Índio é índio. aqui, ali, em qualquer lugar? notas ... · conquista da terra e os conflitos...

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1 Índio é índio. Aqui, ali, em qualquer lugar? Notas preliminares de uma pesquisa sobre reelaboração étnica, conquista de território e conflitos na Amazônia 1 . Kércia Figueiredo/UFPA 2 . Eneida Assis/UFPA 3 Resumo Traçando um panorama geral de como ocorreu o contato interétnico no Brasil e na Amazônia, o artigo ilustrará a evolução das teorias do contato, buscando compreender as novas dinâmicas que suscitaram o renascer de etnias e tradições. Nesse sentido abordará o percurso de conquista e reconhecimento da Terra Indígena Maró, localizada na região Oeste do Pará, na qual habitantes de três comunidades se reconheceram indígenas e lutam pela demarcação da sua terra. O objetivo é apresentar de que forma ocorreu o processo de reelaboração étnica, a conquista da terra e os conflitos enfrentados pelos indígenas contra os madeireiros, que cobiçam a área, e contra a mídia local, que rejeita o reconhecimento étnico do grupo. O esforço empreendido está em apresentar indícios empíricos e teóricos de como a reelaboração étnica na Amazônia se valida pelas raízes culturais e históricas da região, e como estão entremeadas de desrespeito e de violência perante aos povos originários. Palavras-chave: contato; reelaboração étnica; TI Maró. Introdução O Censo 2010 mostrou que a população indígena teve um aumento de 205% em duas décadas 4 . O levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que os índios no Brasil somam 896,9 mil pessoas 5 , de 305 etnias, que falam 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN. 2 Doutoranda em Sociologia/UFPA, Bolsista CNPQ. E-mail: [email protected] 3 Antropóloga e Cientista Política/UFPA. E-mail: [email protected] 4 O Censo de 1991 mostrou uma população de 294 mil índios. http://censo2010.ibge.gov.br 5 Para chegar ao número total de índios, o IBGE somou aqueles que se autodeclararam indígenas (817,9 mil) com 78,9 mil que vivem em terras indígenas, mas não tinham optado por essa classificação ao responder à pergunta sobre cor ou raça. Para esse grupo, foi feita uma segunda pergunta, indagando se o entrevistado se considerava índio. A responsável pela pesquisa, Nilza Pereira explicou que a categoria

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Page 1: Índio é índio. Aqui, ali, em qualquer lugar? Notas ... · conquista da terra e os conflitos enfrentados pelos indígenas contra os madeireiros que ... contatos entre índios e

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Índio é índio. Aqui, ali, em qualquer lugar? Notas preliminares de uma pesquisa

sobre reelaboração étnica, conquista de território e conflitos na Amazônia1.

Kércia Figueiredo/UFPA2.

Eneida Assis/UFPA3

Resumo

Traçando um panorama geral de como ocorreu o contato interétnico no Brasil e

na Amazônia, o artigo ilustrará a evolução das teorias do contato, buscando

compreender as novas dinâmicas que suscitaram o renascer de etnias e tradições. Nesse

sentido abordará o percurso de conquista e reconhecimento da Terra Indígena Maró,

localizada na região Oeste do Pará, na qual habitantes de três comunidades se

reconheceram indígenas e lutam pela demarcação da sua terra. O objetivo é apresentar

de que forma ocorreu o processo de reelaboração étnica, a conquista da terra e os

conflitos enfrentados pelos indígenas contra os madeireiros, que cobiçam a área, e

contra a mídia local, que rejeita o reconhecimento étnico do grupo. O esforço

empreendido está em apresentar indícios empíricos e teóricos de como a reelaboração

étnica na Amazônia se valida pelas raízes culturais e históricas da região, e como estão

entremeadas de desrespeito e de violência perante aos povos originários.

Palavras-chave: contato; reelaboração étnica; TI Maró.

Introdução

O Censo 2010 mostrou que a população indígena teve um aumento de 205% em

duas décadas4. O levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

apontou que os índios no Brasil somam 896,9 mil pessoas5, de 305 etnias, que falam

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2014, Natal/RN. 2 Doutoranda em Sociologia/UFPA, Bolsista CNPQ. E-mail: [email protected]

3 Antropóloga e Cientista Política/UFPA. E-mail: [email protected]

4 O Censo de 1991 mostrou uma população de 294 mil índios. http://censo2010.ibge.gov.br

5 Para chegar ao número total de índios, o IBGE somou aqueles que se autodeclararam indígenas (817,9

mil) com 78,9 mil que vivem em terras indígenas, mas não tinham optado por essa classificação ao

responder à pergunta sobre cor ou raça. Para esse grupo, foi feita uma segunda pergunta, indagando se o

entrevistado se considerava índio. A responsável pela pesquisa, Nilza Pereira explicou que a categoria

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274 línguas indígenas. Foi a primeira vez que o questionário incluiu perguntas

específicas referentes às etnias e retomou após 60 anos o interesse pelas línguas faladas.

Esses dados demonstram o sentido inverso da preocupação sobre o destino dos povos

indígenas que permeava os estudos de etnólogos brasileiros em meados do século XX,

como Nimuendaju, Baldus, Schaden, Eduardo Galvão e Darcy Ribeiro (Cardoso de

Oliveira, 1972), que apontavam a significativa redução dos índios pelo extermínio físico

e cultural que sofriam.

Atualmente, o expressivo crescimento da população indígena é resultado tanto

da luta do movimento indígena quanto do reconhecimento dos seus direitos coletivos e

de suas terras proclamados na Constituição de 1988, e, respaldados pela adesão da

Fundação Nacional do Índio - FUNAI à Convenção 169/OIT, da Organização

Internacional do Trabalho, que dá direito ao auto reconhecimento étnico. Esse novo

cenário configura os índios como agentes da própria história, que se afirmam nas suas

culturas e nos seus territórios. A possibilidade de autorreconhecimento fez brotar

inúmeros grupos étnicos no Brasil em consonância com o que ocorre em diversos

lugares do mundo. Bartolomé (2006) chama essas reelaborações étnicas de etnogêneses

e explica que, os diversos casos que vem ocorrendo nas últimas décadas na América

Latina dizem respeito à retomada e atualização de filiações étnicas das quais seus

integrantes, por indução ou por terem sido obrigados, em algum momento renunciaram.

A Amazônia concentrou um significativo aumento no número de índios,

inclusive no que diz respeito a pessoas que no último censo se declararam de outra cor

ou raça, mas que se consideravam indígenas seja pela tradição, cultura, costumes,

antepassados, entre outros. De 78,9 mil que se declararam índios de outra cor ou raça6,

36,9 estavam na região Norte (Censo 2010). Isso sem contar os inúmeros casos que não

foram contabilizados, pois na pesquisa só foram considerados os habitantes de 505

terras indígenas7, ficando de fora os habitantes de 182 terras que ainda estavam em

processo de demarcação. Uma dessas é a Terra Indígena Maró, cujos indígenas das

índios foi inventada pela população não índia e, por isso, alguns se confundiram na autodeclaração e não

se disseram indígenas em um primeiro momento. "Para o índio, ele é um xavante, um kaiapó, da cor parda, verde e até marrom", justificou em entrevista para a Agência Brasil (Empresa Brasil de

Comunicação, http://agenciabrasil.ebc.com.br em 10/08/2012). 6 Pardos foi como se declarou a maior parte da população de terras indígenas que responderam ser de

outra cor ou raça (67,5%). A proporção se repetiu em quase todas as regiões e chegou a 74,6% no Norte. 7 Foram consideradas “terras indígenas” as que estavam em uma de quatro situações: declaradas (com

Portaria Declaratória e aguardando demarcação), homologadas (já demarcadas com limites

homologados), regularizadas (que, após a homologação, foram registradas em cartório) e as reservas

indígenas (terras doadas por terceiros, adquiridas ou desapropriadas pela União).

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etnias Borari e Arapyum fazem parte do movimento de afirmação étnica do baixo

Tapajós8, no Oeste do estado do Pará.

Este artigo aborda o processo de conquista e reconhecimento da TI Maró com a

finalidade de apresentar as observações iniciais do processo de reelaboração étnica, a

conquista da terra e os conflitos enfrentados pelos indígenas contra os madeireiros que

cobiçam a área, e a mídia local que rejeita o reconhecimento étnico do grupo. O escopo

do trabalho está em analisar como a reelaboração étnica está atrelada à luta pela terra,

lugar de construções étnicas e espaço de disputas políticas. Assim, são apresentados

indícios empíricos e teóricos de como a reelaboração étnica na Amazônia se valida

pelas raízes culturais e históricas da região entremeadas de desrespeito e de violência

que os indígenas sofreram no processo de contato.

O artigo está dividido em três partes, a primeira reflete sobre os primeiros

contatos entre índios e europeus na Colônia, enfatizando sobre a relação assimétrica que

se perpetua até o alvorecer do século XX com a criação do SPI-Serviço de Proteção ao

Índio, agência oficial responsável pela política indigenista, e como o ciclo da borracha

configurou uma nova organização social na Amazônia. Na segunda parte, é feita uma

discussão sobre as teorias do contato com o intuito de mostrar como a dinâmica social

promove novas reflexões sobre o tema. Dessa forma, as noções de transfiguração étnica

de Darcy Ribeiro (1970), de fricção interétnica de Roberto Cardoso de Oliveira (1972),

até chegar às considerações de João Pacheco de Oliveira (1998) de índios misturados, a

viagem da volta e seu conceito de territorialização, possibilitam a compreensão dos

processos que suscitam o renascer de etnias e tradições. A terceira parte aborda a

relação entre a perspectiva antropológica e sociológica a partir da concepção de Cardoso

de Oliveira (1978) quanto ao trato da questão indígena.

Nesse artigo se busca compreender categorias essencialmente antropológicas

como identidade, etnicidade, resistência, reelaboração étnica, em um panorama

sociológico ancorado em indagações sobre a formação e conquista de um território

indígena na fronteira de expansão do capital e de como o Estado atua de acordo com os

próprios interesses. A noção de terra indígena como ocupação tradicional presente na

Constituição Federal de 1988, não tem relação com o tempo de ocupação, mas por ser a

terra em que vivem, e a base para a sua reprodução física e sociocultural (Assis, 2006),

8 Sobre o Movimento Indígena no Baixo Tapajós ver o artigo “O Movimento Indígena no Baixo Tapajós:

etnogênese, território, Estado e conflito” Peixoto, Arenz e Figueiredo (Revista Novos Cadernos NAEA -

2012). Para maior aprofundamento ver as teses de Ioris (2005) e Vaz (2010).

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ela é parte de seu ser coletivo. A luta pelo reconhecimento da TI Maró ilustra a

impossibilidade de desvincular o olhar voltado ao contexto político, social e econômico,

de outro olhar que percebe os indígenas como novos sujeitos políticos construtores de

sua história, de seus territórios e de seus destinos.

Refletindo sobre o contato interétnico na Amazônia

Alguns especialistas, seja na área arqueológica como na linguística, informam

que a ocupação humana no Brasil ocorreu em algum momento entre 35 a 12 mil anos9.

Porém, se tivesse ocorrido há 35 mil ou há pouco mais de 500 anos, poucas informações

teríamos sobre a história dos povos nativos. Os europeus que aqui chegaram

consideraram todos os grupos e culturas indígenas como uma coisa só, compactados e

homogeneizados de tal forma, que de um lado estavam os índios considerados

“primitivos” e parte indissociável da natureza, e de outro a civilização representada

pelos homens europeus.

Da mesma forma com que se apropriavam deste chão, batizando todas as

formações geográficas possíveis com seus nomes de santos (Carneiro da Cunha, 2006),

“adestraram” pessoas e batizaram-nas com os mesmos nomes. Os acidentes geográficos

como os montes, baías, ilhas ou campos foram desenhados, marcados em mapas,

enquanto as populações foram invisibilizadas, pois o colonizador sequer os considerava

seres humanos ou quando muito, apenas parte da natureza local. Dessa maneira, com a

mesma naturalidade que removiam árvores ou exploravam a floresta e os rios, assim

faziam com os índios. Do mesmo modo com que abriram clareiras, derrubaram a mata e

aproveitaram o que podia ser explorado, esvaziaram quase toda essa terra de suas

gentes.

O chamado “encontro” entre o antigo e o novo mundo foi dilacerador para a

população nativa. De milhões, quando do “contato”, a população reduziu-se a menos de

100 mil em 1957 (Ribeiro, 2009 [1970]). A primeira grande causa da depopulação

indígena foram inúmeras doenças trazidas pelos europeus e o seu alastramento, através

de epidemias, pelos povos indígenas então concentrados e aldeados pelos missionários e

órgãos oficiais (Carneiro da Cunha, 2006). Aliado a isso, a sede de escravos para

prover de mercadorias o capitalismo mercantil, fomentou guerras entre grupos

9 Manuela Carneiro da Cunha, em “História dos Índios no Brasil” (1992) introduz ao assunto afirmando

que as estimativas tradicionais versam sobre 12 mil anos, mas consideram outros estudos que analisam

sítios arqueológicos anteriores a essa data. (ver pág.10 e 11).

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indígenas. Com as guerras veio a fome, a fuga, a desestruturação social, a luta para

sobreviver alhures. Assim, ocorreu o início da dizimação da população indígena.

A Amazônia, com mata densa fechada e dimensão continental, só ganhou

atenção da Coroa entre os séculos XVII e XVIII, tendo sido os jesuítas os responsáveis

pela ocupação (idem). Nesse período, a cobiça já não era apenas destinada aos índios10

com escopo de escravizá-los, mas era destinada, sobretudo, às suas terras. A prioridade

era garantir o território e protegê-lo dos “invasores”, nos séculos que se seguiram a

ocupação das terras, o sertão para alguns, faz parte das metas do Império.

Dando um salto na história, em 1910, o Estado Republicano criou o Serviço de

Proteção aos Índios – SPI (1910 - 1967), instituído para atender os interesses do país

entre eles a promoção da comunicação telegráfica entre o interior do país e a metrópole,

torna-se responsável pelas expedições de atração e pacificação dos índios e, em

decorrência favorece as frentes de expansão da sociedade nacional. Em consequência,

promoveu um dos momentos “mais intensos e controvertidos nas relações interculturais

contemporâneas em nosso país” (Guran, 2010, p.7). O SPI instituía a política

indigenista controversa de pacificar, integrar e civilizar. E, nesse encontro de visões de

mundo, por mais que o então tenente- coronel Cândido Rondon instituísse um “serviço

para proteger” os considerados inimigos e entraves ao progresso, e adotasse o lema

“morrer se for preciso; matar nunca”, muitos equívocos foram cometidos, resultando na

expropriação de terras indígenas e no consequente aniquilamento de culturas e povos.

Atração e pacificação eram as duas funções primordiais do SPI, cujo objetivo era

um projeto de “civilização”. A instrução de que os “índios nômades deveriam ser

atraídos por meios brandos" foi dada pelo Decreto 8.072 (1910), que instituiu o

Regulamento do SPI. Em 1928, a Lei nº 5.484 confirmou a instrução e dotou o Estado

da tutela dos índios, proibindo qualquer expedição armada contra eles. A herança de

atração, ao modo dos jesuítas, ficou evidente a partir do Decreto nº 10.652, que

consistia no regimento do SPI estabelecendo “postos, visando atrair o índio e fixá-lo

pela cultura sistemática da terra e estabelecimento de indústrias rudimentares mais

necessárias” e caberia às Inspetorias Regionais “atrair e pacificar, por intermédio dos

10

De acordo com Darcy Ribeiro (2009 [1996], p. 36) com o intuito de devassar e explorar os produtos da

floresta “os índios foram aliciados desde a primeira hora, através de toda a sorte de compulsões, desde a

“sujigação” e o descimento para as missões e núcleos coloniais até técnicas mais manhosas, como a de

acostumá-los ao uso de artigos mercantis cujo fornecimento posterior era condicionado à sua participação

nas atividades produtivas como mão de obra para todo serviço”.

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postos, o índio que viver em estado selvagem” (Freire, 2010). As atividades eram

padronizadas com desconsideração total das especificidades de cada povo.

No início dos anos 50, o SPI contava com 18 turmas de atração dos índios.

Destas, 10 trabalhavam no estado do Pará e eram coordenadas por sertanistas. Dentre os

sertanistas, Coronel Rondon foi o que mais se destacou seguindo veementemente os

preceitos Comteanos11

. Em meados da mesma década, outro sertanista importante foi

Francisco Meirelles que para estabelecer o contato, ora invadia as aldeias, ora utilizava

técnicas como o namoro, montando tapiris com brindes e esperando uma resposta dos

índios durante meses. Considerava a vida indígena rude e afirmava que os índios

queriam deixar de ser índios porque tinham uma sobrevivência difícil. Como a vida dos

trabalhadores brasileiros era também difícil, Meirelles considerava a luta pelo

desenvolvimento social uma só. De acordo com Freire (2010, p.17) “justapunha-se,

assim, um positivismo economicista ao positivismo evolucionista rondoniano”. Na

prática, Francisco Meirelles estabeleceu uma série de articulações políticas12

a fim de

garantir terras “produtivas” para os índios, contudo, sem conhecer realmente a dinâmica

dos grupos Jê. O resultado dessa política integracionista foram incursões, financiadas

pelos seringalistas, para atrair e pacificar os índios, deslocando-os para fora da área de

interesse econômico (idem).

A região do Oeste do Pará foi fortemente impactada pelo ciclo da borracha13

,

cujo período áureo ocorreu entre os anos de 1879 a 1912, em plena Revolução

Industrial. O ciclo representou o momento mais expressivo da exploração humana e da

relação desigual entre o capital e trabalho na Amazônia, os impactos resultantes desse

processo são sentidos no presente especialmente em se tratando das populações

indígenas existentes na região já vitimizadas ao longo da colonização da região. A

intenção é captar da história como ocorreu a intrusão nos territórios indígenas na

Amazônia, os interesses envolvidos e como a população indígena se reconfigurou

naquele lugar. Apoiadas nas entranhas da história, muitas comunidades se

autorreconhecerem indígenas e hoje lutam por seus direitos, territórios e vida.

11

Rondon praticava os ensinamentos de Augusto Comte e creditava a ele seu sucesso com os índios.

Acreditava, junto com os positivistas do Apostolado, que os “fetichistas, vivendo em estágios inferiores

de civilização, deveriam seguir a marcha da humanidade, evoluindo para contribuir para o ‘progresso da

nação’” (Freire, p. 17, 2010). 12

No Mato Grosso e posteriormente no Pará. 13

A combinação de matéria prima, mão de obra, transporte e mercado possibilitou o quase completo

abastecimento de borracha para a indústria mundial.

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Nas terras amazônidas brotavam os cauchais (Castilloa elástica) e os seringais

(Hevea brasiliensis). Essas árvores, imemoriavelmente conhecidas pelos índios,

produzem o látex - o “ouro branco” - matéria prima da borracha, tão apreciada nos

mercados internacionais no fim do século XIX e início do século XX. A exploração dos

cauchais, realizada por bandos de caucheiros, implicava no abatimento das árvores a fim

de extrair todo o látex. Eles se deslocavam ávidos por terras onde cresciam os cauchos.

Invadiam tribos e sequestravam mulheres e crianças indígenas para coagir os homens a

cooperarem na descoberta e usufruto de novos cauchais. Com a invasão garantiam,

sobretudo, “o abrigo, a alimentação e a satisfação dos seus apetites” (Ribeiro 2009, p.

37). Não tardou para que os cauchais ficassem escassos, dando início ao ciclo da

exploração da seringueira. Os indígenas sangravam seu tronco e dela extraíam o látex.

Nas áreas mais próximas dos portos de exportação, viviam grupos indígenas

remanescentes de tribos que desde os tempos coloniais mantinham contato com os

neobrasileiros. Para esses, forneciam mão de obra ocasional, bem como produtos

florestais. Não obstante a relação contínua, os indígenas preservavam seu modo de vida

baseado no cultivo, caça, pesca e extrativismo e preservavam sua identidade étnica. O

oeste do Pará era rico de seringueiras e o Tapajós14

“era por excelência o rio da

borracha” (Reis 1979, p.168).

O mercado internacional voraz pelo látex induziu uma rápida transformação na

economia e nos costumes locais. Imediatamente, tudo foi direcionado para a produção

da borracha e centenas de nordestinos15

sertanejos foram atraídos pela possibilidade de

uma vida melhor na floresta. Contudo, para a extração do látex era necessário percorrer

longas distâncias para encontrar as seringueiras dispersas na floresta. Era um trabalho

árduo e solitário. E o seringueiro, precisando de bens básicos de subsistência, contraia

dívidas impagáveis com o seu patrão: o seringalista dono do barracão. No barracão tinha

de tudo um pouco e era o lugar onde os seringueiros trocavam bolas de borracha por

víveres. Nas mãos dos patrões estava tudo o que era necessário para a manutenção da

vida. Esse era o sistema de aviamento, no qual o patrão adiantava equipamentos e

mantimentos para o seringueiro e este deveria pagar com sua produção, que nunca era

suficiente para quitar a dívida, perpetuando-a.

Nessa economia, explora-se um seringal até o seu esgotamento para então partir

em busca de outro. Portanto, não havia vinculação com a terra, mas sim uma

14

Contudo, foram as cidades de Belém e Manaus que mais se beneficiaram com o ciclo. 15

Ao mesmo tempo em que eram “expulsos” de suas terras pela grande seca de 1877.

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peregrinação pelos rios por onde se alcançaria o próximo seringal. Assim, indo mais

longe, a exploração da borracha alcançava as populações indígenas mais remotas. De

acordo com Darcy Ribeiro:

Para o índio, o seringal e toda a indústria extrativa tem representado a morte, pela

negação de tudo o que ele necessita para viver: ocupa-lhes as terras; dissocia sua

família, dispersando os homens e tomando as mulheres; destrói a unidade tribal,

sujeitando-a ao domínio de um estranho, incapaz de compreender suas motivações e de

proporcionar-lhe outras. Enfim, submete o índio a um regime de exploração ao qual

nenhum povo poderia sobreviver. Assim, diante do avanço desta “civilização”

representada pelos extratores de drogas da mata, só resta ao índio resistir e quando isso

se torna impraticável, fugir para mais longe, mata adentro, para as zonas altas onde não

cresce a seringueira. (2009 [1970], p.42)

Completa o autor, que a economia da borracha “era uma das economias mais

destrutivas e exigentes em vidas humanas, em sofrimento e em miséria que jamais se

conheceu”. Assim, as seringueiras choravam por suas feridas, as lágrimas da maior

parte dos homens cujas vidas foram ceifadas em nome da alta cotação da borracha. Por

causa da borracha, nada mais se produziu na Amazônia e os gêneros de subsistência

passaram a ser importados. No auge do ciclo da borracha, em 1910, ela representava

cerca de 40% das exportações nacionais. Nesse mesmo ano deu-se início ao declínio da

produção brasileira, com a introdução no mercado internacional da borracha melhor e

mais barata produzida nos seringais cultivados na Malásia16

. Logo os seringais foram

abandonados.

Situação revertida momentaneamente entre 1942 e 1945, durante a II Guerra

Mundial, quando os nipônicos dominaram o Pacífico Sul e invadiram a Malásia, em

consequência, deu-se a queda da produção da borracha asiática e novas esperanças para

a produção amazônica. Nesse período, os Estados Unidos precisando abastecer sua

indústria bélica, assinou com o governo brasileiro os Acordos de Washington, que

significou uma operação em larga escala de extração do látex. O acordo previa que a

produção anual deveria subir de 18.000 para 45.000 toneladas, mas para isso seria

necessário aumentar a mão de obra. Na região havia cerca de 35.000 trabalhadores que

por lá ficaram com o abandono dos seringais, porém para atingir a produção estimada

seria necessária a força braçal de 100.000 homens. Tal operação foi chamada de

“batalha da borracha”, pois o então presidente do Brasil Getúlio Vargas motivou o

16

O botânico inglês Henry Alexander Wickham contrabandeou 70.000 sementes de seringueira, Hevea

brasiliensis, da região de Santarém no Pará, em 1876 . Na Malásia as árvores foram plantadas lado a lado

e em dez anos já produziam o látex. Esse representou um dos mais importantes casos de biopirataria de

espécies amazônicas.

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alistamento compulsório especialmente na região nordeste. De lá foram levados 54.000

trabalhadores, só do estado do Ceará alistaram-se 30.000 homens que fugiam da

prolongada e devastadora seca. Esses trabalhadores, chamados de “soldados da

borracha”, foram levados para uma escravidão por dívidas e para a morte por doenças,

ataques e solidão. “O trabalho escravo foi, assim, recriado na Amazônia brasileira pelo

próprio Estado, com apoio norte-americano” (Almeida 2004, p.39).

Mas, a produção da borracha não atingiu o acordado e a batalha foi um fracasso.

O que representou a quebra da economia local e a miséria de núcleos exclusivamente

dependentes desse mercado se revelou como a salvação das populações indígenas

remanescentes na Amazônia (Ibidem). Assim, os índios voltaram aos antigos territórios

dos quais haviam sido escorraçados e recomeçaram sua vida de nativos. Também o

resto da população local retomava as atividades agrícolas e voltava a garantir a sua

subsistência. Nesse ínterim, “famílias se formavam e cresciam, muitas delas frutos

justamente da mistura entre migrantes (ou seus descendentes) e índias. Os antigos

seringueiros especializados eram agora camponeses da floresta” (Almeida 2009, p.21).

Com o fim do ciclo da borracha, muitos dos novos habitantes da terra por ali ficaram e

construíram suas vidas e suas famílias espalhados pelas margens dos rios da região.

Esse cenário configura a situação do baixo Amazonas, que engloba a região do baixo

Tapajós17

, onde o movimento indígena de reelaboração étnica assenta suas bases e onde

novas identidades foram afirmadas. Bases essas que estimularam os pensamentos de

grandes antropólogos brasileiros e que serão mais a frente expostas no trabalho.

Contribuições teóricas sobre como o ser índio está “enterrado no umbigo”

Os primeiros estudos etnográficos de grupos indígenas brasileiros eram

permeados de preocupações referentes à “aculturação” a que os índios eram submetidos.

Os estudos e relatórios de Curt Nimuendaju18

evidenciavam sua preocupação

observando a transformação de grupos indígenas em novos brasileiros. Esse movimento

acontecia através de um corte nas suas raízes culturais porque os índios deveriam se

tornar, além de cidadãos, também cristãos. O problema da mudança cultural suscitou o

17

Na região do baixo Tapajós a exploração da borracha foi tamanha que os americanos chegaram a

construir uma grande indústria acompanhada de company town para a extração e produção da borracha: a

vilas de Fordlândia e Belterra . 18

Estudou os povos Guarani, Apinayé, Timbira e Tukuna.

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10

interesse de Eduardo Galvão (1959), que estudou as tribos do Xingú e do rio Negro, e

de Egon Schalden (1965), que revisou a bibliografia brasileira sobre aculturação.

Ambos os estudos se apoiaram no esquema tradicional de aculturação e não foram

conclusivos. Galvão ultrapassa a prática de estudos etnográficos de tribos para pesquisar

generalizações no âmbito cultural. Seus estudos focaram o processo de assimilação em

contraposição aos esquemas culturalistas.

A teoria da aculturação entende que no processo de contato há sempre um

desnível propiciado por uma série de variáveis impostas pelo determinismo econômico.

Historiadores e alguns antropólogos acreditavam que as tribos desapareceriam porque

seriam absorvidas pela sociedade nacional, pois haveria uma aculturação progressiva

que acabaria por resultar em uma completa assimilação da cultura da sociedade

dominante através da miscigenação19

. Especialmente para Galvão, na Amazônia a

aculturação significava a caboclização, ou seja, a transformação do índio em caboclo.

As comunidades que se formaram ao longo das margens dos rios foram chamadas de

caboclas, mas as pessoas não se identificavam como tais.

Isso gerou grande inquietação em Darcy Ribeiro, pois observando os grupos

indígenas percebeu que esses grupos não foram assimilados pela sociedade nacional

como parte indissociável dela. O que aconteceu de fato foi o extermínio de grande parte

desses povos e as que sobreviveram se auto identificavam indígenas, distintos dos

demais brasileiros, pois vítimas de sua dominação. Para Darcy, a assimilação “matava”

o outro pela transformação cultural e não era isso o que de fato acontecia. Por isso, não

acreditava na assimilação plena, concluindo que o que de fato acontecia eram

transfigurações étnicas.

Entender o processo de transição de índio específico, com sua cultura e tradição,

a índio genérico quase idêntico ao caboclo, é a grande contribuição de Darcy ao estudo

da etnologia, e é o que ele chamou de processo de transfiguração étnica. Significava

que “sob pressões de ordem biótica, ecológica, cultural, socioeconômica e psicológica,

um povo indígena vai transformando seus modos de ser e de viver para resistir àquelas

pressões” (Ribeiro 2009 [1970], p.13). De acordo com o autor, o que acontecia com os

indígenas era uma integração socioeconômica, sem qualquer assimilação cultural.

19

Pacheco de Oliveira afirma que a preocupação dos autores que estudaram os grupos indígenas

brasileiros nessa fase era “mostrar a progressiva descaracterização cultural daquelas sociedades e a

absorção de crenças e costumes precedentes do branco” e completa “o esquema teórico utilizado fez com

que alguns descrevessem o processo de mudança cultural como inexorável, prevendo como bem próxima

a completa assimilação de um grupo étnico pelo contexto e pela cultura regional” (1988, p.31).

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Assim, aderiram à massa de trabalhadores assalariados ou passaram a produzir

mercadorias para atender suas novas necessidades materiais, como ferramentas, tecidos,

remédios, mas sem deixar de serem índios, pois se identificavam como tais e eram

aceitos por suas comunidades indígenas.

Revisando a análise do contato interétnico, Roberto Cardoso de Oliveira20

inaugura uma nova fase na interpretação do contato. Adentrou na etnologia estudando

como os Terena interagiam com a população local, após dois séculos de contato, sem

serem assimilados. Ele crítica veementemente a aculturação americana e encontra nos

estudos de Georges Balandier, reflexões sobre atuação da ação colonialista na África, a

base para sua teoria de fricção interétnica. Tomou então a situação colonial enquanto

“totalidade”, onde uma minoria estrangeira faz uso da dominação, caracterizando um

caráter antagônico com os segmentos colonizados. Tendo em vista que as sociedades

tribais mantêm com a sociedade envolvente “relações de oposição, histórica e

estruturalmente demonstráveis” (RCO,1972, p.30), ou seja, são sociedades

contraditórias, em que uma tenta anular a outra, a ação colonialista atuava como um rolo

compressor que implodia a sociedade tribal, criando caciques e fazendo cooptação21

.

Para Cardoso de Oliveira, a fricção interétnica é a principal característica da situação de

contato, ele exemplifica a expansão da sociedade brasileira como altamente destruidora

dos territórios tribais, afirmando que:

As sociedades de oposição, em fricção, possuem também dinâmicas próprias e suas

próprias contradições. Daí entendemos a situação de contato como uma ‘totalidade

sincrética’, ou em outras palavras (...) enquanto situação de contato entre duas

populações dialeticamente ‘unificadas’ através de interesses diametralmente opostos,

ainda que interdependentes, por paradoxal que pareça. (ibidem, p.30).

Ressalta Cardoso de Oliveira (1978), que as relações entre sociedades em

conjunção implicavam em uma oposição ou contradição entre sistemas societários em

interação - o tribal e o nacional - que seriam os subsistemas do que ele chamou de

sistema interétnico. O autor faz uma analogia à noção marxista de “luta de classes”,

considerando que os subsistemas tribal e nacional teriam entre si e entre o sistema

20

No seu livro “A sociologia do Brasil Indígena” RCO tece uma crítica à Antropologia, especialmente

quando ela se reduz à etnografia, porque considera que ela estava parada em descrições sem

aprofundamentos teóricos. Expõe claramente a necessidade de um método para o desenvolvimento da

disciplina. 21

O caso dos “te?ti” na sociedade Tukuna ilustra bem essa situação. Os “te?ti” eram homens que, entre

outras capacidades, eram responsáveis pelo contato com os civilizados. Estes por sua vez os manipulavam

e acabaram criando um novo sistema de poder. Os “te?ti” foram desaparecendo e surgiram então os

tuxaua que tinham uma liderança relativa e serviram como “instrumentos de dominação do alienígena,

determinado a ocupar o território indígena e a por o braço Tukuna a seu serviço” (RCO, p. 92, 1978).

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interétnico o equivalente da relação entre as classes sociais e a sociedade global. O

aprofundamento do entendimento de sistema interétnico se dá mediante mecanismos de

integração social, a qual é “o processo responsável pela constituição desse sistema”

(ibidem, p.87) e esclarece que “o processo em questão significa a integração do índio na

sociedade nacional” (ibidem). A análise de Cardoso de Oliveira sobre o sistema abrange

três esferas: a econômica, a social e a política. Fazendo essa leitura sistêmica é que o

autor propõe a observação do contato para um diagnóstico da situação e um prognóstico

de seu desenvolvimento. Assim, as características presentes na situação de contato

deveriam ser tomadas como os elementos responsáveis pela integração, ou seja, para a

previsão do grau de integração das populações indígenas e regional. O que no grupo é

possível medir para que se afirme que ele está sofrendo um processo de integração é o

que perfaz a noção de potencial de integração.

A partir dessas pinceladas do pensamento etnológico sobre o contato interétnico

no Brasil, os estudos de João Pacheco de Oliveira sobre a chamada “emergência” de

novas identidades em populações consideradas de baixa distintividade cultural presentes

no artigo “Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação colonial, territorialização e

fluxos culturais”, Oliveira (1998) tece investigações sobre os “índios do Nordeste”,

discutindo conceitos para a análise da etnicidade, significando uma nova visão sobre o

contato. Baseando-se em etnografias, o autor propõe uma chave interpretativa para o

entendimento do fenômeno de “emergência” de identidades. Nesse momento que

antecede o próximo tópico de conexão entre empiria e teoria, com a análise da conquista

da Terra Indígena Maró, é importante voltar o olhar para a questão conceitual de

etnicidade. Para isso, antes de mergulhar no pensamento de Pacheco de Oliveira,

convém lembrar Fredrik Barth (1969), que fundamentou diversos estudos posteriores de

reelaboração étnica com sua noção de etnicidade e suas “fronteiras”.

Para Barth (1969) os grupos étnicos não surgem do isolamento geográfico, mas

sim de processos sociais que marcam a distinção cultural. Desse modo, o autor utiliza a

categoria fronteiras para compreender as dinâmicas dos grupos, dando dinamismo à

identidade. Afirma ainda, que a identidade se transforma a partir da relação com outra

identidade, seja ela coletiva ou individual, de acordo com seus interesses e contextos.

Assim, a identidade étnica se transforma e se mantém de acordo com processos de

inclusão ou exclusão, dependendo de quem está inserido ou não. Ademais das muitas

características que compartilham (sejam físicas, culturais, de instituições entre outras),

os grupos são considerados como unidades sociais que se distinguem pela forma de

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organização a fim de definir o “eu” e o “outro”. Isso ocorre a partir de mecanismos

sociais de diferenciação estrutural entre grupos de interação. As fronteiras são esses

mecanismos que distinguem os grupos étnicos (idem).

A abordagem de Barth abandona a atenção culturalista, que se concentra na

observação de grupos étnicos de maneira isolada. Em vez disso, o autor destaca a

importância de estudar os processos identitários em contextos precisos dando relevância

a percepção de que eles também se constituem como atos políticos. Ao considerar os

processos identitários como atos políticos, João Pacheco de Oliveira (1998)

complementa a argumentação de Barth de que um ponto-chave para entender as

mudanças pela qual passa uma sociedade é atribuir a ela uma base territorial fixa, pois

isso afetaria enormemente as suas instituições e a significação de suas manifestações

culturais. Para isso, o autor considera a noção de territorialização e a define como um

processo de reorganização social que implica:

1- A criação de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma

identidade étnica diferenciadora;

2- A constituição de mecanismos políticos especializados;

3- A redefinição do controle social sobre os recursos ambientais;

4- A reelaboração da cultura e da relação com o passado. (ibidem, p.55)

Pacheco de Oliveira considera a dimensão territorial como estratégica para

pensar a inclusão de grupos étnicos distintos em um Estado-nação. Afinal, “é uma

intervenção da esfera política que associa um conjunto de indivíduos e grupos a limites

geográficos bem determinados” (ibidem, p.56). O autor propõe como fio condutor da

investigação antropológica esse ato político que constitui objetos étnicos por meios

arbitrários. E esclarece o que chama de processo de territorialização como:

o movimento pelo qual um objeto político-administrativo (no Brasil as “comunidades

indígenas”) vem a se transformar em uma coletividade organizada, formulando uma

identidade própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão e de representação, e

reestruturando as suas formas culturais. (ibidem, p.56)

Retomando o diálogo com Barth, mas não se restringindo à questão identitária,

Pacheco de Oliveira considera a distinção e a individualização como vetores de

organização social. Ele dá ensejo à análise do objeto, Índios do Nordeste, e à maioria

dos estudos posteriores sobre casos de reelaborações étnicas, concluindo que:

As afinidades culturais e linguísticas, bem como os vínculos afetivos e históricos

porventura existentes entre os membros dessa unidade político-administrativa (arbitrária

e circunstancial), serão retrabalhados pelos próprios sujeitos em um contexto histórico

determinado e contrastados com características atribuídas aos membros de outras

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unidades, deflagrando um processo de reorganização sociocultural de amplas

proporções. (ibidem, p.56)

O fato de os sujeitos retrabalharem suas afinidades culturais e seus vínculos

afetivos, mas sem se desvincular de suas origens como característica de suas identidades

indígenas, inspirou João Pacheco de Oliveira a sugerir a imagem da “viagem da volta”.

Impressa nos versos de Torquato Neto “desde que saí de casa, trouxe a viagem da volta

gravada na minha mão, enterrada no umbigo, dentro e fora assim comigo, minha própria

condução”, a “viagem da volta” representa a conexão entre etnicidade e território e entre

etnicidade e características físicas dos indivíduos (Oliveira, 1998). Pelo enterrar o

umbigo, se dá a ligação com a terra, e pelo gravar na mão, o vínculo com o grupo.

A inestimável contribuição de João Pacheco de Oliveira para o entendimento da

etnicidade conectada a terra e ao grupo faz-nos pensar em como o ser índio está

“enterrado no umbigo”. A possibilidade de autorreconhecimento étnico, ensejada pela

Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho, confere à consciência da

identidade indígena ou tribal o pressuposto básico para o autorreconhecimento. No

entanto, é o vínculo com o território e o reconhecimento que parte da aceitação do

individuo pelo grupo, que vem caracterizando os casos de reelaborações étnicas, tanto

no Nordeste como na Amazônia. Portanto, a atualização histórica não exclui o

sentimento de pertencimento à origem das identidades étnicas, pelo contrário o reforça.

Assim, considera Oliveira (1998) que é da “resolução simbólica e coletiva dessa

contradição que decorre a força política e emocional da etnicidade” (p.64). Essa força

política e emocional do vínculo do povo ao território caracteriza a luta indígena pela

Terra Maró.

A TI Maró e o significado da natureza: vida para uns, cobiça para outros.

O Oeste do Pará em termos sociológicos se caracteriza como uma região de

fronteira de expansão da sociedade nacional e do capital, que lhe dita o ritmo de

expansão e avança abrindo e pavimentando estradas, projetando um complexo de

hidrelétricas no rio Tapajós, instalando grandes projetos de mineração, assim como o

agronegócio, que sobe pela BR-163 desde o Mato Grosso em direção ao Pará ávido de

terras férteis. Para a fronteira vêm migrantes em busca de oportunidades de trabalho e

de investimento. Entre estes, pecuaristas e madeireiros, que visualizam negócios

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lucrativos e nem sempre idôneos nessa espécie de faroeste, onde a lei vige apenas

precariamente.

Em nome da ocupação econômica da fronteira se tolera ilegalidades e violências,

na atmosfera uma vez assim caracterizada pelo então ministro Delfim Neto como uma

pérola do discurso oficial: “vamos fazer da Amazônia um faroeste, depois chamamos o

xerife”. Esse laissez-faire é parte de uma espécie de planejamento que permite

conformar o espaço segundo a lei do mais forte. De acordo com Paul Ricouer “com o

Estado aparece uma certa violência que tem caracteres de legitimidade” (1955, p.237),

nesse caso não é a violência imputada pelo Estado que vigora, mas é a sua omissão que

permite aos mais fortes imputar a violência através de ameaças e torturas aos mais

fracos.

O conflito engendrado na TI Maró diz respeito ao significado atribuído à

natureza: meio e espaço de vida para os indígenas e objeto de exploração para os que

cobiçam aquela área. Esse cenário de injustiça suscitou uma luta por reconhecimento.

Natureza como meio e espaço de vida diz respeito a como as comunidades se

relacionam com o ambiente. Afirma Geertz que “deve atentar-se para o comportamento

– ou, mais precisamente, da ação social – que as formas culturais encontram articulação,

Elas encontram-na também certamente, em várias espécies de artefatos e vários estados

de consciência” (Geertz 1989, p. 27). Questiono se a luta dos indígenas é apenas para

garantir seu pedaço de chão. Acredito que mais do que terra, a luta envolve sentimentos

de pertencimento a uma forma de viver naquele espaço. Natureza provedora de bens

nem sempre mensuráveis, pois toda a reprodução social que ocorre, seja da ligação entre

os humanos e do imaginário, tem naquela natureza seu cenário.

Na região, a exploração madeireira avança disputando terras com unidades de

conservação, projetos de assentamento e terras indígenas22

. A Terra Indígena Maró

localiza-se na Gleba Nova Olinda, a qual possui 182 mil hectares e compõe um

conjunto de cinco terras arrecadadas e matriculadas em nome do estado do Pará,

formando as glebas Mamurú-Arapiuns. Essas terras perfazem um total de 1 milhão e

312 mil hectares de mata nativa envolvendo os municípios de Juruti, Santarém e Aveiro

e corresponde a última área de floresta contínua do estado do Pará.

22

Naquele espaço geográfico estão a Floresta Nacional do Tapajós, a Reserva Extrativista Tapajós-

Arapiúns e o Projeto de Assentamento Extrativista Lago Grande, unidades de alçada federal onde o

movimento indígena se manifesta.

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Povoada por dezenas de comunidades, que garantem ali sua reprodução social,

as glebas Mamurú-Arapiúns passam por lento processo de regularização fundiária. Não

obstante a parca fiscalização dos órgãos de proteção existentes, os que cobiçam a

floresta para explorá-la a qualquer custo encontram agora uma dificuldade: indígenas

plenos de direitos reivindicam território, contestam destinações territoriais feitas pelo

governo do estado, concessões florestais e zoneamentos ecológico-econômicos, e

defendem a sua terra e com ela a sua própria vida como povo. É o movimento indígena

configurando uma nova questão política e enfrentando a exploração madeireira ilegal.

A gleba Nova Olinda está situada na origem do rio Arapiuns, que é formado pela

bifurcação de dois rios: o Maró, à esquerda, e o Aruã, à direita. Nas matas do Maró e

do Aruã operam empresas madeireiras que empregam mão de obra de comunidades ali

situadas. O Aruã é território proibido para os indígenas das aldeias do rio Maró, cujas

lideranças são ameaçadas de morte. No rio Maró estão situadas três aldeias, São José

III, Cachoeira do Maró e Novo Lugar, que se autodefiniram indígenas e lutam agora

pela homologação de seu território. As três aldeias formam a Terra Indígena Maró. Os

índios Borari e Arapium, que reivindicam a homologação e a desintrusão da TI Maró,

informam que madeireiros ainda mantêm projetos de manejo na terra indígena,

marcando e retirando árvores, que seguem em grandes balsas pelos rios Arapiúns e

Tapajós.

A reelaboração étnica na TI Maró e o movimento indígena no baixo Tapajós

A história23

de Novo Lugar e de alguns povoados próximos tem cerca de 130

anos. Os índios Borari viviam em Alter do Chão, no Atodi, quando viram suas terras

tomadas pela “grande migração”, durante o ciclo da borracha. Decidiram então, subir o

rio para encontrar um lugar onde pudessem garantir sua sobrevivência e reprodução

social. Inicialmente não se instalaram na beira do rio Maró, entraram mais ao interno e

se organizaram em Bejuaçú24

, em uma das “vidas”, como eles denominam as nascentes

da terra indígena. Dentro da mata, os indígenas mantiveram vivos os seus rituais,

mesmo que os praticando de forma velada, porque sofriam forte discriminação.

23

A história foi relatada por moradores na pesquisa de campo. 24

Vivendo em Bejuaçú, no interior da mata, longe da beira do Maró, abriram diversas trilhas, fizeram

seus roçados, garantiram a extração de resinas medicinais, tinham suas áreas de caça e coleta e

mantinham seus lugares sagrados destinados aos seus rituais. No ano de 1990, as mães da comunidade

exigiram que os filhos frequentassem uma escola. Para viabilizar a educação das crianças, o grupo

concordou em descer para se instalar na margem do rio Maró.

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Garantem que a raiz do índio está na pajelança e que a comunidade sempre praticou os

rituais de cura. O grupo, ao longo do tempo, nunca deixou de se organizar sob a

liderança de uma sucessão de caciques.

Fato decisivo para a história do grupo ocorreu em janeiro de 2002, quando a

comunidade recebeu uma visita inesperada que viria a mudar a sua perspectiva de vida.

Uma equipe da Igreja Católica, liderada pela irmã Manoela, do Conselho Indigenista

Missionário – CIMI se reuniu com a comunidade e informou como a Constituição

Brasileira ampara os direitos dos povos indígenas. Explicou sobre a possibilidade do

auto-reconhecimento étnico, direito que sustentava o movimento indígena, e ao qual,

outras comunidades da região estavam aderindo.

A reelaboração étnica no baixo Tapajós faz parte de uma tendência de

emergências étnicas que alcança várias experiências no mundo. Embora apresente

particularidades, o processo de emergência étnica dessa região está em sintonia com a

retomada de tradições por grupos étnicos, então considerados aculturados ou extintos,

em todo o Brasil e América Latina. De acordo com Bartolomé, vários casos de

etnogêneses latino-americanas se manifestaram nas últimas décadas, afirmando tratar-se

“da dinamização e da atualização de antigas filiações étnicas às quais seus portadores

tinham sido induzidos ou obrigados a renunciar” (2006, p. 45).

Os povos indígenas sendo sujeitos coletivos de direitos tem direito a

autodeterminação conforme a Constituição Federal de 1988 e a Convenção 169 da

Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais/OIT, adotada

em Genebra, em 27-06-1989, reconhecida pelo Estado brasileiro. Na Convenção 169, o

Artigo 1º é fundamental, pois reza que “A consciência de sua identidade indígena ou

tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos

que se aplicam as disposições da presente Convenção”. Essa prerrogativa, respaldada na

“história centenária dos primeiros habitantes indígenas que vieram fazer parte da

colonização do baixo Tapajós” (FUNAI 2009), está na base da revitalização da

condição étnica no baixo Tapajós e no rio Arapiúns.

Nos grupos indígenas da TI Maró, o “orgulho de assumir-se” (Castro, 2006) diz

respeito ao pertencimento a um grupo no qual, a experiência de distinção social está

relacionada à sua própria identidade e resistência coletiva. Honneth (2009) explica que

uma experiência de reconhecimento desse tipo corresponde a “um sentimento de

orgulho do grupo ou de honra coletiva; o indivíduo se sabe aí como membro de um

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grupo social que está em condição de realizações comuns, cujo valor para a sociedade é

reconhecido por todos os seus demais membros”(Honneth, 2009, p. 209).

Na TI Maró, relata o cacique Dadá: “o pessoal se reconheceu, mas para nós não

existe isso [de se reconhecer]: a gente nascemo e sempre fomos indígena”. Porém, com

a informação sobre a possibilidade de autorreconhecimento a comunidade ficou sabendo

dos seus direitos. No mês seguinte em que se reconheceram indígenas, seis empresas

madeireiras entraram com pedido de integração de posse das terras. Foi então que as

comunidades se deram conta que estavam perdendo suas terras e assim se organizou

para iniciar a luta.

No discurso o “reconhecer-se” indígena é o pilar da luta. No entanto, convém

procurar compreender se esse sentimento de pertencimento à identidade indígena é geral

nos membros das três comunidades. Até que ponto é estratégia de luta por território? É

coletivo o sentimento de orgulho dos indígenas? Confrontar o campo com novos

ângulos de visões pode ajudar a ter uma noção mais clara do que acontece. Geertz

(1989) afirma que:

a força de nossas interpretações não pode repousar, como acontece hoje em dia com

tanta frequência, na rigidez com que elas se mantêm ou na segurança com que são

argumentadas. Creio que nada contribuiu mais para desacreditar a análise cultural do

que a construção de representações impecáveis de ordem formal, em cuja existência

verdadeira praticamente ninguém pode acreditar. (1989, p.28)

Na realidade do movimento indígena do baixo Tapajós, a conquista da Terra

Indígena Maró é fato relevante. A TI Maró sofre pressões da indústria madeireira, que

tem dezenas de projetos de manejo florestal na gleba Nova Olinda, alguns dentro

mesmo do território indígena, recentemente reconhecido pela FUNAI, que em outubro

de 2011 publicou seu relatório circunstanciado de identificação e delimitação. Contudo,

quem assumiu a contestação, manifestando impugnação ao despacho que abrigou o

relatório foi o Instituto de Terras do Pará (ITERPA), que reivindica a área para

madeireiros, a fim de efetivar-se um arranjo de permuta e compensação, promovido

pelo governo do estado.

No Pará, o interesse dos empresários originários do Sul do país é a apropriação

de ricas áreas florestais para a realização de extraordinários lucros, já que a fiscalização

é notoriamente escassa e permite a retirada de grandes volumes de madeira ilegal. O

movimento indígena no baixo Tapajós denuncia a pilhagem, tolerada pelo estado, que

ademais fomentou conflitos ao colocar madeireiros em territórios reivindicados pelos

indígenas. Esse é o contexto onde, a despeito das desvantagens de meios, o movimento

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indígena conseguiu uma conquista relevante, com o reconhecimento pela FUNAI da

Terra Indígena Maró.

Recentemente, em 06/01/2012, o Instituto de Terras do Pará (ITERPA), em

referência ao Despacho nº 107, da Presidência da FUNAI, publicado no DOU em

10/10/2011, manifestou “impugnação àquele ato”, que contraria a iniciativa do governo

estadual de situar na TI Maró madeireiros oriundos do Projeto Trairão, no município de

São Felix do Xingu. O ofício do ITERPA se faz acompanhar de texto intitulado

“Flechas Enganosas”, em que o autor Edward Luz critica o movimento indígena

evocando o fantasma de agentes externos interessados no subdesenvolvimento da

Amazônia: “Tais ações indigenistas obedecem uma agenda geopolítica externa, visando

o engessamento de enormes áreas de produção e servirem de óbices a realização de

obras estruturantes na região, a fim de mantê-la, sub-povoada e sub-desenvolvida.”

Por outro lado, a intrusão de atividades madeireiras na TI Maró e o prejuízo que

ela causa aos indígenas e à natureza estão reportados no Relatório Circunstanciado de

Identificação e Delimitação da Terra Indígena Maró/PA.

A atuação da indústria madeireira já tem causado assoreamento de cabeceiras de

igarapés como o Tirirical, Tobias e Raposa. O comprometimento destas cabeceiras tem

conseqüências negativas relevantes, especialmente para a aldeia de Novo Lugar, local

onde todas estas desembocam. No entanto, por ser esta a comunidade localizada à

montante, certamente as demais também sofrerão com a diminuição do fluxo do rio

Maró e destruição de locais importantes para a reprodução de peixes. (FUNAI, 2011)

O conflito, ao passo que se dá diretamente com agentes econômicos locais, tem

como agente principal o Estado brasileiro, que em lógica desenvolvimentista almeja a

integração dos territórios indígenas e seus respectivos recursos naturais aos processos

econômicos, apesar da retórica de defesa da pluralidade sociocultural (Verdum, 2008).

Apesar dos avanços conceituais e legais, vigora ainda a prática do velho SPI de

‘abertura dos sertões à iniciativa dos particulares’ (Freire 2009, p. 31). Por outro lado,

indígenas recentemente assumidos retomam “suas tradições a partir de uma identidade

genérica de caboclos já assimilados” (Arruti 1997, p.11), fazendo-se assim sujeitos

políticos, subvertendo a indistinção (ibidem, p. 19) e o projeto geopolítico regional.

Um trecho do relatório de identificação e delimitação da TI Maró se refere a essa

situação de conflito, com as cabeceiras dos igarapés, lugares sagrados para os indígenas,

com o acesso impedido por cercas e porteiras.

Os limites apresentados no mapa de autodemarcação, em alguns momentos, contrastam

com as narrativas proferidas pelos indígenas quando da entrada na mata e da utilização

dos recursos naturais lá existentes. Alguns igarapés (especialmente suas cabeceiras),

como o do Cachimbo e do Arraia, são tidos pelos indígenas como importantes, mas não

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aparecem nos limites geográficos. Lendo o mapa de autodemarcação é possível perceber

que todos os pontos de conflito e na qual os indígenas se sentem pressionados em seu

território não são contemplados, numa nítida reação de medo as ameaças sofridas.

(FUNAI, 2011).

A história dos Borari e Arapium ganhou uma inflexão com o reconhecimento

oficial da Terra Indígena Maró. Fato novo é que após o reconhecimento os madeireiros

propuseram um acordo: abrem mão do pedaço de terra disputado, contanto que os

indígenas afirmem que ali não existe conflito. É a estratégia dos madeireiros para

ganharem a certificação que anseiam. Até aqui a resistência tem sido uma palavra

definidora dessa história, construída com o desejo de pertencer a um povo, a um lugar e

a uma luta. A conquista da terra fortaleceu a identidade, que tem a ver com

continuidades históricas, inclusive territoriais. Agora eles almejam uma vida melhor

sobre o território conquistado. Eles almejam educação e saúde indígenas em padrão

superior aos tacanhos serviços atuais, assim como a utilização autônoma dos recursos

naturais na terra indígena demarcada, e são movidos por esses direitos. Os indígenas

têm consciência que território é construção.

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