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CULTURA, PERCEPÇÃO E AMBIENTE Diálogos com Tim Ingold Carlos Alberto Steil Isabel Cristina de Moura Carvalho organizadores S TERCEIRO NOME

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  • CULTURA, PERCEPO E AMBIENTE

    Dilogos com Tim Ingold

    Carlos Alberto Steil Isabel Cristina de Moura Carvalho

    organizadores

    S TERCEIRO NOME

  • Caminhando com drages: em direo ao lado selvagem*T im In g o ld

    No ano de 1620, o filsofo e homem de Estado ingls Francis Bacon definiu o plano do que seria um grande trabalho de cincia intitulado A Grande Instaurao, dedicado ao rei James I, que recentemente havia nomeado Bacon como seu Lord Chancellor. Esse trabalho nunca foi concludo. No seu prlogo, entretanto, Bacon acusava as formas tradicionais de conhecimento que continuamente misturavam a realidade do mundo com suas configuraes na mente dos homens. Se a mente fosse to clara e uniforme como um espelho perfeito, ento, dizia Bacon, ela refletiria as formas autnticas das coisas. Mas ela no . Deformada pelas falhas tanto inatas quanto adquiridas pelo instinto e pelo doutrinamento, a mente distorce as imagens que vm tona pelos sentidos e no pode, por si s, fazer um relato verdadeiro das coisas como elas so. Existe, entretanto, uma forma de superar essa limitao, de acordo com Bacon, apelando-se aos fatos. Os fatos, escreveu, tm como objetivo no a adivinhao, mas descobrir e conhecer, propem no a formulao de imitaes e mundos fabulosos. Para examinar e dissecar a natureza desse prprio mundo, temos que recorrer aos fatos para tudo.

    As palavras de Bacon tm, certamente, um sentido contemporneo. A cincia de hoje continua a basear a sua legitimidade no recurso aos dados, que so repetidamente verificados e reverificados, numa busca incessante pela verdade, por meio da eliminao do erro. E a maior parte das cincias da mente e da

    Conferncia realizada na Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul - PUC RS em 13 de outubro de 2011

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  • cultura, tais como a psicologia e a antropologia, tem seguido as tendncias desse mesmo empreendimento. Isto , elas se ocupam da diviso entre o que Bacon chamou de mundo em si, a realidade da natureza que pode ser descoberta somente por meio da investigao cientfica sistemtica, e os vrios mundos imaginrios que as pessoas de diferentes pocas e lugares invocam e que, na sua ignorncia da cincia e de seus mtodos, assumem como sendo a realidade.

    Se os antroplogos se ocupam da anlise comparada dos mundos imaginrios, os psiclogos buscam o estudo dos mecanismos supostamente universais que governam essa construo. Todos concordam que os domnios da realidade e da imaginao no devem ser confundidos, pois a prpria autoridade da cincia depende da sua promessa de revelar, por trs das fices caseiras que a imaginao pinta aos nossos olhos, os fatos que realmente esto no mundo. Claro que podemos estudar a fico assim como os fatos, para empregar aquilo que muitos antroplogos ainda chamam de relatos micos e no ticos, mas misturar os dois seria permitir que o nosso julgamento fosse manchado pelo erro e pela iluso. Deus nos perdoe, como diz Bacon, pois no devemos abrir mo, por um sonho da imaginao, de um padro do mundo.

    Eu gostaria de argumentar nesta palestra que a injuno de Bacon, que a cincia moderna adotou como seu ncleo, teve consequncias duradouras para a vida e o habitar humano, liberando a imaginao de suas amarras terrenas e fazendo- -as flutuar como uma miragem sobre a estrada que trilhamos em nossa vida material. Com nossas esperanas e sonhos banhados no ter da iluso, a vida parece diminuir. Reduzida a funes microbiolgicas, ela no d mais causa para o maravilhoso ou o surpreendente. Na verdade, para quem foi instrudo em uma sociedade em que a autoridade do conhecimento cientfico reina de forma suprema, a diviso entre realidade e imaginao em dois domnios totalmente exclusivos to enraizada que se tornou autoevidente. O problema, de acordo com a nossa avaliao, tem sido como alcanar um ponto de acomodao para os dois domnios. Como podemos criar um espao para a arte e a literatura, ou para a religio, ou para as crenas e prticas dos povos indgenas em uma economia do conhecimento na qual a busca pela natureza real das coisas tornou- se uma prerrogativa exclusiva da cincia racional? Ainda sofremos com a nossa imaginao que persiste em nossas mentes, ou toleramos a sua propenso fantasia como um desejo compensatrio pelo encantamento em um mundo que, de outra forma, parou de nos cativar? Mantemos isso como um sinal de criatividade, como um smbolo de civilizao, como um respeito diversidade cultural, ou meramente para nosso prprio entretenimento? Tais questes so endmicas e, ainda assim, uma coisa que esquecemos quando as colocamos em debate de como difcil, de acordo com a nossa experincia, dividir a

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  • realidade da nossa vida no mundo e do mundo onde vivemos das correntes meditativas da nossa imaginao. Na verdade, o problema exatamente o oposto do que o consideramos: no se trata de como reconciliar os sonhos da nossa imaginao com os padres do mundo, mas de como separ-los, antes de qualquer coisa.

    Historicamente, essa reconciliao foi lenta e ocorreu a duras penas nos levantes religiosos da Reforma e dos comeos turbulentos da cincia moderna em que Bacon, junto com seu contemporneo Galileu, empenharam-se numa tarefa essencial. Mas o processo histrico recapitulado atualmente na educao de qualquer criana em idade escolar que ensinada, sob pena de fracassar nos seus exames, a desconfiar dos sentidos, a confiar mais no intelecto do que na intuio e a considerar a imaginao como uma fuga da vida real e no como seu impulso. Quase que por definio, me parece, o imaginrio irreal: a nossa palavra para aquilo que no existe.

    Ns, adultos, somos convencidos de que os drages so criaturas da nossa imaginao. Ainda assim, nenhum de ns teria dificuldade em descrever um drago. J vimos drages em figuras de livros que lamos quando ramos crianas e tambm naqueles que lemos para nossos filhos. Somos familiarizados com a sua aparncia: corpos verdes e escamosos, rabos compridos e partidos, narinas dilatadas e bocas flamejantes. Esses monstros habitam o terreno virtual da literatura infantil junto com uma srie de outras criaturas de uma provncia semelhante. Alguns deles, claro, tm alguns colegas zoolgicos. Enquanto o cada vez mais popular Tyrannosaurus rex, talvez a coisa mais prxima de um drago que j viveu, esteja convenientemente extinto, outros animais - de cobras, crocodilos, ursos a lees - ainda esto nossa volta e ocasionalmente comprometem vidas humanas. Encontrados ao vivo e em cores, bom que tenhamos medo deles.

    Os seus primos ficcionais, no entanto, no nos do nenhuma causa para alerta, porque as nicas pessoas que eles podem comer so to imaginrias quanto eles prprios. Junto com a matria de pesadelo, essas criaturas ficam sequestradas em uma zona de vises e aparies que rigorosamente separada da vida real. Ns acalmamos uma pessoa que acorda no terror, a ponto de ser consumida por um monstro, com as palavras no se preocupe, foi s um sonho. Assim, a fronteira entre o fato e a fantasmagoria, que tinha sido colocada em dvida no momento de acordar, imediatamente restaurada. Ento como deveramos entender a seguinte histria que vem de A vida de So Benedito de Nrsia, composta por Gregrio, o Magno, no ano 594 a.C.? A histria fala sobre um monge que encontrou um drago. Esse monge era incansvel: sua mente es-

    Caminhando

    com drages

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  • tava divagando e ele estava louco para fugir do ambiente confinado da vida monstica. So Benedito, por sua vez, j cansado da lamria do monge, ordenou que ele partisse. Assim que ele pisou fora do recinto do monastrio, no entanto, o monge ficou horrorizado porque encontrou seu caminho bloqueado por um drago com a boca aberta. Convencido de que o drago iria devor-lo e tremendo de medo, ele gritou e pediu ajuda aos seus irmos. Eles vieram correndo. Nenhum deles, entretanto, podia ver nenhum drago. Apesar disso, eles levaram o seu colega renegado - que ainda tremia com a experincia - de volta ao monastrio e, a partir daquele dia, ele nunca mais se desviou ou pensou nisso. Foi graas s oraes de So Benedito, conclui a histria, que o monge viu no seu caminho o drago que anteriormente o havia seguido sem que ele pudesse v-lo.

    Talvez o monge dessa histria moralista estivesse meramente sofrendo de pesadelos. Os medievais, no entanto, no estariam to prontamente tranquilizados quanto seus colegas modernos com a percepo de que, nos seus encontros com drages e outros monstros, o que eles de fato viam era apenas um sonho. E claro que eles no seriam to ingnuos de acreditar que os drages existem, no sentido especfico de existncia invocado pelos modernos quando eles afirmam, ao contrrio, que os drages no existem. No como se o monge da nossa histria estivesse cara a cara com alguma criatura que, com o benefcio do retrospecto cientfico, ns modernos pudssemos reconhecer como uma espcie de rptil. Lembrem que os irmos que vieram correndo no viram nenhum drago. Eles no viram absolutamente nada. O que eles viram, entretanto, como o relato de Gregrio testemunha repetidamente, que o monge estava tremendo. Com certeza, eles viram o olhar de terror marcado em sua face. E assim, quando o monge gritou para ser socorrido da boca do drago, seus irmos compreenderam que ele estava em apuros. Eles no reagiram ao seu surto - como psiquiatras modernos reagiriam aos delrios de um luntico que estivesse fugindo de um hospcio - como idiossincrasia, possveis alucinaes induzidas por drogas, de uma mente febril e inquieta. Em vez disso, eles imediatamente reconheceram a viso do drago na forma inarticulada do monge. O monge chegou ao ponto de ser consumido pelo medo e j sentia os sintomas que acompanham a desintegrao pessoal. O drago no era causa objetiva do medo, ele era a prpria forma do medo.

    Para os irmos das comunidades monsticas, essa forma seria absolutamente convencional e conhecida por todos os submetidos a uma disciplina rigorosa da mente e do corpo. Neste treinamento, as histrias e figuras de drages e de outros monstros igualmente horrorizantes eram usadas no como hoje para criar uma zona de conforto e de segurana, considerando tudo que poderia

  • ser assustador como parte do domnio da imaginao, mas sim para instaurar o medo nos novios, para que eles pudessem reverenciar esse medo, reconhecer as suas manifestaes e - por meio de um regime de exerccios mental e corporal - super-lo. Como forma manifesta de um sentimento humano fundamental, o drago a configurao palpvel do que significa conhecer o medo. Assim, na ontologia medieval, o drago existe, assim como o medo existe. No como um elemento do mundo natural, mas como um fenmeno da experincia. Como tal, ele to real quanto a expresso facial de quem sofre e quanto a urgncia da voz do monge, mas, diferentemente da voz, ele no pode ser ouvido nem visto, exceto por aquele que acometido pelo medo. Por isso, quem foi buscar o monge no viu nenhum drago. Provavelmente, eles estavam motivados pelo sentimento de compaixo, que, para eles, na expresso da poca, chamou sua mente a imagem de uma figura santa que irradiava luz. Tanto santos como drages, na imaginao monstica, eram construdos a partir de fragmentos de textos e de figuras, mostradas aos novios ao longo de sua instruo. E, nesse sentido, para adotar um termo apto da historiadora Mary Carruthers, eles eram figment, isto , inventados ou ficcionais. Mas essas fices da imaginao no ficavam num domnio separado da vida real e sim, para os pensadores medievais, eram formas externas da experincia humana incorporadas e vividas no espao da ruptura entre o Cu e o Inferno.

    O monge da histria, claro, estava dilacerado entre os dois domnios. Expulso do monastrio por So Benedito, o diabo - na forma do drago - estava esperando por ele l fora. Socorrido na ltima hora, ele foi readmitido. Assim, a histria se desenrola por um caminho de movimento de dentro para fora e de volta para dentro. Desde o incio da histria, como vimos, a mente do monge era suscetvel a divagaes. De fato, existe uma reviravolta misteriosa no final desse conto em que Gregrio reconta que, por todo o tempo, o monge estava sendo seguido pelo drago sem de fato v-lo. O que aconteceu ao pisar fora do monastrio foi uma perda total dos sentidos, um tipo de desorientao total que ocorre quando somos jogados em um ambiente totalmente desconhecido. Foi como se o solo tivesse sido tirado de debaixo de seus ps. Ele entrou em pnico e, nesse momento, o drago surgiu diante dele, bloqueando seu caminho. E assim ele paralisou e no pde mais continuar. A histria conclui, na verdade, que So Benedito fez algo muito bom para o monge ao expuls-lo, porque permitiu que o monge pudesse ver o drago que o havia perseguido de forma invisvel.

    Para os escritores da tradio monstica, como a narrativa demonstra de forma clara, o saber dependia do ver, e ambos seguiam trajetrias de movimento. Para entender o que eles queriam dizer, temos que pensar na conveno, como

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  • explica Carruthers, em termos de caminhos. O pensador medieval, resumindo, era um andarilho, algum que caminhava e que viajava em sua mente de lugar para lugar, compondo pensamentos medida que lia. Eu voltarei questo dos caminhos, mas, antes disso, deixem-me apresentar outro exemplo.

    Entre os Ojibwa, caadores indgenas do norte canadense, dizem que existe um pssaro que emite um som medida que voa pelo cu, que o som do trovo. Poucos o viram e quem j viu atribuiu a ele poderes excepcionais de uma viso reveladora. Tal relato, de acordo com o etngrafo Irving Hallowell, foi de um menino de mais ou menos 12 anos de idade. Durante uma tempestade com trovoadas, Hallowell conta que esse menino saiu da sua barraca e viu um pssaro estranho sobre as pedras. Ele correu de volta barraca para chamar os seus pais, mas quando eles voltaram ao local o pssaro havia desaparecido. O menino tinha certeza de que havia sido o pinsi, o Pssaro-Trovo, mas seus pais no estavam convencidos. Eles entraram em acordo e o relato do menino foi aceito, mas s depois que um homem que havia sonhado com o pssaro verificou a descrio do menino. Claramente, o pinsi no um pssaro comum, assim como o drago no nenhum rptil comum. Como o som do trovo, o Pssaro-Trovo faz sua presena ser sentida no como um objeto do mundo natural, mas como um fenmeno da experincia. Ele a forma manifesta do som que reverbera pela atmosfera e assombra a conscincia de todos que o ouvem.

    Assim como os irmos do monge, que, quando saram do monastrio, no viram o drago, os pais do menino tambm no testemunharam o pinsi. Mas eles estavam totalmente familiarizados com a forma convencional de vivenciar um trovo e, nesse sentido, conheciam essa experincia. O Pssaro-Trovo podia ser uma fico da imaginao, mas de uma imaginao saturada com a totalidade da experincia fenomnica.

    Lembremos que a observao do menino, nesse caso, foi confirmada por um sonho. Bacon ficaria horrorizado com isso. Para ns, modernos, mais comum e, com certeza, mais aceitvel que os sonhos sejam confirmados pela observao. Um caso bem conhecido, entretanto apcrifo, a histria de como o qumico August Kekul sonhou, numa noite de 1865, com uma serpente mordendo o rabo em um movimento de contorcionismo. Ele acordou com um conceito completamente formado na mente da estrutura da molcula de benzeno, composta por um anel de seis tomos de carbono. Trabalhos subsequentes de laboratrio provaram que a conjectura induzida pelo sonho de Kekule era substancialmente correta e essa descoberta tornou-se um marco na qumica orgnica. E claro que o que Kekule realmente sentiu no momento em que acordou ns no podemos saber, mas temos certeza que depois que ele passou

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  • a locar na qumica, a serpente de Kekul j tinha se esvaziado de qualquer fora afetiva ou experiencial que podia ter tido anteriormente. Naquele momento, j tinha se tornado uma serpente boa para pensar, uma figura abstrata do pensamento, particularmente apta para servir de recurso analgico para decifrar a estrutura de uma realidade dada. Assim, a serpente e o anel de benzeno caem em um dos lados da diviso ontolgica impermevel entre imaginao e realidade. E isso que permite que eu possa representar metaforicamente o outro. De fato, a congruncia entre a serpente e os anis refora a diviso, em vez de causar a sua ruptura.

    Para o povo Ojibwa, entretanto, seria diferente. Para eles, a verdade das coisas seria encontrada e testada pela experincia pessoal. E por isso que a observao do menino pde ser corroborada pelo sonho desse homem mais velho. Na busca pelo conhecimento e pela experincia, os poderosos seres mais-que-humanos que habitam o cosmos Ojibwa, como o Pssaro-Trovo, no so recursos analgicos, mas interlocutores vitais. Esse cosmos poliglota, um hbrido de vozes pelas quais diversos seres, em suas lnguas diferentes, enunciam sua presena, so sentidos e fazem seu efeito. Para levar a vida como um Ojibwa, voc tem que se sintonizar com essas vozes, ouvir e reagir ao que eles lhe dizem. Outra histria de Pssaro-Trovo de Hallowell, contada por uma testemunha, como ele diz, ilustra perfeitamente a questo. A testemunha de Hallowell estava sentada em uma barraca com um senhor e sua esposa numa tarde em que havia muitas trovoadas. Em um momento, o homem virou para sua esposa. Voc ouviu o que disse o trovo?, perguntou. No, no peguei bem, foi a resposta. Ao comentar a conversa, Hallowell observou que o senhor estava reagindo ao som do trovo da mesma forma que a um ser humano cujas palavras ele no tinha entendido. Isso, entretanto, no foi como uma falha de traduo. No foi como se o Pssaro-Trovo tivesse uma mensagem para o senhor, a qual ele no entendeu por ter um fraco domnio do idioma do pssaro. Hallowell observa que "os Ojibwa no esto sintonizados o tempo todo para receber as mensagens cada vez que uma trovoada ocorre.

    Esse homem especificamente havia conhecido o Pssaro-Trovo durante os seus sonhos na puberdade e desenvolveu uma relao prxima de tutelagem com o pinsi. No contexto dessa relao, ouvir e responder ao trovo no so uma questo de traduo, mas de empatia, de se estabelecer uma relao de comunho e afeto. Resumindo, em abrir-se para o ser de outro. E, acima de tudo, durante os sonhos, em que os limites entre a vida e o ser so apagados, que ocorre a abertura. Tal exposio, entretanto, no algo com que um cientista sbrio como Kekul poderia imaginar. Para ele, o caminho para o verdadeiro conhecimento no estava na abertura de um dilogo com seres do mundo

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    com drages

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  • mais-que-humano; mas de uma leitura exata e literal dos fatos j depositados l. O objetivo, como diz Bacon, era escrever uma viso verdadeira dos passos do criador, marcados na obra da sua criao. Era uma questo de liberar os segredos da natureza. Para tal, voc precisaria de uma chave, ou muitas chaves, para liberar e destravar portas depois de portas. A serpente de Kekul ofereceu uma chave dessas, na forma de um anel. No seu livro O ensaiador (II Saggiatore), de 1623, Galileu encontrou sua chave nos caracteres da matemtica, nos tringulos, crculos e outras figuras geomtricas que compem a sua linguagem especial. A filosofia inscrita nesse grande livro, o universo, escreveu Galileu, que permanece continuamente aberto nossa imaginao, mas que no pode ser entendido a menos que, primeiro, possamos aprender a linguagem e reconhecer as letras com as quais este mundo composto.

    A ideia do livro do universo consideravelmente antiga e era corrente entre os pesquisadores medievais, assim como, consequentemente, tornou-se corrente com a ascenso da cincia moderna. Ela dependia de uma identidade entre a obra de Deus, na criao do mundo natural, e da palavra de Deus, na composio das escrituras. Com isso podemos retornar aos monges da era medieval para quem, como j observei, a prtica meditativa de leitura de textos litrgicos era um processo de caminhada. Repetidamente, eles comparavam esses textos a um terreno pelo qual se passava como caadores numa trilha, puxando coisas que encontravam ou eventos que eles testemunhavam ao longo dos caminhos. A palavra em latim para essa prtica de se basear ou puxar do texto era tractare, de onde vem a palavra em ingls treatise e, em portugus, tratado, no sentido de uma composio escrita. Enquanto seguiam, as diferentes personagens que os monges encontravam em seu caminho (cujas histrias estavam escritas nas pginas) falavam a eles com palavras de sabedoria e orientao, as quais eles ouviam e com as quais eles aprendiam. Essas vozes eram conhecidas como vocespaginarum, as vozes das pginas. Na verdade, a prpria leitura era uma prtica vocal: tipicamente, as bibliotecas monsticas ressonavam com sons da leitura dos monges, murmurando as vozes das pginas pelas quais eles eram envolvidos, como se os autores estivessem presentes e audveis. Ler, no seu sentido medieval original, era ser aconselhado por essas vozes, assim como o senhor Ojibwa teria sido orientado pela voz do seu mentor, o Pssaro-Trovo, se ele tivesse entendido o que o pssaro havia dito1.

    Envolto pelas vozes das pginas, assim como o caador est envolto pelas vozes da terra, o leitor medieval era um seguidor da tradio. Na sua pesquisa enciclopdica sobre animais no mito, na lenda e na literatura, Boria Sax aponta que a palavra em ingls tradition vem de trade - em portugus troca, que, originalmente, significava track, ou rastro. Estudar uma tradio,

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  • escreve Sax, rastrear uma criatura como se fssemos um caador de volta no tempo. Cada criatura sua histria, sua tradio, de modo que segui-la realizar um ato de lembrana e de continuidade com os valores do passado. Geralmente, o nome da criatura sua histria condensada, para que, no seu enunciado, a histria seja continuada. Mas ela continuada tambm nas vocalizaes das prprias criaturas - se elas tinham alguma voz na sua presena visvel manifesta e na sua atividade. Como um n num emaranhado de descries, histrias, chamados, vises e outras observaes interligadas, nenhuma ontologicamente superior s outras, ou em algum sentido mais real do que outras, qualquer criatura - poderamos dizer - no uma coisa viva, como a instncia de certa forma de estar vivo, mas cada qual, para a mente medieval, abriria um caminho para a experincia de Deus. E, com as letras e figuras do manuscrito que, de acordo com Isidoro de Sevilha, que escrevia no sculo XVII, permitia que os leitores ouvissem mais uma vez e retivessem a memria das vozes que no estavam mais presentes de fato. Assim, o livro da natureza estava espelhado na natureza do livro: uma segunda natureza composta no de obras, mas de palavras.

    Para Isidoro, a leitura devia ser feita silenciosamente, mas no totalmente no silncio, j que dependia de gestos da garganta e da boca porque, na poca, no havia espao entre as palavras do manuscrito. A nica forma de ler, ento, era lendo em voz alta, seguindo as linhas das letras como seguimos as linhas de uma pauta musical, deixando que as letras se destaquem da prpria performance. No sculo XVII e incio do sculo XVIII, entretanto, houve uma transformao gradativa para uma leitura com os olhos apenas, no acompanhada pela voz ou gesto. O que tornou isso possvel foi a diviso da linha do texto em segmentos no tamanho de palavras, cada uma das quais poderia ser lida isoladamente com espaos entre elas. O medievalista e paleontlogo Paul Saenger demonstrou que, com essa leitura visual, as vozes das pginas foram silenciadas. Enquanto toda uma biblioteca monstica lia em voz alta, o som da voz de um era suficiente para abafar as vozes dos outros. Mas todo aluno moderno sabe que, quando estamos tentando ler de forma silenciosa, o menor barulho pode ser uma fonte de distrao. Foi assim que o silncio passou a reinar no confinamento do monastrio. No mundo fora do monastrio, entretanto, na sociedade laica, a leitura oral continuou a predominar nos sculos XIV e XV Como observou o historiador da cognio David Olson, foi a Reforma que anunciou a transio chave nas formas de leitura da leitura entre as linhas, ou seja, do sentido implcito, para a leitura nas linhas - ou da busca de revelaes e epifanias para a descoberta de um sentido literal embutido no texto e disponvel para qualquer um que dispusesse da chave necessria para extra-lo.

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  • No incio do sculo XVI, Martinho Lutero convocou os leitores a abandonar os sonhos e fantasias que seus predecessores encontraram na sua sintonia com as vozes que eles acreditavam falar-lhes por meio das pginas dos manuscritos, estabelecendo uma separao entre as palavras e suas posteriores interpretaes. E, a partir da, foi um passo curto para estender esse mesmo raciocnio das palavras para as obras, isto , para a leitura do livro da natureza. Assim, Bacon, um sculo depois, passou a insistir na distino absoluta entre sonhos da imaginao e padres do mundo. Eu gostaria de chamar a ateno de vocs, em particular, para trs corolrios dessa transio em relao leitura do mundo natural. O primeiro tem a ver com a imaginao do que ainda est por vir. Lendo as vozes da natureza, do mundo mais-que-humano, as pessoas medievais era aconselhadas por elas e podiam encontrar nesses conselhos, paralelos s suas experincias, um caminho para o futuro. Com uma sensibilidade sintonizada por um engajamento perceptivo ntimo, eles podiam contar no s o que tinha se passado, mas tambm o que iria se passar. Mas tal evidncia, como demonstra Olson, tem de ser claramente distinguida do tipo de previso aspirada pela leitura cientfica do livro da natureza. A previso no a abertura de um caminho para o mundo, mas a fixao, de antemo, de um ponto final. A medida que a evidncia orientada por um dilogo com a natureza, a previso extrapola os fatos observveis. Com base nesses fatos, trata-se de especular sobre o futuro e no de ver o futuro.

    O segundo corolrio diz respeito performance. Eu j tentei demonstrar como, para os leitores medievais, o sentido era gerado a partir da atividade vocal e gestual da leitura em voz alta. Fazer e conhecer, nesse caso, eram totalmente interligados, assim como a mastigao e a digesto - uma analogia explicitamente usada na antiga caracterizao do pensamento como um processo de ruminao. Ruminar, podemos dizer, seria mastigar as coisas mais de uma vez - assim como o gado mastiga seu pasto regurgitado - e digerir seus sentidos. Assim, as pessoas medievais, como vimos, liam o livro da natureza da mesma forma, por meio de suas prticas de peregrinao. Dessa forma, o conhecimento da natureza era forjado no movimento, medida que se caminhava. Esse conhecimento era performativo, no sentido especfico de que esse era formado por meio das idas e vindas dos habitantes. A leitura como performance, resumindo, era a formao de palavras e a formao do mundo. Como o caso dos Ojibwa e do Pssaro-Trovo claramente demonstra, na forma do saber que performativa, qualquer fronteira entre o eu e o outro ou entre a mente e o mundo provisria e fundamentalmente insegura. Na cincia construda no esprito de Bacon, entretanto, conhecer no mais juntar-se ao mundo na performance, mas ser informado pelo que j est no mundo. Em vez de buscar seguir as trilhas de um terreno familiar que se desdobra

    FredSublinhado

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  • continuamente, o cientista resolve mapear uma terra incgnita que j est pronta - isto , descobrir por meio de algum processo de decodificao o que existe de fato. Trata-se da obteno do conhecimento, no pela leitura em voz alta [reading out), mas pela leitura a partir das palavras (reading off). E, a partir do momento que a leitura em voz alta deu lugar a leituras das palavras, o mundo cessou de oferecer conselhos ou avisos e tornou-se um repositrio de dados que, por si s, no prestam nenhuma orientao do que deveria ser feito com eles. Dessa forma, a sabedoria assumiu um lugar secundrio diante da informao.

    O terceiro corolrio nos traz a ideia de que os animais e outros seres do mundo mais-que-humano eram conhecidos, na poca medieval, por suas tradies, como um emaranhado de histrias, descries e observaes. Rastrear um animal no livro da natureza era como seguir uma linha de texto. Mas a partir da introduo da diviso do texto em palavras - no livro da natureza - as criaturas tambm comearam a aparecer como entidades discretas e no como linhas de transformao. A natureza, ento, tornou-se passvel para o projeto no de rastreamento, mas de classificao. As linhas foram quebradas, mas os objetos resultantes podiam ser organizados e dispostos com base nas suas semelhanas ou diferenas, nos compartimentos de uma taxonomia. Podia-se falar, pela primeira vez, nos blocos de construo da natureza em vez de sua tessitura e arquitetura. A natureza, resumindo, foi percebida como construda a partir de elementos e no tecida a partir de linhas. E as criaturas desse mundo natural no eram mais conhecidas como tradies, mas como espcies. Entretanto, aquelas criaturas que eram conhecidas apenas pelas suas tradies, e para as quais no havia nenhuma evidncia que poderia ser encontrada nos fatos da natureza, foram desconsideradas. No h drages ou Pssaros-Trovo nas taxonomias cientficas. A questo no s que elas no existem no novo livro da natureza, mas que no podem existir, uma vez que sua constituio histrica ficcional no se encaixa nesse projeto de classificao. Os drages, junto com outros seres que surgem, ou cuja presena sentida no nosso mundo, podem ser contados, mas no categorizados. E claro que tambm no podem ser localizados de forma precisa, como num mapa cartogrfico. Assim como caram nos vos da taxonomia, eles tambm foram empurrados para as periferias, como colocou Michel de Certeau, de uma cartografia cientfica que no tem lugar para os movimentos e itinerrios da vida. O mesmo, claro, vale para a experincia do medo e para os sons do trovo. Eles tambm no podem ser classificados ou mapeados, mas isso no os torna nem um pouco menos reais para uma pessoa que sente o medo ou que entra no olho de uma tempestade.

    Parece ento que, medida que as pginas perderam sua voz com o comeo da era moderna, o livro da natureza foi tambm influenciado. Ele no mais nos

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  • fala ou nos conta coisas. E, ainda assim, essa natureza supostamente silenciosa pode ser - e geralmente - um lugar to barulhento que chega a ser ensurdecedor. O filsofo Steven Vogel observa que o mundo da natureza abundante de movimentos e de gestos, e muitos desses movimentos se manifestam como sons: pense numa trovoada, no sopro do vento, no gelo se quebrando, ou numa queda d'gua, numa rvore com suas folhas se movendo ou no canto dos pssaros. Podemos admitir que, em um nvel, a conversa humana pode ser entendida como um gesto vocal, sendo que a voz manifesta a presena humana no mundo, da mesma forma que o canto representa a presena do pssaro e a trovoada manifesta a presena do trovo. Nesse nvel, a voz, o canto e a trovoada so ontologicamente equivalentes: a voz o ser humano em sua manifestao sonora, o canto o pssaro e a trovoada o trovo. Ainda assim, nenhuma dessas coisas, sustenta Vogel, garante a concluso de que as entidades naturais de fato conversam com os seres humanos e muito menos entre si. Isso por duas razes principais. Primeiramente, a conversao exige que os participantes falem e respondam um de cada vez. Os humanos, de fato, falam e respondem aos sons da natureza: eles ouvem o canto dos pssaros e tm sentimentos, inclusive de horror, pelo trovo. Mas a natureza, pergunta Vogel, responde a ns? As entidades com quem falamos e a quem respondemos na natureza, elas nos do a sua ateno total, elas se envolvem conosco, respondem aos nossos chamados? A resposta, ele est convencido, no. Os sons da natureza, ele sugere, so mais como comandos do monarca que surdo para seus sditos, mas que exige obedincia deles. Em segundo lugar, uma conversa, necessariamente, tem que ser sobre alguma coisa. Ela permite que seus participantes comparem as suas percepes do mundo, numa tarefa comum de descoberta de como o mundo de fato. Os interlocutores humanos fazem isso, mas os pssaros, as rvores, os rios, o trovo e o vento no o fazem. No que eles sejam interlocutores irresponsveis; na verdade, eles no so interlocutores.

    Para Vogel, o silncio da natureza significa que, no importa quanto barulho ela faa, ela no se envolve nas conversas que ns estabelecemos. E como se a natureza estivesse falando, mas ainda assim uma iluso. Eu j escutei com cuidado, escreve Vogel, e eu no ouo nada. Lembrem-se do senhor Ojibwa e do Pssaro-Trovo. Ele achou que o trovo estava falando com ele, mas no pde compreender o que o trovo dizia. Isso foi uma falha de traduo, como Hallowell parece sugerir? Eu argumentei que, na verdade, foi uma falha de empatia. Para Vogel, entretanto, se o senhor tivesse compreendido a fala do trovo, ele no teria sucesso na traduo, nem na empatia com ele. Ele teria realizado um ato de ventriloquia. Enquanto o tradutor fala por outro no seu prprio idioma, o ventrloquo projeta suas prprias palavras em um objeto

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  • mudo, ao mesmo tempo que cria a iluso de que um objeto que est falando para ele. Essa acusao de ventriloquia, claro, a fundao para a repulsa cientfica do antropomorfismo entre aqueles que clamam a empatia com criaturas no humanas ou sabem o que eles esto sentindo; so acusados de meramente projetar seus prprios pensamentos e sentimentos sobre seus sujeitos mudos. E uma acusao, contudo, que passou muito tempo sem ser desafiada. Em um debate importante conduzido nas pginas da revista cientfica Environmental Values, Nicole Klenk entrou pela porta do lado. Ela defende que os no humanos podem e, sim, respondem voz, gestos e presena humanas, de forma que faz sentido para eles e para ns.

    E verdade que os no humanos podem no comparar as suas percepes do ambiente com os humanos num esforo colaborativo para estabelecer a verdade do que realmente existe. Mas insistir que as conversas s podem ser realizadas dessa forma, argumenta Klenk, uma viso muito estreita da conversa, que excluiria boa parte daquilo que comumente chamamos de conversa no mundo humano. Para muitas pessoas, uma conversa, na maior parte do tempo, uma questo de compreender o que os outros nos dizem - de entender bem a histria, e no de verificar quo correta ela est. Os seres humanos colocam em palavras o que a natureza est dizendo e, nesse sentido, so de fato tradutores e no ventrloquos. Para Klenk, isso precisamente o que acontece no trabalho cientfico. Se no fosse assim, ela conclui, as interpretaes cientficas seriam meras fices criadas pelo dilogo entre humanos e no o resultado de uma interao cuidadosa com - e de uma observao de - os componentes do mundo natural. Nesse ponto, eu acredito que Klenk errou. Porque se o argumento da cincia precisamente o de que se trata de uma prtica de conhecimento especializado, portanto, ela procura verificar se a histria est correta e no simplesmente se foi entendida. Desde a poca de Bacon, a cincia tem insistido na descoberta da verdade literal do que est no mundo e, portanto, na separao rigorosa entre o fato e a interpretao. Lendo o que est nas linhas do livro da natureza e no entre as linhas, a nica coisa que os cientistas no fazem o que Klenk diz ser sua prioridade: ouvir as vozes dos seres com os quais interagem. De fato, poderamos argumentar que os cientistas fazem de tudo para evitar ouvir, uma vez que isso interferiria ou comprometeria a objetividade dos seus resultados.

    Ento, eu digo, existe um paralelo real, na constituio moderna, entre o livro da natureza e a natureza do livro, como um trabalho completo cujo contedo pode ser lido por algum com a experincia para decifr-lo. O paralelo reside na ideia de que ambos devem ser lidos em silncio: no como parte de uma conversa, mas como registro de resultados que, em suas formas objetivas e

    Caminhando

    com drages

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  • objetificadas, viraram suas costas para ns, apresentando apenas suas superfcies externas e opacas para nossa vistoria. Como cientistas, devemos ser produtores de conhecimento e, nesse empreendimento, o mundo fornece nossos materiais. Ns pesquisamos como exploradores e colhemos os frutos. E nessa colheita - que subsequentemente processada e, como costumamos dizer, analisada - est a produo do conhecimento. Assim, o conhecimento criado como um tipo de sobreposio sobre a parte externa do ser. Tendo silenciado o mundo, encontramos o conhecimento no silncio do livro. De fato, o prprio conceito do humano, na sua encarnao moderna, expressa o dilema de uma criatura que s pode conhecer o mundo do qual ele faz parte existencialmente deixando esse mundo. Tambm na nossa experincia como habitantes que se deslocam pelo mundo e no vagam por sua superfcie externa nosso conhecimento no construdo como um acrscimo externo, mas cresce e se desenrola a partir de dentro de nosso ser terreno. Ns crescemos no mundo medida que o mundo cresce em ns.

    Talvez esse aterramento do saber no ser resida no cerne de uma sensibilidade que podemos chamar de religiosa. No foi tambm em nome da religio que os lderes da Reforma insistiram na transformao da relao entre o saber e o ser no seu contrrio? No seu destaque da verdade literal das palavras e dos trabalhos, a religio dos reformistas foi ultrapassada pela prpria cincia que eles afrouxaram. Porque na concorrncia com os fatos a cincia certamente ganha e a religio perde, deixando o mistrio de por que as pessoas - incluindo muitos cientistas, isso deve ser dito - aderem tenazmente s representaes de realidade que so demonstravelmente falsas. Ainda assim, questes sobre o que pode melhor representar o mundo (se a religio ou se a cincia) esto mal colocadas, porque a real concorrncia est em outro lugar. Trata-se da questo de se as nossas formas de saber e imaginar esto reverenciadas em um compromisso existencial com o mundo em que nos encontramos. Compararmos religio e cincia nos termos de suas respectivas parcelas de uma realidade da qual estamos totalmente desligados. Mas se elas no estiverem - se, como o antroplogo Stuart McLean argumenta, houvesse uma continuidade essencial entre os atos humanos de imaginao e os processos de formao e transformao do universo material - ento precisamos nos perguntar, em vez disso: qual a natureza desses compromissos? Como podem o saber e a imaginao nos deixar ser, assim como as criaturas em torno de ns simplesmente serem?

    No existe nenhum drago. Esse o ttulo de um dos grandes clssicos da literatura infantil, de autoria de Jack Kent. Ele conta a histria de um menino, Billy Bixbee, que acorda numa manh e encontra um drago em seu quarto. Trata-se de um drago bem pequeno, que sacode o rabinho de forma muito amigvel.

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  • Billy desce com o drago para o caf da manh e apresenta-o a sua me. Drago no existe, declara ela firmemente, e continua preparando suas panquecas. Billy senta-se mesa de caf da manh; o drago senta sobre ela. Sentar sobre a mesa no algo permitido na casa de Bixbee, mas no havia nada a ser feito, uma vez que, se o drago no existe, no h como pedir-lhe para descer da mesa. O drago est com fome e come a maior parte das panquecas, mas Billy no se importa. Sua me continua a ignorar a nova chegada e o drago comea a crescer. Ele cresce e cresce. Em breve, ele ocupa a maior parte do corredor e a me de Billy tem dificuldade para limpar a casa, j que ela s pode passar de um quarto ao outro pelas janelas. Todas as portas esto bloqueadas. O drago cresce e cresce - agora ele tem o tamanho da casa. Ento a casa suspensa de seus alicerces e carregada pelas ruas nas costas do drago. O pai de Billy, ao chegar do trabalho, fica surpreso ao ver que sua casa sumiu. Um vizinho aponta a direo por onde a casa foi. No final da histria, a famlia reunida mais uma vez e, nesse momento, a me de Billy relutantemente reconhece que talvez os drages existam. Imediatamente, o drago comea a encolher at que, mais uma vez, ele assume um tamanho gerencivel. Tudo bem, eu no tenho problemas com drages desse tamanho, admite a Sra. Bixbee, enquanto senta em uma poltrona confortvel e acaricia a cabea do drago.

    A moral da histria, claro, que problemas inicialmente pequenos - se ns tivermos medo de reconhec-los ou de falar o seu nome por medo de infringir as normas da conduta racional - podem crescer at o ponto em que a vida social ordinria no possa ser sustentada. Eu acho que, atualmente, existe um drago em nosso meio, e ele est crescendo at o ponto em que se torna cada vez mais difcil levarmos vidas sustentveis. Este drago habita a ruptura que criamos entre o mundo e a imaginao que temos dele. Ns sabemos, com base na experincia, que a ruptura insustentvel e, ainda assim, somos relutantes em reconhecer sua existncia, j que, se fizssemos isso, confrontaramos a racionalidade cientfica aceita. Eu acredito que tal reconhecimento j devido h muito tempo. Nesta palestra sugeri, assim como os estudos do monasticis- mo medieval e das chamadas ontologias indgenas poderiam sugerir, formas alternativas de leitura e de escrita, que podem nos conduzir, mais uma vez, a nos aconselhar com as vozes das pginas e com o mundo ao nosso redor. Ouvir sermos aconselhados pelo que eles nos contam e cicatrizar a ruptura entre o ser e o saber. Essa cicatrizao deve ser o primeiro passo rumo a uma forma mais aberta e sustentvel de viver. Talvez, assim, o drago encolha.

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