ingold, tim. pare, olhe, escute! visão, audição e movimento humano

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    Ponto Urbe3 (2008)Ponto Urbe 3

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    Tim Ingold

    Pare, Olhe, Escute! Visão, Audição eMovimento Humano

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    Referência eletrônica

     Tim Ingold, « Pare, Olhe, Escute! Visão, Audição e Movimento Humano »,Ponto Urbe

     [Online], 3 | 2008, posto onlineno dia 31 Julho 2008, consultado o 13 Fevereiro 2016. URL : http://pontourbe.revues.org/1925 ; DOI : 10.4000/pontourbe.1925

    Editor: Núcleo de Antropologia Urbanahttp://pontourbe.revues.orghttp://www.revues.org

    Documento acessível online em:http://pontourbe.revues.org/1925Documento gerado automaticamente no dia 13 Fevereiro 2016.© NAU

    http://pontourbe.revues.org/1925http://www.revues.org/http://pontourbe.revues.org/

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    Tim Ingold

    Pare, Olhe, Escute! Visão, Audição eMovimento Humano

    Tradução de Ligia Maria Venturini Romão, Marcos Balieiro, Luisa Valentini, Eliseu Frank,Ana Leticia de Fiori e Rui Harayama

    Sobre ouvir sons e ver objetos1 Próximo à casa na qual cresci, existia um caminho que eu costumava usar e que cruzava a linha

    do trem. Ao lado dos trilhos existia um aviso aos pedestres que dizia: “pare, olhe e escute"antes de tentar cruzar a linha. Posso não ter seguido esse aviso tanto quanto deveria, mas, aomenos, eu sabia o que ele significava. Para mim, e sem dúvida para outros que utilizavam ocaminho, ele fazia todo o sentido. Na ausência de dispositivos automáticos de sinalização, deque outra forma alguém saberia se um trem estivesse vindo, a não ser olhando e escutando?Somente depois descobri que o que era óbvio aos pedestres era, para os filósofos, inteiramenteconfuso. Para ser exato, o filósofo pode admitir que nosso conhecimento sobre o mundo só

    possa surgir através de alguma forma de percepção. Ainda assim, parece que a única coisa quenão percebemos é a própria percepção. Você pode até argumentar que vê o trem, mas somentepor meio da luz que alcança seus olhos. E você só o ouve através do som que alcança seusouvidos. Sendo assim, como você pode saber que o trem existe a uma certa distância, como umobjeto material independente, por trás de imagens perceptivas, moldadas em luz e som, quevocê tem dele? E se existe somente em sua percepção – em seus olhos e ouvidos, ou mesmo emseus pensamentos – então, como ele pode te atropelar? Isso não é tudo. Olhando e escutando,recebemos um conjunto de sensações através dos olhos, e outro, bem diferente, através dosouvidos. Supondo que o nosso conhecimento seja fundado em uma experiência sensorial,como sabemos que as visões e os sons que vêm à nossa percepção são, todos, manifestações damesma coisa, o trem, avançando em nossa direção? Se podemos ouvir sons em vez de coisas

    (como trens), então como eu sei que esse som que eu escuto pertence àquele trem que eu vejo?2 Esses são alguns dos mais antigos dilemas filosóficos e não é minha intenção resolvê-los aqui.

    Quero sugerir, no entanto, que o modo como eles são apresentados carrega a marca de um certomodo de imaginar o sujeito humano – a saber, como um lugar de consciência, limitado pelapele e definido em oposição ao mundo – que está profundamente sedimentado no pensamentoocidental tradicional. O problema da percepção, então, diz respeito a como algo pode sertraduzido, ou “atravessar” de fora pra dentro, do macrocosmo do mundo para o microcosmo damente. É por isso que a percepção visual e a auricular são descritas, usualmente, nos escritosdos filósofos e dos psicólogos, como processos de ver e ouvir. A visão começa no pontoem que a luz entra nos olhos do perceptor estacionário e a audição no ponto em que o somatinge os ouvidos – na interface, em resumo, entre fora e dentro. No entanto, o aviso ao lado

    dos trilhos do trem não dizia ao pedestre “fique de pé, veja e ouça”. Ele dizia: “pare, olhee escute”; ou seja, que interrompesse uma atividade corporal, andar, e iniciasse outra, olhar-e-escutar (como mostrarei adiante, é melhor vê-las como aspectos de uma mesma atividadeque como duas atividades distintas). Em quê, então, consiste essa atividade? Não em abriros olhos, já que eles estão abertos de qualquer modo; nem em abrir os ouvidos, já que elesnão podem ser fechados a não ser tapando-os com os dedos. Consiste, antes, em um tipo deesquadrinhamento de movimentos, realizado pelo corpo todo – ainda que de um local fixo – ena qual os dois procuram por, e respondem às, modulações ou inclinações no ambiente ao qualestá sintonizado. Como tal, a percepção não é uma operação “dentro-da-cabeça”, executadasobre o material bruto das sensações, mas ocorre em circuitos que perpassam as fronteirasentre cérebro, corpo e mundo.

    3 Estou me adiantando, contudo. Existe ainda muito a ser esclarecido antes que a idéia depercepção, delineada acima, possa ganhar corpo. Para iniciar esse esclarecimento, precisamosinvestigar mais de perto as suposições que tendemos a fazer sobre nossa experiência de ver

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    e ouvir. Você pode tentar descobrir o que elas são executando um simples experimento depensamento. Suponha que você esteja ao lado dos trilhos enquanto o trem passa. Você vêa locomotiva e os vagões passando em grande velocidade e você ouve o barulho do motorseguido pelos estalidos dos vagões enquanto eles passam pelas junções dos trilhos. Essasvisões e sons são comumente tão emaranhados em sua experiência que não é fácil de descrevê-los separadamente, para imaginar como o trem poderia ser sem o barulho que ele produz,ou como seria o barulho dele sem a aparência que ele apresenta. Todavia, você pode tentar.

    Imagine você vendado, ou numa noite escura como breu, na qual o componente visual daexperiência é eliminado. O som do trem se aproximando, à medida que cresce, parece tomar deassalto e, por último, dominar, cada fibra do seu ser. Você não resiste e se deixa levar por eleaté que, por fim, à medida que o trem se distancia, você é deixado pelo caminho, sem ar e tonto,exatamente no mesmo lugar em que, na verdade, você esteve o tempo todo! Mas agora, emum segundo experimento, imagine você com os seus ouvidos tapados, como que para eliminaro componente auditivo da experiência. Desta vez o trem parece passar diante dos seus olhoscomo se fosse um espectro cuja existência mesma residisse em dimensões diferentes daquelasdo mundo ao qual você pertence. Você o vê , registra sua presença e passagem, mas não émovido por ele. A visão é só uma outra aparição para adicionar à sua coleção.

    4 Se os resultados desses experimentos, assumidamente fictícios, têm qualquer validade, eles

    sugerem que, longe de serem equivalentes, ou mutuamente substituíveis, visão e audição sãoradicalmente opostas; tão diferentes quanto estar à beira do rio vendo a água correr e serarremessado dentro da correnteza. Como um observador participante no evento constituídopelo trem passando pelo local onde você está, na intersecção do caminho e dos trilhos,pareceria que participando através dos ouvidos, você, ao mesmo tempo, observa visualmente.De fato, a noção de que o som pode entrar e sacudir você de um modo que a luz não conseguetem um longo e distinto pedigree na história das idéias. Repetidamente, os ouvidos sãoimaginados de modo topográfico,como aberturas na cabeça que realmente permitem penetrare tocar as superfícies mais reclusas do ser. Por contraste, supõe-se que atrás dos olhos existamtelas que não permitem a qualquer luz passar, deixando a mente no escuro – como os habitantesde uma caverna, na celebrada alegoria de Platão, que não podem ver nada além das sombras

    na parede projetadas pela luz do próprio fogo. Diz-se que o som alcança diretamente a alma,ao passo que na visão tudo que se pode fazer é reconstruir uma imagem de como o mundo defora poderia ser, baseado nas sensações induzidas pela luz. Mas, da mesma maneira, somosmais prontamente convencidos de que ouvimos som do que de que vemos luz. Supomos queos objetos da visão não são fontes ou manifestações da luz, mas coisas que a luz ilumina paranós. Os objetos da audição, por outro lado, não são coisas, mas sons ou fontes de som1.

    5 É verdade, houve vozes dissidentes. Uma delas foi a de Martin Heidegger. Em seu ensaiosobre “A origem da obra de arte”, Heidegger argumenta que somente quando desviamos nossasatenções dos objetos, ou escutamos abstratamente (por exemplo, com os olhos fechados, comofazemos com a música clássica), é que ouvimos “som bruto”. Na vida cotidiana, ele insistia,não ouvimos sons, mas as próprias coisas – a porta fechando na casa, a tempestade na chaminé,o Mercedes como distinto do Volkswagen (Heidegger, 1971:26). Do mesmo modo, Heideggerpoderia ter dito, antes escutamos o trem do que o som que ele faz. Mas esse ponto de vistanão se concilia facilmente com a experiência diária. Pois o que dizemos escutar, ao menosquando falamos sobre esses assuntos, é o bater de uma porta, o assobio do vento, o zumbidoou a explosão do motor do carro e o ruído da locomotiva. Estrondear, assobiar, zumbir, entreoutras, são palavras que não descrevem coisas, mas ações ou movimentos os quais, devidoàs vibrações que causam, na verdade sentimos como barulhos de diferentes tipos. Ou, parausar outro exemplo, considere a palavra “cuco”. Ela é, em primeiro lugar, uma expressãoonomatopéica de um som que eu normalmente escutava no campo e que sempre pareciaemanar de um lugar distante e escondido no meio do bosque. Dizemos que o cuco é um pássaro,mas na minha experiência o pássaro existe, pura e simplesmente, como seu som. Eu nuncavi um (a não ser em livros ilustrados de ornitologia). Mas é somente ao ser visto que o cuco

    chega a ser apreendido como uma coisa que produz um som, ao invés do som em si2.

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    6 No devido tempo continuarei a qualificar a idéia de que vemos antes coisas que luz, e de queouvimos antes sons que coisas. Devo fazê-lo mostrando que o som, estritamente falando, nãoé um objeto de audição mais do que a luz é um objeto de visão. Pelo contrário, assim comodizer que existe luz é um outro modo de dizer que se pode ver, dizer que existe som é umoutro modo de dizer que se pode ouvir. Luz e som são, em essência, os lados avessos 3 dasexperiências de ver e ouvir, respectivamente. Agora, como os deficientes visuais podem nosdizer, é de fato possível ouvir coisas assim como vê-las. E, para pessoas com visão, os olhos

    são parte do sistema perceptivo para escutar, tanto quanto os ouvidos são parte do sistemapara olhar. Até esse ponto, visão e audição são mais intercambiáveis do que diferentes. Mas,por trás da descoberta, seja ela visual ou auditiva, de um mundo já feito está um nível depercepção profundo e pré-objetivo, um nível no qual a atenção sensitiva se encontra no ápicedo movimento mesmo do vir a ser do mundo. Nesse nível, como mostrarei, as experiênciasda visão e audição não são mutuamente substituíveis do mesmo modo que– por exemplo– a língua de sinais dos surdos é substituível pelo discurso oral. Pelo contrário, elas sãovirtualmente indistinguíveis: visão é um tipo de audição e vice e versa. Esse argumento melevará por fim a rejeitar a tese que atribui a dominância do pensamento objetivo no ocidente auma obsessão pelo olho. Por enquanto, no entanto, deixe-me continuar com o contraste entrever e ouvir, como ele é normalmente entendido, para examinar suas implicações no nosso

    entendimento, primeiro, sobre pessoas e coisas; segundo, sobre língua, fala e escrita; e terceiro,sobre as práticas sensoriais de pessoas em sociedades não-ocidentais.

    Visão objetifica, som personifica7 De todas as implicações do contraste entre visão e audição, a que mais teve conseqüências

    tem sido a noção de que a visão, já que não é contaminada pela experiência subjetiva daluz, produz um conhecimento do mundo exterior que é racional, independente, analítico eatomístico. Por outro lado, diz-se que a audição, já que se baseia na experiência imediata dosom, arrasta o mundo para dentro do perceptor, produzindo um tipo de conhecimento queé intuitivo, engajado, sintético e holístico. Para aqueles que gostariam de celebrar o métodode indagação científica positiva como a realização máxima do espírito humano, a visão é

    sem dúvida o sentido superior. Todavia, por todas essas razões, não se deve confiar nela. Ocaminho visual para a verdade objetiva é, ao que parece, pavimentado de ilusões. Precisamenteporque a visão produz um conhecimento que é indireto, baseado na conjectura dos dadoslimitados disponíveis na luz, ela nunca poderá ser nada mais que provisória, aberta a futurostestes e à possibilidade de refutação empírica4. Mas conquanto nunca possamos ter certezado que vemos, não existe dúvida em relação ao que ouvimos. Uma vez que o som nos faladiretamente, a audição não mente. Não sofremos de problemas auriculares da mesma maneiracomo sofremos de ilusões ópticas (Rée 1999:46). Em resumo, quando se trata de assuntos daalma, da emoção e da sensação, ou das questões “introspectivas” da vida, a audição supera avisão, assim como o entendimento ultrapassa o conhecimento e a fé transcende a razão.

    8 Nada ilustra melhor essas atitudes em relação à visão e à audição, tão profundamente

    incrustadas nas sensibilidades ocidentais, que esse trecho extraído do “Prefácio” para oclássico estudo de percepção musical de Victor Zuckerkandl, Sound and Symbol. Aqui elecompara o comportamento do cego e do surdo:

    A quietude, a tranqüilidade, a confiança, pode-se quase dizer a piedade, tão comum nos cegoscontrastam estranhamente com a irritabilidade e a suspeita encontrada entre tantos surdos... Pareceque, pelo fato do homem cego confiar na orientação do ouvido em vez do olho, outros modosde conexão com o mundo lhe são revelados; modos que, de outra forma, são ofuscados peladominância do olho – como se, no domínio no qual ele entra em contato, os homens fossem menossozinhos, mais bem providos, mais em casa do que num mundo de coisas visíveis para as quais ohomem surdo é direcionado e às quais um elemento de alienação sempre se liga. (1956:3).

    9 Como representação estereotípica do comportamento das pessoas cegas e das surdas, essapassagem é, obviamente, ultrajante. Ela diz muito, no entanto, sobre como tendemos aperceber a audição como calorosa, comunicativa e solidária; e a visão como fria, distanciadae insensível. Não por acaso, então, inúmeros comentadores procuraram culpar a obsessão

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    pela visão dos males da civilização ocidental moderna. (Jay 1993, Levin 1988, 1993). Maisdo que qualquer outra modalidade de percepção, dizem eles, a visão nos leva a objetificarnosso ambiente, a considerá-lo como um repositório de coisas, alheias ao nosso eu subjetivo,que estão lá para serem apreendidas pelos olhos, analisadas pela ciência, exploradas pelatecnologia e dominadas pelo poder. Se ao menos pudéssemos restaurar o equilíbrio devolvendoa audição ao seu devido lugar no sensórium, alega-se, poderíamos recuperar uma atençãomais harmoniosa, benevolente e empática ao nosso entorno. Então, quem sabe, poderíamos

    redescobrir o que significa pertencer5.10 Essas queixas não são novas; ao contrário, a depreciação da visão é tão antiga quanto a sua

    elevação ao topo da hierarquia dos sentidos. Como Don Ihde aponta em seu estudo sobre afenomenologia do som, “existe uma antiga e arraigada tradição de que a visão ‘objetifica’, e, demodo oposto e não amplamente notado, existe uma tradição de que o som ‘personifica’” (Ihde,1976:21). A essa última tradição pertencem os argumentos de muitos estudiosos clássicosde que a própria palavra “pessoa” deriva do Latim personare, que significa, literalmente,“soar através de”. Se a derivação é bem fundada etimologicamente não nos importa6; o queconta são, antes, as razões que a tornam tão convincente. Essas, afirmo, encontram-se emsua concordância com a noção amplamente sustentada de que por trás do aspecto visível dapessoa, sobretudo da face, reside um ser interior que se revela pela voz. Quando se fala,

    a voz “soa através de”, de dentro para fora; quando se ouve, ela penetra inversamente defora para dentro. Onde a visão coloca um e outro vis-à-vis, cara-a-cara, deixando cada qualconstruir a representação interna do estado mental do outro com base em sua aparência externa,a voz e a audição estabelecem a possibilidade de uma intersubjetividade genuína; de umacomunhão participativa do eu com o outro por meio da imersão no fluxo de som. A visão,nessa concepção, define a individualidade do eu em oposição aos outros; a audição define oeu socialmente em relação aos outros.

    A palavra escrita e os sons da fala11 Em nenhum lugar a ambivalência em torno das atitudes perante a visão e a audição é

    tão evidente quanto nas idéias ocidentais sobre linguagem e, sobretudo, sobre a distinção

    entre fala e escrita. A desconfiança na escrita é um tema recorrente ao longo da históriado pensamento ocidental. Desde Platão e Aristóteles, os filósofos tenderam a considerar aescrita como uma fachada exterior e visível para a realidade interior e sonora das palavrasfaladas. Platão, no  Fédon (274-7), faz Sócrates declarar que a escrita não oferece mais que“a aparência e não a realidade da sabedoria [wisdom]” (Platão 1973). Para Aristóteles, apenasa palavra falada representa verdadeiramente a experiência mental, enquanto a palavra escritarepresenta a falada (Aristóteles 1938:115). Rousseau, para quem a escrita não era “nada alémda representação da fala”, queixava-se amargamente (escrevendo, é claro) do prestígio eatenção oferecidos por seus contemporâneos à escrita quando esta não era mais que uma capafabricada [contrived] e inautêntica para a coisa real (Derrida 1974: 36). E dois dos gigantes dalingüística do século vinte tinham a mesma opinião. Para Bloomfeld (1933:21), a escrita era

    “meramente uma forma de registrar a linguagem por meio de marcas visíveis”, enquanto deacordo com Saussure (1959:23), “a linguagem e a escrita são dois sistemas distintos de signos:o segundo existe com o único objetivo de representar o primeiro”. Numa famosa imagem,Saussure localizou a linguagem numa interface entre pensamento e som, como se a consciênciahumana – o domínio das idéias – flutuasse sobre um oceano de som como o ar sobre a água(1959:112).

    12 Em todas estas afirmações existe uma priorização implícita da audição sobre a visão, comose a primeira desse acesso a intimidades da experiência humana das quais a última poderiaapenas oferecer um pálido reflexo. “A única ligação verdadeira”, escreveu Saussure, é “a

    ligação do som” (1959: 25) 7. Ironicamente, contudo, ao mesmo tempo em que a escrita éapresentada como não tendo outra razão de ser senão o modelamento da fala num meio visível,a apreensão da fala é, ela mesma, modelada sob a inspeção da palavra escrita. Assim, entra umviés visual,pela "porta dos fundos", na nossa própria noção do que é a linguagem. Lembre-se deque a suposição subjacente, compartilhada tanto pelos maiores defensores da percepção visual

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    como por seus críticos, é a de que nós não vemos a luz, mas os objetos que ela ilumina. Vocêpode não ser capaz de ler, por exemplo, sem uma fonte de luminosidade, mas o que você vê nãoé a luz e sim as palavras na página. Igualmente, você não pode ouvir a fala a não ser que ela sejavocalizada em som. Entretanto, sua familiaridade com a palavra escrita o leva a acreditar queo que você ouve não é o som ele mesmo, mas as palavras formadas nele. “Linguagem-como-palavra”, com nota Ihde, “mesmo enquanto soa, não chama a atenção a si mesma enquantosom” (1976: 161). Antes, o som “entrega” ou profere as palavras que alegamos ouvir. Assim,

    supõe-se que palavras podem ser extraídas do meio do som, e podem ser preservadas, sejacomo impressões na mente ou como inscrições na página, independentemente de seu som.

    Figura 14.1 Retrato feito por Saussure da linguagem na interface entre o plano do pensamento (A) e o plano dosom (B). O papel da linguagem é cortar a interface em subdivisões, como indicado pelas linhas verticais pontilhadas,estabelecendo dessa forma uma série de relações entre idéias particulares e sons particulares. “Visualize o arem contato com uma lâmina d’água”, diz Saussure, “se a pressão atmosférica muda, a superfície da água serádespedaçada numa série de divisões, ondas: as ondas parecem a união do pensamento com a substância fônica”.(Retirado de F. de Saussure, Course in general linguistics, Nova Iorque: The Philosophical Library, 1959, p.112).

    13 A linguagem, ao que parece, é a exceção que prova a regra de que vemos coisas (não luz) eouvimos sons (não coisas). Quando ouvimos música, prestamos atenção ao som enquanto tal,

    pois é, certamente, no som, nem mais nem menos, que a música consiste. Mas, quando setrata de fala, estamos inclinados a tratar a audição como uma espécie de visão – um tipo devisão com o ouvido, ou “visão do ouvido” – que reage ao som da mesma maneira que a “visãodo olho” reage à luz. Assim, estamos convencidos de que apreendemos palavras, não sons.É quase como se os sons da fala fossem vistos em vez de ouvidos. Isto, claro, é exatamenteo que Saussure tinha em mente quando descreveu o significante verbal – o padrão de somregistrado na psique – como um som-imagem (1959: 66). De acordo com ele, reconhecemosuma palavra da fala da mesma maneira que reconhecemos uma palavra da escrita, combinandoo padrão percebido com um esquema mental pré-existente. Mas e se jamais tivéssemos vistouma palavra, se não tivéssemos noção da palavra como um objeto da visão? Dado que nossafamiliaridade com a escrita nos leva a modelar a audição da palavra falada sobre a visão

    daquela escrita, como o poder da fala poderia ter sido experimentado por pessoas sem oconhecimento da escrita, ou para quem a palavra escrita foi feita para ser disseminada, nomáximo, através de sua leitura em voz alta em vez de sua reprodução impressa?

    14 Em seu influente estudo, The Gutenberg Galaxy, Marshall McLuhan (1962) argumentou quea invenção da prensa8 conduziu a uma era inteiramente nova na história da cultura humana,marcada pela dominância absoluta do olho e, com ela, a um viés em direção a uma maneira depensar que é objetiva e analíticae que segue um caminho linear de conexões lógicas explícitas.Mesmo antes da introdução da tecnologia da impressão -durante o estágio “quirográfico” decultura precedente-, a substituição de palavras escritas por faladas havia começado a pendero equilíbrio entre visão e audição em favor da primeira. Mas, entre povos em nível “oral-aural” de cultura, para quem a escrita era desconhecida, o ouvido exercia uma esmagadora

    tirania sobre o olho (McLuhan 1962: 28). Além disso, sustentava McLuhan, seu pensamentocarecia da elaboração lógica, da discriminação analítica e da objetividade que, no Ocidente

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    letrado, são normalmente consideradas os marcos da racionalidade. Baseando-se nessas idéias,um dos colegas de McLuhan, Walter Ong, buscou derivar todas as características essenciaisdo “pensamento e expressão baseados oralmente” dos traços que distinguem a audição davisão. A cultura oral, afirmou ele, tem um caráter agregativo; é harmônica e holística emvez de dissecadora, analítica e atomística; é concreta e situacionalmente específica, em vez deabstrata e independente do contexto; é focada em pessoas, em vez de em coisas. A audiçãoliga as pessoas em comunidade; a visão isola o indivíduo vis-à-vis o mundo. Finalmente, a

    “força interiorizante da palavra oral se relaciona de maneira especial ao sagrado, às questõesúltimas da existência”. Com a ascendência da visão, contudo, a religião dá lugar à ciênciasecular (Ong 1982: 73-4).

    15 Em suas localizações de culturas orais e civilizações letradas de cada lado de um “grandedivisor”, tanto McLuhan como Ong efetivamente reproduziram uma dicotomia entreparticipação oral e observação visual que, como já mostrei, está profundamente incrustado natradição ocidental. Assim, o som, de acordo com Ong, registra a interioridade das coisas deuma maneira que é não é possível com a luz, que meramente reflete suas superfícies externas:

    16 A vista isola, o som incorpora. Enquanto a vista situa o observador fora do que ele vê, àdistância, o som se derrama para dentro do ouvinte... A visão chega ao ser humano de umasó direção por vez... Quando eu ouço, entretanto, reúno som de todas as direções de uma só

    vez: sou o centro do meu mundo auditivo, que me envolve, assentando-me num tipo de núcleode sensação e existência... Você pode se imergir na audição, no som. Não há maneira de seimergir similarmente na visão. (Ong, 1982:72)

    17 É na sua afirmação de que o ouvinte numa cultura “predominantemente oral” ouve as palavrascomo som, em vez de imagens na forma de som, que Ong polemiza Saussure (1982: 17).As pessoas numa tal cultura, “totalmente intocadas por qualquer conhecimento da escrita ouimpressão”, não ouvem palavras como se estivessem olhando para elas. Em sua fala, todapalavra é um movimento fugidio carregado na crista de um som que “existe apenas quandoestá deixando a existência”. Foi a escrita, afirma Ong, que amarrou as palavras e as fezparecerem coisas, “objetos estanques... para a assimilação pela visão” (1982: 91). Assim, aescrita transforma a palavra em vez de, como pensava Saussure, meramente representá-la nummeio alternativo.

    Visão e audição em Antropologia18 Outro colaborador de McLuhan foi o antropólogo Edmund Carpenter. Escrevendo com base

    em trabalho de campo conduzido entre os esquimós Aivlik (Inuit), da ilha de Southampton noártico canadense, Carpenter afirmou que o mundo dos Inuit é definido, acima de tudo, pelosom em vez da vista (Carpenter 1973: 33). Habitar um tal mundo não é se deparar com umespaço de objetos prontos, mas participar de dentro no movimento perpétuo de sua geração.Não existem coisas, estritamente falando, no mundo Inuit; apenas seres que estabelecem suapresença, antes de tudo, por meio de suas ações contínuas. A audição é o par ressonantedessas ações com o movimento da atenção do ouvinte. Assim, os Inuit ouvem som em vez

    de coisas e são movidos pelo som, ele mesmo, como o são pelo canto. De fato, a distinçãoentre fala e canto, tão central à concepção letrada de linguagem, não faria qualquer sentidopara eles (Carpenter, 1966: 212 ). Falar e cantar são ações que, do mesmo modo que caçar ouentalhar, “externam” ou liberam aspectos do ser na plenitude do espaço acústico que envolve apessoa. Diferentemente do espaço pictórico restrito e investigado pelo olho, o espaço acústicoé “dinâmico, sempre em fluxo, criando suas próprias dimensões momento a momento” (1973:35; ver também Carpenter e McLuhan 1960). Sua forma é a de uma esfera, estendendo-se parafora da pessoa, igualmente, em todas direções. Porém, essa esfera não tem superfície externa oufronteira: ela não pré-existe nem cerca o falante e o ouvinte; mas como que toma forma à voltadeles no processo mesmo de seu envolvimento auditivo um com o outro e com o ambiente.

    19   Efetivamente, McLuhan, Carpenter e Ong estabeleceram entre eles os fundamentos para umcampo de pesquisa, atualmente vibrante, que veio a ser conhecido como a antropologia dossentidos (Stoller, 1989; Howes 1991a; Classen 1993, 1997). É verdade que certos aspectosde seu programa têm acarretado críticas justificadas de grupos antropológicos: a atribuição

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    de mentalidades pré-lógicas a sociedades “tribais” no nível oral-aural, o relativo desprezo deoutras modalidades sensoriais além da visão e da audição e a conseqüente elisão de diferençasentre as culturas de cada lado do “grande divisor”, entre oralidade e letramento (Howes1991b: 172-3, Classen 1997: 403-4). Entretanto, a idéia básica de que as culturas podem sercomparadas em termos do peso relativo dos sentidos através dos quais as pessoas percebemo mundo à sua volta foi mantida. Assim, não é tanto no quê elas percebem, mas em comoelas percebem, que as culturas diferem. Não será mais possível identificar variações culturais

    com visões de mundo alternativas, como se todos percebessem seus entornos da mesma forma(visualmente, vendo-o), mas vissem coisas diferentes por conta de seus diferentes modos deorganizar informações perceptivas em representações. Pois a própria idéia de que o mundo éconhecido pela sua representação mental está atada a pressupostos sobre a preeminência davisão que não são aplicáveis interculturalmente. Discuto abaixo, brevemente, três estudos daantropologia dos sentidos, que atribuem uma proeminência particular à audição. O primeiro,de Paul Stoller, trata dos Songhay do Níger, na África Ocidental; o segundo, de AnthonySeeger, trata dos Suyá de Mato Grosso, no Brasil; e o terceiro, de Alfred Gell, dos Umedade Papua Nova Guiné9.

    20 Para os Songhay, afirma Stoller, o som “é um fundamento da experiência”. Diferentementeda visão, que estabelece uma distância entre o espectador e o objeto visto, o som “penetra

    o indivíduo e cria um senso de comunicação e participação” (1989: 103, 120). Para mostrarcomo isso se dá, Stoller examina o significado que os Songhay atribuem aos sons de doistipos de instrumentos musicais – o godji (violino monocórdio) e o gasi (tambor de cabaça) –ambos tocados durante cerimônias de possessão, da poesia de louvação, que acompanha essascerimônias e das palavras ditas na feitiçaria. O godji produz um rangido agudo, enquanto ogasi, dependendo de como é batido, produz um “claque” ou um “rufar”. Tanto pessoas comoespíritos são excitados por esses sons, considerando-os irresistíveis. De fato, para os Songhay,os rangidos do violino, e o claque e rufar do tambor são as vozes dos espíritos que, em rituais depossessão, penetram e abalam os corpos daqueles possuídos. E enquanto os instrumentos estãosoando, o cantor de louvações (sorko) recita os nomes dos espíritos, gritando-os diretamentenos ouvidos do médium pretendido. A força sônica do grito afeta o corpo do médium da

    mesma maneira que o vento afeta o fogo, incendiando-o em paroxismos que indicam o inícioda possessão (Stoller 1989: 108-12). Na feitiçaria, também, é o próprio som do encanto mágicoque atua, poderosamente, para o bem ou para o mal, no corpo da vítima ou do paciente. Apalavra mágica é som que existe (e sai da existência) no ato de sua enunciação. Como tal, é umfenômeno da mesma ordem do rangido, claque ou rufar do instrumento musical, ou do gritodo cantor de louvações. Em todo caso, é o som em si que as pessoas ouvem e ao qual elasrespondem. Supõe-se que esse som tenha uma existência própria, “separada dos domínios davida humana, animal e vegetal” (1989: 112).

    21 Entre os Suyá, de acordo com Seeger, a faculdade da audição é altamente valorizada, como osão as faculdades complementares da fala e do canto. A fala é distinta do canto na classificaçãoSuyá, não nos termos do destacamento das palavras com relação ao som, mas como pólos numcontínuo de combinações alternativas entre “fonética, texto, tempo, tom e timbre” (Seeger1987: 46, 51). A primazia atribuída à audição, assim como à fala e ao canto, é enfatizada pormeio da enorme expansão dos lóbulos das orelhas e (para homens) dos lábios inferiores, nosquais são inseridos grandes discos de madeira ou folha de palmeira enrolada. A palavra ku-mba, na língua Suyá, pode ser traduzida não apenas como “ouvir”, mas, também, como“entender” e “conhecer”. É a habilidade de bem “ouvir-entender-conhecer” que define apessoa como um ser plenamente social. E onde nós podemos descrever a memória até depalavras faladas em termos visuais, como imagens na mente, os Suyá descrevem até mesmoum fenômeno visual, como um padrão de tecelagem que foi aprendido e lembrado, como seestivesse alojado no ouvido (Seeger 1975: 213-14). O sentido da visão no pensamento Suyá,pelo contrário, é associado a tendências moralmente delinqüentes e anti-sociais. Uma pessoaque possua poderes extraordinários de audição é um ideal de virtude; mas alguém com visão

    extraordinária é um bruxo. O bruxo vê tudo – seu mundo é transparente e não oferece barreirasà visão. “Ele pode olhar para cima e ver a aldeia dos mortos no céu; ele pode olhar para baixo

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    e ver os fogos das pessoas que vivem sob a terra; e pode olhar à sua volta e ver índios inimigosem suas próprias aldeias muito longe.” (1975:216). Em sua elaboração da audição como osentido moralmente superior, os Suyá parecem estabelecer “algum tipo de oposição entre visãoe virtude social” que, sugere Seeger, pode ter ressonâncias em outros lugares – até mesmo nastradições ocidentais (1975: 222).

    22 Os Umeda, como muitos outros povos de Papua Nova Guiné, habitam um ambiente defloresta densa e virtualmente intocada, no qual as coisas são visíveis apenas num curto

    alcance; normalmente poucas dezenas de metros. Tal ambiente, argumenta Gell, “impõe umareorganização da sensibilidade”, dando o lugar de honra à audição, junto ao olfato (Gell1995: 235). Assim, ao sair para caçar, os Umeda caminham com os olhos no chão, ouvindoa caça em vez de buscá-la com os olhos, já que é por seus sons que os animais anunciamsua existência e presença no mundo do caçador. Este não é um mundo de objetos visuaise espaciais pré-constituídos, mas, em vez disso, é apreendido dinamicamente. Não apenasanimais e plantas, mas também elementos da paisagem - como cadeias montanhosas, colinase charcos - são apreendidos em primeiro lugar como movimentos mais do que como formasestáticas. Alerta a esses movimentos, o corpo ressoa como uma caixa acústica e responde,similarmente, através de sua própria atividade de fala (1995: 240). Assim, o som da palavrafalada ecoa o movimento do ser ou elemento do ambiente ao qual ele corresponde, dando

    origem ao “iconismo fonológico” que, mostra Gell, é uma característica pronunciada da línguaUmeda. Por meio de sua fala, os Umeda não apontam e rotulam coisas no mundo “lá fora”,mas, continuamente, trazem o mundo à existência em torno de si ao mesmo tempo em que sãode contínuo trazidos à existência através de sua própria imersão num ambiente sonoro. MasGell vai mais além ao propor que a predominância da audição sobre a visão conduza a um“viés em direção à expressão da solidariedade para com os membros da comunidade” (1995:235). A cultura “auditiva” dos Umeda, afirma Gell, é uma “cultura da solidariedade”.

    A Antropologia dos Sentidos: Uma primeira crítica23 O que mais chama a atenção nos estudos descritos acima é que em todos os três há um

    contraste radical entre a audição e a visão em linhas que, como vimos, estão inseridas na

    tradição Ocidental. Entre os critérios de distinção, para recapitular, estão: que o som penetraenquanto a visão isola; que o que ouvimos são sons que enchem o espaço à nossa voltaenquanto o que vemos são objetos abstraídos ou 'recortados' do espaço diante de nós; que ocorpo responde ao som como uma cavidade ressonante e à luz como uma tela refletora; queo mundo auditivo é dinâmico e o mundo visual estático; que ouvir é participar enquanto veré observar à distância; que a audição é social enquanto a visão é associal ou individual; que aaudição é moralmente virtuosa enquanto a visão é intrinsecamente inconfiável; e, finalmente,que a audição é solidária enquanto a visão é indiferente ou, até, traiçoeira. Contudo, existemenigmas e inconsistências que sugerem que essas distinções podem refletir mais sobre as pré-concepções de analistas antropológicos do que sobre a própria experiência sensória dos povosentre os quais eles têm trabalhado. De fato, é difícil evitar a suspeita, levantada por Nadia

    Seremetakis (1994;124), de que a atribuição aos 'Outros' não-Ocidentais de sensibilidadesauditivas (bem como táteis e olfativas) aguçadas, os esteja levando a carregar o peso dasmodalidades sensoriais exiladas da estrutura sensória da modernidade Ocidental, por conta daatribuição de hegemonia à visão pelo Ocidente.

    24 Stoller, por exemplo, dedica um capítulo inteiro à defesa da necessidade dos antropólogostransformarem-se de 'espectadores em videntes'10 etnográficos por meio de uma abertura aomundo do outro, permitindo-se ser penetrado por ele. Ele está tão convencido, no entanto,de que "o 'olhar' espacializado de uma pessoa cria distância" que ele pode seguir seu próprioconselho somente por meio de aprender a ouvir, em vez de ver como fazem os Songhay(1989;120). Nisso, sua abordagem está inteiramente de acordo com a convenção de que paraatingir o conhecimento verdadeiro deve-se abandonar as ilusões da visão e ceder à orientaçãodo ouvido. O verdadeiro 'vidente' da tradição Ocidental é o profeta cego: nas palavras deSeeger, 'aquele que fisicamente não consegue ver' (1975;222). Contudo, pelo relato de Seeger,isso não acontece para os Suyá, dentre os quais o feiticeiro é certamente um vidente ao

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    invés de um espectador, apesar de um caráter moral indesejável. Pois a visão completa dofeiticeiro não vê o mundo pelo lado de fora, mas abre-o pelo lado de dentro. Uma inconsistênciaparecida, entre pré-concepções analíticas e experiência nativa, aparece no estudo de Gell sobreos Umeda. Tendo reafirmado a agora familiar proposição de que 'audição é (relativamente)íntima', concreta e tangível, enquanto a visão promove a abstração', ele avança dizendo-nos queos próprios Umeda 'tratam a visão... como um sentido de clímax com conotações de intimidadee perigo' (1995; 235,239, grifos meus). A intimidade da visão, para os Umeda, é encontrada

    no curto alcance, no olho-no-olho e seu perigo está ligado à possibilidade, sempre presente,de um ataque de feitiçaria. Um olhar furioso pode aterrorizar aquele a quem foi direcionado.Os Umeda, ao que parece, seriam os últimos a concordarem que a visão promove abstração!

    25 Comentando o caso dos Suyá, David Howes sugere que 'pode haver uma conexão entreauralidade e sociabilidade, por um lado, e visualidade e individualidade (ou uma "disposiçãoassocial") por outro'. Essa conexão, argumenta ele, pode até ser reformulada como uma leigeral: 'quanto mais uma sociedade der ênfase ao olho, menos comunal ela será; quanto maisela enfatizar o ouvido, menos individualista ela será'. (Howes 1991b: 177-8). Mais uma vez,no entanto, essa 'lei' apenas reproduz uma homologia entre duas dualidades: individual versussocial e visão versus audição, que tem sido por muito tempo axiomática da tradição Ocidental.E ela evita falar das diferenças fundamentais entre concepções Ocidentais e (por exemplo)

    Suyá, tanto do 'indivíduo associal' como da visão. O 'feiticeiro' Suyá não é, de maneira alguma,como Howes (1991b: 177) imagina, a contraparte do 'indivíduo' Ocidental. Para começar, avisão do feiticeiro penetra o mundo ao invés de capturar reflexos de suas superfícies exteriores;ademais, ele não se posiciona, como o faz a sociedade Ocidental, vis-à-vis os outros nasociedade, mas encarna em seu ser a negação ativa de socialidade como um princípio derelacionamento. Nesse sentido, o feiticeiro é mais anti-social do que associal.

    Como o feiticeiro Suyá, o xamã, entre os Inuit, possui poderes de visão extraordinários,embora possam ser usados tanto para fins benéficos quanto para fins prejudiciais. Tambémele é um vidente, ao invés de um espectador, cuja visão pode abrir caminhos para mundosparalelos de animais e espíritos. Na cosmologia dos Esquimós Yup'ik, de acordo com AnneFienup-Riordan, 'visão era um ato constituindo conhecimento e testemunhar era um ato

    potencialmente criativo' (1994: 316). O cosmos Esquimó transpira, fervilha, com olhos sempreatentos. Entre os Inuit, em geral, há uma associação estreita entre ver e caçar: é através desua visão clara e penetrante que o caçador prepara um encontro com o animal a ser caçadoque por sua vez é consumado com o fato do animal se oferecer de bom grado ao caçador(Oosten 1992: 130). Essas observações nos trazem de volta ao estudo seminal de Carpentersobre a experiência sensória dos Inuit. Por que é que Carpenter, face à evidência esmagadorada centralidade do olhar para a percepção dos Inuit de seu ambiente, insistia, ao contrário, emque para eles o olho é subserviente ao ouvido (Carpenter 1973:33)? Seria porque ele levou parao seu estudo uma noção preconcebida de visão, como analítica e reflexiva ao invés de ativae generativa (Schafer 1985;96), que era fundamentalmente incompatível com sua apreciaçãorefinada do potencial dinâmico e a topologia esférica do mundo vivo dos Inuit? E se, comosugere a etnografia Inuit, for perfeitamente possível combinar a percepção de um mundo vivodesse tipo com um 'ocularcentrismo' consumado –de um tipo, contudo, radicalmente diferentedaquele com o qual estamos familiarizados no Ocidente –, então como poderemos atribuirpor mais tempo tal percepção à predominância da audição sobre a visão no equilíbrio dossentidos?

    26 Lembre-se que é precisamente nesses termos que Gell relata a percepção dos Umeda emrelação aos animais, plantas e paisagens. A julgar pelas descrições de Gell e Carpenter,os paralelos entre os modos pelos quais os Umeda e os Inuit constituem seus mundos deexperiência são notavelmente próximos. Seus respectivos ambientes, no entanto, não poderiamser mais diferentes; a floresta tropical densa contra a tundra ártica e sem árvores. Não éde surpreender que, nessas condições, o caçador Umeda seja obrigado a depender dos seusouvidos, e o caçador Inuit de sua excelente visão. De fato, Carpenter admite que quando

    seus companheiros Inuit usavam seus olhos 'era, muitas vezes, com uma acuidade que mesurpreendia' (1973: 36). Porém, até o ponto no qual ele depende dos poderes da visão em vez

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    dos da audição, o caçador Inuit não vê, conseqüentemente, sua relação com o mundo virada doavesso. Ele permanece, como sua contraparte Umeda, no centro de um cosmos dinâmico, emmeio ao processo de sua regeneração perpétua. Os seres não lhe parecem a um tempo inertes ereificados, nem tampouco o caçador se sente mais um observador, ou menos um participante.

    27 Desta maneira, comparando o perfil sensório dos Inuit ou dos Umeda – ou, ainda, dos Songhayou Suyá - com o do Ocidente, fica claro que o que está em jogo não é a predominância davisão sobre a audição, mas o entendimento da própria visão. É evidente que a primazia da

    visão sobre a audição não pode ser usada para responder pela objetificação do mundo. Antes,o contrário; é através de sua cooptação a serviço de um projeto peculiarmente moderno deobjetificação que a visão tem sido reduzida à faculdade de reflexão pura e desinteressada, cujopapel é meramente o de entregar "coisas" à uma consciência transcendente. Mas enquantoo olho, como argumentou Theodor Adorno, precisou se acostumar à percepção da realidadedos objetos, (ou, mais especificamente, das commodities), o ouvido ficou para trás nessedesenvolvimento. Existe algo quase 'arcaico', diz Adorno, sobre a audição (Adorno 1981:99).  Uma das ironias da crítica contemporânea do visualismo é que ao clamar pela restauração daaudição a seu devido lugar na proporção dos sentidos, ela, na verdade, reproduz essa oposiçãoentre a audição e a visão e, com ela, um conceito de visão muito limitado e empobrecido para oqual seu alistamento no projeto da modernidade nos trouxe. Tendo estabelecido a visão como

    o instrumento principal do conhecimento objetivo e deixando a audição a flutuar nos camposprimordiais da emoção e do sentimento, sabemos o que significa ouvir som, mas perdemos,efetivamente, o contato com a experiência da luz. Para mostrar como isso se deu, voltar-me-ei, em seguida, a uma figura cujo pensamento é amplamente conhecido por ocupar um lugarcentral nessa transição - René Descartes.

    A Óptica de Descartes28 Descartes começa sua Óptica de 1637 declarando seu entusiasmo pelo telescópio. "Já que a

    visão", ele escreveu, "é o mais nobre e mais abrangente dos sentidos, invenções que servempara aumentar o seu poder estão sem dúvida entre as mais úteis que podem haver" (1988: 57). Eque invenção mais maravilhosa se poderia imaginar que o telescópio, que aumentou o poder da

    visão a ponto de abrir novos horizontes para a compreensão humana da natureza e do universo?Atribuindo à visão um lugar de honra entre os sentidos, Descartes estava seguindo os passosde uma longa linhagem de filósofos iniciada por Platão e Aristóteles11. Apesar das contínuasdúvidas referentes à confiabilidade da visão em oposição à audição, a superioridade tanto davisão quanto da audição sobre os chamados sentidos de "contato", que compreendiam o tato,o paladar e o olfato, nunca esteve em questão. Até aqui, não tenho nada a dizer sobre estesúltimos. Paladar e olfato levantam, por si mesmos, toda uma gama de problemas que estãoalém de minhas preocupações presentes, e, ainda que eu admita que eles deveriam ser incluídosem qualquer discussão da experiência sensorial humana que se pretendesse verdadeiramenteabrangente, não pretendo lidar mais com eles aqui. Mas não posso adiar algumas consideraçõessobre o tato. Pois nos tratamentos da percepção realizados pela tradição filosófica ocidental,

    foi sobretudo ao tato, e não à audição, que a visão foi comparada. E, nesse ponto, Descartesnão foi exceção. De fato, foi por uma analogia com o tato que ele escolheu introduzir osmecanismos da visão.

    29 Descartes nos convida a imaginar um homem que, cego de nascença, tem uma práticaconsiderável na arte de perceber, por meio de um bastão, os objetos em seu entorno e os queestão próximos de si. O que acontece é o seguinte: quando a ponta do bastão atinge um objeto(quer isso se deva ao movimento do bastão, do objeto ou de ambos), um impulso mecânicoé passado à mão e ,a partir daí, é registrado pela região do cérebro a partir da qual os nervosda mão se originam. Esses estímulos do cérebro, então, fornecem os dados acerca dos quais éfeito um ato mental de cálculo. Suponhamos, por exemplo, que o homem cego deseja julgar adistância de um objeto o qual ele toca ao mesmo tempo com dois bastões, um em cada mão.Conhecendo a distância entre suas mãos, bem como o ângulo formado por cada bastão coma linha que os conecta, é simples determinar quão distante do corpo está o objeto. Como opróprio Descartes observa, o trabalho mental de cálculo envolvido na estimativa da distância

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    exige "um tipo de raciocínio bastante similar àquele usado pelos exploradores quando medemlugares inacessíveis por meio de dois pontos de observação diferentes" (1988:67).

    30 A importância da analogia é que, para Descartes, isso equivale precisamente ao que acontecena visão. Tudo o que se tem que fazer é substituir raios de luz refletida por bastões, e osdois olhos por duas mãos12. Flutuações nos padrões de luz refletida que atingem os olhos,devido ao movimento de objetos no ambiente ou dos próprios olhos, são registradas nofundo da retina e, então, na parte do cérebro em que as fibras nervosas ópticas se originam.

    A mente - ou o que Descartes chama de alma (em francês, âme) -, então, trabalha comesses padrões de estímulo, o que resulta naquela consciência dos objetos que nos permitedizer que os "vemos". Em defesa de Descartes é importante reconhecer dois aspectos dessaformulação que são freqüentemente negligenciados. Em primeiro lugar, era claro para eleque a percepção - seja ela visual ou tátil - dependia do movimento. Se não houvesse nenhummovimento do corpo e de seus órgãos sensoriais em relação ao ambiente, nada seria percebido.Ironicamente, esse ponto se perdeu em grande parte da psicologia subseqüente da visão, apenaspara ser redescoberta por defensores de uma abordagem ecológica da percepção visual queadotam uma postura tipicamente anticartesiana. Retornarei a esse assunto posteriormente. Emsegundo lugar, Descartes não defendeu, como comumente se supõe, que a função dos olhosé estabelecer representações internas de objetos externos, que ficam, então, disponíveis para

    serem inspecionados pela mente. Na verdade, ele estava muito consciente do absurdo de terque colocar outro conjunto de olhos dentro do cérebro para ver a imagem interna. O que querque chegue ao cérebro e nos leve a ter consciência sensorial dos objetos não se assemelha maisaos objetos do que os movimentos do bastão do homem cego se assemelham aos objetos com

    os quais ele entra em contato (1988:64)13.31 Resta ainda o problema, no entanto, de que, para Descartes, o ato da percepção se divide

    naturalmente em dois estágios: o primeiro, que leva do encontro físico com um objeto a umpadrão de estímulo nervoso no cérebro, e o segundo, que leva desses impulsos nervosos a umaconsciência mental do objeto na linha de visão do perceptor. Em qual desses dois estágios,então, reside a essência da visão? A comparação com o tato sugere o primeiro. Assim, a visãoemprega olhos e raios de luz, enquanto o tato emprega mãos e bastões. Em uma passagem

    crítica de sua exposição, porém, Descartes muda seu ponto de apoio. Pois transparece que nãoé mais no funcionamento dos olhos que reside a essência da visão, mas, antes, nas operaçõesda mente sobre o que é levado a ela pelos sentidos. "É a alma que vê", ele declara, "e nãoo olho; e ela não vê diretamente, mas apenas por meio do cérebro" (1988:68). Inicialmenteintroduzida como um modo ativo da exploração do ambiente pelo corpo, a visão - como se diz-"vai para o lado de dentro", e por motivos de força maior tem que construir uma imagem domundo exterior com base nas informações recebidas via sistema nervoso. Essas informaçõesnem mesmo precisam ser recebidas exclusivamente por meio dos olhos. Como uma faculdadepuramente cognitiva, a visão também pode funcionar sobre os dados do tato. Equipado comum bastão, ou até mesmo com as mãos livres, o cego pode ver! Assim como pessoas dotadasde vista andando sem luz em uma noite escura como o breu (1988:58).

    32 Chegamos, assim, à extraordinária conclusão de que a visão, agora concebida como umaconquista exclusivamente intelectual, não está mais condicionada, de modo algum, pelaexperiência corpórea de habitar um mundo iluminado14. O papel da luz, sendo precisamenteequivalente ao do bastão de um homem cego, é o de causar uma transdução puramentemecânica. Não vemos a luz mais do que o homem cego vê seu bastão. Antes, vemos as coisaspor meio da luz e do bastão. Pois o que é registrado no cérebro na forma de padrões de estímulonervoso é informação - não a respeito da luz ou do bastão -, mas a respeito dos corpos noambiente, com os quais estes entram em contato, ou dos quais são defletidos. Uma vez queessa informação está no cérebro, no ponto em que a visão propriamente começa, a luz - comoo bastão - já fez seu trabalho e não tem mais efeito nos procedimentos em virtude dos quais operceptor "vê" o mundo se desdobrar diante dele. Nesse ponto, os olhos, que olham mas nãopodem ver, rendem-se ao "eu", o cogito cartesiano, que vê mas não pode olhar. Por intermédio

    da luz, meus olhos podem tocar o mundo e ser tocados por ele; mas eu não posso. Ainda assim,posso ver. É evidente, então, que a superioridade da visão sobre o tato não é a de um sentido

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    sobre outro, mas a da cognição sobre a sensação. É por isso que Descartes escolhe explicara visão tomando por exemplo o homem cego. Esse era seu modo de mostrar que a luz é, porsi mesma, incidental para a visão.

    Sobre o significado da luz33 Tudo isso, no entanto, ainda nos deixa com um quebra-cabeça. Se o poder da visão reside

    nas operações cognitivas da mente em vez de no trabalho físico dos olhos, então por que

    Descartes ficou tão animado com o telescópio, que certamente aumenta o poder dos olhos,mas não faz nada para assistir a mente? É a alma que vê, diz Descartes. Mas o telescópio,que não é um aparelho de computação, não ajuda a alma a ver! Se fossemos sustentar,pelo contrário, que o poder da visão reside, primeiramente, no trabalho dos olhos e não nasoperações da mente, então o telescópio poderia, sim, ser de alguma ajuda. Contudo, peloargumento de Descartes, não haveria razão para elevar o senso de visão acima do sentidodo tato. Se alguém pudesse, com toda equanimidade, substituir bastões por raios de luz, oque a visão teria, então, de tão especial? A ambivalência, no argumento de Descartes, entreo olho e a mente como o lócus primário da visão ou, em outras palavras, entre visão comoobservação corporal e especulação mental (Jay 1993a:29), nunca foi resolvida e permanececonosco até hoje. Ademais, tem se confundido, em nosso pensamento, com outro dilema,

    igualmente desconcertante, que diz respeito ao próprio significado da palavra ‘luz’. Essapalavra refere-se aos raios retilíneos que, refletidos na superfície das coisas, atingem o olho e,conseqüentemente, originam certas sensações? Ou será que seu significado está na experiênciasubjetiva que temos em conseqüência dessas sensações de uma luminosidade dentro da qualas coisas são apresentadas à consciência como ‘objetos visíveis’? Em suma: a luz brilha nomundo ou na mente?

    34 Essa questão não foi levantada pelos filósofos da antiguidade; pelo menos não dessa maneira.A física deles colocava a figura do homem senciente no centro do cosmos e cada capítulodesta física correspondia a uma área específica de sensação corporal. Um desses capítulosera a óptica, que tratava de como o conhecimento do mundo circundante podia ser obtidoatravés do olho. Luz, denotado pelo termo lux, era tanto a fonte de iluminação como o meio

    no qual esse conhecimento devia ser representado. Como tal, ela se originava do centro,com o homem, em vez de se originar da periferia cósmica. Mas a revolução Copernicanaderrotou essa cosmologia antropocêntrica. Até a primeira metade do século XVII, quandoDescartes escrevia, a humanidade havia sido relegada à periferia de um universo supostamentegovernado por princípios completamente indiferentes às sensibilidades humanas. A tarefa dafísica, agora, seria descobrir esses princípios. Entre eles, aqueles por meio do quais algumimpulso físico é propagado de modo a, juntamente com outros efeitos, estimular a reação dosolhos. Esse impulso veio a ser conhecido como lumen. Nesse momento, quando Descartes nosdiz que é a alma que vê sob a luz da razão, em vez de os olhos sob a luz do mundo físico,

    a luz à qual ele se refere é, claramente, a lux dos antigos – a luz que brilha na mente15. Masquando, ao longo da Óptica, ele diz o contrário, referindo-se à luz como raios refletidos que

    estimulam o olho, refere-se, evidentemente, ao lumen dos físicos. O paradoxo da Óptica é que,enquanto a visão ‘vai para dentro’, do mundo para a mente, a luz ‘vai para fora’, da mentepara o mundo. E como Descartes mostrou, essa luz externa – lúmen – é a única coisa que nãopodemos ver. O resultado é uma curiosa disjunção entre luz e visão: aquela do lado de fora,essa do lado de dentro, de uma interface entre a mente e o mundo. Em poucas palavras, a visãocomeça onde a luz termina.

    35 Embora mais de três séculos tenham se passado desde que Descartes escreveu, ainda nãoestamos esclarecidos em relação ao significado de luz. Da física contemporânea aprendemosque luz é uma forma de radiação que consiste em ondas ou fótons. Isso é entender luz no sentidode lumen. Ainda assim, a maioria das pessoas, de modo natural, continua a equiparar luz –como faziam os pensadores da antiguidade – com a lux que ilumina o mundo de sua percepção.Elas estão convencidas, no entanto, de que essa lux é o mesmo que o lumen dos físicos e,portanto, de que ela tem uma existência externa bastante independente de seus próprios olhos.Assim, diz-se que a luz viaja dos objetos externos para os olhos e que vemos por causa dela.

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    E mesmo que fechemos os olhos supomos que o ambiente permaneça iluminado, como estavaantes. Mas sabemos que, na verdade, o que quer que seja que atinge os olhos vindo do exterior(ondas, fótons), não vai além da parte de trás da retina. E a experiência que relatamos, a de ummundo iluminado, é aparentemente possível graças ao que acontece além daquele ponto, nosnervos ópticos e no cérebro. Então só há luz em conseqüência de um estímulo da superfícieda retina? Ela existe somente no lado de cá da visão? E, se sim, como podemos afirmar, aomesmo tempo, que a luz alcança os olhos de longe? A física teve a sua parte nessa confusão,

    ainda que na direção inversa. Pois, apesar de sua redefinição de uma fisiologia dos sentidospara uma ciência objetiva da natureza, ela continuou a descrever como ‘óptica’ aquele ramode estudo que lida com a luz e sua propagação, mesmo quando, na prática, ela nada tem aver com o olho.

    36 Vasco Ronchi, na introdução da sua Óptica, de 1957, ilustra esses problemas na concepção daluz desenhando um intrigante paralelismo com o som. O equivalente, nesse caso, da distinçãoentre lumen e lux é a distinção entre vibração mecânica no meio externo e o som queafirmamos ouvir quando nossos ouvidos são colocados dentro do seu campo de ação. Pordireito, não deveria haver tal coisa como a física do som. Pois como não há som sem umouvido e um cérebro, o estudo do som – isto é, a acústica – poderia ser empreendida somentepela combinação da física do movimento vibratório com a fisiologia do ouvido e a psicologia

    da percepção aural. No entanto, os físicos, ansiosos para reservar a acústica para si próprios enão se envolverem com o fenômeno subjetivo da mente e da percepção, persistem em igualaras vibrações que induzem no ouvinte uma experiência de som com o som em si, perpetuando,assim, o erro de que ‘o som é na verdade um fenômeno físico, e não mental’ (Ronchi 1957:17).E, então, todos ficam felizes em concordar com a ilusão de que o som realmente viaja peloar e é recebido como tal pelo ouvinte quando, na verdade, tudo o que alcança os ouvidos sãovibrações e não há som até que essas vibrações tenham se transformado em impulsos nervosose levadas à mente-cérebro.

    37 Se, todavia, realmente, não há som no mundo físico para além do cérebro, devemos concluirque esse mundo é silencioso? E, do mesmo modo, se, realmente, não existe lux no mundoexterno, devemos concluir que o mundo ‘lá fora’ é escuro? Essa é, de fato, a conclusão para aqual Ronchi se desloca. Nossa mente está cheia de som e luz mesmo se vibrações nem raiosas alcançam, enquanto o mundo vibrante e radiante é, na verdade, silencioso e escuro. Mas oque significa o silêncio em um mundo sem ouvidos, ou a escuridão em um mundo sem olhos?Questões sobre o significado da luz, bem como do som, são certamente mal formuladas se nosforçam a escolher entre considerar a luz e o som como um fenômeno físico ou mental. Elassão mal formuladas porque continuam a considerar os órgãos dos sentidos como portais entreum mundo externo e físico e um mundo interno da mente.

    38 Deste modo, Ronchi, como Descartes antes dele, pensa a visão como um processo que começacom o movimento em um mundo que, por meio da propagação de ondas ou partículas queporventura entram nos olhos, faz com que impulsos viajem pelo nervo óptico até o cérebro,terminando com esses impulsos sendo ‘passados para a mente’ que – com base na comparaçãocom a informação já em sua posse – ‘cria uma figura luminosa e colorida’ (Ronchi 1957;

    288). De acordo com essa idéia, uma fisiologia da visão pode nos dizer o que acontece no ladoafastado do ponto ‘de passagem’, e uma psicologia da visão pode nos dizer o que acontece nolado mais próximo. Nenhum dos dois relatos, no entanto, pode abarcar a própria ‘passagem’.Como os impulsos nervosos são passados para a mente – ou como eles ‘fazem cócegas’ naalma, como Descartes singularmente descreveu (1988:65) – permanece um mistério.

    39 Meu argumento é o de que não existe tal interface entre o olho e a mente. Longe de começarcomo radiação incidente e terminar como uma imagem mental, o processo da visão consiste emum processo interminável, um engajamento de mão dupla entre o perceptor e seu ambiente. Éisso que queremos dizer quando falamos de visão, coloquialmente, como ‘olhar’ ou ‘observar’.  E o que Ronchi apresenta como um ponto de passagem não é nada disso, mas um nexo críticonesse processo. É nesse nexo, em vez de no lado próximo ou afastado dele, que o fenômeno

    que conhecemos como ‘luz’ é gerado. Esse fenômeno não é o lumen externo e objetivo, nem olux interno e subjetivo. É antes um fenômeno de experiência daquele completo envolvimento

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    no mundo que é precondição necessária para o isolamento do observador como um sujeitocom uma ‘mente’ e do ambiente como um domínio de objetos a serem percebidos. Estabeleceresse entendimento do processo de visão e da natureza da luz será nossa próxima tarefa.

    Três pensadores do século vinte40 Com o objetivo de preparar o terreno para uma metafísica alternativa da visão, embarcarei,

    em seguida, em uma espécie de triangulação teórica. Farei isso por meio da avaliação das

    idéias de três pensadores de meados do século vinte, todos os quais têm coisas importantesa dizer sobre a visão e que são críticas, de um modo ou de outro, a Descartes. O primeiro,Hans Jonas, fez um grande esforço para estabelecer as diferenças entre visão, audição e tatoenquanto modalidades sensoriais. Para ele, a visão era, de fato, o sentido superior, não devidoà sua identificação com a razão, mas às suas propriedades fenomênicas peculiares. O segundo,James Gibson, rejeitou o modelo em dois estágios da percepção visual e, com ele, o dualismocartesiano clássico de corpo e mente. Gibson argumentou que a percepção é uma atividadenão da mente, a partir daquilo que os sentidos lhe oferecem, mas de todo o organismo em seucenário ambiental. A visão não é, portanto, indireta, como sustentava Descartes, mas direta.O terceiro, Maurice Merleau-Ponty, talvez tenha ido mais longe que qualquer outro pensadorrecente ao reconhecer que a visão não diz respeito apenas a ver coisas, mas é, crucialmente,

    uma experiência da luz. Recusando-se a estabelecer qualquer fronteira absoluta ou linha dedemarcação entre o perceptor e o percebido, Merleau-Ponty sustentou que a luz é equivalenteao que experienciamos, na visão, como uma abertura do corpo para o mundo.

    Hans Jonas41 O que torna a visão distinta, para Jonas, consiste em três propriedades que pertencem

    unicamente a essa modalidade sensorial, a saber: simultaneidade, neutralização e distância(Jonas, 1966: 136). A primeira se refere à habilidade de absorver o mundo com um olhar derelance, de modo que a diversidade que está presente toda de uma vez possa ser apreendidatoda de uma vez. Nem a audição nem o tato podem conseguir isso. Reiterando um ponto devista bem estabelecido, a que já nos referimos, Jonas argumenta que, enquanto podemos ver

    coisas, ouvimos sons e não as entidades cuja atividade dá origem a eles. Assim, ouvimos olatido, mas não o cachorro, cuja presença pode ser inferida apenas com base em informaçõesnão acústicas. E não há som que não esteja suspenso no correr do tempo. A duração do som queouvimos é a mesma que a do tempo em que o estamos ouvindo; o que se desenlaça no tempoé, também, apreendido no tempo. É verdade que sons distintos podem coexistir ou estarem justapostos, mas cada qual pertence a um entre vários “fios” que ocorrem concorrentemente,e não pode ser apreendido separadamente do fluxo temporal. Pare o fluxo e o que você teránão é um instantâneo coerente, mas uma coleção de fragmentos atômicos. O tato compartilhacom a audição essa qualidade da temporalidade, ao menos no que diz respeito ao perceptor.Ainda assim, diferentemente da audição, os dados do tato podem ser sintetizados de modoa revelar a presença estável dos objetos. Nesse sentido, o tato se aproxima mais da visão.

    Assim, até certo ponto, os cegos podem conseguir por meio de suas mãos aquilo que os queenxergam conseguem com seus olhos. Ainda assim, a diferença entre o tato e a visão continuaa ser fundamental. A descoberta de objetos pelo tato necessita de uma exploração ativa doambiente, o que exige movimento e toma tempo. Com a visão, tem-se apenas que abrir osolhos e o mundo está lá, já desdobrado como um terreno para qualquer exploração posterior.Somente com a visão, portanto, é que é possível distinguir ser de tornar-se e, a partir daí, teruma concepção de mudança. Para a audição e o tato, que podem conhecer o mundo somentepor meio do movimento da atividade perceptiva, não há mudança nem estase, apenas tornar-se (Jonas 1966: 136-45).

    42 A segunda propriedade da visão, que Jonas denomina de neutralização, consiste no desapegoentre o perceptor e o que é visto. Tocar algo exige uma ação de sua parte, à qual o objetoresponde de acordo com sua natureza. Escutar pressupõe uma ação da parte do objeto que gerao som, ao qual você responde de acordo com sua sensibilidade. Assim, na medida em que oequilíbrio da ação muda do sujeito (no tato) para o objeto (na audição), há, entre ambos, um

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    engajamento de um tipo que está inteiramente ausente no caso da visão. O objeto não precisade nada para ser visto, já que a fonte da luz pela qual ele é revelado está em outro lugar.E para ver o objeto, não precisamos assumir uma atitude em relação a ele. “Ao ver”, Jonasescreve, “o perceptor permanece inteiramente livre do envolvimento causal das coisas a serempercebidas” (1966:148). Assim, a visão é neutralizadora, já que revela o objeto simplesmentepelo que ele é. O que se perde em termos de uma compreensão intuitiva da conexão dascoisas é compensado por um ganho em termos de objetividade. Em vez de afetar o perceptor,

    como fazem o tato e a audição, a visão oferece ao perceptor uma imagem que, transmitidaao pensamento, pode ser manipulada à vontade, sem maiores conseqüências para o próprioobjeto. Mas precisamente por conta de sua neutralização, os objetos da visão são, em certosentido, “mudos”, já que eles não falam conosco ou se endereçam às preocupações humanasquando revelam sua presença (Jonas, 1966: 145-9).

    43 A terceira propriedade da visão, a distância espacial, é relativamente auto-evidente. Em umambiente livre de obstrução, podemos ver a uma grande distância. O tato não se estende alémdo alcance do corpo, aumentado, talvez, por bastões ou outras próteses desse tipo. O somvai além, mas tem limites, e é especialmente suscetível a distorções em suas margens. Alémdisso, quando ouço um som distante, ainda que eu possa ser capaz de estimar a direção ea distância de sua fonte em relação ao lugar em que me encontro, ainda não tenho idéia –

    unicamente pela informação acústica – do que está entre mim e o som. É peculiar à visão,por outro lado, revelar não apenas objetos distantes, mas também uma paisagem abrangente,que se estende do meu presente local até o horizonte. Eu poderia, então, enveredar por umatrilha que me levasse a qualquer um desses objetos com algum conhecimento anterior do queestivesse me esperando pelo caminho (Jonas 1966: 149-52). Ainda, em um apêndice, Jonasadiciona uma qualificação crucial a esse argumento. Como ele admite, então, a visão nuncarevelaria o mundo do modo como ela o faz, organizado em profundidade e se estendendopara longe de nós, se já não estivéssemos acostumados a nos mover através dele e, ao fazê-lo,incorporar suas características em estruturas de consciência tátil. O tato, em suma, confirmaa materialidade do visível. Daí a mobilidade do corpo ser um fator da própria constituição davisão e do mundo visto. À primeira vista, essa proposição parece estar em descompasso com a

    tese da simultaneidade da percepção visual, que afirma que o mundo pode ser apreendido porum relance a partir de um ponto fixo. A solução de Jonas para esse paradoxo é argumentar quesomos capazes de ver o mundo como um espetáculo, de uma posição de repouso, precisamenteporque o fazemos à luz da “experiência acumulada do movimento realizado” (1966: 154),resultante de uma história de atividades anteriores. Em resumo, a dinâmica do movimentocorporal estabelece a fundação essencial para a experiência estática da visão, mas não é, elamesma, parte dessa experiência (Jonas 1966: 152-6).

    James Gibson44 Gibson se discordaria fundamentalmente com relação a este último ponto. O Movimento, do

    modo como ele vê, é integral à visão tanto quanto ao tato; além disso, não há necessidade

    de um sentido ser validado por outro (Gibson 1966: 55). Não tentarei oferecer uma avaliaçãocompleta da abordagem ecológica que Gibson faz da percepção visual, dado que outros já ofizeram (Michaels e Carello, 1981, Reed 1988b). Entretanto, há três aspectos dessa abordagemque me interessa expor aqui. Primeiramente, explicarei de modo mais preciso o que Gibsonqueria dizer ao afirmar que a modalidade visual, assim como outras modalidades de percepção,é direta ao invés de indireta. Em segundo lugar, mostrarei como a concepção de Gibson dossentidos como sistemas perceptuais, e não como registros de experiência específicamenterelacionados a estímulos, torna as distinções entre visão, audição e tato muito menos clarasdo que estamos inclinados a pensar. Em terceiro lugar, pretendo explorar os argumentosespecíficos pelos quais Gibson nega que vemos a luz enquanto tal. Nesse ponto, sugiro, suasidéias ainda estão firmemente enraizadas na tradição cartesiana.

    45 Para Descartes, como devem se lembrar, a mente é incapaz de se misturar ao mundo. Trancadano confinamento do corpo, tudo que ela pode fazer é executar várias manobras de cálculo,com base em estímulos registrados no cérebro, de modo a construir uma representação mais

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    ou menos precisa do mundo exterior. Era isso que Descartes queria dizer quando descreveua percepção – seja ela visual ou tátil – como indireta. Gibson sustenta, pelo contrário, que apercepção é direta. Com isso, ele não quer dizer que ela pode, de algum modo, trespassar océrebro; qualquer sugestão desse tipo seria obviamente absurda. O que ele afirma é, antes,que deveríamos deixar de pensar na percepção como a atividade computacional de uma mentedentro de um corpo e vê-la, em vez disso, como uma atividade exploradora do organismodentro de seu ambiente. Como tal, ela não fornece imagens ou representações. É como se ela

    guiasse o organismo ao longo do avanço de seu projeto. O organismo preciso perceptualmenteé aquele cujos movimentos estão bem afinados e são sempre responsivos às perturbaçõesambientais. Por esse motivo, a percepção visual jamais pode ser desinteressada ou puramentecontemplativa, como afirmara Jonas. O que vemos é inseparável de como vemos; e comovemos é, sempre, dado em função da atividade prática na qual estamos presentementeengajados.

    46 Face a tudo isso, Gibson pareceria concordar com Descartes em que a visão e o tato sãomodos estritamente comparáveis de contato sensorial com o ambiente. “Em muitos aspectos”,escreve ele, “o sistema [háptico] funciona em paralelo com a visão” (1966: 134). Alémdisso, vimos que o ponto de vista de Gibson, segundo o qual a percepção de qualquer tipodepende do movimento do perceptor em relação à coisa percebida, também tem ressonâncias

    em Descartes. Por trás da aparente convergência, entretanto, suas respectivas posições sãodiametralmente opostas. Pois, no eixo de contraste que Jonas entalha entre a neutralização e oenvolvimento, e que para ele distingue visão e tato, a perspectiva cartesiana poria juntos tatoe visão do lado da neutralização, enquanto a perspectiva gibsoniana põe juntos visão e tato dolado do engajamento. Ou, para resumir:

    Tato Visão

    Descartes Neutralização Neutralização

    Jonas Engajamento Neutralização

    Gibson Engajamento Engajamento

    47 Seria errado, argumenta Gibson, pensar nos olhos, nos ouvidos ou nas superfícies sensíveis

    da pele simplesmente como loci para bancos de células receptoras que estão, por sua vez,vinculados a centros de projeção no cérebro. Em vez disso, eles devem ser entendidoscomo partes integrais de um corpo que está continuamente em movimento, ativamenteexplorando o ambiente na busca prática de sua vida no mundo. A visão, por exemplo, nãoé um efeito do estímulo de fotorreceptores na retina, aliado a processadores localizados nocórtex visual. Ela é, isso sim, uma conquista de um sistema que também abrange as ligaçõesneuromusculares que controlam o movimento e a orientação dos órgãos nos quais os receptoresestão localizados. Esses órgãos podem ser especificados em vários níveis de inclusividadecrescente. Assim, “o olho é parte de um órgão dual, um de um par de olhos móveis, e eles estãolocalizados em uma cabeça que pode virar e que está vinculada a um corpo que pode mover-se de um lugar para outro”. Juntos, esses órgãos compreendem o que Gibson denomina o

    sistema perceptual para a visão (Gibson 1979: 53, cf. 1966). Muito disso é compartilhado como sistema para a audição e com o sistema para o tato. A cabeça, por exemplo, é comum à visão eà audição; a ação de virar a cabeça de modo a equilibrar a entrada auditória do som emitido poruma fonte, fazendo com que chegue igualmente às duas orelhas, localizadas uma de cada lado,também vira os olhos, na frente, de modo que eles sejam orientados diretamente na direção dafonte. Como esse exemplo mostra, os sistemas perceptuais não apenas se imbricam em suasfunções, mas também se submetem a um sistema total de orientação corporal (Gibson 1966:4, 49-51; 1979 :245). Olhar, ouvir e tocar, portanto, não são atividades separadas; elas sãoapenas facetas diferentes da mesma atividade: a do organismo todo em seu ambiente.

    48 Por isso é que a idéia proposta por Jonas - segundo a qual tendo feito uma exploração exaustivado mundo por meio do movimento, dependendo apenas de um sentido, poderíamos, então,ficar inertes e absorvê-lo em um relance por meio dos olhos - não teria feito qualquer sentidopara Gibson. Isso por duas razões. Primeira, exploramos o mundo com nossos olhos abertos

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    (mesmo quando paramos de olhar ao redor); segunda, a visão não fornece um instantâneo, oumesmo uma série de instantâneos. Em vez disso, ela fornece uma apreciação dos objetos “detodos os lados”. Não vemos um objeto, assim como não o sentimos, de um único ponto devista. Em vez disso, “fazendo correr os olhos sobre ele” - do mesmo modo que poderíamospassar os dedos sobre ele na percepção tátil – descobrimos sua forma como o invólucro deum movimento, ou seja: da modulação contínua do arranjo de luz refletida que alcança osolhos. De fato, é porque a visão, como o tato, ocorre no tempo, ao longo do que Gibson

    chama de “trilha de observação” (1979: 197), que podemos ver aspectos de objetos que,em qualquer momento particular, podem estar escondidos por beiradas que os bloqueiam. E já que a informação oferecida pela operação de sistemas perceptuais é específica das coisasencontradas, e não do registro sensorial particular que é ativado, uma mudança no equilíbriodo estímulo – digamos, do tátil para o visual – pode causar diferenças pouco relevantes naquiloque é realmente percebido. É claro que as sensações da visão não são as mesmas que as dotato e da audição. Mas os “padrões no fluxo de som, de toque e de luz do ambiente”, queespecificam os objetos de nossa atenção, podem ser estritamente equivalentes (Gibson 1966:54-4; 1979: 243).

    49 Esse argumento implica um importante corolário. Pois, se o que vemos é delineado pelapadronização ou modulação da luz refletida à medida que ela é capturada pelos órgãos visuais

    em movimento, então, a única coisa que nunca veremos deve ser a própria luz. À questão “Detodas as coisas que, provavelmente, podem ser vistas, a luz é uma delas?”, Gibson respondecom uma negativa categórica (1979: 54). Em vez disso, diz ele que vemos coisas por meio daluz. Tendo em vista a atitude resolutamente anticartesiana de Gibson, essa conclusão – queestá completamente de acordo com o ponto de vista de Descartes sobre o assunto – parece algosurpreendente. De fato, ele admite estar perplexo com a questão de como certos fenômenosparecem anunciar sua presença diretamente, como a luz radiante, e não por meio da iluminaçãode suas superfícies (19066:220). Não é assim que percebemos uma fogueira flamejante, aluz de um lampião, o sol e a lua, um feixe de luz solar passando através das nuvens, umarco-íris, o brilho do sol refletido em uma superfície brilhante ou as cintilações da luz naágua? Intuitivamente, parece que em cada um desses casos a luz é o que realmente vemos.

    Ainda assim, para cada um deles, Gibson tem sua resposta: o fogo e o lampião são “objetosespecíficos e estão especificados dessa maneira”, do mesmo modo que os corpos celestes. Nãovemos realmente os feixes de luz solar, mas apenas partículas iluminadas no ar. Deslumbradospelo sol, o que realmente percebemos é “um fato sobre o corpo”, a saber, seu excessivoestímulo óptico, experienciado como um tipo de dor. Quanto aos arcos-íris, cintilações e outrascoisas do tipo, essas são “manifestações da luz, não a luz enquanto tal” (1979: 55).

    50 À medida, entretanto, que os exemplos aumentam em número, a defesa de Gibson se tornacada vez menos plausível. Em que sentido podemos, de modo aceitável, ver a chama comoum objeto? Ignorando o conhecimento da ciência e dos livros escolares, como serão o sol ea lua explicitados?16 No que diz respeito aos feixes de luz solar, o senso comum nos diz quevemos a luz por meio de partículas que pairam no ar, e não o contrário. Se o estímulo ópticoexcessivo causa dor, isso basta para fazer com que ele seja menos digno de ser consideradouma experiência da luz? E se o brilho fosse menos intenso e não causasse nenhum desconfortoconsiderável? Deixaríamos, então, de estar cientes dele? Finalmente, é difícil ver de quemaneira “manifestações da luz” podem ser distintas da “luz enquanto tal” sem recorrer anoções altamente redutivas do que realmente é a luz. De fato, é exatamente isso que Gibsonfaz. “Tudo que vemos”, insiste ele, “é o ambiente, ou fatos acerca do ambiente; nunca fótonsou energia radiante” (1979: 55, grifos meus). A “luz” de Gibson, em resumo, é o lúmen dafísica moderna17 Em nenhum momento ele pensa nela como qualquer coisa além de um tipode impulso energético, uma fonte de estímulo que, se excede um certo limiar faz com que ascélulas fotorreceptoras “entrem em chamas”. As sensações resultantes, insiste, não constituem,em si mesmas, a base para a percepção visual. Nenhuma quantidade de luz fará com quevejamos, a não ser que a luz seja estruturada por conta de seu reflexo em superfícies iluminadas

    no ambiente. Assim, a luz carrega a informação para a percepção, mas nunca é percebidaenquanto tal.

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    Maurice Merleau-Ponty51 É nesse ponto, sobretudo, que a psicologia ecológica de Gibson diverge da fenomenologia

    de Merleau-Ponty. Ainda que falem línguas intelectuais bem diferentes, há muito em comumentre o que Gibson e Merleau-Ponty têm a dizer. Para ambos, os sentidos existem não comoregistros distintos, cujas impressões separadas são combinadas apenas em níveis mais altosdo processo cognitivo, mas como aspectos do funcionamento do corpo todo em movimento,

    integrados na própria ação de seu envolvimento com o ambiente. Qualquer sentido, ao “sedirecionar” a um objeto particular de atenção, traz consigo as operações concordantes de todosos outros. Em sua Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty compara essa integração dossentidos em ação à colaboração dos olhos na visão binocular (1962: 230-3). Assim como aunidade do objeto da visão não é o resultado de algum “processo em terceira pessoa” queproduz uma imagem única a partir de duas imagens monoculares, mas é, antes, dada pelo modocomo os dois olhos “são usados como um único órgão por um único olhar”, a unidade de umacoisa enquanto “entidade inter-sensorial” não reside na fusão mental de imagens fundadas emdiferentes registros de sensação, mas na sinergia corporal dos sentidos em sua convergênciarumo a um objetivo comum. Assim, “meu olhar, meu tato e todos os meus outros sentidos são, juntos, os poderes de um mesmo corpo, integrado em uma mesma ação” (1962: 317-8). Emsuma, para Merleau-Ponty, assim como para Gibson, é em sua postura colaborativa em relaçãoàs feições do mundo, não em sua relação comum a centros de processamento na mente, queos sentidos são unidos.

    52 Assim como Gibson, Merleau-Ponty concebe o tato e a visão como modos comparáveis deenvolvimento sensorial com o ambiente. Isso não quer dizer que eles sejam equivalentes, já quecada um traz consigo “uma estrutura de ser que nunca pode ser exatamente transposta” (1962:225). É por isso que pessoas anteriormente cegas e cuja visão foi restaurada consideram,inicialmente, sua situação tão espantosa. A experiência tátil se revela um guia fraco para omundo visual; não porque ela seja relativamente empobrecida, mas porque o mundo tátil estáestruturado de modo diferente (1962: 222-4). Ainda assim, Merleau-Ponty admite que o olharvisual funciona como um “instrumento natural” de percepção, praticamente do mesmo modoque o bastão de um homem cego (1962: 153). A analogia, é claro, é extraída de Descartes.

    Ainda assim, em seu célebre ensaio “O Olho e o Espírito”, Merleau-Ponty a toma como oponto de partida para um ataque com força total a todo o programa cartesiano (Merleau-Ponty,1964a: 169-78). Sua objeção, entretanto, não é à comparação do olhar visual à sonda tátil,mas à idéia de que ambos estão atrelados ao projeto de construir represe