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Informativo 915-STF (20/09/2018) – Márcio André Lopes Cavalcante | 1 Informativo comentado: Informativo 915-STF Márcio André Lopes Cavalcante ÍNDICE DIREITO CONSTITUCIONAL HOMESCHOOLING Não é possível, atualmente, o homeschooling no Brasil. CNJ CNJ pode determinar que Tribunais de Justiça reduzam o adicional de férias dos magistrados para 1/3. DIREITO PENAL CRIMES FUNCIONAIS Diretor de organização social é considerado funcionário público por equiparação para fins penais. RACISMO Palestra proferida por Bolsonaro com críticas aos quilombolas e estrangeiros não configurou racismo. LEI DE DROGAS Atipicidade da importação de pequena quantidade de sementes de maconha. DIREITO CONSTITUCIONAL HOMESCHOOLING Não é possível, atualmente, o homeschooling no Brasil Importante!!! Não é possível, atualmente, o ensino domiciliar (homeschooling) como meio lícito de cumprimento, pela família, do dever de prover educação. Não há, na CF/88, uma vedação absoluta ao ensino domiciliar. A CF/88, apesar de não o prever expressamente, não proíbe o ensino domiciliar. No entanto, o ensino domiciliar não pode ser atualmente exercido porque não há legislação que regulamente os preceitos e as regras aplicáveis a essa modalidade de ensino. Assim, o ensino domiciliar somente pode ser implementado no Brasil após uma regulamentação por meio de lei na qual sejam previstos mecanismos de avaliação e fiscalização, devendo essa lei respeitar os mandamentos constitucionais que tratam sobre educação. STF. Plenário. RE 888815/RS, rel. orig. Min. Roberto Barroso, red. p/ o acórdão Min. Alexandre de Moraes, julgado em 12/9/2018 (repercussão geral) (Info 915).

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Informativo 915-STF (20/09/2018) – Márcio André Lopes Cavalcante | 1

Informativo comentado: Informativo 915-STF

Márcio André Lopes Cavalcante

ÍNDICE DIREITO CONSTITUCIONAL

HOMESCHOOLING Não é possível, atualmente, o homeschooling no Brasil. CNJ CNJ pode determinar que Tribunais de Justiça reduzam o adicional de férias dos magistrados para 1/3.

DIREITO PENAL

CRIMES FUNCIONAIS Diretor de organização social é considerado funcionário público por equiparação para fins penais. RACISMO Palestra proferida por Bolsonaro com críticas aos quilombolas e estrangeiros não configurou racismo. LEI DE DROGAS Atipicidade da importação de pequena quantidade de sementes de maconha.

DIREITO CONSTITUCIONAL

HOMESCHOOLING Não é possível, atualmente, o homeschooling no Brasil

Importante!!!

Não é possível, atualmente, o ensino domiciliar (homeschooling) como meio lícito de cumprimento, pela família, do dever de prover educação.

Não há, na CF/88, uma vedação absoluta ao ensino domiciliar. A CF/88, apesar de não o prever expressamente, não proíbe o ensino domiciliar.

No entanto, o ensino domiciliar não pode ser atualmente exercido porque não há legislação que regulamente os preceitos e as regras aplicáveis a essa modalidade de ensino.

Assim, o ensino domiciliar somente pode ser implementado no Brasil após uma regulamentação por meio de lei na qual sejam previstos mecanismos de avaliação e fiscalização, devendo essa lei respeitar os mandamentos constitucionais que tratam sobre educação.

STF. Plenário. RE 888815/RS, rel. orig. Min. Roberto Barroso, red. p/ o acórdão Min. Alexandre de Moraes, julgado em 12/9/2018 (repercussão geral) (Info 915).

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O que é “homeschooling”? O homeschooling consiste na prática por meio da qual os pais ou responsáveis pela criança ou adolescente assumem a obrigação pela sua escolarização formal e deixam de delegá-la às instituições oficiais de ensino. Assim, em vez de a criança ou do adolescente estudar em uma escola, estudará em sua própria casa, sendo os ensinamentos ministrados pelos pais ou por pessoas por eles escolhidas. Sinônimos O homeschooling é uma palavra de origem inglesa e a sua tradução seria algo como “educação em casa”, “ensino doméstico” ou “ensino domiciliar”. No entanto, se aprofundarmos mais o estudo sobre o tema, veremos que o homeschooling é uma das espécies de ensino domiciliar. “Homeschooling” no mundo O homeschooling é permitido em vários países do mundo, como, por exemplo, nos Estados Unidos, Canadá, Portugal, França, Itália, Bélgica, Áustria, Noruega, Austrália, Nova Zelândia, Rússia. Em geral, tais países exigem que o aluno que está em homeschooling faça uma prova anual para avaliação de seu nível escolar. Por outro lado, o ensino domiciliar é expressamente proibido em países como a Alemanha e a Suécia. Por que alguns pais preferem o “homeschooling”? Existem vários motivos pelos quais os pais ou responsáveis optam pelo ensino domiciliar. Podemos listar alguns mais comuns: • medo de que os filhos se envolvam com alguns “riscos” do ambiente escolar, tais como violência, exposição a drogas, bullying etc; • os pais possuem rígidos valores religiosos, morais ou ideológicos e entendem que não há escolas disponíveis que possam transmitir esses mesmos valores para seus filhos; • os pais entendem que os métodos de ensino formais são ultrapassados ou inadequados; • os pais desejam que seus filhos aprendam em um ritmo mais rápido do que aquele oferecido com a grade escolar tradicional; • os pais se mudam constantemente e desejam ter uma maior flexibilidade, evitando mudanças constantes de colégios. Polêmica O homeschooling gera intensos debates. Seus defensores sustentam que o Estado não deve se imiscuir na decisão de como os pais irão educar seus filhos. Em outras palavras, a forma como os filhos serão educados deve ser uma decisão dos pais, não havendo motivo para ingerência estatal. Os partidários do homeschooling invocam dois importantes documentos internacionais como fundamento normativo para esta prática:

Declaração Universal dos Direitos Humanos Artigo 26° (...) 3. Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o gênero de educação a dar aos filhos

Convenção Americana sobre Direitos Humanos (“Pacto de São José da Costa Rica”) Artigo 12. Liberdade de consciência e de religião (...) 4. Os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções.

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Por outro lado, aqueles que criticam o modelo afirmam que o homeschooling pode trazer danos psicológicos às crianças e adolescentes, especialmente em virtude da falta de socialização com outras pessoas da mesma idade. Espécies de ensino domiciliar Frequentemente, a palavra homeschooling é utilizada como sendo sinônima de ensino domiciliar. No entanto, o Min. Alexandre de Moraes, no julgamento do RE 888815/RS, afirma que existem quatro espécies principais de ensino domiciliar: a) a desescolarização radical; b) a desescolarização moderada; c) o ensino domiciliar puro; d) o homeschooling (ensino domiciliar utilitarista ou por conveniência circunstancial). Assim, o homeschooling não se confunde com a desescolarização (chamada de unschooling). No homeschooling a criança ou adolescente aprende na sua casa as matérias que os demais estudam na escola. Isso é feito por causa de um dos objetivos acima explicados ou por uma conveniência circunstancial dos pais ou do aluno. Por outro lado, o unschooling, também chamado de “desescolarização”, é a escolha feita pelos pais no sentido de que o filho não deve receber qualquer tipo de escolarização a fim de permitir que ele decida, no futuro, o próprio destino. Conforme explica Manoel Morais de O. Neto Alexandre:

“Não devemos confundir o objeto do presente estudo com o fenômeno do unschooling, que nega a instituição escolar e coloca a própria criança como agente diretivo do aprendizado, escolhendo o que estudar, quando estudar e até mesmo se quer estudar. O homeschooling, por sua vez, não nega os currículos escolares e, na sua vertente majoritária, deseja que as crianças e adolescentes possam receber educação em casa, mas em parceria com as instituições do Estado, tanto na autorização do processo, quanto na avaliação do aprendizado.” (Disponível em http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/estudos-e-notas-tecnicas/publicacoes-da-consultoria-legislativa/areas-da-conle/tema11/2016-14308_quem-tem-medo-de-homeschooling_manoel-morais)

O ensino domiciliar é permitido no Brasil? Atualmente, não. Mas a CF/88 proíbe o ensino domiciliar? O Ministro Alexandre de Moraes explicou que a CF/88 veda três das quatro espécies mais conhecidas do ensino domiciliar: a desescolarização radical, a moderada e o ensino domiciliar puro. Isso porque elas afastam completamente o Estado do seu dever de participar da educação. De outra banda, a CF/88 não proíbe o homeschooling, ou seja, o ensino domiciliar utilitarista ou por conveniência circunstancial. Essa modalidade pode ser estabelecida pelo Congresso Nacional. CF/88 não proíbe, de forma absoluta, o “homeschooling” Não existe, na CF/88, uma vedação absoluta ao ensino domiciliar. A CF/88, apesar de não prever expressamente, não proíbe o ensino domiciliar. Ao se analisar os dispositivos da Constituição Federal que tratam sobre a família, criança, adolescente e jovem (arts. 226, 227 e 229) em conjunto com os que cuidam da educação (arts. 205, 206 e 208) não se encontra uma proibição dessa forma de educação.

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Mas, então, por que o “homeschooling” atualmente não é permitido? Porque falta a edição de uma lei que o regulamente. O STF decidiu que o ensino domiciliar somente pode ser implementado no Brasil após uma regulamentação por meio de lei na qual sejam previstos mecanismos de avaliação e fiscalização, devendo essa lei respeitar os mandamentos constitucionais, especialmente o art. 208, § 3º, da CF/88:

Art. 208 (...) § 3º Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola.

Nesse sentido, é necessário que a lei que venha a regulamentar o ensino domiciliar prescreva, dentre outros pontos, o que será essa “frequência”. Desse modo, para o STF, o homeschooling (o ensino domiciliar utilitarista ou por conveniência circunstancial), atualmente, não é permitido por falta de regulamentação legal. No entanto, como a CF/88 não o proíbe, é possível que o Congresso Nacional edite uma lei disciplinando o tema, respeitados os dispositivos constitucionais relacionados com a educação. Requisitos exigidos pela CF/88 para o ensino A Constituição estabelece princípios, preceitos e regras aplicáveis ao ensino. Isso vale para o Estado e para a família. Assim, independentemente do ensino a ser trilhado, a CF/88 exige alguns requisitos inafastáveis: a) a necessidade de ensino básico obrigatório entre quatro e dezessete anos (art. 208, I); b) a existência de núcleo mínimo curricular (art. 210); c) a observância de convivência familiar e comunitária (art. 227); Em suma, o STF decidiu que:

Não é possível, atualmente, o ensino domiciliar (homeschooling) como meio lícito de cumprimento, pela família, do dever de prover educação. Não há, na CF/88, uma vedação absoluta ao ensino domiciliar. A CF/88, apesar de não o prever expressamente, não proíbe o ensino domiciliar. No entanto, o ensino domiciliar não pode ser atualmente exercido porque não há legislação que regulamente os preceitos e as regras aplicáveis a essa modalidade de ensino. Assim, o ensino domiciliar somente pode ser implementado no Brasil após uma regulamentação por meio de lei na qual sejam previstos mecanismos de avaliação e fiscalização, devendo essa lei respeitar os mandamentos constitucionais que tratam sobre educação. STF. Plenário. RE 888815/RS, rel. orig. Min. Roberto Barroso, red. p/ o acórdão Min. Alexandre de Moraes, julgado em 12/9/2018 (repercussão geral) (Info 915).

E se, atualmente, os pais adotarem o “homeschooling”, o que pode acontecer? Tais pais ou responsáveis poderão ser responsabilizados civil e até mesmo criminalmente. Isso porque o ordenamento jurídico, atualmente, obriga que os pais matriculem seus filhos menores nas escolas de educação formal. Veja:

Código Civil Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: I – dirigir-lhes a criação e a educação;

Lei nº 8.096/90 (ECA)

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Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais. (...) Art. 55. Os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino. (...) Art. 56. Os dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental comunicarão ao Conselho Tutelar os casos de: II - reiteração de faltas injustificadas e de evasão escolar, esgotados os recursos escolares; (...) Art. 129. São medidas aplicáveis aos pais ou responsável: V - obrigação de matricular o filho ou pupilo e acompanhar sua freqüência e aproveitamento escolar; (...) Art. 249. Descumprir, dolosa ou culposamente, os deveres inerentes ao poder familiar ou decorrente de tutela ou guarda, bem assim determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar: Pena - multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.

Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) Art. 6º É dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das crianças na educação básica a partir dos 4 (quatro) anos de idade.

Como o homeschooling atualmente não é permitido, há quem defenda que os pais que o praticam cometem o crime de abandono intelectual, tipificado no art. 246 do Código Penal:

Abandono intelectual Art. 246 - Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar: Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa.

Para Damásio de Jesus, não há crime: Educação domiciliar constitui crime? Jornal Carta Forense, 1º abr. 2010. Por outro lado, Cleber Masson entende que o homeschooling, enquanto não houver disciplina legal sobre o assunto, configura o delito do art. 246 do CP (Direito Penal. São Paulo: Método, 2018, p. 215).

CNJ CNJ pode determinar que Tribunais de Justiça reduzam

o adicional de férias dos magistrados para 1/3

O CNJ não pode fazer controle de constitucionalidade de lei ou ato normativo de forma a substituir a competência do STF.

Contudo, o CNJ pode determinar a correção de ato do Tribunal local que, embora respaldado por legislação estadual, se distancie do entendimento do STF.

Assim, o CNJ pode afirmar que determinada lei ou ato normativo é inconstitucional se esse entendimento já estiver pacificado no STF. Isso porque, neste caso, o CNJ estará apenas aplicando uma jurisprudência, um entendimento já pacífico.

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As leis estaduais que preveem abono de férias aos magistrados em percentual superior a 1/3 são inconstitucionais. Isso porque essa majoração do percentual de férias não encontra respaldo na LOMAN, que prevê, de forma taxativa, as vantagens conferidas aos magistrados, sendo essa a Lei que deve tratar do regime jurídico da magistratura, por força do art. 93 da CF/88.

Logo, o CNJ agiu corretamente ao determinar aos Tribunais de Justiça que pagam adicional de férias superior a 1/3 que eles enviem projetos de lei para as Assembleias Legislativas reduzindo esse percentual.

STF. 2ª Turma. MS 31667 AgR/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 11/9/2018 (Info 915).

Adicional de férias Quando um Juiz tira férias, ele recebe, naquele mês, seu subsídio normal, acrescido de 1/3. Ex: imaginemos que o subsídio normal do Juiz é R$ 30 mil; no mês de suas férias ele receberá R$ 40 mil = 30 + 1/3 (10). Trata-se do “adicional de férias” (também chamado de “terço de férias” ou “abono de férias”), previsto na própria CF/88 não apenas para os Juízes como também para todos os demais servidores e trabalhadores em geral:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...) XVII - gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal;

Art. 39 (...) § 3º Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir.

Leis estaduais prevendo adicional de 2/3 Algumas leis estaduais passaram a prever que os Juízes de Direito e Desembargadores dos Tribunais de Justiça teriam direito ao abono de férias no percentual de 2/3. Assim, a cada período de férias, os magistrados estaduais receberiam o subsídio acrescido de 2/3. Um exemplo dessa situação ocorria no Estado do Amapá. A LC estadual 74/2012 determinou o seguinte: “Nos períodos de férias, os Magistrados farão jus ao adicional de dois terços de subsídio do mês concessivo, pago antecipadamente.” Procedimento administrativo do CNJ Ao tomar conhecimento deste fato, o CNJ instaurou, de ofício, procedimento administrativo e determinou a intimação dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal solicitando informações sobre o quanto era pago a título de adicional de férias aos magistrados. De posse desses dados, o CNJ identificou os Tribunais de Justiça nos quais se pagava mais que 1/3 por férias e expediu uma determinação a eles mandando que enviassem projetos de lei para as Assembleias Legislativas fixando o adicional de férias em apenas 1/3. Assim, tomando o exemplo do Estado do AP, o CNJ determinou que o TJ/AP enviasse um projeto de lei à ALE/AP prevendo o retorno do adicional de férias dos magistrados para 1/3 (e não mais 2/3, como estipulava a LC 74/2012).

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Mandado de segurança A Associação de Magistrados Brasileiros (AMB) impetrou, no STF, mandado de segurança contra a determinação do CNJ. Segundo a AMB, o CNJ teria realizado um controle de constitucionalidade das leis estaduais, o que não é de competência do Conselho. Além disso, o CNJ estaria invadindo a competência dos Tribunais de Justiça insculpida no art. 96, II, “b”, além do princípio do autogoverno da Justiça estadual, previsto no art. 125, ambos da CF/88:

Art. 96. Compete privativamente: II - ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores e aos Tribunais de Justiça propor ao Poder Legislativo respectivo, observado o disposto no art. 169: (...) a) a alteração do número de membros dos tribunais inferiores; b) a criação e a extinção de cargos e a remuneração dos seus serviços auxiliares e dos juízos que lhes forem vinculados, bem como a fixação do subsídio de seus membros e dos juízes, inclusive dos tribunais inferiores, onde houver;

Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.

Segundo a autora, o máximo que o CNJ poderia fazer seria “recomendar” aos Tribunais a edição da lei que entendesse necessária, desde que preservada a autonomia própria de cada Corte para deflagrar, a seu próprio juízo e conveniência, o processo legislativo de sua iniciativa privada. O STF concordou com o MS impetrado? A segurança foi concedida? O ato do CNJ é ilegal? NÃO. A decisão do CNJ foi mantida pelo STF. Vamos entender. CNJ não pode fazer controle de constitucionalidade Em primeiro lugar, deve-se esclarecer que o CNJ não pode, realmente, fazer controle de constitucionalidade de lei ou ato normativo:

O Conselho Nacional de Justiça, embora seja órgão do Poder Judiciário, nos termos do art. 103-B, § 4º, II, da Constituição Federal, possui, tão somente, atribuições de natureza administrativa e, nesse sentido, não lhe é permitido apreciar a constitucionalidade dos atos administrativos, mas somente sua legalidade. STF. Plenário. MS 28872 AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 24/02/2011.

CNJ pode, contudo, corrigir ato de Tribunal que não esteja de acordo com o entendimento do STF O CNJ não pode fazer controle de constitucionalidade, mas pode determinar a correção de ato do Tribunal local que, embora respaldado por legislação estadual, se distancie do entendimento do STF. Em outras palavras, o CNJ pode determinar que o TJ corrija algum ato seu mesmo que ele tenha agido com base em lei estadual, caso esta norma esteja em confronto com a jurisprudência do STF. Assim, o CNJ pode afirmar que determinada lei ou ato normativo é inconstitucional se esse entendimento já estiver pacificado no STF. Isso porque, neste caso, o CNJ estará apenas aplicando uma jurisprudência, um entendimento já pacífico. Nesse sentido:

(...) 5. Não é vedado ao CNJ controlar a atuação administrativa de Tribunal de Justiça local que, respaldado em lei estadual, se distancie da interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal aos preceitos constitucionais e legais que regem a matéria. (...) 6. A deliberação do CNJ que deixa de aplicar lei estadual anterior à Constituição que conflite com o regime remuneratório da magistratura regulado pelo art. 39, § 4º, da Constituição e com a LOMAN decorre do exercício direto da competência que lhe foi constitucionalmente atribuída, de zelar pela legalidade da

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atuação administrativa de membros e órgãos do Poder Judiciário, nos termos da jurisprudência consolidada desta Corte. (...) STF. 2ª Turma. MS 27935 AgR, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 21/08/2017.

“O CNJ não exorbita de sua competência constitucional ao simplesmente cumprir reiterada jurisprudência desta Corte.” (STF. 2ª Turma. ACO 2143 ED, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 25/08/2017). Ok, isso eu entendi. Mas, essas leis estaduais que estabelecem adicionais superiores a 1/3 aos magistrados são inconstitucionais? Por quê? As vantagens conferidas aos magistrados são apenas aquelas previstas na Constituição Federal e no art. 65 da LOMAN (LC 35/79). O § 2º do art. 65 reforça, inclusive, essa conclusão:

Art. 65 (...) § 2º É vedada a concessão de adicionais ou vantagens pecuniárias não previstas na presente Lei, bem como em bases e limites superiores aos nela fixados.

O STF possui julgados nesse sentido:

(...) O Supremo Tribunal Federal, presente esse contexto normativo, tem proclamado que o rol inscrito no art. 65 da LOMAN reveste-se de taxatividade, encerrando, por isso mesmo, no que se refere às vantagens pecuniárias titularizáveis por quaisquer magistrados, verdadeiro “numerus clausus”, a significar, desse modo, que não se legitima a percepção, pelos juízes, de qualquer outra vantagem pecuniária que não se ache expressamente relacionada na norma legal em questão. Precedentes. STF. 2ª Turma. AO 820 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 07/10/2003.

(...) O rol taxativo do art. 65 da LOMAN não prevê a concessão de auxílio-transporte aos magistrados nacionais, tendo vedado, em seu parágrafo 2º, a concessão de adicionais ou vantagens pecuniárias nele não previstos. (...) STF. 2ª Turma. MS 27935 AgR, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 21/08/2017.

Assim, o STF entende que a lei estadual (aliás, nem mesmo a Constituição Estadual) pode se contrapor às previsões da LOMAN. Dessa forma, a majoração do percentual de férias sem previsão na LOMAN contraria a jurisprudência consolidada do STF. Em suma:

O CNJ, ao determinar aos Tribunais de Justiça que enviem projetos de lei para adequar as normas estaduais que tratam acerca do adicional de férias pago aos magistrados ao previsto na Constituição Federal e na LOMAN, não extrapolou das suas atribuições. Isso porque simplesmente aplicou o entendimento do STF a respeito da matéria. STF. 2ª Turma. MS 31667 AgR/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 11/9/2018 (Info 915).

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DIREITO PENAL

CRIMES FUNCIONAIS Diretor de organização social é considerado funcionário público por equiparação para fins penais

Importante!!!

O diretor de organização social pode ser considerado funcionário público por equiparação para fins penais (art. 327, § 1º do CP). Isso porque as organizações sociais que celebram contratos de gestão com o Poder Público devem ser consideradas “entidades paraestatais”, nos termos do art. 327, § 1º do CP.

STF. 1ª Turma. HC 138484/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 11/9/2018 (Info 915).

ORGANIZAÇÕES SOCIAIS

O que são as organizações sociais? São pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, prestadoras de atividades de interesse público e que, por terem preenchido determinados requisitos previstos na Lei nº 9.637/98, recebem a qualificação (título, selo) de “organização social”. A pessoa jurídica, depois de obter esse título de “organização social”, poderá celebrar com o Poder Público um instrumento chamado de “contrato de gestão” por meio do qual receberá incentivos públicos para continuar realizando suas atividades. As regras relacionadas com as organizações sociais estão previstas na Lei nº 9.637/98. Veja o que diz o art. 1º:

Art. 1º O Poder Executivo poderá qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde, atendidos aos requisitos previstos nesta Lei.

Quem concede a qualificação de OS? O Ministro do Planejamento em conjunto com o Ministro da área na qual atua a pessoa jurídica que pretende a qualificação de OS. Ex: se essa pessoa jurídica desempenha funções na área de educação, quem concederá será o Ministro da Educação em conjunto com o Ministro do Planejamento. O que é o contrato de gestão? Contrato de gestão é o instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como organização social, com o objetivo de que, a partir daí, seja formada uma parceria entre eles para fomento e execução das atividades que uma OS faz (ensino, pesquisa científica etc.). No contrato de gestão serão listadas as atribuições, responsabilidades e obrigações do Poder Público e da organização social. O contrato de gestão deve ser submetido ao Ministro de Estado da área correspondente à atividade fomentada. Ex: se a OS desenvolve atividades de saúde, quem aprovará o contrato será o Ministro da Saúde. Obs.1: apesar de a lei dizer que esse ajuste é um “contrato”, a doutrina critica a nomenclatura e afirma que, na verdade, o melhor seria chamá-lo de convênio, termo de colaboração ou termo de fomento. Isso porque no contrato existem interesses opostos e, nessa relação da OS com o Poder Público, os objetivos são os mesmos, são convergentes. Obs.2: os responsáveis pela fiscalização do contrato de gestão, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade na utilização de recursos ou bens de origem pública por organização social, deverão comunicar o Tribunal de Contas da União, sob pena de responsabilidade solidária.

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Informativo 915-STF (20/09/2018) – Márcio André Lopes Cavalcante | 10

As organizações sociais que celebrarem contrato de gestão com o Poder Público passam a ser consideradas entidades da Administração Pública? NÃO. Mesmo tendo celebrado contrato de gestão, continuam sendo entidades paraestatais (não estatais). As organizações sociais que celebrarem contrato de gestão com o Poder Público podem ser consideradas delegatárias de serviços públicos? NÃO. As organizações sociais exercem, em nome próprio, serviços públicos, mas não são consideradas delegatárias, tendo em vista que não recebem uma concessão ou permissão de serviço do Poder Público. Os setores de saúde, educação, cultura, desporto e lazer, ciência e tecnologia e meio ambiente são classificados como serviços públicos sociais. Segundo a CF/88, tais serviços devem ser desempenhados não apenas pelo Estado, como também pela sociedade (são “deveres do Estado e da Sociedade”). Assim, é permitida a atuação, por direito próprio, dos particulares, sem que para tanto seja necessária a delegação pelo Poder Público. Não se aplica, portanto, o art. 175, “caput”, da CF/88 às atividades desenvolvidas pelas organizações sociais. Quais são os incentivos que uma OS recebe do Poder Público? As organizações sociais poderão receber os seguintes incentivos para cumprir o contrato de gestão: a) Recursos orçamentários: podem receber “dinheiro público”; b) Cessão de bens públicos, mediante permissão de uso, dispensada licitação: podem receber, sem licitação, bens públicos para serem usados em suas atividades; c) Cessão especial de servidor, com ônus para o órgão de origem do servidor cedido: servidores públicos podem ser colocados à disposição das organizações sociais para lá trabalharem, continuando recebendo sua remuneração dos cofres públicos; d) Contratadas sem licitação: as organizações sociais podem ser contratadas, com dispensa de licitação, para prestarem serviço a órgãos e entidades da Administração Pública, recebendo por isso (art. 24, XXIV, da Lei nº 8.666/93). Desse modo, quando a Administração contratar serviços a serem prestados pelas organizações sociais, está dispensada de realizar licitação, desde que aquela atividade esteja prevista no contrato de gestão. CONCEITO DE FUNCIONÁRIO PÚBLICO PARA EFEITOS PENAIS

O Código Penal prevê diversos crimes que são praticados por “funcionários públicos” contra a Administração em geral (arts. 312 a 326). Repare que o CP utilizou a nomenclatura “funcionário público” e não “servidor público” ou “agente público”, expressões que são atualmente preferidas pelo Direito Administrativo. A fim de que não houvesse muita dúvida sobre o que é funcionário público, o Código Penal resolveu conceituar essa expressão no art. 327. No caput, há o conceito padrão de funcionário público e, no § 1º, o chamado “funcionário público por equiparação”:

Funcionário público Art. 327. Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública. § 1º Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública. (...)

Imagine agora a seguinte situação hipotética: O “Instituto de Solidariedade” é uma organização social que celebrou contrato de gestão com a Administração Pública do Distrito Federal.

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João é diretor do Instituto de Solidariedade. A referida organização social recebeu R$ 300 mil do Governo do DF para prestar serviços de assistência social a pessoas carentes. Ocorre que João desviou parte dessa quantia em proveito próprio. Diante disso, o Ministério Público denunciou o agente pela prática de peculato-desvio, delito tipificado no art. 312 do CP:

Art. 312. Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio: Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa.

Segundo o Parquet, João deveria ser considerado funcionário público por equiparação, nos termos do art. 327, § 1º do CP. A defesa do réu refutou essa afirmação e alegou que João não poderia ser enquadrado no art. 327, § 1º, porque ele era diretor em um instituto que possui natureza jurídica de “organização social” e as organizações sociais não fazem parte da Administração Pública nem podem ser consideradas entidades paraestatais. Para a defesa, o conceito de entidade paraestatal deve ser interpretado conforme o art. 84, § 1º, da Lei nº 8.666/93, o qual não inclui as organizações sociais:

Art. 84. Considera-se servidor público, para os fins desta Lei, aquele que exerce, mesmo que transitoriamente ou sem remuneração, cargo, função ou emprego público. § 1º Equipara-se a servidor público, para os fins desta Lei, quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, assim consideradas, além das fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista, as demais entidades sob controle, direto ou indireto, do Poder Público. (...)

Qual das duas argumentações foi acolhida pelo STF? João pode ser considerado funcionário público por equiparação, nos termos do art. 327, § 1º do CP? SIM. O STF acolheu a tese do MP. Organizações sociais que celebram contratos de gestão são consideradas entidades paraestatais O STF, adotando lição da Prof. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, entendeu que as organizações sociais que celebram contratos de gestão devem ser consideradas “entidades paraestatais”:

“(...) Exatamente por atuarem ao lado do Estado e terem com ele algum tipo de vínculo jurídico, recebem a denominação de entidades paraestatais; nessa expressão podem ser incluídas todas as entidades integrantes do chamado terceiro setor, o que abrange as declaradas de utilidade pública, as que recebem certificado de fins filantrópicos, os serviços sociais autônomos (como Sesi, Sesc, Senai), os entes de apoio, as organizações sociais e as organizações de sociedade civil de interesse público.” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27ª ed. Atlas: São Paulo, 2014. p. 566-567).

Luiz Régis Prado posiciona-se no mesmo sentido:

“Entidades paraestatais são pessoas jurídicas de direito privado, instituídas por lei, ‘para realização de atividades, obras, serviços de interesse coletivo, sob normas e controle do Estado’. Inserem-se como modalidades de entidades paraestatais as empresas públicas, as sociedades de economia mista, os serviços sociais autônomos e modernamente o que se denomina ‘terceiro setor’ (entes

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da sociedade civil de fins públicos e não lucrativos).” (PRADO, Luiz Régis. Comentários ao código penal: jurisprudência. Conexões lógicas com os vários ramos do direito. 11.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 863).

Mas e o art. 84, § 1º, da Lei nº 8.666/93...? Não importa para nada aqui. O art. 84, § 1º, da Lei nº 8.666/93 tem influência, ou seja, repercute no âmbito administrativo, mas não constitui parâmetro interpretativo para os crimes definidos no Código Penal. Para os crimes funcionais, o Código Penal traz uma regra específica no art. 327. Vale ressaltar que o legislador fez questão de fornecer, no Código Penal, um conceito mais amplo do que o utilizado no Direito Administrativo. Assim, o conceito de funcionário público previsto no art. 327 do Código Penal não se confunde com as definições próprias do direito administrativo. O caput do dispositivo, que serve como referencial interpretativo dos parágrafos, estabelece que o conceito de funcionário público agasalhado pelo estatuto é “para os efeitos penais”. Além disso, o título é mais abrangente do que o geralmente adotado no âmbito do direito administrativo, pois abarca funções temporárias e não remuneradas. Trata-se, portanto, de um conceito instrumental concebido pelo legislador unicamente para fins de aplicação da lei penal. A figura equiparada do § 1º é ainda mais ampla. Considera-se funcionário público, para fins penais, quem exerce cargo, emprego ou função em entidade parestatal. Recebe igualmente essa qualificação “quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública”. Os requisitos não são cumulativos, e sim, disjuntivos. Isso quer dizer que a acusação não precisa comprovar que a entidade paraestatal executa atividade típica da Administração Pública. Em suma:

O diretor de organização social pode ser considerado funcionário público por equiparação para fins penais (art. 327, § 1º do CP). Isso porque as organizações sociais que celebram contratos de gestão com o Poder Público devem ser consideradas “entidades paraestatais”, nos termos do art. 327, § 1º do CP. STF. 1ª Turma. HC 138484/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 11/9/2018 (Info 915).

O art. 327, § 1º, é exemplo de norma penal em branco? NÃO. O art. 327, tanto no caput como no § 1º, não pode ser considerado como norma penal em branco. Não é necessário buscar seu complemento em outro ato normativo. Na verdade, o art. 327 do CP é uma norma interpretativa. (Delegado SP Vunesp 2018) Prescreve o art. 327 do CP: “considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.” Tal norma traduz exemplo de interpretação A) científica. B) autêntica. C) extensiva. D) doutrinária. E) analógica.

Resposta: letra C

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VAMOS AGORA REVISAR

SÃO CONSIDERADOS “FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS” PARA FINS PENAIS:

Diretor de organização social O diretor de organização social pode ser considerado funcionário público por equiparação para fins penais (art. 327, § 1º do CP). As organizações sociais que celebram contratos de gestão com o Poder Público são consideradas “entidades paraestatais”. STF. 1ª Turma. HC 138484/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 11/9/2018 (Info 915). Administrador de Loteria Administrador de Loteria é equiparado a funcionário público para fins penais porque a Loteria executa atividade típica da Administração Pública que lhe foi delegada por regime de permissão. STJ. 5ª Turma. AREsp 679.651/RJ, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 11/09/2018. Advogados dativos O advogado que, por força de convênio celebrado com o Poder Público, atua de forma remunerada em defesa dos hipossuficientes agraciados com o benefício da assistência judiciária gratuita, enquadra-se no conceito de funcionário público para fins penais. Sendo equiparado a funcionário público, é possível que responda por corrupção passiva (art. 317 do CP). STJ. 5ª Turma. HC 264.459-SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 10/3/2016 (Info 579). Médico de hospital particular credenciado/conveniado ao SUS (após a Lei 9.983/2000) Depois da Lei nº 9.983/2000, que alterou o § 1º do art. 327 do CP, o médico credenciado ao SUS pode ser equiparado a funcionário público para efeitos penais. Vale ressaltar, no entanto, que a Lei nº 9.983/2000 não pode retroceder alcançar situações praticadas antes de sua vigência. STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 1101423/RS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 06/11/2012. Estagiário de órgão ou entidade públicos Estagiário de órgão público que, valendo-se das prerrogativas de sua função, apropria-se de valores subtraídos do programa bolsa-família subsume-se perfeitamente ao tipo penal descrito no art. 312, § 1º, do Código Penal (peculato-furto), porquanto estagiário de empresa pública ou de entidades congêneres se equipara, para fins penais, a servidor ou funcionário público, em decorrência do disposto no art. 327, § 1º, do Código Penal. STJ. 6ª Turma. REsp 1303748/AC, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 25/06/2012. Cuidado. Depositário judicial NÃO é considerado funcionário público Depositário judicial não é funcionário público para fins penais, porque não ocupa cargo público, mas a ele é atribuído um munus, pelo juízo, em razão do fato de que determinados bens ficam sob sua guarda e zelo. STJ. 6ª Turma. HC 402.949-SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 13/03/2018 (Info 623).

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RACISMO Palestra proferida por Bolsonaro com críticas aos quilombolas

e estrangeiros não configurou racismo

O então Deputado Federal Jair Bolsonaro proferiu palestra no auditório de determinado clube e ali fez críticas e comentários negativos a respeito dos quilombolas e também de povos estrangeiros.

No trecho mais questionado de sua palestra, ele afirmou: “Eu fui em um quilombola em El Dourado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador eles servem mais. Mais de um bilhão de reais por ano gastado com eles. Recebem cesta básica e mais material em implementos agrícolas. Você vai em El Dourado Paulista, você compra arame farpado, você compra enxada, pá, picareta por metade do preço vendido em outra cidade vizinha. Por que? Porque eles revendem tudo baratinho lá. Não querem nada com nada.”

O STF entendeu que a conduta de Bolsonaro não configurou o crime de racismo (art. 20 da Lei nº 7.716/89).

As palavras por ele proferidas estão dentro da liberdade de expressão prevista no art. 5º, IV, da CF/88, além de também estarem cobertas pela imunidade parlamentar (art. 53 da CF/88).

O objetivo de seu discurso não foi o de repressão, dominação, supressão ou eliminação dos quilombolas ou dos estrangeiros.

O pronunciamento do parlamentar estava vinculado ao contexto de demarcação e proveito econômico das terras e configuram manifestação política que não extrapola os limites da liberdade de expressão.

Além disso, as manifestações de Bolsonaro estavam relacionadas com a sua função de parlamentar. Inclusive, o convite para a palestra se deu em razão do exercício do cargo de Deputado Federal a fim de dar a sua visão geopolítica e econômica do País.

Assim, havia uma vinculação das manifestações apresentadas na palestra com os pronunciamentos do parlamentar na Câmara dos Deputados, de sorte que incide a imunidade parlamentar.

STF. 1ª Turma. Inq 4694/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 11/9/2018 (Info 915).

CRIME DO ART. 20 DA LEI 7.716/89

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa.

Em que consiste o crime Podemos imaginar duas condutas principais: 1) O agente pratica algum ato de discriminação. 2) O agente não pratica ele próprio a discriminação, mas induz (cria a ideia) ou incita (reforça a ideia já existente) que alguém passe a ter preconceito ou pratique atos de discriminação. Preconceito É o pensamento que existe em determinados indivíduos no sentido de que certas pessoas ou grupos sociais são inferiores, nocivos, prejudiciais. “O preconceito é subjetivo, interior, está no intelecto da pessoa, configura um pré-julgamento negativo com relação a outro indivíduo ou grupo.” (LAURIA, Mariano Paganini. Leis Penais Especiais comentadas artigo por artigo. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 534).

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Discriminação É a exteriorização do preconceito por meio da prática de atos materiais. Bem jurídico que este crime protege A igualdade que deve existir entre todas as pessoas. Em razão dessa igualdade, devem ser proibidos discriminações ou preconceitos. Raça O conceito de “raça” é amplo e não está limitado a uma definição biológica. Em outras palavras, o conceito de raça não exige que as pessoas possuam as mesmas características genéticas, tais como cor do cabelo, dos olhos e da pele (LAURIA, Mariano Paganini. ob. cit., p. 534). “A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social.” (Min. Maurílio Correia no HC 82424, julgado pelo STF em 17/09/2003). Assim, por exemplo, os judeus são uma raça, mesmo que os indivíduos que componham essa coletividade possuam características genéticas distintas entre si. Cor É a cor que a pessoa possui. É tonalidade, a pigmentação da pele. Etnia São os grupos humanos que apresentam aspectos comuns, tais como língua, religião e maneiras de agir. Trata-se do “conceito mais adotado e recomendado pela sociologia hodiernamente para designar o que antes era entendido por ‘raça’”. (LAURIA, Mariano Paganini. ob. cit., p. 507). Exemplos: índios, árabes, judeus, quilombolas. Religião “Religião pode ser conceituada como conjunto de crenças relacionadas ao divino e sagrado, permeada por uma série de rituais e códigos morais derivados de tais convicções. Não se inclui o ateísmo (ausência de crença religiosa), prevalecendo o entendimento de que este é justamente a negação da crença na existência de uma divindade superior, motivo pelo qual não poderia ser equiparado à religião, constituindo-se em espécie de doutrina filosófica. A discriminação por ateísmo seria, assim, fato atípico.” (LAURIA, Mariano Paganini. ob. cit., p. 508). Racismo x proselitismo religioso Determinado padre escreveu um livro, voltado ao público da Igreja Católica, no qual ele faz críticas ao espiritismo e a religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé. O Ministério Público da Bahia ofereceu denúncia contra ele pela prática do art. 20, § 2º, da Lei nº 7.716/89 (Lei do racismo). No caso concreto, o STF entendeu que não houve o crime. A CF/88 garante o direito à liberdade religiosa. Um dos aspectos da liberdade religiosa é o direito que o indivíduo possui de não apenas escolher qual religião irá seguir, mas também o de fazer proselitismo religioso. Proselitismo religioso significa empreender esforços para convencer outras pessoas a também se converterem à sua religião. Desse modo, a prática do proselitismo, ainda que feita por meio de comparações entre as religiões (dizendo que uma é melhor que a outra), não configura, por si só, crime de racismo. Só haverá racismo se o discurso dessa religião supostamente superior for de dominação, opressão, restrição de direitos ou violação da dignidade humana das pessoas integrantes dos demais grupos. Por

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outro lado, se essa religião supostamente superior pregar que tem o dever de ajudar os "inferiores" para que estes alcancem um nível mais alto de bem-estar e de salvação espiritual, neste caso não haverá conduta criminosa. Na situação concreta, o STF entendeu que o réu apenas fez comparações entre as religiões, procurando demonstrar que a sua deveria prevalecer e que não houve tentativa de subjugar os adeptos do espiritismo. Pregar um discurso de que as religiões são desiguais e de que uma é inferior à outra não configura, por si, o elemento típico do art. 20 da Lei nº 7.716/89. Para haver o crime, seria indispensável que tivesse ficado demonstrado o especial fim de supressão ou redução da dignidade do diferente, elemento que confere sentido à discriminação que atua como verbo núcleo do tipo. STF. 1ª Turma. RHC 134682/BA, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 29/11/2016 (Info 849). Vale ressaltar, no entanto, que o próprio STF, em outro caso concreto, já considerou que a incitação de ódio público feita por líder religioso contra outras religiões pode configurar o crime de racismo. Assim, é possível, a depender do caso concreto, que um líder religioso seja condenado pelo crime de racismo (art. 20, §2º, da Lei nº 7.716/89) por ter proferido discursos de ódio público contra outras denominações religiosas e seus seguidores: STF. 2ª Turma. RHC 146303/RJ, rel. Min. Edson Fachin, red. p/ o ac. Min. Dias Toffoli, julgado em 6/3/2018 (Info 893). A análise depende, portanto, da conduta no caso concreto. Procedência nacional É o lugar de onde a pessoa veio, ou seja, o lugar onde ela nasceu ou morava. Interessante ressaltar que, segundo a doutrina, este conceito abrange tanto os estrangeiros (ex: venezuelanos, haitianos) como também os nacionais que se deslocam dentro do país (exs: nortistas, nordestinos, sulistas etc.). Orientação sexual Não foi prevista no art. 20 da Lei nº 7.716/89. Assim, proferir manifestação de natureza discriminatória em relação aos homossexuais NÃO configura o crime do art. 20 da Lei nº 7.716/89, sendo conduta atípica (STF. 1ª Turma. Inq 3590/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 12/8/2014). Desse modo, devemos afirmar que o rol de elementos de preconceito e discriminação do art. 20 é taxativo. Pessoa com deficiência Se a discriminação for praticada contra pessoa com deficiência, o crime é o do art. 88 da Lei nº 13.146/2015:

Art. 88. Praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência: Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. § 1º Aumenta-se a pena em 1/3 (um terço) se a vítima encontrar-se sob cuidado e responsabilidade do agente. § 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput deste artigo é cometido por intermédio de meios de comunicação social ou de publicação de qualquer natureza: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. § 3º Na hipótese do § 2º deste artigo, o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência: I - recolhimento ou busca e apreensão dos exemplares do material discriminatório; II - interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na internet. § 4º Na hipótese do § 2º deste artigo, constitui efeito da condenação, após o trânsito em julgado da decisão, a destruição do material apreendido.

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Idoso Existe um tipo específico que trata sobre a discriminação contra idosos na Lei nº 10.741/2003:

Art. 96. Discriminar pessoa idosa, impedindo ou dificultando seu acesso a operações bancárias, aos meios de transporte, ao direito de contratar ou por qualquer outro meio ou instrumento necessário ao exercício da cidadania, por motivo de idade: Pena – reclusão de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e multa. § 1º Na mesma pena incorre quem desdenhar, humilhar, menosprezar ou discriminar pessoa idosa, por qualquer motivo. § 2º A pena será aumentada de 1/3 (um terço) se a vítima se encontrar sob os cuidados ou responsabilidade do agente.

Sujeito ativo Qualquer pessoa pode cometer. O delito do art. 20 da Lei nº 7.716/89 é crime comum. Sujeito passivo A vítima é a pessoa ou o grupo de pessoas discriminadas. Elemento subjetivo O crime é punido apenas a título de dolo (não há modalidade culposa). Vale ressaltar, no entanto, que, além do dolo, exige-se também o elemento subjetivo específico consistente na vontade de discriminar a vítima. Consumação Trata-se de crime formal, ou seja, não se exige, para a consumação, a produção de qualquer resultado naturalístico. Ex: o indivíduo grava vídeo no Youtube dizendo que todos os católicos devem ser xingados e discriminados. Mesmo que ninguém atenda essa convocação, o crime estará consumado. Suspensão condicional do processo O art. 20 da Lei nº 7.716/89 admite a suspensão condicional do processo. Racismo x injúria racial

Injúria racial (art. 140, § 3º do CP) (alguns autores chamam de racismo impróprio)

Racismo (art. 20 da Lei 7.716/89)

Art. 140. Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: (...) § 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: Pena - reclusão de um a três anos e multa.

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa.

O agente ofende, insulta, ou seja, xinga alguém utilizando elementos relacionados com a sua raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.

O agente pratica algum ato discriminatório que faz com que a vítima fique privada de algum direito em virtude de sua raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Há um ato de segregação.

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A ofensa é praticada contra uma pessoa determinada ou um grupo determinado de indivíduos (exs: cinco amigos negros, árabes etc.).

Também pode ser caracterizado mediante uma ofensa verbal (sem um ato de segregação), desde que a ofensa seja dirigida a todos os integrantes de certa raça, cor, etnia, religião etc.

A intenção do agente é atacar a honra subjetiva de uma pessoa ou de um grupo determinado de pessoas, utilizando os elementos já mencionados.

A intenção é segregar a pessoa ou um grupo de pessoas por conta de um dos elementos já mencionados.

Ex: “seu macaco”. Ex: “vocês 5 são um bando de terroristas”.

Ex: nesta festa não pode entrar negros. Ex: todos os judeus são ladrões.

O agente visa a atingir uma pessoa determinada ou determinável.

O agente visa a atingir um número indeterminado de pessoas (todos que compõem aquela coletividade).

O bem jurídico tutelado é a honra subjetiva. O bem jurídico tutelado é a igualdade.

Trata-se de crime de ação penal pública condicionada à representação da vítima (art. 145, parágrafo único, do CP).

Trata-se de crime de ação penal pública incondicionada.

Há polêmica se seria ou não um crime inafiançável e imprescritível, ou seja, se está incluído no art. 5º, XLII, da CF/88. Existe uma decisão do STJ reconhecendo a imprescritibilidade: STJ. 6ª Turma. AgRg no Aresp 686965/DF, j. 18/08/2015.

Não há dúvidas de que se trata de crime inafiançável e imprescritível, nos termos do art. 5º, XLII: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;”

§ 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.

É chamado de apologia ao nazismo. Mais uma vez, recorro ao excelente estudo produzido por Mariano Pagnini Lauria, que faz mais uma lúcida observação sobre o tema: “Para a configuração do crime em lição, é necessário que tais objetos sejam utilizados para fins de divulgação do nazismo (aqui há necessidade do elemento subjetivo específico). Logo, nos casos em que restar ausente tal elemento subjetivo específico (finalidade de divulgação do nazismo), como em objetos e artefatos de colecionadores, historiadores, museus e exposições (desde que, repita-se, tais materiais não sejam utilizados ainda que veladamente para propaganda do nazismo), a conduta será atípica.” (ob. cit., p. 541). Repare que a pena do § 1º é mais grave que a do caput e, por isso, não cabe suspensão condicional do processo.

§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza: Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.

Qualificadora Trata-se de uma qualificadora para as condutas descritas no caput. Meios de comunicação social Exemplos: TV, rádio, internet etc. Assim, o racismo praticado por meio da rede mundial de computadores, infelizmente tão comum hoje em dia, é punido com a pena do § 2º do art. 20.

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Publicação de qualquer natureza Exemplos: revistas, jornais, livros etc.

§ 3º No caso do parágrafo anterior, o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência: I - o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo; II - a cessação das respectivas transmissões radiofônicas, televisivas, eletrônicas ou da publicação por qualquer meio; III - a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores.

Este § 3º prevê a decretação de medidas cautelares com o objetivo de cessar a prática delituosa. Constitui efeito da condenação, após o trânsito em julgado da decisão, a destruição do material apreendido (§ 4º do art. 20). Veja como o tema é cobrado em provas: (Delegado PC/PR 2013) No caso de incitação ou induzimento ao preconceito racial praticado através da rede mundial de computadores, poderá o juiz determinar a interdição da mensagem ou página de informação. (CERTO) PALESTRA PROFERIDA POR BOLSONARO COM CRÍTICAS AOS QUILOMBOLAS E ESTRANGEIROS

A situação concreta, segundo a denúncia oferecida pela PGR, foi a seguinte: No dia 03 de abril de 2017, em palestra realizada no Clube Hebraica do Rio de Janeiro, o então Deputado Federal Jair Bolsonaro teria se manifestado de modo negativo e discriminatório sobre quilombolas, indígenas, refugiados, mulheres e LGBT's. De acordo com a PGR, o então Deputado teria proferido, dentre outras, as seguintes frases que caracterizariam o que a doutrina denomina de discurso de ódio (hate speech): • “Eu tenho 5 filhos. Foram 4 homens, a quinta eu dei uma fraquejada e veio uma mulher”. • “Aqui apenas são as reservas indígenas no Brasil. Onde tem uma reserva indígena, tem uma riqueza embaixo dela. Temos que mudar isso daí. Mas nós não temos, hoje em dia, mais autonomia para mudar isso daí. Entregou-se tanto a nossa nação que chegamos a esse ponto, mas dá pra mudar nosso país. Isso aqui é só reserva indígena, tá faltando quilombolas, que é outra brincadeira. Eu fui em um quilombola em El Dourado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador eles servem mais. Mais de um bilhão de reais por ano gastado com eles. Recebem cesta básica e mais material em implementos agrícolas. Você vai em El Dourado Paulista, você compra arame farpado, você compra enxada, pá, picareta por metade do preço vendido em outra cidade vizinha. Por que? Porque eles revendem tudo baratinho lá. Não querem nada com nada.” • “Nós não temos 12 milhões de desempregados, nós temos 40 milhões, porque eles consideram quem recebe bolsa-família como empregado. Só aí, só aí nós temos praticamente 1/4 da população brasileira vivendo às custas de quem trabalha. Alguém já viu um japonês pedindo esmola por aí? Porque é uma raça que tem vergonha na cara. Não é igual essa raça que tá aí embaixo ou como uma minoria tá ruminando aqui do lado.” • “Se eu chegar lá, não vai ter dinheiro pra ONG, esses inúteis vão ter que trabalhar. (...) Não vai ter um centímetro demarcado pra reserva indígena ou pra quilombola.” • “Se um idiota num debate comigo, caso esteja lá, falar sobre misoginia, homofobia, racismo, baitolismo, eu não vou responder sobre isso.” • “Tá pra ser transformado em lei o novo Código de Imigração. Tomem conhecimento. Qualquer estrangeiro ou até um monte de estrangeiro (...) Se alguém quiser pegar um navio e encher de haitiano,

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de angolano, de chinês, japonês, seja lá o que for. Japonês não vem pra cá não, tá. E jogar no porto aqui, dez mil aqui. O pessoal, ele fala, 'eu sou refugiado', passa a ter direito a abrir conta em Banco do Brasil e Caixa Econômica, com menos diligências do que qualquer um de nós brasileiros. Passa a ter direito a Sistema Único de Saúde gratuito (...)” • “O que que a Venezuela tá fazendo? Tá enchendo as suas ambulâncias e carros com pessoal idoso ou doença de alta complexidade e desovando nos hotéis, nos hospitais e postos de saúde de Roraima. E o que o governo brasileiro faz? Não faz nada. Tem que fazer alguma coisa. Se aceita, vamos criar campos de refugiados. Se aceita... Se não aceita, devolve. O Brasil não pode se transformar na casa da mãe Joana. Não pode a decisão de um governo acolher todo mundo de forma indiscriminada. Não tem problema vir pra cá quem quer que seja, mas tem que ter um motivo e um levantamento da vida pregressa dessas pessoas.” Denúncia Em 12 de abril de 2018, a Procuradora-Geral da República ofereceu denúncia, no STF, contra Jair Bolsonaro afirmando que ele, ao proferir tais palavras, praticou racismo, conduta tipificada no art. 20, caput da Lei nº 7.716/89, considerando que, “em seu discurso tratou os quilombolas como seres inferiores, igualando-os a mercadoria (discriminação) e ainda reputou-os inúteis, preguiçosos (preconceito) e também incitou a discriminação em relação aos estrangeiros, estimulando os presentes no Clube Hebraica, um público de cerca de trezentas pessoas, além de outras pessoas que tiveram acesso a vídeos divulgados do evento, a pensarem e agirem de igual forma (induzimento e/ou incitação)”. Veja a redação do tipo penal imputado:

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa.

A denúncia oferecida contra Jair Bolsonaro foi recebida pelo STF? NÃO. A 1ª Turma do STF, por maioria (3x2), rejeitou a denúncia apresentada contra Bolsonaro. O colegiado entendeu que não ficou configurado o conteúdo discriminatório das declarações do acusado. As palavras por ele proferidas estão dentro da liberdade de expressão prevista no art. 5º, IV, da CF/88, além de também estarem cobertas pela imunidade parlamentar (art. 53 da CF/88). Não houve finalidade de repressão, dominação, supressão ou eliminação O discurso proferido pelo acusado em relação a comunidades quilombolas traz demonstrações de diferenciação e até de superioridade em relação a esses povos. No entanto, as palavras proferidas são desprovidas da finalidade de repressão, dominação, supressão ou eliminação. Assim, por não se investirem de caráter discriminatório, são incapazes de caracterizar o crime previsto no art. 20, caput, da Lei nº 7.716/89. Contexto de demarcação e aproveitamento econômico das terras O pronunciamento do parlamentar está vinculado ao contexto de demarcação e proveito econômico das terras e configuram manifestação política que não extrapola os limites da liberdade de expressão. O parlamentar manifestou interesse em extinguir ou diminuir as reservas indígenas e as terras dos quilombolas, mas isso não pode ser confundido com a supressão e eliminação dessas minorias. Ademais, o emprego, no discurso, do termo “arroba” não consiste em ato de desumanização dos quilombolas, no sentido de comparação a animais. Para o Min. Marco Aurélio (Relator), foi uma forma de expressão – de toda infeliz –, utilizada com o objetivo de dizer que o indivíduo estava “acima do peso considerado normal”.

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Não houve incitação a comportamento xenofóbico Xenofobia é a profunda aversão a pessoas ou coisas estrangeiras (xenos é uma palavra grega que significa “estranho”). O comportamento xenofóbico, a depender do caso concreto, pode configurar crime se resultar em discriminação ou preconceito. Nesse sentido, veja o que diz o art. 1º da Lei nº 7.716/89:

Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

O art. 20 da Lei nº 7.716/89 prevê que é crime praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de procedência nacional. Trata-se de delito de perigo abstrato. Isso significa que, para configurar o crime, não se exige que, por causa do discursivo xenofóbico, alguém tenha efetivamente praticado atos discriminatórios. Basta induzir ou incitar e já configura o delito. No entanto, em caso de discursos, como o do réu, é necessário se analisar teleologicamente as palavras proferidas, ou seja, deve-se examinar a finalidade do agente. No caso, as afirmações do denunciado ficaram no âmbito da crítica à política de imigração adotada pelo Governo Federal e não revelam conteúdo discriminatório ou passível de incitar pensamentos e condutas xenofóbicas pelo público ouvinte. O próprio acusado diz não fazer distinção quanto à origem estrangeira do imigrante. A crítica também se insere na liberdade de manifestação de pensamento, insuscetível, portanto, de configurar crime. Vinculação das palavras ao exercício do mandato O STF afirmou que as manifestações de Bolsonaro estavam relacionadas com a sua função de parlamentar. Inclusive, o convite para a palestra se deu em razão do exercício do cargo de Deputado Federal ocupado pelo acusado, a fim de proceder à exposição de visão geopolítica e econômica do País. Assim, havia uma vinculação das manifestações apresentadas na palestra com os pronunciamentos do parlamentar na Câmara dos Deputados. Comprovado o nexo de causalidade entre o que veiculado e o mandato, tem-se a imunidade parlamentar. As declarações, ainda que dadas fora das dependências do Congresso Nacional e, eventualmente, sujeitas a censura moral, quando retratam o exercício do cargo eletivo, a atuação do congressista, estão cobertas pela imunidade parlamentar e implicam na exclusão da tipicidade. Em suma:

O então Deputado Federal Jair Bolsonaro proferiu palestra no auditório de determinado clube e ali fez críticas e comentários negativos a respeito dos quilombolas e também de povos estrangeiros. No trecho mais questionado de sua palestra, ele afirmou: “Eu fui em um quilombola em El Dourado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador eles servem mais. Mais de um bilhão de reais por ano gastado com eles. Recebem cesta básica e mais material em implementos agrícolas. Você vai em El Dourado Paulista, você compra arame farpado, você compra enxada, pá, picareta por metade do preço vendido em outra cidade vizinha. Por que? Porque eles revendem tudo baratinho lá. Não querem nada com nada.” O STF entendeu que a conduta de Bolsonaro não configurou o crime de racismo (art. 20 da Lei nº 7.716/89). As palavras por ele proferidas estão dentro da liberdade de expressão prevista no art. 5º, IV, da CF/88, além de também estarem cobertas pela imunidade parlamentar (art. 53 da CF/88). O objetivo de seu discurso não foi o de repressão, dominação, supressão ou eliminação dos quilombolas ou dos estrangeiros.

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O pronunciamento do parlamentar estava vinculado ao contexto de demarcação e proveito econômico das terras e configuram manifestação política que não extrapola os limites da liberdade de expressão. Além disso, as manifestações de Bolsonaro estavam relacionadas com a sua função de parlamentar. Inclusive, o convite para a palestra se deu em razão do exercício do cargo de Deputado Federal a fim de dar a sua visão geopolítica e econômica do País. Assim, havia uma vinculação das manifestações apresentadas na palestra com os pronunciamentos do parlamentar na Câmara dos Deputados, de sorte que incide a imunidade parlamentar. STF. 1ª Turma. Inq 4694/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 11/9/2018 (Info 915).

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LEI DE DROGAS Atipicidade da importação de pequena quantidade de sementes de maconha

Importante!!!

Não configura crime a importação de pequena quantidade de sementes de maconha.

STF. 2ª Turma. HC 144161/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 11/9/2018 (Info 915).

Imagine a seguinte situação hipotética: João, por meio de um site da internet, importou da Holanda para o Brasil 26 frutos aquênios, popularmente conhecidos como “sementes” de maconha (cannabis sativa linneu). Quando as sementes chegaram ao Brasil, via postal, o pacote foi inspecionado pelo setor de Alfândega da Receita Federal no aeroporto, que descobriu seu conteúdo por meio da máquina de raio-X e avisou a Polícia Federal. Diante disso, João foi denunciado pelo MPF pela prática de tráfico transnacional de drogas (art. 33 c/c art. 40, I, ambos da Lei nº 11.343/2006). O Procurador da República argumentou que, pela grande quantidade de sementes encomendadas e pela própria palavra do denunciado, restou demonstrado que ele pretendia iniciar uma plantação de cannabis sativa (maconha) em seu quintal. A questão chegou até o STF. Houve crime? NÃO. O STF entende que não há crime na importação de sementes de maconha. Vamos entender com calma. O que é considerado “droga” para fins penais? O parágrafo único do art. 1º da Lei nº 11.343/2006 prevê que, para uma substância ser considerada como "droga", é necessário que possa causar dependência, sendo isso definido em uma lista a ser elencada em lei ou ato do Poder Executivo federal. Veja:

Art. 1º (...) Parágrafo único. Para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União.

O art. 66 da mesma Lei complementa esta regra:

Art. 66. Para fins do disposto no parágrafo único do art. 1º desta Lei, até que seja atualizada a terminologia da lista mencionada no preceito, denominam-se drogas substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial, da Portaria SVS/MS nº 344, de 12 de maio de 1998.

Assim, o conceito é técnico-jurídico e só será considerada droga o que a lei (em sentido amplo) assim reconhecer como tal. Mesmo que determinada substância cause dependência física ou psíquica, se ela não estiver prevista no rol das substâncias legalmente proibidas, ela não será tratada como droga para fins de incidência da Lei nº 11.343/2006 (ex: álcool). Este rol existe? Onde ele está previsto? O rol das substâncias que são consideradas como “droga”, para fins penais, continua previsto na Portaria SVS/MS nº 344/1998, considerando que ainda não foi editada uma nova lista. Perceba, portanto, que estamos diante de uma norma penal em branco heterogênea (em sentido estrito ou heteróloga). Isso porque o complemento do que é considerado droga é fornecido por um ato normativo

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elaborado por órgão diverso daquele que editou a Lei. A Lei nº 11.343/2006 foi editada pelo Congresso Nacional e o seu complemento é dado por uma portaria, editada pela ANVISA, autarquia ligada ao Poder Executivo. Tetrahidrocanabinol (THC) Tetrahidrocanabinol, também conhecido como THC, é uma substância psicoativa encontrada na planta Cannabis Sativa, mais popularmente conhecida como maconha. A quantidade de THC na maconha pode variar de acordo com uma série de fatores, como o tipo de solo, a estação do ano, a época em que foi colhida, o tempo de colheita e consumo etc. A THC é prevista expressamente como droga na Portaria SVS/MS nº 344/1998, da ANVISA. Sementes de maconha não têm THC Os frutos aquênios da cannabis sativa linneu não apresentam na sua composição o THC. A planta da cannabis sativa linneu está prevista na lista “E” da Portaria SVS/MS 344/1998. Ocorre que essa Portaria prevê apenas a planta como sendo droga (e não a sua semente). Assim, a semente de maconha não pode ser considerada droga. O § 1º do art. 33 da LD prevê que também é crime a importação de “matéria-prima” ou “insumo” destinado à preparação de drogas. A semente de maconha poderia ser considerada como “matéria-prima” ou “insumo” destinado à preparação de drogas? Também não. A semente de maconha não pode ser considerada matéria-prima ou insumo destinado à preparação de drogas. Isso porque ela não é um “ingrediente” para a confecção de drogas. Não se faz droga misturando a semente de maconha com qualquer coisa. Dito de outro modo: não se prepara droga com semente de maconha. Isso porque a semente de maconha não tem substância psicoativa (ela não tem nada em sua composição que atue no sistema nervoso central gerando euforia, mudança de humor, prazer etc.). Em seu voto, o Ministro Gilmar Mendes assentou:

“Na doutrina, afirma-se que a matéria-prima, conforme Vicente Greco Filho e João Daniel Rassi, é a substância de que podem ser extraídos ou produzidos os entorpecentes que causem dependência física ou psíquica (GRECO FILHO, Vicente; RASSI, João Daniel. Lei de drogas anotada. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 99). Ou seja, a matéria-prima ou insumo devem ter condições e qualidades químicas para, mediante transformação ou adição, por exemplo, produzirem a droga ilícita, o que não é o caso das sementes da planta Cannabis sativa, que não possuem a substância psicoativa (THC)”.

Desse modo, a semente da cannabis sativa não é, em si, droga (não está listada na Portaria) e também não pode ser considerada matéria-prima ou insumo destinado à preparação de droga ilícita. Mas é possível que o indivíduo plante a semente de maconha e que daí nasça a planta da cannabis sativa linneu... A planta tem THC (substância psicoativa proibida)... É verdade. Pode ser que o indivíduo germine a semente, que isso vire uma muda, que ele cultive a muda e que se torne a planta da maconha. No entanto, a mera importação da semente não é crime algum porque configuraria, no máximo, mero ato preparatório da figura típica prevista no § 1º do art. 28 da Lei nº 11.343/2006:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas;

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II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. § 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica. (...)

Nem chega a ser, portanto, ato executório do § 1º do art. 28 porque o agente não iniciou a semeadura ou o cultivo. A importação das sementes não poderia configurar a tentativa da prática do crime do art. 28, § 1º da Lei nº 11.343/2006? Particularmente, penso que não. Isso porque, como já dito, o agente não iniciou nenhuma conduta executória dos verbos previstos no tipo penal (semear, cultivar ou colher). No entanto, ainda que se considere que se iniciou a execução e que ele não se consumou por circunstâncias alheias à vontade do agente, não há razão para a instauração de processo penal. O preceito secundário do art. 28 da LD prevê como sanções penais: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Logo, como não é prevista pena privativa de liberdade para esta conduta, é inviável a aplicação da regra da tentativa do art. 14, II, do CP. A conduta pode ser considerada contrabando (art. 334-A do CP)? Existe divergência sobre o tema. O contrabando consiste na importação de mercadoria proibida (art. 334-A do CP). A importação de sementes desprovidas de inscrição no Registro Nacional de Cultivares é proibida pelo art. 34 da Lei nº 10.711/2003:

Art. 34. Somente poderão ser importadas sementes ou mudas de cultivares inscritas no Registro Nacional de Cultivares.

A semente de cannabis sativa não consta da lista do Registro Nacional de Cultivares (RNC), não podendo, portanto, ser importada, salvo para tratamentos de saúde (Portaria RDC/ANVISA nº 66/2016). No entanto, há vários julgados que defendem que não se deve condenar o réu porque não há, neste caso, lesão ao bem jurídico tutelado pela norma prevista no art. 334-A do Código Penal. Isso porque, dada a pequena quantidade e a natureza das sementes, considera-se que não há ofensa aos bens jurídicos protegidos pelo delito de contrabando (proteção da saúde, da moralidade administrativa e da ordem pública). Esse é o entendimento que prevalece, por exemplo, no TRF3: HC 67576 - 0010869-41.2016.4.03.0000, Rel. Juiz Convocado Ricardo Nascimento, julgado em 26/07/2016. Em suma:

Não configura crime a importação de pequena quantidade de sementes de maconha. STF. 2ª Turma. HC 144161/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 11/9/2018 (Info 915).

Posição do MPF A 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal possui o entendimento de que:

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• a importação de pequena quantidade de sementes de maconha não configura o crime do art. 33, § 1º nem o delito do art. 28, § 1º, ambos da Lei nº 11.343/2006; • esta conduta, em tese, amolda-se ao crime de contrabando (art. 334-A do CP); • a importação de pequena quantidade de sementes de maconha para o plantio destinado ao consumo próprio induz à mínima ofensividade da conduta, à ausência de periculosidade da ação e o ínfimo grau de reprovabilidade do comportamento, razões que comportam a aplicação do princípio da insignificância à hipótese. • assim, a conduta é tipificada como descaminho, mas deve-se aplicar o princípio da insignificância, razão pela qual é correta a decisão do Procurador da República que não denuncia o indiciado nestes casos. Foi o que decidiu a 2ª CCR, em 09/11/2018, no processo nº 0001111-51.2018.4.03.6181, Relatora Subprocuradora Geral da República Luiza Cristina Fonseca Frischeisen. No mesmo sentido é o entendimento do Conselho Institucional do Ministério Público Federal – CIMPF: a importação de sementes de maconha pela via postal, em pequenas quantidades, não deve gerar denúncia, ante a configuração da prática do delito descrito no art. 334-A, do CP, e, neste, a incidência do princípio da insignificância (procedimentos 0008476-98.2014.4.03.6181 e 0002458-64.2015.4.03.6104). Qual é a posição do STJ sobre o tema? O STJ está dividido, por enquanto:

A importação de pequenas quantidade de sementes de maconha configura tráfico de drogas?

5ª Turma: SIM 6ª Turma: NÃO

A importação clandestina de sementes de cannabis sativa linneu (maconha) configura o tipo penal descrito no art. 33, § 1º, I, da Lei nº 11.343/2006. Não é possível aplicar o princípio da insignificância. STJ. 5ª Turma. REsp 1723739/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 23/10/2018.

Tratando-se de pequena quantidade de sementes e inexistindo expressa previsão normativa que criminaliza, entre as condutas do art. 28 da Lei de Drogas, a importação de pequena quantidade de matéria prima ou insumo destinado à preparação de droga para consumo pessoal, forçoso reconhecer a atipicidade do fato. STJ. 6ª Turma. AgRg no AgInt no REsp 1616707/CE, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 26/06/2018.

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EXERCÍCIOS Julgue os itens a seguir: 1) Explique em que consiste o homeschooling e se ele é aceito no Brasil. 2) (DPE/PR 2014) Tem fundamento expresso em lei federal a pretensão de, comprovada sua superdotação,

ter a criança substituída a educação formal escolar pela educação domiciliar. ( ) 3) (MP/ES 2013) Os pais ou responsável têm o direito de ministrar ensino domiciliar em caso de discordância

com processo pedagógico ou com as propostas educacionais da escola. ( ) 4) O CNJ pode determinar a correção de ato do Tribunal local que, embora respaldado por legislação

estadual, se distancie do entendimento do STF. ( ) 5) O diretor de organização social não pode ser considerado funcionário público por equiparação para fins

penais. ( ) 6) (PGM BH CESPE 2017) O crime de racismo restringe-se aos atos discriminatórios em função de cor da

pele — fator biológico —, em razão do princípio da necessidade da lei estrita do direito penal. ( ) 7) (Delegado de Polícia PF 2018 CESPE) Constitui crime de preconceito racial a discriminação de alguém em

decorrência de sua orientação sexual. ( ) 8) (TJDF CESPE 2015) A edição de livro que contenha apologia a ideias discriminatórias contra uma etnia ou

minoria é inconstitucional e configura crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade. ( )

9) (MP/MS 2018) Configura crime de preconceito de raça ou cor (Lei n. 7.716/1989) distribuir emblemas com símbolos que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. ( )

10) (Juiz TJDFT 2015 CESPE – adaptada) Breno foi vítima de injúria racial cuja autoria foi imputada a Rômulo. Nessa situação, a ação penal será pública incondicionada. ( )

11) (Delegado PC-GO 2017 CESPE) Uma jovem de vinte e um anos de idade, moradora da região Sudeste, inconformada com o resultado das eleições presidenciais de 2014, proferiu, em redes sociais na Internet, diversas ofensas contra nordestinos. Alertada de que estava cometendo um crime, a jovem apagou as mensagens e desculpou-se, tendo afirmado estar arrependida. Suas mensagens, porém, têm sido veiculadas por um sítio eletrônico que promove discurso de ódio contra nordestinos. No que se refere à situação hipotética precedente, assinale a opção correta, com base no disposto na Lei n.º 7.716/1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça e cor. A) Independentemente de autorização judicial, a autoridade policial poderá determinar a interdição das mensagens ou do sítio eletrônico que as veicula. B) Configura-se o concurso de pessoas nessa situação, visto que o material produzido pela jovem foi utilizado por outra pessoa no sítio eletrônico mencionado. C) O crime praticado pela jovem não se confunde com o de injúria racial. D) Como se arrependeu e apagou as mensagens, a jovem não responderá por nenhum crime. E) A conduta da jovem não configura crime tipificado na Lei n.º 7.716/1989.

12) Segundo decidiu o STF, não configura crime a importação de pequena quantidade de sementes de maconha. ( )

Gabarito

1. 2. E 3. E 4. C 5. E 6. E 7. E 8. C 9. C 10. E 11. Letra C 12. C

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OUTRAS INFORMAÇÕES

Sessões Ordinárias Extraordinárias Julgamentos Julgamentos por meio

eletrônico*

Em curso Finalizados

Pleno 12.9.2018 — 0 1 194

1ª Turma 11.9.2018 — 5 107 130

2ª Turma 11.9.2018 — 28 40 67

* Emenda Regimental 51/2016-STF. Sessão virtual de 7 a 14 de setembro de 2018.

TRANSCRIÇÕES

Com a finalidade de proporcionar aos leitores do INFORMATIVO STF uma compreensão mais aprofundada

do pensamento do Tribunal, divulgamos neste espaço trechos de decisões que tenham despertado ou possam

despertar de modo especial o interesse da comunidade jurídica.

Rcl 27872 AgR/CE*

EMENTA

Agravo regimental na reclamação. Súmula Vinculante nº 37. Simetria constitucional entre as carreiras da Magistratura e do Ministério Público

(CF/88, art. 129, § 4º, e Resolução nº 133/2011). Princípio da colegialidade. Agravo regimental provido, com a ressalva do posicionamento

pessoal do Relator, para julgar parcialmente procedente a reclamação e, cassando a decisão impugnada, determinar o sobrestamento do

processo em referência perante a autoridade reclamada até que sobrevenha decisão do STF na ADI nº 4.822/PE ou nos Temas 966 e 976 de

repercussão geral (o que ocorrer primeiro), após o que deverá ela proceder a novo julgamento da causa como entender de direito.

1. Até que sobrevenha decisão do STF na ADI nº 4.822/PE ou nos Temas 966 e 976 de repercussão geral (o que ocorrer primeiro), a

eficácia da Súmula vinculante nº 37 obsta que o Poder Judiciário, no exercício da jurisdição, defira o pagamento de parcela remuneratória a

magistrado com fundamento na alegada simetria constitucional com a carreira do Ministério Público (CF/88, art. 129, §4º) ou na Resolução nº

133/2011 do CNJ.

2. Agravo regimental provido, com a ressalva do posicionamento pessoal do Relator, para julgar parcialmente procedente a

reclamação e, cassando a decisão impugnada, determinar o sobrestamento do processo em referência perante a autoridade reclamada até que

sobrevenha decisão do STF na ADI nº 4.822/PE ou nos Temas 966 e 976 de repercussão geral (o que ocorrer primeiro), após o que deverá ela

proceder a novo julgamento da causa como entender de direito.

VOTO

O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI (RELATOR):

Em sessão de julgamento da Segunda Turma realizada em 6/3/18, minha posição restou minoritária, ficando consignado em ata (DJe de

16/3/2018) o seguinte: “A Turma, pelo voto médio do Ministro Edson Fachin, deu provimento parcial ao agravo regimental para suspender o ato

reclamado até que se aprecie a matéria de fundo pelo Tribunal Pleno” (Rcl nº 26.074/SC-AgR, julgada em lista).

Sobreveio a publicação do acórdão de relatoria do Ministro Edson Fachin (DJe de 8/6/2018), cuja ementa transcrevo:

“AGRAVO REGIMENTAL NA RECLAMAÇÃO. DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MAGISTRADOS. CONCESSÃO DE VANTAGENS COM FUNDAMENTO NA ISONOMIA COM OS MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO.

SÚMULA VINCULANTE Nº 37. PENDÊNCIA DA ANÁLISE DA CONSTITUCIONALIDADE DA RESOLUÇÃO Nº 133 DO CNJ

NA ADI 4.822. MATÉRIA SOB REPERCUSSÃO GERAL. TEMAS 966 E 976. SUSPENSÃO DO ATO RECLAMADO E SOBRESTAMENTO DO JULGAMENTO DA RECLAMAÇÃO. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO.

1. A controvérsia acerca da constitucionalidade da Resolução nº 133 do CNJ, que dispõe sobre a concessão de equiparação de

vantagens funcionais a magistrados com fundamento na simetria constitucional com os membros do Ministério Público, é objeto de questionamento por meio da ADI 4.822/PE, de relatoria do Min. Marco Aurélio e dos REs 1059466 (Tema 966) e 968646 (Tema 976),

ambos da relatoria do Min. Alexandre de Moraes.

2. Em decorrência da verticalização das decisões do Plenário, impõe-se a suspensão do ato reclamado e o sobrestamento do julgamento da presente reclamação até a definição do mérito da matéria.

3. Agravo regimental provido para suspender o ato reclamado e determinar o sobrestamento dos autos” (Rcl nº 26.074/SC-AgR,

de minha relatoria, Rel. p/ o ac. Min. Edson Fachin, Segunda Turma).

Com a ressalva de posicionamento pessoal, apresento voto no presente agravo regimental em observância ao princípio da colegialidade e, dessa

perspectiva, destaco que prevaleceu, naquela oportunidade, o entendimento de ser possível ao Supremo Tribunal Federal proceder ao cotejamento, próprio do juízo reclamatório, entre o conteúdo da Súmula Vinculante nº 37 e o fundamento de tutela jurisdicional que defere vantagem pecuniária a

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membro do Poder Judiciário, afirmando a existência de simetria constitucional entre as carreiras da magistratura e do Ministério Público (CF/88, art.

129, § 4º, e Resolução nº 133/2011).

Adotou-se, entretanto, posição intermediária para a) não obstante se afirmar a eficácia da SV nº 37 - no sentido de não ser possível ao Poder Judiciário, no exercício da jurisdição, deferir a

servidor público parcelas remuneratórias instituídas para categorias distintas da sua – e, nesse contexto, se obstar o pagamento determinado pela

decisão reclamada; b) também ressaltar a competência do Plenário do STF para julgar temática específica referente i) ao limite da competência normativa

conferida ao Conselho Nacional de Justiça (art. 103-B da CF/88), na edição da Resolução nº 133/2011 (ADI nº 4.822/PE), e ii) a alegada simetria entre

as carreiras da magistratura e do Ministério Público (CF/88, art. 129, § 4º), pois submetida a matéria constitucional à sistemática da repercussão geral

(Temas 966 e 976).

Assim, a tutela jurisdicional na presente reclamatória deve ser eficaz no sentido de se obstar o pagamento a magistrado de vantagem

pecuniária instituída pelo Poder Legislativo à carreira do Ministério Público (SV nº 37), sem, contudo, esvaziar a competência do Plenário para decidir – seja na ADI nº 4.822/PE, seja nos RE nºs 1.059.466/AL e 968.646/SC - a matéria constitucional específica debatida no caso concreto.

Sem dissentir do juízo intermediário acima destacado, entendo que a peculiaridade que reveste o tema submetido à apreciação do STF nesta ação

comporta decisão adequada também ao entendimento i) de que, com a sistemática da repercussão geral, a competência do STF para julgar a matéria constitucional é exercida no representativo da controvérsia (RE nº 1.059.466/AL – Tema 966; RE nº 968.646/SC – Tema 976), competindo aos demais

órgãos do Poder Judiciário a concretização do precedente, mediante juízo de adequação da ratio decidendi do STF nos processos de matéria

constitucional idêntica, bem como ii) de que não há competência originária do Supremo Tribunal Federal para solução, caso a caso (CF/88, art. 102, I,

n), de controvérsia que envolva pretensão ao reconhecimento do direito de magistrado com base na simetria entre sua carreira e a do Ministério Público

(AO nº 2.126/PR-AgR).

Com essas ponderações e tendo em vista a eficácia vinculante “relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário” (CF/88, art. 102, § 2º) das decisões do STF em sede de controle concentrado de constitucionalidade; bem como o efeito prospectivo da tese firmada em repercussão geral, cingindo

os demais órgãos do Poder Judiciário à norma de interpretação constitucional afirmada pelo STF na análise dos feitos com fundamento em idêntica

controvérsia, voto pelo provimento do agravo regimental e pela procedência parcial da reclamação, para, cassando-se a decisão impugnada, se

determinar o sobrestamento do processo em referência perante a autoridade reclamada até que sobrevenha decisão do STF na ADI nº 4.822/PE

ou nos Temas 966 e 976 de repercussão geral (o que ocorrer primeiro), após o que deverá ela proceder a novo julgamento da causa como

entender de Direito. *acordão publicado no DJe de 13.9.2018.

OUTRAS INFORMAÇÕES

10 A 14 DE SETEMBRO DE 2018

Decreto nº 9.498, de 10.9.2018 - Dispõe sobre a competência para a concessão e a manutenção de aposentadorias

e de pensões do regime próprio de previdência social dos órgãos da administração pública federal direta. Publicado no

DOU, Seção 1, Edição n° 175, p. 9, em 11.9.2018.

Secretaria de Documentação – SDO

Coordenadoria de Jurisprudência Comparada e Divulgação de Julgados – CJCD

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