâneas de transformação da paisagem, considerando

abordagens sistêmicas, participantes e artísticas.

O objetivo central desta segunda linha é desenvolver pesquisas,

disciplinas, oficinas e processos experimentais e colaborativos, envolvendo

alunos, moradores, instituições e outros sujeitos sociais interessados

nesses projetos. Os processos desencadeados envolvem metodologias

participantes e de ação, voltados para a interpretação e transformação

qualificada do espaço urbano e dos espaços de uso coletivo. Os trabalhos

fundam-se na proposição da Espiral da Sensibilidade e do Conhecimento,

na conceituação da Paisagem como experiência partilhada e socialmente

construída1, e na proposição de experiências de aprendizagem em

paisagens vivenciadas (espiral.net.br). O conhecimento e o aprendizado

1 SANDEVILLE JR., Euler. Paisagens e métodos. Algumas contribuições para elaboração de roteiros de estudo da paisagem intra-urbana. In Revista eletrônica Paisagens em Debate, FAU. USP, v. 2, p. 1. 2004a.

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são entendidos como uma construção partilhada e experimental de

saberes e práticas, em contínua reconstrução. As vivências do laboratório

em situações que fogem da teoria e vão para a cidade como espaço de

aprendizado e de pensamento são enriquecedoras, aguçam a sensibilidade

de cada pesquisador, permitindo um rico processo de aprofundamento dos

pressupostos adotados pelo Núcleo.

(…)

Esta posição assumida pelo Núcleo propõe uma inserção ativa e criativa

da Universidade pública diante das demandas sociais e ambientais

urgentes, e solidária a grupos sujeitos a situações de preconceito ou

exclusão social, e colaborativa com grupos autônomos de ação no espaço

urbano e culturais. Sem negar-lhes espaço, não se busca apenas a

publicação e o estudo bibliográfico como direcionadores de pesquisa, pré-

requisitos essenciais ao pesquisador da USP. O que se pretende, na

diversidade de ações e procedimentos adotados, é contribuir para a

formação crítica de um profissional criativo, formado também no diálogo

com a realidade e outros atores sociais que efetivamente a desenham.

Este deve ser sensível ao concreto, às condições reais e à interlocução

sensível e respeitosa com os envolvidos, na busca por um conhecimento

empírico e compartilhado entre as partes.

(SANDEVILLE JR; NEBERNYJ; SIQUEIRA:2011, P2)2

Dado esse cenário, o núcleo então aprofundou as relações com o Coletivo e

ofereceu-lhes apoio institucional através de um decreto3 que visasse a cessão do espaço

para fins culturais, sendo de atribuição do laboratório a condução de um projeto de

adequação arquitetônica da sede do Coletivo, um dos pré-requisitos para a subprefeitura

estudar a permanência do Coletivo no local. Este documento, entregue no final de 2010,

resultou em um processo administrativo4 que atualmente tramita na Secretaria Municipal

do Planejamento, Orçamento e Gestão (Sempla).

Ainda em 2010, a Secretaria Municipal de Cultura também foi acionada pelo

Coletivo e ofereceu apoio institucional para a manutenção das atividades. A partir desta

interlocução, foram realizadas diversas reuniões com gestores públicos da subprefeitura,

2 Ver : Por Espaços de Cultura Livre e Ativa em São Paulo. In: A Cultura em Luta Pela Paz. São Paulo, 2011.3 Pedido de Cessão de Uso de Área Municipal, Disciplinado pelo decreto 47.146, de 29 de março de 2006 - 4 Processo administrativo número 2010 - 0.283.109 - 8

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resultando por fim em um acordo que envolvia a realização de outro projeto arquitetônico 5

por parte da secretaria, que deveria ser construído pela subprefeitura. Como já havia no

local técnicos da subprefeitura acompanhando as obras da praça em curso, a proposta

era de se vincular as duas obras, a partir de verba destinada através da secretaria.

Apesar de tal articulação, não foi possível o desenvolvimento da obra, já que a área não

era pertencente à Secretaria Municipal de Cultura.

O processo de trabalho para a cessão do espaço ao Coletivo proporcionou não só

a possibilidade de uma atividade na graduação que se propunha a extrapolar os limites da

Universidade como também criou diversos questionamentos sobre as dinâmicas urbanas

daquele bairro, que a iniciação científica teve por finalidade responder.

Esse trabalho – Transformação da Paisagem e Apropriação dos Espaços Públicos

no Jardim Julieta, Vila Maria – pretendeu aplicar o conceito de paisagem como é

estudado no laboratório, através do objeto de estudo. Paisagem, no núcleo, é entendida

através da noção de experiência partilhada e se dá a partir da especificidade das relações

cotidianas entre pessoas ou grupos sociais, apropriações e representações, no universo

da cultura (SANDEVILLE:2004, P03). Se trata, principalmente, do reconhecimento dos

atores sociais envolvidos e suas formas de ação e interação, determinantes para o

entendimento do arranjo formal do território estudado e as decorrentes apropriações.

Uma importante contribuição para essa pesquisa foi deixada por Carlos Nelson dos

Santos, em A Cidade como um Jogo de Cartas. Ao mostrar os importantes agentes de

transformação do espaço urbano, sugere sintetizá-los em três grupos distintos: políticos,

técnicos e funcionários que representam o Governo; as empresas, através da indústria,

comércio e serviços; a população, fragmentada nos diversos grupos sociais

(SANTOS:1988, P50). Da mesma forma, a pesquisa indicou agentes diversos que, assim

como em um jogo de cartas, interagem de forma tensa, estratégica, resultando em

diversos olhares para o mesmo espaço.

Desta forma, no decorrer da investigação, delineou-se três eixos de estudos

distintos, que se interpenetram e se relacionam de forma mais ou menos conflituosa: o

poder público e sua atuação, interesses e formas de diálogo; os grupos sociais atuantes

politicamente e sua relação com o poder público e a população; a população e as

diversas apropriações observadas dos espaços públicos. Mesmo que sintetizado nesta

introdução, esse esquema guiou e ampliou o entendimento da paisagem local.

5 Participou da elaboração do projeto os arquitetos José Rollemberg, Leon Yajima e Wanderley Ariza, os estagiários Berta de Oliveira e Gustavo Meirelles, da Secretaria Municipal de Cultura; o professor Euler Sandeville Jr, o bolsista Rafael Siqueira, do LabCidade; Luiz Carlos Sendro Junior (Juninho) e Roger Duran, do CICAS

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Uma breve descrição da região estudada revela um nível de complexidade de

abordagem que supera a análise do local dentro de uma ideia de espaço intraurbano e

remete-nos a ideia de planejamento regional, como será visto adiante (VILLAÇA:2001).

Se trata de um bairro que tem como política pública predominante a construção de um

Pólo Logístico, situado próximo ao entroncamento das Rodovias Dutra e Fernão Dias,

com possível acesso para o Rodoanel Trecho Norte. A pesquisa buscou visualizar duas

escalas de intervenção distintas: a intraurbana, referente aos deslocamentos da

população e suas demandas no interior da cidade; e a abordagem regional, referente ao

transporte de mercadorias e à reestruturação de uma região (Ibid.). Mesmo não se

aprofundando nas questões que regem o espaço regional e intraurbano, as diferentes

escalas de abordagem se mostraram imprescindíveis para uma melhor compreensão das

dinâmicas da região, desde o estudo das dinâmicas locais (foco da pesquisa) até a escala

regional proposta pelo Pólo Logístico.

Figura 1 – Localização da área estudada a partir da mancha urbana Fonte: GoogleEarth 2009; Elaboração: Rafael S

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Figura 2 – Localização da área estudada a partir da Subprefeitura Vila Maria-Vila GuilhermeFonte: GoogleEarth 2009; Elaboração: Rafael S

Os resultados decorrentes das diversas formas de abordagem do mesmo território

demandaram grandes esforços de aproximação e distanciamento entre escalas de

intervenção, ao mesmo passo que mostrou processos que até então eram imperceptíveis

ao pesquisador. A análise destas intervenções, em sobreposição à apropriações locais

diversas e atuação política de grupos sociais e população, foram determinantes para uma

leitura da paisagem mais complexa e próxima das dinâmicas urbanas locais.

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Método

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O trabalho de pesquisa realizado contou com três eixos de investigação, de acordo

com os atores sociais envolvidos no processo. Estes eixos – grupos sociais, poder público

e diversas apropriações pela população dos espaços públicos – foram construídos a partir

da rede de atores sociais levantadas em campo, em decorrência da dificuldade

institucional encontrada pelo Coletivo para a realização de suas atividades. Portanto, o

Coletivo possui presença central no trabalho, sendo que as problemáticas levantadas e a

rede de atores sociais envolvidos foram constituídos a partir das interlocuções, reuniões

sistemáticas, aproximações e distanciamentos observados ao longo do tempo com o

Coletivo, o poder público e a população.

A aproximação com o Coletivo se deu a partir dos pressupostos estabelecidos no

laboratório, em que uma das premissas é a busca pelo conhecimento conjunto e fundado,

entre outros, na “criatividade (sensibilização), investigação (construção) e participação

(integração solidária)” (SANDEVILLE JR: 2003, P2). Representou, além da finalidade de

produção acadêmica de conhecimento sob um determinado fragmento urbano, uma

produção e aprendizado conjunto com os atores envolvidos no recorte de estudo, no

anseio pela troca de experiências e conhecimentos em ação colaborativa para um

determinado fim, assim como propõe o conceito de paisagem em que o grupo se baseia6.

Para a compreensão e análise da atuação dos grupos sociais, levou-se em conta

que “tal proposição somente pode ser pensada em um campo experimental aberto, e de

uma duração indeterminada, não imediata, na qual se constrói em percurso o percurso”

(SANDEVILLE JR, 2011, p 10). O método utilizado foi o da observação e participação,

buscando a “possibilidade do envolvimento do trabalho popular na produção de

conhecimento sobre a condição de vida do povo” (BRANDAO:1987, P224). Para que o

método utilizado trouxesse resultados consistentes, optou-se pela utilização de

entrevistas abertas e coleta de histórias de vida, com o intuito de não tornar os

entrevistados simples objetos de estudo controlados pelo pesquisador mediador7, mas

sim trabalhar em prol de “um saber que oriente a ação coletiva e que, justamente por

refletir a prática do povo, seja plenamente crítico e científico, do seu ponto de vista” (Ibid.).

6 Ver “Sandeville Jr. Paisagens e métodos: Algumas contribuições para a elaboração de roteiros de estudo da paisagem intra-urbana. Artigo publicado em 2004. Paisagens em debate n.02. São Paulo, SP.”

7 Termo empregado de Brandão. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues (Org) Repensando a pesquisa participante. P224

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Os grupos que foram acompanhados no bairro foram o Coletivo CICAS e o Grêmio

Recreativo Cidade Fernão Dias, contudo outros grupos foram descobertos durante a

investigação, sendo a Senhoras Unidas Conj. Hab. Fernão Dias o citado neste trabalho. A

descrição e análise desses grupos foram feitas com base na análise de cidadania

proposta pelo antropólogo Antonio Arantes, em que o termo pode ser visto como um

fenômeno que envolve no mínimo dois fatores, o sentido de pertencimento e sua posição

na sociedade (ARANTES:2000 P133). Sobre estes dois fatores, o sentido de

pertencimento é o fazer “parte do que a coletividade reconhece como um de nós ou (...)

do que considera “gente como a gente”. (Ibid). Já a posição na sociedade de cada

indivíduo é definida pelos seus direitos e deveres historicamente construídos e

segregados, definidos pelas atribuições próprias de determinada posição social, “num

sistema de relações que permite e impede – ou que, numa palavra, regula – o acesso a

determinados recursos materiais e simbólicos” (Ibid.). Outro autor que guiou o

entendimento de cidadania a partir da ótica das relações com o poder público foi Roberto

Damatta. Para o autor, a sociedade brasileira é dotada de esferas de ações e

significações sociais múltiplas, em um sistema complexo em que o impulsionador é a

capacidade dos atores sociais de se relacionar e criar uma posição intermediária, de

negociação (DAMATTA:1991). Essas considerações guiaram o entendimento das

especificidades das relações cotidianas entre poder público, comunidade e grupos

sociais, considerando as apropriações e representações, no universo da cultura

(SANDEVILLE JR:2004, P3).

A aproximação com o poder público se deu a partir de duas demandas distintas. Em

um primeiro momento, como rebatimento à situação instável e ameaça de remoção do

Coletivo, estudou-se os planos e projetos para a área de estudo, com ênfase na atuação

da Subprefeitura Vila Maria – Vila Guilherme, de forma a verificar a natureza das

intervenções propostas e sua integração com os grupos sociais e as decorrentes

demandas. Esta etapa contou com tentativas de entrevistas com técnicos da

subprefeitura8 e coleta de dados, relatórios e outros documentos, que foram incluídos

neste trabalho. Houve também a aproximação com a Secretaria Municipal de Cultura e o

acompanhamento da situação de regularização do Coletivo9 e as respectivas

8 Foi realizada reunião em 30 de julho de 2010 com a arquiteta Maria Eduarda Pires, da subprefeitura; e com o Subprefeito José Luiz Sanchez Verardino, o Coletivo e o pesquisador, em 18 de novembro de 2011.

9 Não houveram reuniões formais, contudo esclarecimentos (informações públicas) em relação ao pedido de cessão feito pelo Coletivo, em 11 de julho de 2012 e 02 de agosto de 2012.

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interlocuções entre a secretaria e a subprefeitura. Estas aproximações com a esfera

pública possibilitaram o reconhecimento dos critérios de intervenção propostos e a forma

de dialogação que há entre os poderes públicos e a comunidade.

O outro eixo que o trabalho evidencia são o mapeamento e as diversas apropriações

dos espaços livres públicos pela população, sejam elas políticas (no caso do Coletivo) ou

não. A importância do estudo das apropriações se dá, inicialmente, no reconhecimento

dos potenciais de realização de vida pública, que se concretiza nos espaços em que há a

possibilidade de encontro e diversidade. Assim, a pesquisa se propôs a estudar o sistema

de espaços livres a partir não somente do estudo da morfologia urbana em seus aspectos

funcionais, mas também nos usos como formas de apropriação, as práticas cotidianas e

as relações resultantes destas práticas. O método consistiu na observação em campo e

mapeamento dos espaços públicos apropriados; também considerou as apropriações dos

espaços públicos a partir dos usos destinados aos lotes.

No estudo de caso, os espaços de circulação, em específico a rua, se mostraram

espaços de realização plena da esfera de vida pública (TANGARI V R; ANDRADE R;

SCHLEE M B: 2009, P 71) e ainda representaram “palcos exemplares da cultura urbana”

(Ibid., P94), sendo locais privilegiados de encontro e convivência, ou de realização de

eventos diversos, como foi observado em campo nos casos de manifestações culturais e

políticas a partir do CICAS e outros Coletivos ligados ao CICAS.

O estudo e relato dessas apropriações proporcionou uma avaliação conjunta das

características morfológicas dos espaços decorrentes das políticas públicas e formas de

ocupação pela população, "em função de apropriações eventuais que transcendem a

funcionalidade mais específica do sistema de objetos" (QUEIROGA:2003, P140), como

os "inúmeros e precários campos de futebol informalmente produzidos nas periferias das

cidades megalopolitanas" (Ibid.).

Os três eixos de análise destacados – grupos sociais e população, poder público e

apropriações diversas – estão destacados neste documento a partir dos capítulos

propostos. Pretende-se, com essa organização, levar o leitor a compreender as dinâmicas

locais a partir das interações entre os diversos agentes no espaço urbano estudado,

resultando, por fim, no aprofundamento da transformação da paisagem de acordo com os

pressupostos teóricos elencados nesta iniciação científica.

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Jardim Julieta: Caracterização

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O Jardim Julieta caracteriza-se por ser uma área de várzea, com topografia pouco

acidentada, delimitada pelos córregos Montenegro e Violão que desaguam no Rio Cabuçu

de Cima. Se situa em uma região de acesso direto à Rodovia Fernão Dias, sendo

portanto uma área de interesse logístico metropolitano, como tem sido observado de

acordo com as políticas públicas.

O bairro apresenta morfologia urbana bem definida. Próximo à Rodovia Fernão

Dias, à leste, encontra-se o Terminal de Cargas Fernão Dias e vizinho a este, uma área

descampada destinada à estacionamento de carretas. Trata-se de dois equipamentos que

ocupam uma área de aproximadamente um quilômetro quadrado, caracterizados pelo uso

industrial. Nas extremidades destes equipamentos, nas margens do Córrego Montenegro

e Violão, é possível observar favelas já consolidadas, sendo elas a Favela do Violão e a

Favela Montenegro. Ao adentrar-se na mancha urbana a partir dos terminais, encontram-

se conjuntos de prédios habitacionais de baixo padrão, caracterizados por apresentar

espaços livres intra lotes e um gabarito baixo, de cinco andares. Os conjuntos são bem

definidos na malha urbana, sendo delimitados pela Avenida do Poeta e Rua da

Cavalgada, como ilustrado a seguir. Nas imediações destas vias, ainda é possível

observar uso comercial e habitacional de baixo padrão, representado por casas – a

maioria sobrados geminados – e pequenos comércios formais e informais em ruas locais,

característicos da paisagem de entorno próximo ao bairro.

Nas áreas residenciais, logo percebe-se uma escassez de equipamentos públicos,

como a notável ausência de locais adequados para recreação e lazer, em contraposição a

uma grande disponibilidade de espaços livres públicos subutilizados, proporcionando

diversas apropriações dos espaços contíguos, resultando também em espaços hostis em

que observa-se a utilização de drogas e marginalização, além da prostituição infantil que

tem no estacionamento de carretas seu principal indutor.

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Figura 3 – Caracterização da área de estudoFonte: GoogleEarth 2009; Elaboração: Rafael S

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Jardim Julieta: Estrutura urbana e políticas públicas

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O Jardim Julieta é um bairro de origem recente, que se consolidou entre a década

de 60 e 7010 e insere-se no recorte da Subprefeitura Vila Maria/Vila Guilherme, que possui

seus primeiros arruamentos implantados no início do século XX, em meio a um panorama

do poder público que envolve a ausência de exigências de reserva de áreas públicas e

poucos instrumentos para padronização de larguras e declividades das vias, bem como a

fragilidade em relação a fiscalização de aberturas de novos loteamentos (TANGARI V R;

ANDRADE R; SCHLEE M B:2009, P349).

O processo de expansão do território da subprefeitura se deu através de

loteamentos privados, que favoreceu uma ocupação descontínua e fragmentada do

território, com baixa intervenção do poder público. Pode-se citar, das primeiras e de maior

relevância, a atuação do poder público a partir da década de 30 com o intuito de se

estabelecer critérios de abertura em novos arruamentos, que incluíram um maior apuro

em relação à legislação, adequação ao sítio e destinação de espaços livres de domínio

público11.

Nas décadas posteriores, a partir das dificuldades de loteamento e o aumento

gradativo do fluxo migratório de trabalhadores para São Paulo, a questão habitacional

ganhou uma importância frente às novas ocupações periféricas (Ibid, P349). As

ocupações das classes mais baixas se concentraram, especialmente, nas áreas de

várzea e localidades mais distantes dos eixos de transporte público, característico do

bairro Jardim Julieta. As primeiras ocupações observadas datam do início da década de

6012, caracterizadas por famílias de outros estados que, ao migrarem para São Paulo, se

instalaram gradativamente numa região “descampada, que não havia nada senão

córregos e mato”13. Em resposta à invasões de áreas e situações de riscos, o poder

público implementou gradativamente (ao longo das décadas de 70, 80 e 90) os conjuntos

habitacionais, que tem como característica comum “manter a segregação dos núcleos

implantados, seu isolamento em relação à trama do entorno e entre os diversos projetos”

(Ibid, 349). No Plano Regional Estratégico da subprefeitura em vigor estas áreas são

descritas como ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social).

10 Relato de uma família da COHAB Vila Sabrina em outubro de 2011, que não quiseram se identificar.11 Lei 2611, de 1923, inclui, entre outros, a destinação de espaços livres públicos, a saber: 5% na zona urbana; 7% na

zona suburbana; 10 % na zona rural. Disponível em: http://camaramunicipalsp.qaplaweb.com.br/iah/fulltext/leis/L2611.pdf

12 Informações de moradores antigos da COHAB Vila Sabrina, que não quiseram se identificar.13 Relato de morador da COHAB Vila Sabrina em outubro de 2011

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Figura 3 – Área de estudo em 1958Fonte: GeoPortal; Elaboração: Rafael S

Figura 4 – Área de estudo em 2009Fonte: GoogleEarth 2009; Elaboração: Rafael S

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A partir das ocupações e da implantação definitiva da Rodovia Fernão Dias14,

houve no Jardim Julieta uma preocupação inicial em destinar esta área para um terminal

de cargas, através do Plano de Reurbanização15 previsto em Lei, iniciado pela EMURB

(Empresa Municipal de Urbanização), em 1974, que tinha por finalidade a implantação de

“terminais de ônibus, estacionamento para veículos, equipamentos comunitários, serviços

públicos, edifícios comerciais, institucionais, residenciais, terminal de transporte (...)” (Lei

8.079 de 28/06/1974, Artigo 2). Esse plano previa a implantação de um Terminal de

Cargas na área e estabelecia diretrizes básicas para urbanização da região, com poucas

restrições técnicas. Também, não foram encontrados mapas ou desenhos das

implantações propostas.

Após uma longa data de indeterminação das destinações específicas para a área,

a partir de 1980 a EMURB retomou a proposta de implantação de um Terminal de Cargas,

cedendo 1/3 da gleba à COHAB para a implantação do Programa PROMORAR e do

Conjunto Habitacional COHAB Fernão Dias, o qual atualmente também é denominado

COHAB Vila Sabrina. O projeto de loteamento – denominado “Urbanização Fernão Dias“

e “Terminal de Cargas Fernão Dias” - foi aprovado pela SEHAB/PARSOLO de acordo com

as Leis de Loteamentos vigente16. Os primeiros projetos para o Terminal de Cargas foi

desenvolvido pela EMURB, de acordo com o Decreto17 para tal fim na época,

regulamentando o uso e ocupação do solo para a área do Terminal de Cargas, inclusive

estabelecendo critérios de dimensões de lotes. Neste decreto não há reserva de áreas

para outros usos que não os de apoio ao Terminal de Cargas, denotando a priori uma

secundarização da demanda por habitação na área. Contudo, foi verificado que, na

mesma oportunidade, destinou-se as áreas restantes do projeto do Terminal para a

implantação dos conjuntos PROMORAR e COHAB – através do loteamento “Urbanização

Fernão Dias” - definidas como ZEIS 1 (Zona Especial de Interesse Social). Parte destas

áreas atualmente são áreas livres em que não houve a implementação das habitações

populares e estão ocupadas por favelas, como é o caso da Favela do Violão.

14 A Rodovia foi inaugurada pelo então Pres. Juscelino Kubitschek em 1959 mas o trecho paulista foi somente concluído em 1961.

15 Lei 8.079 de 28/06/1974 “aprova primeira etapa do plano de reurbanização da zona Leste e nos subdistritos de Vila Guilherme e Tucuruvi, e dá outras Providências”disponível em http://camaramunicipalsp.qaplaweb.com.br/iah/fulltext/projeto/PL0080-1974.pdf

16 Leis de Loteamentos – Municipal 9.413/1981 Disponível em http://www.radarmunicipal.com.br/legislacao/lei-9413

17 Decreto 17.424 de 10/07/1981 que “regulamenta a execução de parte do Plano de Reurbanização do Tucuruvi, aprovado pela Lei 8079/74”Disponível em: http://camaramunicipalsp.qaplaweb.com.br/iah/fulltext/decretos/D17424.pdf

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Figura 5 – Loteamentos: “Terminal de Cargas Fernão Dias”; “Urbanização Fernão Dias” - 1981Fonte: GoogleEarth 2009; Elaboração: Rafael S

Após uma série de tentativas ineficientes na década de 90 e 2000 de

desenvolvimento do projeto do Terminal de Cargas, que incluíram as iniciativas de venda

de galpões pela EMURB para empresas transportadoras interessadas, bem como

instrumentos para viabilização dos gastos com o projeto e a criação de uma ZPI (Zona

Predominantemente Industrial) foi sugerido em 2010 pela Subprefeitura Vila Maria/Vila

Guilherme um plano de uso e ocupação para a área do Terminal, inclusive se

diferenciando do recorte proposto como AIU (Área de Intervenção Urbana) no Plano

Regional Estratégico de 2004, que determina a área de intervenção proposta para o Pólo

Logístico Fernão Dias.

O Plano Regional Estratégico indica, no mapa Uso e Ocupação do Solo, os

zoneamentos propostos para o recorte da Subprefeitura Vila Maria/Vila Guilherme. A área

em estudo está inscrita dentro da denominação ZM 2 - Zona Mista de Média Densidade18

e ZPI - Zona Predominantemente Industrial.

18 Zona destinada à localização de atividades típicas de subcentros regionais, permitindo também usos residenciais.Fonte: Zoneamento da Cidade de São Paulo / SEMPLA

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Figura 6 e 7 (da esquerda para a direita) – Recorte do Mapa de Desenvolvimento Urbano e Mapa de Uso e Ocupação do Solo da Subprefeitura Vila Maria / Vila Guilherme

Fonte: Plano Regional Estratégico 2004

Atualmente, o Pólo Logístico está em fase de análise e passa por processos de

Estudo de Viabilidade Ambiental (EVA). É pretendido com esse plano a ampliação do

Terminal de Cargas Fernão Dias e foi nomeado como Complexo Logístico Fernão Dias. O

plano possui duas zonas distintas, uma destinada à receber a ampliação do Terminal e

outra com fins de habitação. Para a ampliação do Terminal, o plano prevê galpões para a

acomodação das cargas vindas por rodovias e espaços destinados à apoio, tais como

áreas comerciais e apoio ao usuário. Já a área social prevê a implantação de um parque

linear, conjuntos residenciais, desapropriações e urbanização da favela do Violão e

instalação de equipamentos institucionais.

22

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Figura 8 – Formas de ocupação na área do Pólo Logístico Fernão Dias Fonte: EVA Complexo Logístico Fernão Dias; Elaboração: Rafael S

23

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Figura 9 – Disposição das áreas do Pólo Logístico Fernão Dias Fonte: EVA Complexo Logístico Fernão Dias; Elaboração: Rafael S

Os projetos e planos observados remete-nos à ideia de planejamento regional, o

qual Villaça aponta que a estruturação desse espaço é definida pelo “deslocamento das

informações, da energia, do capital constante e das mercadorias em geral”

(VILLAÇA:2001, P20). Por se tratar de uma área que representa a divisa de município

entre São Paulo e Guarulhos, nas proximidades de rodovias e com equipamentos

metropolitanos de suma importância, logo percebe-se que a estrutura intraurbana, ou

seja, o espaço “estruturado fundamentalmente pelas condições de deslocamento do ser

humano” (Ibd, 20) tem sido secundarizada pelo poder público em prol de um

planejamento que aponta esta área como estratégica do ponto de vista de estruturação

regional. Essa tendência pode ser observada através do Complexo Logístico Fernão Dias,

o trecho norte do Rodoanel e a menção feita através do Plano Integrado de Transportes

Urbanos de 202519 para a área, apontada como “central logística do município GT1”

compondo um quadro complexo de sete áreas localizadas em região de periferia, com a

função estratégica de fluxo de mercadorias.

19 PITU 2025

24

Page 25: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

Coletivo CICAS

25

Page 26: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

A faixa pública onde encontra-se o Coletivo faz face a um conjunto de prédios da COHAB,

denominado COHAB Vila Sabrina, a um campo de futebol mantido pelo Grêmio

Recreativo Fernão Dias e ao estacionamento de carretas. O campo de futebol e o

Coletivo localizam-se em uma faixa pública extensa e pouco ocupada, sendo esta

também uma região limítrofe entre a área de estacionamento de caminhões e os prédios

habitacionais da COHAB.

O CICAS trata-se de uma ocupação de um centro comunitário sem uso ou fim

específico, em terras públicas, por um Coletivo de jovens artistas e moradores locais que

realizam atividades de educação popular, educação ambiental, recreativas, lúdicas e

artísticas, em uma região sujeita a um contexto urbano complexo. A inserção deste grupo

na comunidade, ao longo dos seis anos de sua atuação, permitiu debates acerca das

transformações da paisagem, através de sua articulação com outros Coletivos (que

enriquecem os debates do espaço público e apropriações) e também através da inserção

de membros deste grupo em conselhos e representações da sociedade civil, como o

CADES Vila Maria – Vila Guilherme e o Forum Regional de Direitos da Criança e do

Adolescente .

Os integrantes do Coletivo, em sua maioria, são ligados à música, e inicialmente

utilizaram o espaço ocupado para este fim. Buscou-se, nos primeiros anos de ocupação,

estabelecer processos criativos de aprendizado com a população de entorno, outros

Coletivos de música e bandas de música para permitir que pudessem realizar atividades

de produção musicais, shows no próprio espaço ou no espaço exterior. O Coletivo possui

uma forma de organização que, ao longo do tempo, buscou estabilizar-se através da

colaboração das pessoas envolvidas diretamente ou indiretamente, através inicialmente

de organização de eventos musicais, festas e apresentações de Coletivos. Não há um

critério claro que determina quem entra no grupo e quais são as atribuições de cada um.

Há um anseio geral de contribuição para o crescimento do grupo, que se reflete em ações

colaborativas e não hierárquicas, articuladas em rede e de caráter libertário. De fato, esta

postura é compartilhada por outros Coletivos de periferia observados, em que esta opção

de gestão têm, além de uma intenção de liberdade de expressão e escolha, uma crítica às

estruturas organizativas corporativas e institucionais.

26

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Figura 10 – Forum Regional de Direitos da Criança e do Adolescente, no Coletivo CICAS Fonte: Rafael S, 2012

Figura 11 – Apresentação musical no Coletivo CICAS Fonte: Rafael S, 2012

Quando da aproximação do pesquisador ao Coletivo, em 2010, o principal Coletivo

que frequentava e geria o espaço do centro comunitário foi o Coletivo de música Sinfonia

de Cães, acompanhado por outros integrantes e bandas de música não pertencentes a

este Coletivo, contudo de acordo com a proposta de gestão do grupo. Houve durante este

primeiro momento uma ideia de ocupação do espaço para as bandas, destacada através

das intencionalidades pessoais dos integrantes20. A colaboração de outros Coletivos

também é visível neste período, em que os finais de semana eram permeados por

atividades não rotineiras, envolvendo população local, bandas convidadas pelo Coletivo e

ação de outros grupos de periferia.

A partir de 2010 e em específico 2011, percebeu-se a necessidade de

reestruturação do grupo. Após situações de adversidade entre os integrantes presentes

no centro comunitário, acordou-se que o Coletivo Sinfonia de Cães não usaria mais o

20 Juninho, um dos integrantes e diretores do CICAS, destacou sua intenção inicial no grupo de se destacar como músico.

27

Page 28: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

espaço, forçando uma reestruturação dos integrantes e das atividades. Esta mudança foi

importante, pois possibilitou a abertura do espaço à novas demandas da população dos

conjuntos habitacionais e do entorno, possibilitando maior diversificação e envolvimento

da comunidade local. Também foi importante para definir as novas metas do grupo, as

tomadas de decisão futuras frente à dificuldades de desocupação já enfrentadas com o

poder público e o próprio nome do Coletivo, que por fim nomeou-se CICAS, Centro

Independente de Cultura Alternativa e Social.

A atuação do CICAS se dá em redes de cooperação com outros Coletivos da Zona

Norte principalmente, em que se se pode citar o Projeto Espremedor, Comunidade

Quilombaque, Coletivo de Teatro Núcleo Pavanelli, Teatro Silva, Sarau Elo da Corrente,

entre outros. Um dos principais objetivos do Coletivo é a estruturação das atividades à

população local, no intuito de permear a população de entorno e permitir, ao mesmo

tempo, a ocupação de espaços externos ao CICAS (equipamentos institucionais e

espaços públicos). Observou-se uma pluralidade de atividades propostas dentro do

espaço do CICAS e algumas outras que extrapolam o espaço físico ao longo dos anos.

Dentre as atividades, ao longo da atuação do pesquisador junto ao Coletivo, pode-se

citar: almoço comunitário, desenho para jovens, artesanato, aulas de inglês, oficina de

música e meio ambiente (crianças e jovens), atividades lúdicas, dança do ventre,

capoeira, cinema infantil, cinema nacional, gravação de música, entre outros. Além

destas, observou-se ao longo do trabalho atividades em espaços abertos desenvolvidas

em finais de semana, em que pode-se levantar as apresentações de HIP HOP, batizados

de capoeira, oficinas de graffiti, festivais de basquete de rua, filmes, oficinas de teatro,

apresentações de teatro de rua, oficinas ambientais (horta comunitária e palestras),

cortejos de maracatu, saraus, festas e shows.

28

Page 29: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

Figura 12 – Almoço Comunitário no CICAS Fonte: Rafael S, 2012

Figura 13 – Almoço Comunitário no CICAS Fonte: Rafael S, 2012

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Page 30: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

Figura 14 – Apresentação de capoeira no CICAS Fonte: Rafael S, 2012

Figura 15 – Horta Comunitária no CICAS Fonte: Rafael S, 2012

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Page 31: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

Figura 16 – Evento com grafiteiros no CICAS Fonte: Rafael S, 2012

Durante o período de acompanhamento do grupo, estendendo-se até os dias

atuais, outras atividades e organização do espaço físico foram sendo efetuadas de acordo

com as reestruturações propostas. O envolvimento constante entre os participantes e a

comunidade permite a incorporação de novas ideias, oficinas e opções de atividades,

refletindo assim o cotidiano de um Coletivo de periferia. Para melhor explicação dos

princípios do grupo, segue trecho do caderno de apresentação do CICAS:

PRINCÍPIOS: O CICAS existe baseado nos seguintes princípios:

Garantir o Acesso Livre a Cultura e a livre expressão; Sem Fins Lucrativos;

Mecanismos Interativos de Gestão e Produção; Promover a Igualdade

Entre Todos: Artistas, Colaboradores e Público; Sustentabilidade e

Cidadania; Respeito pelo Meio Ambiente, verde e urbano; Laicismo;

Apartidarismo; Antidiscriminação; Desenvolvimento Humano e valorização

da produção independente.

VISÃO: Solidificar na comunidade um ambiente de inserção e interação

social e cultural, incentivando a colaboração comunitária, possibilitando a

construção através das artes de novas opções de entretenimento,

formação, informação e produção cultural e de cidadania.

VALORES: Respeito – Cooperação – Honestidade

Carta de apresentação do CICAS, 2012

31

Page 32: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

A proposição e desenvolvimento das atividades no Coletivo, diverso do que em

instituições ou empresas, é realizada de acordo com os planos de trabalho do oficineiro,

resultando assim em uma organização não hierárquica, em que todos os participantes

possuem liberdade de proposição e ação. Desta forma, a utilização dos ambientes

também é livre, de acordo com as expectativas de cada curso ou oficina, inclusive

fomentando o uso do espaço público para atividades e ensino. Os ambientes internos ao

CICAS onde são desenvolvidas atividades são: estúdio de música, biblioteca, palco para

shows e espetáculos, salão de atividades, cozinha e espaços verdes; já as oficinas

propostas e em curso no ano de 2012 são: capoeira, teatro infantil, práticas da produção

em audio e vídeo e oficina de corte e costura; também, destacam-se as atividades

periódicas realizadas, como o sarau temático mensal, os festivais de música, circo e

teatro de rua, Frente de Obras e Realização de Serviços e Adaptação (FORSA CICAS),

Forum Regional de Direitos da Criança e do Adolescente, Cine CICAS, Dia da Beleza,

Praça Viva em Cores, Festa dos Coletivos e Mutirão Cultural da Quebrada. Estes eventos

periódicos possibilitam, além de divulgação do trabalho do Coletivo, a apropriação dos

espaços públicos subutilizados e degradados, como o trabalho Praça Viva em Cores, que

pretende dar sentido de apropriação para a praça construída pela subprefeitura em 2011,

além de colaborar para a conclusão dela (ainda carece de lixeiras e outros equipamentos)

e gerir o espaço juntamente com os moradores de entorno. Para o estabelecimento de

algumas das atividades, foi necessário ao longo dos anos apoio institucional de fomentos

à cultura, que por fim possibilitam que o Coletivo permaneça em funcionamento

gratuitamente, possibilitando um ambiente de trabalho sem fins lucrativos e aberto à

população. Dos prêmios recebidos pelos projetos apresentados, podemos destacar:

Projeto Janelas Abertas, uma oficina de costura comunitária, através do Programa VAI

(Valorização de Iniciativas Culturais); Copatrocínio de Primeiras Obras (Secretaria

Municipal de Cultura e Centro Cultural da Juventude), que possibilitou a elaboração de um

filme e um livro da história do Coletivo, a qual o pesquisador participou; 3ª Edição do

Prêmio Cultura Viva 2010 (Ministério da Cultura); Prêmio Pontinhos de Cultura 2010

(Ministério da Cultura); Programa IAM, Iniciativa Jovem Anhembi Morumbi; Programa de

Incentivo a Leitura da Fundação Biblioteca Nacional.

32

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Figura 17 – Projeto Praça Viva em CoresFonte: Rafael S, 2012

Desta forma, a inserção do Coletivo no bairro permite outras formas de

sociabilidade, aprendizagem e ensino, em contraposição a espaços hostis e subutilizados,

em que o uso de drogas e a prostituição infantil tornam-se frequentes. Com efeito, os

equipamentos culturais no entorno são escassos e pouco ricos em relação a atividades

propostas. Destes, podemos destacar dois equipamentos onde há Clubes da Comunidade

e Clubes Desportivos Municipais. Trata-se do CDM e CDC Salverino Ferreira, localizado à

Rua José Anildo da Mata, 415 e do CDM e CDC Lauro Megale, localizado à Alameda

Primeiro Sargento Osmar Cortes Claro, 140. Contudo, somente um equipamento

encontra-se no Jardim Julieta e ambos apresentam somente o esporte como atividade

proposta, em especial o futebol. Em uma visita ao CDM e CDC Salvelino Ferreira,

próximo ao CICAS, notou-se que não há programas ou desenvolvimento de atividades

periódicas, se restringindo apenas a um campo de futebol, de acordo com relato de

usuários: “é um campo da comunidade, a gente joga futebol e depois toma uma cerveja

no bar do lado”21. É um equipamento que também abriga jogos de futebol formais22,

configurando assim um espaço pouco aberto à população, sendo de uso restrito de times

cadastrados, mesmo em ausência de campeonatos.

Este panorama de escassez de equipamentos públicos oferecidos à população, em

contraposição a uma clara intenção da subprefeitura de remoção do Coletivo, são

refletidas em ações contestatórias e políticas do Coletivo, como será visto adiante. A

posição da subprefeitura, de formalizar o espaço através da desocupação do Coletivo em

prol de outros equipamentos públicos propostos - uma quadra poliesportiva, uma praça e

21 Frequentador do CDM e CDC Salvelino Ferreira, que não quis se identificar.22 Em 2011, este equipamento recebeu jogos da Copa Bandeirante Sub 15.

33

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recentemente o apoio da subprefeitura na construção de uma Unidade Básica de Saúde –

denota ações arbitrárias e que resultam, em última instância, em espaços mal projetados

e inconclusos, sem um diálogo aberto que possibilite projetos e gestão integrados.

Contudo, para melhor compreensão dos projetos pretendidos pelo Poder Público, foi

necessário uma avaliação de documentos públicos que projetam obras para a área, com

os resultados relatados no próximo capítulo.

34

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Projetos propostos para a faixa pública ocupada

35

Page 36: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

Durante a pesquisa, buscou-se através de conversas e busca de relatórios técnicos

com gestores públicos e líderes sociais o entendimento das propostas e projetos para o

espaço público em que localiza-se o centro comunitário, com o intuito de, através dos

diversos depoimentos e documentos recolher as distintas formas com que esses atores

lançam olhares para o mesmo espaço, definindo representações que por vezes são

coincidentes, por vezes destoantes. Os resultados desta etapa trouxeram outros tipos de

olhares para o pesquisador, bem como alguns questionamentos sobre a atuação política

no bairro de grupos sociais e intituições, as formas de articulação, a desintegração das

políticas públicas e as formas de diálogo na comunidade.

Os dados obtidos foram conseguidos principalmente a partir de documentos

públicos. O entendimento dos projetos para a area – em especial a Unidade Básica de

Saúde, que têm atualmente seu projeto previsto na mesma área ocupada pelo Coletivo –

não foi totalmente esclarecido através de reuniões internas do Coletivo e interlocuções

com gestores públicos23, sendo que estes, em específico o Subprefeito vigente, poucas

informações adiantaram sobre o que legalmente tem se proposto para a área. As

próximas páginas são esclarecimentos acerca dos documentos do processo

administrativo 2002-0.101.550-8, da Secretaria Municipal de Saúde.

Em maio de 2002, a Secretaria Municipal de Saúde, através do Distrito de Saúde

do Jaçanã, pediu a cessão de uma area junto à Av. João Simão de Castro para

construção de uma Unidade Básica de Saúde, para desenvolver o Programa Saúde da

Família24. A área pretendida se localizava a uma distância de três quarteirões de onde

atualmente o CICAS desenvolve suas atividades, situada entre as Ruas Claudio Santos e

Renato Serra, sendo que a localização remetia a um lote descampado na época. Próximo

à area pretendida, havia também a intenção de construção de um CEU (Centro

Educacional Unificado) pela Secretaria Municipal de Educação, que logo foi descartado.

A localização proposta para o CEU e a UBS, em local distante das habitações,

desconsiderou a grande população residente nos conjuntos habitacionais, ao propor um

equipamento isolado da comunidade, apesar de documentos públicos revelarem que

tanto a existência do equipamento de saúde quanto sua localização foi reivindicado pela

23 Foi realizada reunião em 30 de julho de 2010 com a arquiteta Maria Eduarda Pires, da subprefeitura; e com o Subprefeito José Luiz Sanchez Verardino, o Coletivo e o pesquisador, em 18 de novembro de 2011.

24 Processo administrativo 2002-0.101.550-8, folha de informação 01.

36

Page 37: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

comunidade em 200125.

Esta localização não perdurou muito, ao passo que a Prefeitura alertou que a área

era de domínio da EMURB e tinha por finalidade a construção do Polo Logístico Fernão

Dias (na época, denominado Terminal de Cargas Fernão Dias). Em junho de 2002, a

Secretaria Municipal de Saúde optou pela área referente ao perímetro entre as Ruas da

Cavalgada e Inácio Firmo. Na época, o perímetro era ocupado por dois campos de futebol

e continha os devidos requisitos técnicos. Contudo, esta localização não foi aceita, ao

constatar que já haviam edificações e que estas ultrapassavam a taxa de ocupação

permitida em espaços livres. Atualmente, esta area contém uma escola de educação

primária, a EE Maria Antonieta de Castro.

Após diversas tentativas de cessão sem êxito, somente em 2003 a area contígua

da Avenida do Poeta, onde se localizam o campo de futebol mantido pelo Grêmio

Recreativo e o galpão atualmente ocupado pelo CICAS, foi requerida pela Secretaria

Municipal de Saúde. Na época, o centro comunitário encontrava-se sem uso, exceto o

vestiário ao lado, mantido pelo Grêmio, que também já exercia as atividades de futebol no

terreno ao lado.

Pretendia-se então transpor o campo de futebol para o terreno ao lado (onde

atualmente localiza-se o Coletivo) e utilizar-se do terreno para a UBS. Como a área já

estava no escopo de projeto do Terminal de Cargas Fernão Dias, sendo destinada à

paisagismo, optou-se pelo pedido da praça Pe. João Busco Penido Burnier, em

localização supostamente vizinha ao centro comunitário. Sobre o vestiário que na época

estava em uso, a única menção observada é a que indica que o grêmio “ficaria sem esta

estrutura caso seja demolido” 26.

25 Oficio n 495/2002 – SMS – G em 07 de maio de 200226 Memorando 208/SP-MG/GAB/03

37

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Figura 18 – Área requerida pela Secretaria Municipal de Saúde, em 2002 e 2003 Fonte: GoogleEarth 2000; Elaboração: Rafael S

Em 2004, inúmeros documentos permitem uma conclusão prévia de um consenso

entre EMURB e Prefeitura para a cessão de toda a área da praça. Inclui-se nos

documentos deste ano um indeferimento em relação a um pedido de cessão do grupo

“Senhoras Unidas Conj. Hab. Fernão Dias”, efetuado em 1993, para a mesma área

requerida pelo Coletivo. Também foi observado, em 2004, uma nota da prefeitura que

declarava que o centro comunitário estava “parcial e indevidamente ocupado por

terceiros”27. Apesar de tal declaração, o ano de 2004 foi encerrado com um

encaminhamento à EDIF “para que o referido projeto arquitetônico e executivo da unidade

seja realizado.”28

Em 2005, pela primeira vez, foi apresentado um projeto arquitetônico que

contemplava a implantação em lote e o uso dos espaços para a UBS. O projeto29 se

27 Processo administrativo 2002-0.101.550-8, folha de informação 9528 Processo administrativo 2002-0.101.550-8, folha de informação 12329 Processo administrativo 2002-0.101.550-8, folha de informação 130

38

Page 39: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

localizava ao lado do Centro Comunitário, no espaço que atualmente está ocupado pela

praça construída pela subprefeitura, recentemente. O projeto de UBS de dois pavimentos

apresentado permitia a manutenção do Centro Comunitário, utilização de parte do galpão

existente para vestiários e indicava a demolição do vestiário do Grêmio Recreativo, com

propostas de recuperação do espaço de entorno para uso da comunidade30.

Figura 19 – Área requerida pela Secretaria Municipal de Saúde, em 2004 e 2005Fonte: GoogleEarth 2004; Elaboração: Rafael S

Em 2006 e 2007, foi anexado nos documentos um Parecer Técnico de Fundação,

um Memorial Descritivo, uma Planilha de Orçamento de Custos Básicos para o perímetro

requerido e recomendações para empresas participantes da licitação, indicando que a

construção estava próxima de ser realizada e confirmando os dados de projeto

apresentados em 2005. Importante ressaltar que não é comentado nem anexado nos

documentos nenhum pedido de reintegração de posse ou qualquer similar, tampouco há

indicações de contatos ou diálogos com os ocupantes dos galpões, em especial o Grêmio

30 Processo administrativo 2002-0.101.550-8, folha de informação 133, 134.

39

Page 40: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

Recreativo, que possuia um morador no local. O que se nota é uma articulação interna

entre poderes públicos a fim de solucionar tal impasse, sem ao menos haver alguma

menção de diretrizes a serem adotadas em relação aos ocupantes.

Segue um trecho do memorial descritivo, apresentado em 2007, mesmo ano da

ocupação do centro comunitário pelo CICAS:31

“Trata-se da construção de uma Unidade Básica de Saúde Padrão,

Segundo o projeto UBS Padrão 2 pav com 733 metros quadrados. A

implantação do prédio no local, contará com a demolição de uma

edificação (vestiário do grêmio recreativo) e de uma quadra esportiva e

reforma do vestiário do prédio existente (galpão ocupado atualmente pelo

CICAS); além da construção de duas quadras poliesportivas, colocação de

brinquedos industrializados no playground, construção de gradis com

mureta para fechamento, sistema de drenagem, tratamento arquitetônico

da area externa com plantação de árvores, grama e pavimentação para

circulação de pessoas, veículos, conforme o projeto de implantação”.

(em itálico, grifo meu)

No final de 2007, foi autorizada por fim a abertura de licitação, indicando o

encerramento das negociações entre os poderes públicos e a abertura para a construção

da Unidade Básica de Saúde32. Contudo, entre 2008 e 2010, o processo permaneceu

parado, em tentativas sucessivas da Secretaria Municipal de Saúde – Regional de Saúde

Norte de incorporação do projeto no Orçamento de 2008, 2009 e 2010, sem obter êxito

algum.

Já em 2010, observa-se as primeiras interlocuções entre a Secretaria Municipal de

Cultura e outras instituições interessadas pela area, através de uma demanda de vistoria

no local e de conhecimento de possíveis projetos da Secretaria Municipal de Cultura e

Subprefeitura Vila Maria – Vila Guilherme. Desta forma, a SIURB deu um parecer a partir

de uma reunião com arquitetos da subprefeitura, em que pode-se destacar:

“(…) fomos informados sobre a intenção daquela Subprefeitura (Vila

Maria- Vila Guilherme) de implantar um playground na mesma área do

terreno onde está prevista a implantação da UBS. Informamos que há

possibilidade de deslocar o prédio da UBS.

31 Processo administrativo 2002-0.101.550-8, folha de informação 16432 Processo administrativo 2002-0.101.550-8, folha de informação 242

40

Page 41: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

Existe no local um galpão em péssimas condições de manutenção, que

deverá ser demolido para a implantação da UBS.

Fomos informados que a ONG CICA desenvolve no galpão algumas

atividades com crianças, porem não há documentos de cessão ou outra

forma de posse da area para a ONG.

Sem a demolição do galpão não há possibilidade de implantar outro

equipamento social no local, pois trata-se de area livre com t.o.=10%.”

(em itálico, grifo meu)

Depto de edificações – SIURB, 201033

Ainda em 2010, a SIURB anexou ao processo outro documento34 que continha,

entre outras informações, a descrição das pretensões da subprefeitura para a implantação

de um playground que ocupe “a mesma porção de terreno prevista para a implantação da

UBS” (SIURB, 2010). Também destaca-se neste documento o interesse da Secretaria

Municipal de Cultura em apoiar as atividades do Coletivo, e, por fim, a avaliação positiva

da SIURB de manter o Coletivo e a UBS na mesma porção de terreno, afirmando que “é

possível manter o galpão e implantar a UBS” (Ibd), sendo que a soma das areas não

ultrapassaria o permitido em lei para espaços livres e tal solução “atenderá projetos

futuros da Subprefeitura Vila Maria-Vila Guilherme” (Ibd35).

Esta solução, certamente, seria de comum acordo com o Coletivo, que apoia a

construção e desenvolvimento de uma UBS no local, contanto que haja também a

manutenção das atividades cotidianas do grupo.

Contudo, ao final de 2010, em vistoria, a SIURB constatou que “o terreno

encontra-se totalmente ocupado pela praça, construída pela subprefeitura” (Ibd36). A

opção colocada37, então, foi de modificar a localização da UBS para o lado do Coletivo,

onde atualmente há uma quadra de futebol recém construída pela subprefeitura, entregue

de forma inacabada. É possível que, para esta tomada de decisões, os gestores tenham

considerado o pedido de cessão feito pelo Cicas em 2010.

33 Processo administrativo 2002-0.101.550-8, folha de informação 26234 Processo administrativo 2002-0.101.550-8, folha de informação 27035 Processo administrativo 2002-0.101.550-8, folha de informação 27336 Processo administrativo 2002-0.101.550-8, folha de informação 28237 Processo administrativo 2002-0.101.550-8, folha de informação 287

41

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Os documentos de 2011 são esclarecedores da situação atual em que se encontra

a area. O Relatório Fotográfico da Situação Atual da Praça Padre João Busco Penido

Burnier38 indica as localizações dos projetos desenvolvidos pela subprefeitura e a forma

como o galpão ocupado foi destituído do projeto das areas públicas, tampouco foi

considerado como area a ser demolida.

Figura 20 – Área requerida pela Secretaria Municipal de Saúde e projetos da subprefeitura de 2010 a 2012Fonte: GoogleEarth 2009; Elaboração: Rafael S

As últimas folhas de informação mostraram um avanço notável e derradeiro da

tomada de posição da Saúde, CRS Norte. São documentos extensos que tem por

finalidade justificar, algumas vezes de forma duvidosa, a intenção de remoção do Coletivo

para construção do Posto de Saúde, na Avenida do Poeta, 820.

38 Processo administrativo 2002-0.101.550-8, folha de informação 291

42

Page 43: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

O documento apresentado em abril de 201239 mostra, além de dados do bairro,

como população, densidade e localização, a distribuição da faixa etária no bairro e as

principais causas de morte no bairro. Sobre esses, “há predominancia de faixas etárias de

crianças e jovens” e das principais causas de mortalidade apontadas no relatório, há

doenças relacionadas a aparelhos respiratório, mortes através de tráfico ou outras

atividades marginais e, com maior frequência, doença do coração e neoplastias

“comumente relacionadas à pobreza, drogas e violência”. Esta argumentação se aproxima

muito do que integrantes do CICAS tem apresentado no CADES e em reuniões do grupo,

apontando a necessidade da retirada do estacionamento de carretas do local e do

fortalecimento do Poder Público no trabalho direto com jovens e crianças, como o Coletivo

tem proposto em atividades.

O documento segue com um abaixo assinado, em que “o local identificado pelos

moradores está subutilizado e cujas atividades não são legitimadas pela população do J.

Julieta” e se refere ao galpão em que “com algumas reformas dará plenas condições de

instalar uma UBS para a população referida”. Foram apresentados três abaixo assinados

com a finalidade de comprovar a necessidade de uma UBS no centro comunitário

apropriado: um, sem o local de aplicação, efetuado no dia 28 de dezembro de 2011

quando o Coletivo já havia encerrado as atividades, com o título “reunião sobre a

implantação da UBS Jardim Julieta” sem ao menos mencionar a retirada do Coletivo;

outro sem data e local de aplicação, contudo mencionando a retirada do Coletivo; por

ultimo, um “abaixo assinado contra a ocupação inadequada de areas públicas por

entidades, associações e inclusive estacionamentos no Terminal de Cargas com fins

lucrativos na região do Jardim Julieta, Vila Sabrina e pela disponibilidade de um espaço

para implantação da UBS Jardim Julieta”.40 Ainda este ultimo abaixo assinado apresenta

que a comunidade está com uma grande carência “no atendimento na área de saúde e no

desenvolvimento de atividades esportivas e culturais destinadas às crianças da região”.

Através destes abaixos assinados, os documentos seguem reiterando o pedido de

cessão na “área ocupada pelo CICAS e reinvindicada pela população para a instalação da

Unidade Básica de Saúde do Jardim Julieta”41. O ultimo documento verificado até então42,

mostra a “área passível de transferência de administração à Secretaria Municipal de

39 Processo administrativo n 2002-0.101.550-8, folha de informação 29740 Processo administrativo n 2002-0.101.550-8, folha de informação 32041 Processo administrativo n 2002-0.101.550-8, folha de informação 33842 Processo administrativo n 2002-0.101.550-8, folha de informação 339

43

Page 44: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

Saúde”, com seu perímetro definido exatamente onde se encontra o CICAS e o galpão do

grêmio esportivo, apresentado pela SEMPLA.

Figura 21 – Área requerida pela Secretaria Municipal de Saúde, em 2012Fonte: GoogleEarth 2009; Elaboração: Rafael S

Estes documentos se mostraram de extrema importância, ao revelar situações de

tomadas de decisões entre os diversos poderes públicos, por vezes articulados, por vezes

arbitrários, denotando um distanciamento com os grupos sociais e a comunidade,

inclusive utilizando-os como instrumento para justificar tomadas de decisão, como

verificado no caso dos abaixos assinados recentes. Este distanciamento ao longo dos

anos possibilitou diversas apropriações do espaço público e reflete atualmente em um

sério problema de gestão urbana, que será melhor explicado adiante.

44

Page 45: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

Grupos sociais e o Poder Público

45

Page 46: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

Uma das pretensões deste trabalho foi, essencialmente, de aplicar o conceito de

apropriação dos espaços proposto pelo laboratório, inserido na “interpretação da cultura

como ação social, política e afetiva, e da interpretação de problemas para construção

propositiva e ativa com outros parceiros” (SANDEVILLE JR: 2011, P10). O

acompanhamento sistemático do Coletivo CICAS e, em menor escala, do Grêmio

Recreativo Cidade Fernão Dias, além da observação e relato dos acontecimentos na área

de estacionamento de carretas, são referenciais que possibilitaram uma abordagem das

apropriações dentro da esfera das ações políticas e contestatórias, frente a presença do

Poder Público.

A análise destas ações, certamente, “somente pode ser pensada em um campo

experimental aberto, e de uma duração indeterminada, não imediata, na qual se constrói

em percurso o percurso” (ibid, P10), revelando um método de análise aberto, pronto a

receber alterações e se firmando ao longo do tempo de acordo com a observação das

dinâmicas urbanas a partir dos atores sociais envolvidos. Desta forma, a análise dos

processos envolvendo os atores sociais foi determinada no decorrer da pesquisa,

revelando o Coletivo CICAS como um dos principais grupos sociais atuantes no bairro.

O espaço ocupado pelo Coletivo, em 2007, possui duas edificações, ambas

pertencentes ao centro comunitário da COHAB Vila Sabrina. Durante anos, por abandono,

estes dois galpões foram apropriados por grupos sociais distintos, como na década de 90

através da Senhoras Unidas Conj. Hab. Fernão Dias. Atualmente, a edificação maior é

ocupada pelo Coletivo CICAS, a edificação menor é ocupada pelo Grêmio Recreativo

Cidade Fernão Dias para vestiário e ainda assim há um morador de rua43 que construiu

um pequeno barraco em torno de uma das paredes da edificação maior, ocupada pelo

CICAS.

O Grêmio Recreativo, além de utilizar o vestiário do centro comunitário, ocupa uma

área extensa descampada para realização de atividades desportivas, recortada pelas

Ruas Carlos Calvo e João Simão de Castro, no interior da Avenida do Poeta. Em 2011, a

partir da aproximação do Coletivo com o Grêmio, descobriu-se uma intenção desse grupo

de construção de um vestiário novo, em uma das extremidades do campo, através de

interlocuções e apoio político de uma vereadora local. Certamente, a construção de um

43 O morador é conhecido como Sabotage, mas pouco sabe-se dele.

46

Page 47: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

vestiário novo permitiria a utilização da edificação menor pelo Coletivo, e inclusive

solucionaria impasses caso o pedido de cessão do CICAS fosse aceito – sendo que o

pedido considerou a área das duas edificações.

Ao final de 2011, deu-se início à construção do vestiário novo, através de processo

administrativo44 encabeçado pela Secretaria Municipal de Esportes, Lazer e Recreação.

Nota-se que, possivelmente para possibilitar obras no referido local, houve a cessão do

espaço para a secretaria citada, tornando-se um CDC (Centro Desportivo da

Comunidade), apesar da gestão do espaço e a manutenção serem de atribuição do

Grêmio. Na identificação da obra, é possível observar o título “Obras de manutenção nas

instalações do CDC Campo C.F. do Conjunto Habitacional Fernão Dias, localizado à Av.

do Poeta, 740”.

Figura 22 – Ocupacão da Praça Pe João Burnier, a partir de grupos sociaisFonte: GoogleEarth 2009; Elaboração: Rafael S

44 Processo administrativo 2010-0.308.500-4

47

Page 48: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

Já o Coletivo CICAS, em uma situação política desfavorável, aguarda o pedido de

cessão feito para a área das duas edificações. Contudo, para contemplar os impasses

vividos pelo Coletivo frente ao poder público, deve-se retomar o histórico das

interlocuções entre a subprefeitura, o Coletivo e o Laboratório.

As primeiras interações do pesquisador com o Coletivo foi com a finalidade de

mediar e relatar processos envolvendo o poder público. Em 2011, após tentativa da

subprefeitura de remoção do Coletivo, deu-se início às tentativas de reuniões e mediação

de conflitos entre o LabCidade e esta instituição pública, quando o pesquisador ainda não

havia sido contemplado com a bolsa de iniciação científica. Na ocasião, havia uma espera

para o pedido de cessão45 do espaço pelo CICAS e expectativas de apoio provindas da

Secretaria Municipal de Cultura, em acordos informais com o então Subprefeito Antonio

de Pádua Perosa. Havia então um consenso que envolvia a construção de um espaço

novo para o CICAS no mesmo local - encabeçado pela Secretaria Municipal de Cultura e

com execução pela subprefeitura - e a conclusão do projeto da praça pela subprefeitura,

na expectativa de um aval positivo em relação à concessão de uso do espaço para fins

culturais.

Durante este processo, em março do ano de 2011, houve a troca do Subprefeito,

assumindo então o militar José Luiz Sanches Verardino, que mantém o cargo até os dias

atuais. As reuniões que sucederam então revelaram uma nova desarticulação entre o

poder público e o Coletivo, a saber: em abril de 2011, houve reclamação por parte do

CICAS de despejo de entulho provindo da construção da praça na localização do

Coletivo; também na mesma época a subprefeitura informou que não poderia haver a

execução do projeto de arquitetura apresentado pela Secretaria Municipal de Cultura por

não haver ainda a concessão do espaço; outras reuniões propostas pelo pesquisador e

Coletivo não foram concretizadas por indisponibilidade do poder público, inclusive não

havendo outras respostas em relação à execução do projeto de adequação do espaço.

Neste mesmo período, o Coletivo foi contemplado com fomentos de incentivo à

cultura e representações em entidades civis, a saber: Aprovação no Programa VAI 2011

(01 projeto) - CICAS GRAVE II; o Selo Iniciativa Reconhecida Premio Cultura Viva (semi-

finalista como grupo informal – Ministério da Cultura); aprovação no Pontinho de Cultura

2010 (Ministério da Cultura); 2 representantes do CICAS eleitos como Conselheiros

45 Processo administrativo número 2010 - 0.283.109 - 8

48

Page 49: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

Ambientais da Sociedade Civil no CADES Vila Maria Vila Guilherme. Nota-se com estes

dados uma desintegração entre políticas públicas e fomentos de apoio institucional, sendo

que o Coletivo possuiu apoio da Secretaria Municipal de Cultura e foi contemplado com

nomeações e projetos, contudo não conseguiu modificar sua situação de informalidade.

Em outubro de 2011, houve relatos de medição da área onde o CICAS se encontra

por funcionários da subprefeitura e Secretaria Municipal de Saúde. Nesta ocasião,

concretizou-se a intenção da subprefeitura de reformar o espaço para uma Unidade

Básica de Saúde, que foi confirmada e acompanhada pelo Coletivo e conferida junto aos

documentos públicos. Em reunião realizada em novembro de 201146, o Subprefeito propôs

um diálogo com a Secretaria Municipal de Cultura a fim de se informar sobre o processo

em andamento e buscar uma edificação para a instalação do Coletivo, reiterando a

posição de remoção. No mesmo ano, foram realizados diversos abaixo assinados com a

finalidade de justificar a retirada do Coletivo, sem o conhecimento dos integrantes do

Coletivo ou do próprio pesquisador.

As secretarias envolvidas no processo e a subprefeitura mostraram ao longo dos

dez anos de processo pouca ou quase nenhuma articulação para proposição de projetos

arquitetônicos e urbanos. À medida que as soluções arquitetônicas e urbanas fossem

sendo creditadas à acordos informais entre subprefeitura e o Coletivo, a Secretaria

Municipal de Saúde, interessada na área, não integrou as discussões propostas,

denotando uma ausência de articulação, ou mesmo níveis hierarquizados de articulação.

A subprefeitura, por sua vez, ocupou toda a extensão da praça através do Projeto

Florir, com instalação de playground, área de convívio, pista de skate e ecoponto,

isolando o centro comunitário do projeto de áreas públicas. Ao passo em que se

aguardava a construção de uma sede nova por parte da subprefeitura, em acordo

informal, em meados de 2011, o Coletivo fora notificado que não era possível a execução

de uma sede nova sem que a área pertencesse à Secretaria Municipal de Cultura. A

situação delicada em que se posicionou o Coletivo envolvia então uma outra disputa

política pela área: entre a Secretaria Municipal de Saúde e a Secretaria Municipal de

Cultura.

46 Reunião com o Subprefeito José Luiz Sanchez Verardino, o Coletivo e o pesquisador, em 18 de novembro de 2011.

49

Page 50: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

A atuação do Coletivo CICAS, contestatória e política, insere-se no debate da

cidadania e do direito à cidade, permeado pelas recentes problemáticas apontadas neste

trabalho. A disputa política pelo espaço e a tomada de decisões em acordos entre

instituições denotam uma arbitrariedade de ações, que podem ser notadas através desta

abordagem entre os grupos sociais e as políticas públicas. Esta postura revelada pelo

poder público norteia a ideia de cidadania no Brasil como é entendida por Damatta, que é

enfraquecida pela organização hierárquica, burocrática e controladora do Poder Público,

em que “o todo predomina sobre as partes e a hierarquia é fundamental para a definição

do significado do papel das instituições e dos indivíduos” (DAMATTA:1991, P64). Assim,

confirma-se neste trabalho que a sociedade é dotada de múltiplas esferas de ações e

significações sociais, cujo o que impulsiona esse sistema é “a capacidade de relacionar e

de assim criar uma posição intermediária, posição que assume a perspectiva da relação e

que se traduz numa linguagem de conciliação, negociação, gradação” (Ibid, P79). De fato,

as diferenciações apontadas entre os grupos sociais para cessão do espaço e o

distanciamento hierárquico dos integrantes do Coletivo frente às decisões do poder

público, resultam em um entrave na esfera da cidadania e do direito à cidade, tornando

assim o Coletivo uma parte intermediária de acordos políticos.

50

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Apropriações dos espaços públicos

51

Page 52: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

No decorrer deste trabalho, notou-se que a região caracteriza-se por apresentar

inúmeras formas de apropriação dos espaços públicos. Contudo, as apropriações mais

intensas e que mobilizam maior número de pessoas, certamente, são decorrentes dos

espaços não tratados – o estacionamento de carretas, os diversos campos de futebol, o

Coletivo CICAS, os espaços públicos contíguos – o que denota que estas apropriações

são decorrentes do histórico de impasses das instituições públicas ao definirem planos e

projetos para as áreas livres no bairro.

A observação do estacionamento de carretas traz à tona formas de apropriação

decorrentes de desarticulação de políticas públicas. Se trata de uma porção de terreno

pertencente à SP Urbanismo47, de aproximadamente quinhentos metros quadrados, que

atualmente possui um extenso estacionamento de caminhões carretas nas ruas de terras

internas ao terreno, inclusive utilizando-se de áreas não pertencentes a esta delimitação.

O espaço do estacionamento é dotado de pequenos estabelecimentos comerciais,

tais como barracas e mesmo automóveis parados em que se vendem bebidas, acessórios

úteis aos caminhoneiros e comidas, principalmente nos bordos do terminal, junto à Av.

João Simão de Castro e Av. Do Poeta. O terreno não possui iluminação pública, sendo

que a energia utilizada pelas barracas é provinda de ligações irregulares. No período

noturno, o espaço tem aparência extremamente hostil, o que cria uma barreira urbana

entre moradores dos conjuntos habitacionais e entorno e o espaço ocupado pelos

caminhoneiros.

Ao buscar uma aproximação com o cotidiano do terminal, logo entende-se que se

trata de “um lugar perigoso, pois aqui não se tem lei nenhuma e se não for conhecido pelo

pessoal, (…) corre o risco de ser roubado ou coisa pior”48. Roberto, um dos caminhoneiros

que utiliza o espaço, afirma que a empresa a quem presta serviços utiliza o terminal para

descarregar cargas que adentram a São Paulo, liberando o caminhão para seguir rumo ao

Rio de Janeiro ou Santos. Afirmou também, que costuma ficar um dia no terminal

somente, é reconhecido pelo “pessoal que mantém” (Ibd) e por causa disso não se sente

incomodado ou inseguro ao utilizar o espaço. Quando perguntado sobre o “pessoal que

mantém”, preferiu não se manifestar, apenas declarando que sabe que “tem tráfico (de

drogas) e meninas menor de idade ganhando um dinheiro do pessoal” (Ibd). E segue:

47 A área pertencia à EMURB. Após a desintegração desta em 2009, passou a ser área da SP Urbanismo48 Relato de um caminhoneiro, em março de 2012.

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“aqui só param carretas. As firmas mandam parar aqui porque não podemos no terminal

da prefeitura para carretas. Não gosto de parar aqui, mas eu cumpro regras”. (Ibd) E, por

último, “não tenho relação nenhuma com o pessoal, cumpro regras da empresa e se ela

manda, eu faço” (Ibd).

Em reuniões do Coletivo durante o tempo de pesquisa, percebeu-se que há

realmente prostituição infantil e adulta no interior do estacionamento de carretas, parte

através de mulheres de rua, parte através de residentes dos conjuntos habitacionais, de

acordo com conversas no Coletivo. Contudo, no interior do Coletivo, não há aproximação

com o “pessoal que mantém” o terminal, tampouco com caminhoneiros, reforçando a ideia

exposta por Roberto, de representar um lugar perigoso, em que não se deve ter

aproximação.

Figura 23 – Localização do estacionamento de carretasFonte: GoogleEarth 2009; Elaboração: Rafael S

53

Page 54: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

Figura 24 – Vista para o interior do estacionamento de carretas, a partir da Av. João Simão de CastroFonte: Rafael S, 2011

Figura 25 – Prostituição infantil no interior do estacionamento Fonte: Rafael S, 2011

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Ao atravessar a Av. Do Poeta, tem-se em uma das porções do espaço contíguo

público o CICAS, atualmente com o entorno ocupado por equipamentos recentemente

executados pela subprefeitura. O projeto de qualificação da praça Praça Pe. João Penido

Bosco Burnier – Projeto Florir, desenvolvido entre 2010 e 2012 – pretendeu plantar mudas

ao redor da praça e qualificá-la para uso da população, com passeios de pedestres e

tratamento paisagístico, bancos e mesas para jogos, playground, pista de skate e quadra

de futebol. Para a abordagem de apropriação, interessa-nos não somente o arranjo formal

do espaço, contudo “a natureza dos eventos nela verificados, tanto ou mais que pelo

sistema de objetos” (QUEIROGA:2003, P139). Em outras palavras, o “que define a praça

é o que nela se realiza” (Ibd, P139), sendo que se o espaço for dotado de sistemas de

ações que apresentem conotação pública, voltada ao encontro, já se trata de uma praça

(Ibd). Desta forma, nota-se que o espaço da praça não se limita ao sistema de objetos

observados. Durante o dia, há utilização da praça e do playground entre crianças e

adolescentes da COHAB Vila Sabrina, principalmente na pista de skate, sendo que

durante o final de semana esta ocupação aumenta. No período noturno, contudo, nota-se

o uso de drogas – principalmente maconha e crack – e um ambiente um pouco hostil na

praça, reforçado pela iluminação fraca que fora instalada recentemente. Nota-se uma

grande utilização da rua para as mesmas atividades observadas na praça – bicicletas,

skate, convivência, e no período noturno, o uso de drogas – fazendo com que o espaço

definido pela praça seja fluido em relação à rua.

Figura 20 – Praça Pe João Penido Bosco BurnierFonte: Rafael S, 2012

55

Page 56: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

As apropriações, como práticas sociais ao ar livre (TANGARI V R; ANDRADE R;

SCHLEE M B: 2009, P63), ainda podem ser observadas como manifestação política, que

pode-se traduzir em apropriações pontuais no espaço ou mesmo apropriações sazonais

que possuem como palco uma gama de espaços, como as marchas, passeatas e

manifestações (Ibd).

O pesquisador acompanhou apropriações diversas do espaço público através do

Coletivo que contribuem para a análise da atuação política do grupo. Dentre essas, pode-

se destacar o Cortejo Unidos pela Paz, realizado em agosto de 2010, reunindo os grupos

de maracatu Mucambos de Raiz Nagô, Suburbaque, Baque Estendal, o Coletivo de Teatro

Nucleo Pavanelli, Coletivo Sarau da Brasa, entre outros. O Cortejo iniciou-se em uma

manhã de um domingo de agosto, rumo à praça dos Arcos, em que após uma

apresentação do Núcleo Pavanelli fora encerrado por um almoço comunitário, em frente

ao CICAS, aberto à população. Em abril 2012, o pesquisador acompanhou o evento de

aniversário de 5 anos do Coletivo, em que uma gama de atividades foram propostas à

comunidade, resultando em diversas apropriações dos espaços públicos de entorno ao

CICAS. Pode-se destacar, neste evento, o trabalho do Coletivo de Teatro Núcleo Pavanelli

em diversas apresentações na praça Carlos Koseritz no período da manhã, o campeonato

mirim de skate organizado pelo Coletivo, almoço comunitário, roda de capoeira,

apresentação do Maracatu Porto de Luanda, um Sarau em frente ao espaço do Coletivo,

na rua, apresentações de bandas (Xaymaca e Unification, ambas pertencentes a

integrantes do CICAS), instalação de som com dj na praça ao lado do Coletivo e como

encerramento um bolo de cinco metros de comemoração das atividades do Coletivo.

Percebe-se uma intenção do Coletivo de criar vínculos entre o grupo e o entorno

próximo, através de atividades culturais, desportivas e solidárias. Contudo, para além de

um sentido de identidade buscado pelo Coletivo com a comunidade, deve-se olhar para

estas apropriações através da ação coletiva e ativista que o CICAS propõe, inserida na

“ação que visa mudanças sociais ou políticas” (MESQUITA:2008, P11), refletidas através

da atuação política do Coletivo e o monitoramento das políticas públicas para o bairro,

bem como a crítica a estas.

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Page 57: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

Desta forma, as atividades propostas à comunidade em dias de festa tem por

finalidade constituir e produzir novas esferas públicas, que dependem de experiências e

da organização de formas alternativas de liberdade de expressão (Ibid, P12).

Figura 21– Apropriações do CICAS no espaço públicoFonte: GoogleEarth 2009; Elaboração: Rafael S

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Page 58: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

Figura 22 – Cortejo de Maracatu “Unidos pela Paz”Fonte: Carol Doro, 2010

Figura 23 – Núcleo Pavanelli em apresentação na Praça Carlos Koseritz Fonte: Rafael S, 2012

Figura 24 – Maracatu Porto de Luanda em apresentação na Praça Pe João P. Bosco BurnierFonte: Rafael S, 2012

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Page 59: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

Nota-se que a rua, nesta breve abordagem das apropriações a partir do Coletivo,

apresenta aspectos que extrapolam sua função mais restrita de circulação, apresentando

forte conotação pública, de livre acesso, voltada ao encontro, desde interações sociais do

cotidiano até as manifestações cívicas do Coletivo ou outros grupos sociais, refletindo

portanto características de praça (QUEIROGA)49. A praça, segundo Queiroga, é “um lugar

próprio para manifestações políticas, comemorações e protestos”(QUEIROGA:2003,

P139) sendo também um “espaço carregado de simbologias, de memórias do lugar” (Ibd),

e por fim “lugar por excelência da crítica e do ato público, do contrapoder” (Ibd).

As ruas do bairro Jardim Julieta possuem formas de apropriação diversas. Nas ruas

de entorno aos conjuntos habitacionais, observa-se nos finais de semana a rua como

palco de encontro e convívio, sendo também local para trabalho, observado através do

caldo de cana aos finais de semana no Grêmio Recreativo, a feira de domingo nas ruas

de entorno da praça Carlos Koseritz e os diversos estabelecimentos informais no terminal

de cargas. Estas ruas então são caracterizadas como local de trabalho – feira livre, caldo

e pastel, informalidade - conjugando ambiente de trabalho com lazer, através do futebol,

bicicletas e pipas, que invadem a paisagem urbana do bairro Jardim Julieta, conferindo-

lhe um significado social (ABRAHAO:2008, P128).

49 Para definir apropriações do espaço público características de praça, o autor utiliza o termo pracialidade.

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Page 60: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

Figura 25 – Mapa de apropriações do espaço público Fonte: GoogleEarth 2009; Elaboração: Rafael S

Figura 26 – Comércio ambulante no interior do estacionamento de carretasFonte: Rafael S, 2011

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Figura 27 – Apropriação do espaço público a partir do Grêmio RecreativoFonte: Rafael S, 2011

A gestão e qualificação dos espaços também são fatores importantes na abordagem

das apropriações, sendo que a ausência de destinação para estes espaços podem influir

na diversidade de uso. Já os espaços especializados possuem a característica de servir à

grupos sociais diversos, fator este por vezes não contemplados em espaços de pouca

qualificação técnica. (TANGARI V R; ANDRADE R; SCHLEE M B: 2009)

A pesquisa buscou elencar os espaços públicos de entorno de qualificação técnica,

destinado ao uso mais restrito de grupos sociais diversos ou faixas etárias. Destacam-se

no bairro a requalificação da Praça Santa Luiza de Marillac e a reforma parcial da Praça

Pe João Bosco Penido Burnier, ambas através do Projeto Florir, com a locação de

campos de futebol, pista de cooper e passeios, aparelhos destinados à ginástica e

exercícios físicos. Observou-se nestas a praça a utilização por faixas etárias restritas,

sendo a maioria jovens durante o dia e noite.

Figura 28 – Praça Santa Luiza de Marillac Fonte: Rafael S, 2012

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Page 62: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

Figura 29 – Praça Pe João Bosco Penido BurnierFonte: Rafael S, 2011

Também foram averiguadas praças de certa qualificação técnica, mesmo com

manutenção por vezes inexistente, também foram vistoriadas e relatadas neste trabalho.

É o caso das Praças Lupércio Morelato, Praça Stuart Edgar Jones, Praça Carlos Koseritz,

Praça Lourenço de Bellis e Praça Diamantino de Jesus. São praças pouco tratadas,

carentes de equipamentos urbanos, com utilização principalmente entre crianças – no

caso do playground na Praça Diamantino de Jesus – e idosos – no caso da Praça

Lourenço de Bellis, através dos jogos de tabuleiro estampados nas mesas. Apesar de

possuirem morfologia e destinação destoantes entre si, observou-se também que estas

praças possuem como característica comum a serventia como parada final de linhas de

ônibus, com exceção feita à Praça Lourenço de Bellis.

Figura 30 – Praça Lupércio MorelatoFonte: Rafael S, 2011

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Page 63: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

Figura 31 – Praça Stuart Edgar JonesFonte: Rafael S, 2011

Figura 32 – Praça Carlos KoseritzFonte: Rafael S, 2011

Figura 33 – Praça Lourenço de BellisFonte: Rafael S, 2012

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Figura 34 – Praça Diamantino de JesusFonte: Rafael S, 2011

Outras praças, bem como os espaços públicos contíguos verificados, fazem parte do

elenco dos espaços sem tratamento algum, sendo por fim espaços residuais em que não

foram destinados projetos por parte do Poder Público. Fazem parte deste elenco o espaço

público residual na Avenida do Poeta e Avenida Manuel Antonio Gonçalves e a Avenida

João Simão de Castro, vias com grande canteiro central subutilizado.

Figura 35 – Espaço residual na Avenida do PoetaFonte: Rafael S, 2011

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Page 65: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

Figura 36 – Espaço residual na Avenida Manuel Antonio Gonçalves; ao fundo, Favela do ViolãoFonte: Rafael S, 2011

Figura 37 – Espaço residual na Avenida João Simão de CastroFonte: Rafael S, 2011

A ausência de destinações específicas para espaços livres também resultou em

favelizações no entorno da área de estudo. Na porção norte da Avenida do Poeta,

encontra-se a Favela Montenegro, inserida nos bordos do Córrego Montenegro, com área

de aproximadamente 200 metros quadrados de ocupações ao longo do córrego. Por se

tratar de uma região limítrofe entre Subprefeituras – Vila Maria-Vila Guilherme e Jaçanã –

contudo pertencente à Subprefeitura Vila Maria-Vila Guilherme, trata-se de uma área

carente de projetos por parte do Poder Público.

Na porção sul do espaço livre da mesma avenida encontra-se a favela do Violão,

inserida nos bordos do córrego de mesmo nome. Com aproximadamente trezentos

metros quadrados de área ocupada, estende-se para além da Avenida do Poeta,

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Page 66: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

abrigando famílias em ambos os espaços públicos de entorno da avenida. É uma área

pertencente à SP Urbanismo, que nunca teve uma destinação clara, contudo surge no

Plano do Pólo Logístico Fernão Dias como “área social”, sem qualquer projeto destinado a

esta área. Já a área análoga a da Favela do Violão, descampada, até 2005 fora destinada

como estacionamento de carretas. Atualmente, trata-se de um espaço livre em que

crianças soltam pipas e jogam futebol.

66

Page 67: Iniciação Científica FAU USP (2012) - Rafael SIqueira

Rio

Cabu

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o Po

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Av Manuel Antonio Gonçalves

Av João Simão de Castro

Córrego do Violão

Córrego Montenegro

LegendaEspaços públicos tratados Espaços públicos pouco tratados Espaços públicos residuaisPraça Luiza de Marillac Praça Lupercio Morelatto Av. do PoetaPraça Lourenço de Bellis

Av. João Simão de Castro

Favela do Violão (SP Urbanismo)Praça Pe. João Bosco P. Burnier Praça Stuart Edgar Jones Pr. do Caminhoneiro (SP Urbanismo)Praça Diamantino de Jesus

Estacionamento de carretas (SP Urbanismo)

Córrego Montenegro / Favela Montenegro

Córrego do ViolãoCDM Sauverino F. de Jesus Praça Carlos Koseritz Av. Manuel Antonio Golçalves

1 4 972 5 10

12

1511

13

16

1483 6

Mapa dos espaços públicosfonte: Rafael S

500 100 N150m

1

10 10

11

12 12 12

13

12

13

14

15

16

9

9

2

4

5

7

8

623

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Uso e Ocupação do Solo

68

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A avaliação das apropriações, sejam elas os espaços públicos criados pela

população voltados ao lazer ou mesmo as ocupações irregulares observadas, foram

elencadas neste trabalho com o intuito de esboçar potencialidades de paisagem para os

espaços livres no bairro. Para que esta abordagem tenha efeito, foi necessário avaliar não

somente os usos como formas de apropriação no espaço público, contudo também uma

abordagem do uso e ocupação do solo no entorno da área estudada.

O Plano Regional Estratégico da Subprefeitura Vila Maria/Vila Guilherme, no mapa

Uso e Ocupação do Solo, apresenta algumas diferenciações de usos e ocupação, a

saber: Zona Predominantemente Industrial (ZPI), referindo-se às áreas de terminal de

cargas; Zona Mista de Média Densidade (ZM2), referindo-se ao restante do território

estudado, exceto a Cohab Vila Sabrina; Zona Especial de Interesse Social 1 (ZEIS1),

referindo-se à COHAB Vila Sabrina. Ao rebater este mapa com a área de estudo, logo

percebe-se que este mapa não possui alcance na escala desejada, sendo por fim

insuficiente para uma avaliação mais cuidadosa dos usos e formas de apropriação

decorrentes dos usos.

Para tanto, foi elaborado um mapa de uso e ocupação na escala do bairro, a partir

de observações em campo e conversas com residentes e comerciantes. Observou-se que

há uma diferenciação de usos de acordo com as ruas, em que se pode observar:

- Uso habitacional de baixo padrão: Compostos pelos conjuntos habitacionais da

COHAB, favela do Violão e favela Montenegro, incluindo o “Bronx”, bairro à norte dos

conjuntos habitacionais em que predomina a ocupação por casas geminadas,

normalmente assobradadas e com poucos espaços livres. Por vezes, é possível observar

pequenos comércios, contudo são pontuais e não estão sendo considerados para essa

abordagem.

- Uso comercial / serviços: São as ruas que ladeiam os conjuntos habitacionais, em

especial as Avenidas Mendes da Rocha e Milton da Rocha, em que pode-se observar um

fluxo intenso de pessoas em dias de semana e fins de semana. A Avenida Mendes da

Rocha reúne comércios e serviços de pequeno porte e se caracteriza por apresentar um

maior adensamento do que a Avenida Mendes da Rocha. Foram observados nesta via a

disponibilidade de pequenos supermercados, mercearias, açougues, papelarias,

cabeleireiros, bancas, panificadoras, lojas de som, eletrônicos, pequenas lojas de roupas,

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entre outros, e possui um grande fluxo de pessoas de dia. À noite, apenas pode-se

observar a presença de uma gama de botecos que também possuem grande utilização.

Já a Avenida Milton da Rocha se caracteriza por possuir um menor adensamento que a

Avenida Mendes da Rocha, apresentando maior fluxo de veículos (e leito carroçável

maior), passeios mais largos e disponibilidade de espaços públicos tratados nas

proximidades, como é o caso da Praça Lourenço de Belis (localizada à Av. Milton da

Rocha), que possui um uso intenso, como já abordado. As lojas observadas nesta via são

principalmente as relacionadas ao vestuário, mas também observou-se edificações

voltadas a venda de móveis, óticas, drogarias, eletrônicos, etc, e em ruas perpendiculares

observou-se lojas de menor porte, como papelarias, lan houses e panificadoras.

- Uso Industrial: Concerne aos espaços definidos pelo Terminal de Cargas Fernão

Dias e o estacionamento de carretas.

- Espaços públicos residuais: São os espaços não tratados já destacados que

envolvem o entorno da Avenida do Poeta e João Simão de Castro.

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Rio

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Av Manuel Antonio Gonçalves

Av João Simão de Castro

Praça CarlosKoseritz

Praça Lourenço de Bellis

Rua d

a Cav

algad

a

Córrego do Violão

Av M

ilton

da

Roch

a

Av Mendes da Rocha

Córrego Montenegro

Legenda

Uso e Ocupação do Solofonte: Rafael S

Uso habitacional de baixo padrãoUso comércio e serviçosUso industrialEspaços públicos residuais

500 100 N150m

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Em conversas abertas com a população, pode-se notar que as duas avenidas de

comércios e serviços citadas não se limitam à demanda cotidiana de comércios e serviços

intrabairro. Mais que isso, elas são pontos de referência para lazer e compras, sendo em

finais de semana o destino de moradores para encontro e convívio, principalmente de

jovens e crianças acompanhadas de adultos. A moradora Sueli ainda complementa:

“antes daqui (Avenida Milton da Rocha) eu ia até Santana e lá eu comprava o que queria,

roupas, sapatos, mas agora fico por aqui mesmo”.

O estudo do uso do solo é um instrumento que contribui na análise das dinâmicas

urbanas da região. Entende-se que, ao estudar em campo o uso do solo, é possível

também esboçar as atividades cotidianas da população, através dos pontos de encontro,

percursos e apropriações. Desta forma, é possível notar que não somente o tratamento

adequado dos espaços públicos são potencializadores da realização da esfera de vida

pública, contudo a organização intrabairro também determina os tipos de uso no espaço

público. Como exemplo, o pesquisador, ao visitar a Praça Lourenço de Bellis em um

sábado ensolarado, constatou que mais da metade dos usuários da praça foram ao local

para fazer compras, utilizando a praça como descanso ou ponto de encontro para a

realização das compras50. Esta abordagem também pode ser transferida à Praça Carlos

Koseritz, que apesar de apresentar apropriações diversas – como já observado – possui

também seu uso relacionado à parada final de ônibus e à Avenida Mendes da Rocha,

notável por ser uma referência de comércio local.

50 Em fevereiro de 2012 foi realizada uma pesquisa para saber os motivos da vinda da população até a Praça Lourenço de Bellis. Dos 20 perguntados, 14 relataram motivos associados à Avenida Milton da Rocha, uma importante avenida de estabelecimentos comerciais do bairro.

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Considerações Finais

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Este trabalho – Transformação da Paisagem e Apropriação dos Espaços Públicos no

Jardim Julieta, Vila Maria, São Paulo – teve por finalidade aplicar os conceitos estudados

no Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade - Núcleo Poéticas e Conflitos na Cidade.

A noção de paisagem como é entendida no núcleo se dá a partir de experiências

partilhadas e socialmente construídas entre os diversos agentes que interagem no espaço

urbano.

Ao avaliar o histórico de ações provindas do Poder Público para a área, percebe-se

que os planos destinados – em sua maioria no anseio de viabilizar o Terminal de Cargas –

denotam representações para o mesmo espaço destoantes do que vem sendo abordado

neste trabalho, ou seja, a necessidade de considerar as dinâmicas sociais ao conceber

planos e projetos para a área.

Flavio Villaça, em O Espaço Intraurbano no Brasil, coloca como aspectos estruturais

do espaço intraurbano o deslocamento do ser humano enquanto mercadoria força de

trabalho e enquanto consumidor (VILLAÇA:2001, P20). Por consumidor, o autor

exemplifica o termo através dos deslocamentos “casa-compras, casa-lazer, casa-escola”

(Ibd) atividades inerentes ao cidadão no espaço urbano. O autor ainda assume o grande

poder estruturador intraurbano das áreas comerciais e de serviços, já que estas

acumulam deslocamentos de trabalhadores juntamente aos deslocamentos por motivos

compras e lazer. No Jardim Julieta, fora verificado duas localidades que possuem estas

características – contudo em localizações pouco próximas dos grupos sociais estudados.

O histórico de planos e projetos para a área, entretanto, revela outros olhares para o

território que não o intraurbano. A pluralidade de áreas livres públicas pertencentes à SP

Urbanismo, em contraposição a uma demanda notável por equipamentos públicos,

espaços qualificados, habitação e lazer revela a posição do Poder Público de assumir a

área como estratégica do ponto de vista de estrutura regional, ou seja, dominada “pelo

deslocamento das informações, da energia, do capital constante e das mercadorias em

geral “ (Ibd), assim como observado em análise de planos e documentos públicos.

A partir destas constatações, as apropriações observadas nos espaços públicos não

tratados podem ser lidas a partir de dois aspectos: da indefinição de projetos e obras a

partir dos planos propostos envolvendo o Terminal de Cargas; da representação que os

planejadores públicos vislumbram para a área. Desta forma, não somente as

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apropriações voltadas ao lazer e o ócio mas também ocupações como formas de

apropriação – como observado no caso das favelas – são decorrentes das políticas

públicas observadas no território.

A aproximação do pesquisador em um caso de ocupação de um espaço

abandonado – o Coletivo CICAS – possibilitou o entendimento e a discussão das

demandas sociais no bairro e apontou também às formas de atuação e diálogo da

subprefeitura com os grupos sociais e outras instituições. Ao passo que, tanto integrantes

do Coletivo quanto do Grêmio Recreativo apontavam para soluções integradas aos

espaços públicos – vislumbrando um plano de ocupação do espaço residual da Avenida

do Poeta com equipamentos públicos – as tomadas de decisões se mostraram pontuais e

pouco articuladas, como foi possível notar com a desarticulação entre a Subprefeitura,

Secretaria Municipal de Saúde e Secretaria Municipal de Cultura ao definir projetos para a

Praça Pe. João P. Bosco Burnier. Certamente, a desintegração dos projetos propostos

também pode ser apontada como elemento impulsionador de apropriações em espaços

subutilizados.

Desta forma, o acompanhamento do pesquisador a um Coletivo em situação de

informalidade, e portanto, em dificuldade frente ao Poder Público, foi benéfica ao

“contribuir para a discussão da cultura contemporânea na valoração e transformação das

paisagens” e permitiu “aprender em ação com outros parceiros” (SANDEVILLE:2011).

Com efeito, o ativismo proposto pelo Coletivo, entendido dentro do campo de crítica às

tomadas de decisão pelo Poder Público e às organizações institucionais, revelou ao

pesquisador níveis de compreensão das estruturas públicas que até então eram pouco

percebidas.

Essa aproximação das transformações da paisagem, através da percepção dos

diversos atores sociais, contribui para uma composição de diretrizes ambientais e urbanas

para cada região estudada. A percepção da paisagem, bem como seus conflitos, são

impulsionadores de questionamentos sobre as intervenções urbanas distanciadas da

realidade e das expectativas da população local, sendo necessário então repensar os

critérios de intervenção e urbanização. (ANGILELI, P265)

Entende-se que no decorrer deste trabalho, assumir a cidade e o território como

espaço de aprendizado do profissional arquiteto e urbanista é possibilitar uma formação e

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atuação socialmente comprometida com as demandas de profissionais que operam em

processos participativos de projeto, planejamento e gestão, e sobretudo no diálogo com

as pessoas envolvidas (SANDEVILLE JR:2011, P73). Esta dimensão da formação do

arquiteto possibilitou a inserção do pesquisador em processos de investigação da cultura

de construção e transformação das paisagens na periferia, suas condições de realização

e a discussão da produção, apropriação, através dos processos institucionais e seu

rebatimento sobre os atores sociais (SANDEVILLE JR:2011, P.76).

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