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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X INCLINA TEU CÂNTARO PARA QUE EU BEBA: O FEMININO PELOS OLHOS DA AUTORA JAVISTA DO PENTATEUCO Mariana Aparecida Venâncio 1 Resumo: O corpus literário denominado pela exegese bíblica como Pentateuco é resultado da compilação de várias tradições literárias, dentre as quais a mais antiga é a chamada Javista (J). Harold Bloom argumenta a favor da hipótese de que sua autora teria sido uma mulher e os seus rastros poderiam ser encontrados, sobretudo, em Gênesis e Êxodo. O discurso que trata as narrativas do Pentateuco como patriarcais não se aplica aos enredos de J. Ela não constrói a figura de heróis, ao passo que a interpretação bíblica tem conferido grande realce às personagens masculinas. Suas personagens femininas são adornadas de qualidades que, ausentes nas personagens masculinas, contrastam com atitudes de fraqueza, imaturidade e dependência, que as deixam à sombra dessas emblemáticas mulheres. Nosso estudo busca retomar as considerações e razões de Harold Bloom para afirmar a autoria feminina por detrás desta fundamental tradição. É também nossa proposta analisar as características marcantes das quatro Matriarcas em J: Sara, Rebeca, Raquel e Lia, atentando para as tramas e escolhas nas quais estão envolvidas. Esta é, portanto, uma proposta de releitura da obra da autora J, que busca colocar em relevo as virtudes que moldam o ser de suas mulheres. Para Emmanuel Levinas, tais qualidades tornam-se paradigmas para a construção de um conceito de Feminino que se deve encontrar em todo ser humano como uma busca por justiça no amor e uma interrupção da autocomplacência que implica em existir para o outro. Palavras-chave: Feminino. Javista. Matriarcas. Literatura Bíblica. Harold Bloom. Introdução Harold Bloom, na obra O Livro de J (1992), propôs a tese de que os textos mais antigos que encontram-se na origem da compilação atual do Pentateuco teriam sido obra de uma mulher. Sua abordagem não visa privilegiar um grupo específico de leitores ou leitoras, mas encontra-se apoiada numa séria investigação e em argumentos contra os quais é difícil levantar-se. Encontrar a autora J só é possível percorrendo um caminho de reconhecimento de recursos literários, detalhes e ironias que abrem hermenêuticas encantadoras sobre a totalidade do clássico ao qual chamamos Bíblia. As mulheres construídas por J são a imagem da alteridade feminina proposta por Emmanuel Levinas. As considerações do filósofo são o pano de fundo para a leitura que propomos a respeito de suas figuras, a fim de encontrar nelas as virtudes que emergem do feminino como modelos para toda pessoa. A desleitura feita sobre a obra de J buscou, no mais das vezes, dar destaque às figuras masculinas. Na verdade, Sara, Rebeca, Raquel e Lia são, ao lado de outras mulheres, algumas daquelas que, no silêncio e na discrição, ditaram as regras de suas gerações e alinhavaram o destino 1 Mestranda em Letras pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF). Bacharel em Teologia pela mesma instituição. E-mail: [email protected]

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

INCLINA TEU CÂNTARO PARA QUE EU BEBA:

O FEMININO PELOS OLHOS DA AUTORA JAVISTA DO PENTATEUCO

Mariana Aparecida Venâncio 1

Resumo: O corpus literário denominado pela exegese bíblica como Pentateuco é resultado da

compilação de várias tradições literárias, dentre as quais a mais antiga é a chamada Javista (J).

Harold Bloom argumenta a favor da hipótese de que sua autora teria sido uma mulher e os seus

rastros poderiam ser encontrados, sobretudo, em Gênesis e Êxodo. O discurso que trata as

narrativas do Pentateuco como patriarcais não se aplica aos enredos de J. Ela não constrói a figura

de heróis, ao passo que a interpretação bíblica tem conferido grande realce às personagens

masculinas. Suas personagens femininas são adornadas de qualidades que, ausentes nas

personagens masculinas, contrastam com atitudes de fraqueza, imaturidade e dependência, que as

deixam à sombra dessas emblemáticas mulheres. Nosso estudo busca retomar as considerações e

razões de Harold Bloom para afirmar a autoria feminina por detrás desta fundamental tradição. É

também nossa proposta analisar as características marcantes das quatro Matriarcas em J: Sara,

Rebeca, Raquel e Lia, atentando para as tramas e escolhas nas quais estão envolvidas. Esta é,

portanto, uma proposta de releitura da obra da autora J, que busca colocar em relevo as virtudes que

moldam o ser de suas mulheres. Para Emmanuel Levinas, tais qualidades tornam-se paradigmas

para a construção de um conceito de Feminino que se deve encontrar em todo ser humano como

uma busca por justiça no amor e uma interrupção da autocomplacência que implica em existir para

o outro.

Palavras-chave: Feminino. Javista. Matriarcas. Literatura Bíblica. Harold Bloom.

Introdução

Harold Bloom, na obra O Livro de J (1992), propôs a tese de que os textos mais antigos que

encontram-se na origem da compilação atual do Pentateuco teriam sido obra de uma mulher. Sua

abordagem não visa privilegiar um grupo específico de leitores ou leitoras, mas encontra-se apoiada

numa séria investigação e em argumentos contra os quais é difícil levantar-se. Encontrar a autora J

só é possível percorrendo um caminho de reconhecimento de recursos literários, detalhes e ironias

que abrem hermenêuticas encantadoras sobre a totalidade do clássico ao qual chamamos Bíblia.

As mulheres construídas por J são a imagem da alteridade feminina proposta por Emmanuel

Levinas. As considerações do filósofo são o pano de fundo para a leitura que propomos a respeito

de suas figuras, a fim de encontrar nelas as virtudes que emergem do feminino como modelos para

toda pessoa. A desleitura feita sobre a obra de J buscou, no mais das vezes, dar destaque às figuras

masculinas. Na verdade, Sara, Rebeca, Raquel e Lia são, ao lado de outras mulheres, algumas

daquelas que, no silêncio e na discrição, ditaram as regras de suas gerações e alinhavaram o destino

1 Mestranda em Letras pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF). Bacharel em Teologia pela mesma

instituição. E-mail: [email protected]

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pelo qual seguiu a nação de Israel. É interessante como nisto se confundem personagens e autora:

aparentemente à sombra e num silêncio que grita mais que qualquer profusão de palavras, J foi

responsável pela construção da primeira imagem de Deus na literatura e na religiosidade

monoteísta. Discretas em sua autoridade, estas cinco mulheres são paradigmas para a compreensão

da essência e do propósito concernentes ao feminino.

Quem foi J e qual foi sua participação na construção identitária de Israel?

É um consenso para a atual pesquisa bíblica que o conjunto dos cinco primeiros livros da

Bíblia, reunidos sob o título de Pentateuco, seja resultado da compilação de quatro diferentes

tradições escritas, a saber: Javista (J), Eloísta (E), Sacerdotal (P) e Deuteronomista (D). Agindo

como um organizador, figura a contribuição de um Redator (R), responsável por reuni-las e

rearranjá-las, apresentando-as no formato como hoje se encontram na composição deste conjunto de

livros. Dispondo de ferramentas exegéticas e literárias, é possível alguma delimitação que revele as

peculiaridades destas diferentes tradições. O estudo que iniciamos detém-se sobre a mais antiga

delas, a tradição Javista (J), cuja redação está situada em torno do séc. X a.E.C.

A importância de se retomar o estudo da obra J reside no fato de que ela é a primeira

tradição escrita a respeito da religiosidade de Israel e traz as indicações mais próximas das

originárias acerca da compreensão de Deus como o YHWH que revelara-se ao povo.2 Em outras

palavras, temos em J a primeira elaboração a respeito de Deus registrada pela escrita. Sua

contribuição deu origem ao monoteísmo israelita, e mais tarde, estaria também na base das outras

duas religiões monoteístas existentes além do Judaísmo: o Cristianismo e o Islamismo.

Ao lado da substancialidade de J enquanto testemunho mais puro a respeito da compreensão

de Deus, está uma proporcional desleitura feita sobre suas linhas, que, segundo Harold Bloom,

começou com a redação da segunda tradição, a Eloísta, e foi coroada pelo Redator. Depois que J

escreveu, grandes foram as tentativas de encobrir algumas de suas ideias e adequá-las às novas

práticas religiosas que surgiam e já não eram mais consoantes com as apresentações de J. Partindo

do autor Eloísta, passando pelo Redator e chegando aos leitores atuais da Bíblia, tal processo de

desleitura fez com que muitas preciosidades de seu texto fossem encobertas por diferentes

2 A assim chamada hipótese documentária a respeito de J, E, D, P e R, inaugurada pelo teólogo e orientalista alemão

Julius Wellhausen (1844-1918), sua aceitação entre os pesquisadores e a antiguidade de J são apontadas por John

Bright, em sua História de Israel (2010); Felix Gradl e Franz Stendebach em Israel e seu Deus (2001); Walter Vogels

em Abraão e sua lenda (2000) e tantos outros.

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interpretações que, em muitos casos, contrastam completamente com a mensagem que de fato se

abriga sob as letras de J.

A retomada e a leitura cuidadosa da sua obra deve objetivar a recuperação desta mensagem

originária, desvencilhados os acréscimos e reajustes que sobre ela se remendaram ao longo de todos

estes anos de desleitura. J não é uma pequena tradição situada ao lado de tantas outras, mas, como

ressalta Bloom, “J mistura tudo a que tem acesso e produz uma obra de tão grande alcance e tão

universal que toda a Bíblia Hebraica, o Novo Testamento Grego e o Corão Árabe poderiam se

fundar sobre ela” (Bloom, 1992, p. 31).

A hipótese de Bloom, que aqui pretendemos seguir de perto, é a de que J tenha sido uma

mulher. Trataremos como verdadeiras suas proposições, retomando seus apontamentos, conscientes,

no entanto, de que nenhuma de nossas afirmações pode ser comprovada com a totalidade da certeza.

Resguardamos nossa análise da mesma forma como o referido autor justificou a possível resistência

com relação a seus argumentos, afirmando:

Já que estou consciente de que minha visão de J será condenada como fantasia ou ficção,

começarei observando que todos os relatos da Bíblia são ficções eruditas ou fantasias

religiosas, e geralmente servem a propósitos bastante tendenciosos. Ao propor que J era

uma mulher, não estarei favorecendo os interesses de nenhum grupo religioso ou

ideológico. Ao contrário, estarei tentando, através dos meus anos de experiência de leitura,

dar as razões para a minha crescente impressão das diferenças surpreendentes entre J e

qualquer outro escritor bíblico (BLOOM, 1992, p. 22).

Escrevendo no contexto da corte do Rei Salomão, em Jerusalém, no período que ficou

conhecido como Iluminismo Salomônico, nas primeiras décadas do séc. X a.E.C, J foi a primeira

dentre os escritores bíblicos, ainda que esta não tenha sido sua pretensão. Não foi teóloga, nem quis

escrever um livro que pudesse ser utilizado para o culto. Sua preocupação, provavelmente, era

exclusivamente literária. Decorre de um esforço contrário aos seus objetivos o primeiro equívoco

que se pratica em sua leitura, uma vez que a maioria dos que se debruçam sobre a Bíblia não

conseguem desvinculá-la de seu caráter religioso ou mesmo cultual.

O que nos interessa, no entanto, não é apenas encontrar uma mulher J, a fim de colocar na

pena de uma autora a primeira imagem de Deus construída na Literatura, ou abrigar sob a

responsabilidade da criatividade feminina a origem da religiosidade monoteísta que perdura até

hoje. O objetivo principal destas considerações é mostrar as razões levantadas por Bloom para

reconhecer uma autoria feminina por detrás desta tradição que faz perder lugar a interpretação

patriarcal sobre ela lançada por tanto tempo. Em outras palavras, mais importante que admitir uma J

mulher é mostrar que sua obra não é patriarcal como a desleitura que se tem feito dela.

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Na busca por se traçar um perfil para a J escritora, Bloom reconheceu em seu texto traços de

uma ironia muito específica. Em suas histórias, há um contraste entre o que deveria acontecer na

narrativa e o verdadeiro efeito que provocam, muitas vezes percebido apenas por quem lê. De fato,

um grupo de personagens em J é, com frequência, enganado e ludibriado. Neles não há nada da

soberania de quem é senhor de si, do próprio destino e da própria história. Estão sempre sujeitos aos

artifícios dos outros, das circunstâncias que os envolvem e da perspicácia de sua autora. Para este

grupo, apenas os leitores estão num lugar que os permite vislumbrar todas estas nuances, sob o

perigo constante de serem surpreendidos por J. O interessante é que, neste grupo, não se podem

incluir as personagens femininas, pois elas são o grupo antagônico, dos que têm voz e o controle

das situações, mesmo que no silêncio.

Ao lado dos jogos de palavras, dos trocadilhos e das repetições de motivos verbais

específicos, J constrói sua arte narrativa com base no uso estratégico da elipse. Em suas histórias, a

economia fala mais do que a profusão das palavras, porque é exatamente quando J parece silenciar

que ela está, na verdade, canalizando a atenção do leitor para aquilo que realmente quer evidenciar.

A maior estranheza provocada por J, dentre todas as suas ironias e elipses, talvez seja seu modo

antropomórfico de mostrar a figura de Deus. Ele é apresentado como um menino brincando com um

bonequinho de barro já em sua primeira aparição3. É interessante o que Bloom observa:

Não surpreende que o Redator tenha escolhido começar o que hoje chamamos de Gênesis

com a versão de P da Criação, uma vez que, para ele, seria muito mais fácil assimilar P do

que a vívida crônica das origens primordiais em J (...). Yahweh molda o barro, não como

faz o oleiro, mas à maneira de uma criança que faz tortas de lama, livremente, com suas

próprias mãos (BLOOM, 1992, p. 41, grifo do autor).

Talvez o argumento que mais pese a favor da aceitação de uma J mulher seja a maneira

como ela apresenta suas personagens femininas. Primeiro, há a singularidade da narrativa da criação

da mulher, sem precedentes em nenhuma outra cultura vizinha de Israel. Na narrativa que abre a

obra de J, segundo relato da criação que aparece no livro do Gênesis (Gn 2,4b-25), o espaço

dedicado à criação da mulher é seis vezes maior que o dedicado à criação do homem, mas a riqueza

encontrada aí vai além:

Devemos nos deter aqui por um momento e contrastar o Yahweh artífice da mulher com o

outro Yahweh, muito mais infantil e travesso, criador do homem. Não é somente o fato de

que J concedeu à criação da mulher seis vezes mais espaço que à do homem; é a diferença

entre fazer uma torta de lama e construir uma estrutura muito mais elaborada e admirável.

O homem fornece (involuntariamente) a substância com a qual Yahweh dá início a esta

3 Para o leitor que se interessar por conhecer a delimitação do texto atribuído à autora J, será valioso consultar a já

citada obra de Harold Bloom. O livro de J inicia-se com o relato da criação que encontramos em Gn 2,4b-25, que é,

portanto, mais antigo do que aquele que aparece primeiro no formato atual da Bíblia. Este, encontrado em Gn 1,1–2,4a

e cuja autoria é atribuída à tradição Sacerdotal (P), é mais recente.

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segunda criação, que se revela muito maior. Mas isto significa que a mulher é criada a

partir de um ser vivente, e não do barro. Ela supostamente é animada, e Yahweh não

necessita insuflar suas narinas. Com certeza a ironia de J está em que, na segunda vez,

Yahweh já aprendeu melhor como fazer o seu trabalho (BLOOM, 1992, p. 196).

Dessa forma, J escolheu iniciar sua obra com uma narrativa inteiramente nova, sobre uma

criação a respeito da qual ainda ninguém se perguntara. E sua narrativa revela um ato criador

especial e singular diante da totalidade das criaturas. Se detivermos nosso olhar, por outro lado, nas

personagens construídas por J, seremos capazes de perceber que J não tem heróis, mas somente

heroínas. Nem mesmo YHWH é um herói em J. Ele tem diversas características negativas:

inconstância de opiniões, ciúme, ira implacável, e em alguns casos, parece agir como uma criança

mimada.

Ao mesmo tempo em que YHWH é antropomórfico, os homens das narrativas de J são

frequentemente teomórficos, o que não lhes garante grandes feitos: são semelhantes a Deus mais em

suas características negativas do que nas positivas. Abraão, Isaac, Jacó e Moisés são cheios de

inconstâncias e fraquezas, assim como o Deus que J constrói. Apenas as mulheres estão

desvinculadas deste rol de fragilidades. Elas são os verdadeiros paradigmas pessoais das narrativas,

que representam o ideal para o qual caminham as demais personagens, mesmo o YHWH. Sobre as

quatro matriarcas que figuram neste grupo de mulheres é que nosso estudo deter-se-á daqui em

diante, na pretensão de recuperar suas principais virtudes assim como apresentadas por J.

Sara, Rebeca, Raquel e Lia: o feminino que emerge das matriarcas

É verdade que, lançando mão de recursos literários sofisticados, os autores dos textos

veterotestamentários souberam ocultar de maneira brilhante sob suas letras a reflexão inesgotável a

respeito de seus temas. O fio condutor dos textos que hoje lemos continua sendo a indagação a

respeito da interseção da transcendência com aquilo que é essencialmente humano. A obra de J é

um exemplo claro do que afirmamos, uma vez que seus personagens não abandonam por nenhum

momento o que é mais característico da humanidade que se encontra por toda a parte: eles não são

de modo algum idealizados, mas sim testemunhas fiéis das piores mazelas e das melhores virtudes

humanas. Assim são construídas as figuras de Abraão, Sara, Moisés, Tamar ou mesmo YHWH.

A obra de J é o resultado da reflexão de alguém que perguntava-se a respeito do ser humano

partindo do ponto de vista de seus relacionamentos. Não encontramos histórias que discorram sobre

a individualidade do homem, a não ser em confronto com a urgência do reconhecimento da

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alteridade. A consciência da existência do outro e a interpelação da epifania de seu rosto são o

fundamento para a compreensão dos enredos de J.

Emmanuel Levinas associou, de maneira muito ajustada, os conceitos de alteridade e

hospitalidade, na percepção de que o reconhecimento da identidade do outro exige sua acolhida.

Para ele, o feminino é a representação da alteridade absoluta, do que é diferente, do que é

totalmente Outro e chega a produzir certo estranhamento. O que Levinas chama de alteridade

feminina percebe-se de maneira muito clara se olhamos detidamente para as mulheres construídas

por J. São elas quem oferecem, nestes enredos, a imagem de quem é estrangeiro, não só por virem

de uma terra longínqua, mas principalmente porque são essencialmente diferentes. E mesmo sendo

tão estrangeiras, exiladas em si, são também elas quem oferecem albergue. Acolhem, recebem e

conferem autoridade. São a personificação do recolhimento como referido por Levinas em seu

clássico Totalidade e Infinito (1980):

Para que a intimidade do recolhimento possa produzir-se na ecumenia do ser é preciso que

a presença de Outrem não se revele apenas no rosto que desvenda a sua própria imagem

plástica, mas que se revele, simultaneamente com essa presença, na sua retirada e na sua

ausência. Essa simultaneidade não é uma construção abstrata da dialética, mas a própria

essência da discrição. E o Outro, cuja presença é discretamente uma ausência e a partir da

qual se realiza o acolhimento hospitaleiro por excelência que descreve o campo da

intimidade, é a Mulher. A mulher é a condição do recolhimento, da interioridade da Casa e

da habitação (LEVINAS, 1980, p. 138).

J garante, assim, em suas personagens femininas, que a ambientação da casa, da tenda ou do

campo, os enredos de hospitalidade e as relações de intimidade apontem para significados mais

amplos e mais internos do que aparentam. Sua existência, suas motivações e o dom de si que se

ocultam sob os simples enredos que as envolvem são a imagem mais próxima que J construiu para

expressar o que ela entendia ser o dom que Deus fez de si mesmo a seu povo. Nas virtudes destas

mulheres, estão ocultos, portanto, um modelo perfeito de amor e um convite a espelhar-se nele, que

faz-se a cada um e cada uma que leia estas singulares narrativas.

Na primeira vez em que, na Bíblia Hebraica, um homem dirigiu a palavra a uma mulher, o

dom da vida ocupou lugar central. Em Gn 12,11-13, Abraão fala pela primeira vez com Sara e sua

fala traduz um apelo quase desesperado:

Mas Abraão continuou, partiu para o Negueb. Então olha: a fome assola a terra. Abrão foi

mais longe, para o Egito, viver – a fome dominava a terra. Quando chegava ao Egito, ouve:

“olhando para ti”, disse a sua mulher, Sarai, “és a mulher mais linda que já conheci...

Imagina os egípcios quando te virem – ‘Esta é a mulher dele’. Então sou morto; e tu,

poupada. Diz em prol de mim que és minha irmã, pelo meu bem e por tua causa. Se minha

carne vive é graças a ti e contigo” (BLOOM, 1992, p. 92)4.

4 Para as citações dos textos bíblicos neste estudo, utilizaremos a tradução da parte atribuída à autora J, feita por David

Rosenberg e comentada por Harold Bloom. O texto completo encontra-se n’O Livro de J (1992).

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O pedido pela vida está vinculado à constatação da beleza de Sara e parece ser esta a

qualidade que garantirá a sobrevivência de Abraão. Ele está totalmente vulnerável nesta lacuna de

tempo em que aguarda a aceitação da mulher à proposta apresentada e que exige dela renúncia e

silêncio. Abraão, o patriarca, aquele que leva adiante, até então sozinho, o projeto de YHWH, de

repente dirige a palavra a uma mulher e mostra-se inteiramente dependente dela. Por este motivo, a

autoridade de Sara, ao assumir a renúncia e o silêncio, não será diminuída, mas antes, elevada ao

mais alto grau, pelo exercício pleno do dom de si ao outro.

A beleza é uma característica comum também a Rebeca e Raquel. Segundo a narrativa

bíblica de Gn 24,16, Rebeca era uma jovem “linda como uma aparição, tão pura, uma mulher que

nenhum homem conhecera” (Bloom, 1992, p. 108). Catherine Chalier, ao comentar sobre As

matriarcas (1992) lembra-nos de que Sara já é de idade avançada e, portanto, sua beleza indica a

eternidade:

Ligada à fragilidade inerente a cada criatura, ao tempo que nada deixa intacto, a beleza,

assim como a confissão de um inacessível, passa por sobre os homens e sua história (...).

figura, no tempo, daquilo que o transcende, a beleza seria criada não tanto para habitar um

ser, mas, antes, para se transmitir como se, também desse modo, nesta necessidade de

comunicar a um outro, em outro, aquilo que se recebeu, se conjugasse o ser-para-outro da

humanidade do homem. Se Sara permaneceu bela, apesar da velhice, (...) não seria porque

nela, por ela, ganha corpo a promessa de uma Aliança eterna, inaugura-se a revelação

daquilo que não passa? Sara mostra, no eterno presente de sua beleza, a imagem da

Presença que ela soube acolher (...) (CHALIER, 1992, p. 19).

O contexto do reconhecimento da beleza de Rebeca também coincide com um apelo à vida,

ainda que mais velado. Quando o servo de Abraão encontra-se parado junto ao poço, em Gn 24,12-

14, faz um pedido a Deus:

“Yahweh”, ele disse, “meu senhor Deus de Abrão, permita que aconteça, hoje em minha

presença. Mostra ternura pelo meu senhor, Abrão. Olha, pus-me aqui, próximo ao poço, as

filhas da cidade vêm para tirar água. Permita que a jovem mulher que me atrai – a quem

direi ‘Por favor, inclina teu cântaro para que eu beba’ – diga ‘Bebe, e deixa que eu dê de

beber também a teus camelos’. Que ela se mostre a desvelada para o servo de Isaac, e para

teu servo Isaac. Por meio dela possa eu ver a ternura que mostrar para meu senhor”

(BLOOM, 1992, p. 108).

O pedido do servo a Deus é, na verdade, o estabelecimento de uma condição à qual a moça

deve satisfazer para que possa ser escolhida para mulher de Isaac. O servo de Abraão, neste caso,

age de maneira lógica: se a moça atender ao pedido que ele fizer, isto será um indicativo de que ela

atende também aos requisitos de Deus para a esposa de Isaac. E a condição escolhida pelo servo é

exatamente a do oferecimento e do dom. O pedido dele, numa tradução mais literal de Gn 24,14,

seria: Baixa, por favor, teu cântaro e beberei. Ele repete o por favor que aparecera na fala de

Abraão a Sara e reaparecerá quando Judá quiser deita-se com Tamar, em Gn 38,15. O pedido para

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beber da água de Rebeca é também um pedido pela vida, aqui situado num contexto de sede,

enquanto o pedido de Abraão estava ao redor da fome. O pedido e sua correspondência tornam-se

motivo favorável para que Rebeca seja a matriarca sucessora de Sara, aquela que já havia

assegurado a vida de Abraão pela renúncia e solicitude. A condição permanecerá também quando

for escolhida Raquel, numa cena emocionada e igualmente rica em significados.

As situações ao redor do poço relacionam-se diretamente à questão da maternidade, isto

porque o poço, na Bíblia Hebraica, é símbolo da fertilidade. A cena mais emblemática delas é a de

Raquel, na qual existe uma dificuldade de acesso à água do poço, reafirmada pelo narrador no

decorrer do relato. No início da narrativa situada em Gn 29, o leitor já é informado, no v.2, de que a

pedra que tapava a boca do poço era grande. Adiante, o narrador explica que, somente quando todos

os rebanhos estivessem reunidos, é que a pedra poderia ser removida. Mais uma vez a dificuldade é

reafirmada pela fala dos pastores de Harã no v.8. Apesar do empecilho três vezes indicado, Jacó irá

retirar a pedra do poço em favor de Raquel, indicando uma futura superação do problema da

esterilidade.

O adjetivo estéril (‘aqarah) é mais indicativo de uma condição passageira do que de uma

identidade. As matriarcas escolhidas, com exceção de Lia, são estéreis por um tempo, não por conta

de uma disfunção biológica. O termo é indicativo da situação de não ter filhos. Embora o padrão da

esposa estéril que concebe e dá a luz seja frequente nos textos bíblicos5, parece não incomodar,

mesmo os leitores mais atentos. Na verdade, ele deveria provocar diversas indagações, das quais

algumas interessam à leitura que aqui propomos: qual é o propósito da esterilidade atribuída a este

conjunto de mulheres? Se olhamos especificamente para Lia, por que ela é exatamente o oposto das

demais no que se refere à maternidade?

A tradição por detrás da consciência da autora J, antes mesmo que existisse qualquer escrito

oriundo da religiosidade de Israel, olhava para YHWH como o Deus do Êxodo, evento no qual

revelara-se, antes de tudo, sua virtude de escuta ao clamor do povo que sofre. Assim, os primeiros

atributos de YHWH são a sensibilidade ao sofrimento e à angústia e o socorro que transforma a

condição subalterna em triunfo e alegria. A esterilidade, nestas narrativas, insere Sara, Rebeca e

Raquel neste grupo de mulheres pertencentes a Israel que sofrem por não ter filhos. Assim como

Abraão, Isaac, Jacó e tantos outros, fizeram a experiência do exílio para experimentarem o que é ser

Israel, as três fazem a experiência profunda da angústia de não ter filhos. Ventre fechado talvez seja

a mais real destas experiências, exatamente porque é um problema situado no útero. Em hebraico,

5 Além de aparecer nas histórias de Sara (Gn 16), Rebeca (Gn 25) e Raquel (Gn 30), acontece também com a mãe de

Sansão (Jz 13), com Ana (1Sm 1) e Isabel (Lc 1), por exemplo.

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ventre é rehem, uma palavra que tem a mesma raiz de amar profundamente, ser compassivo e ter

misericórdia6. Ora, a Sara, Rebeca e Raquel, mulheres estéreis, fecham-se o amor, a benevolência e

a misericórdia.

A experiência da esterilidade, que é de modo prático e literário, uma experiência muito mais

profunda do que a simples ansiedade de quem quer um filho, é a condição suficiente para que Deus

as ouça em suas orações, abrindo-lhes o ventre e mostrando-lhes benevolência. Lia não necessita

desta experiência porque é subjugada antes mesmo que abra-se a ela a possibilidade de vir a ter

filhos. O texto bíblico é frio e mesmo vil ao rebaixá-la tanto, com o objetivo de ressaltar as virtudes

de Raquel. Mesmo com papel crucial na história do povo, ela não é inserida na cena-padrão de

casamento7 e é descrita com “olhos lindos” (BLOOM, 1992, p. 125) enquanto Raquel “era mais

bem formada, uma visão arrebatadora” (BLOOM, 1992, p. 125). Jacó “amava Raquel, e não Lia”

(BLOOM, 1992, p. 127) e rejeitou esta última após a noite de núpcias, aceitando o peso do trabalho

de quatorze anos por Raquel. A angústia de Lia, abandonada à sombra da beleza da irmã mais nova

e feita esposa por obrigação, é condição suficiente para que Deus possa escutá-la.

É na história das duas irmãs, porém, que vê-se com clareza o artifício narrativo de J, que

inverte as preferências do leitor e deixa oculta a maior virtude de Raquel, mais louvável que seu

porte ou sua beleza. Inseridos na narrativa pelo olhar de Jacó, que apaixona-se imediatamente por

Raquel, somos levados a desprezar Lia, como se ela tivesse usurpado o lugar da irmã. Catherine

Chalier chama atenção, no entanto, para a participação de Raquel no episódio da noite de núpcias.

Segundo a autora, após trabalhar sete anos na casa de Labão, Jacó conheceria perfeitamente

detalhes a respeito de Raquel, que o impediriam de confundi-la com Lia. Perfume, vestes e trejeitos,

que Lia precisaria imitar muito bem se quisesse parecer com a irmã, poderiam muito bem ter sido

emprestados e orientados por Raquel. Assim, as irmãs teriam sido cúmplices num processo de

renúncia por parte de Raquel, que provavelmente não teria suportado sobre si a culpa de deixar a

irmã mais velha entregue ao abandono, dificilmente superado se a mais nova se casasse e fosse

embora de sua casa.

A renúncia está diretamente associada a esse ser para o outro que motiva a ação silenciosa e

discreta destas mulheres. O amor que elas expressam traduz-se em ética. Exatamente aí é que torna-

6 Daí também vem o hesed, expressão hebraica que designa o amor divino, amor que vem das entranhas, da profundeza

do ser, como expressão máxima do amor. 7 A cena padrão de casamento acontece com Isaac (Gn 24), Jacó (Gn 29) e Moisés (Ex 2). É uma convenção literária

percebida no texto bíblico por Robert Alter em A arte da narrativa bíblica (2007) e tem por objetivo reunir estes

personagens por meio de uma narrativa semelhante que conta a história de seu casamento. Há diversos tipos de cena

padrão na Bíblia Hebraica, e não só nela, mas também nas obras de Homero, por exemplo.

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se possível e difícil se transpomos a mensagem bíblica para a atualidade. O modelo que está em

Raquel é um dos mais difíceis de ser alcançado. Segundo Chalier:

A ab-rogação do egoísmo do sujeito, de sua substancialidade e endurecimento na

perseverança no ser, o acesso à sua verdade ética – a significação do eu como ser para

outrem – continuam sendo, mais uma vez, com o episódio da renúncia de Raquel, uma

trama indissociável da história dos homens e mulheres fundadores do Povo da Promessa

(...). A condição de radical não-indiferença em face das misérias do outro, sempre mais

duras que as suas, em face de sua fundamental fraqueza, a comiseração e suas exigências,

não se devem reportar a um enfraquecimento do egoísmo do homem ou à sua determinação

repentina ao altruísmo (...) e sim, mais originalmente, à força do Bem sobre ele. Como se

nisto consistisse, de certo modo, o próprio transcendental da ética (CHALIER, 1992, p.

167).

A leitura das verdadeiras virtudes destas mulheres coloca em evidência seu papel singular na

história daquele povo que nascera com Abraão, mas jamais teria prosperado, não fosse o exemplo e

a força que emanaram destas figuras. Não podemos ignorar também a proeminência de mulheres

como Hagar, Tamar e Rute. Verdade é que sua presença, que se faz silenciosa, é um exemplo

prático da astúcia da arte literária da Bíblia: a expressividade é alcançada com a economia das

palavras. O silêncio que envolve a expressão das personagens femininas fala e ensina muito mais do

que a profusão de ações que cerca as personagens masculinas.

Sua renúncia e seu silêncio talvez tenham sido provenientes de sua experiência de exílio

constante, no oferecimento daquilo de que primeiramente necessitavam: hospitalidade. E como tudo

aquilo que ofereceram, também a hospitalidade de um teto fora apenas sinal para uma hospitalidade

interior, situada na esfera do íntimo. A essa modalidade de acolhimento temos denominado

hospintralidade.

Sara, Rebeca, Raquel e Lia, em algum momento de seu itinerário de entrada na história de

Israel, precisaram passar pela experiência do deslocamento de sua terra para uma outra, na qual

eram estrangeiras. Esta condição lhes obrigava a necessitar um acolhimento. Antes disso, porém,

elas já a haviam oferecido a seus futuros maridos, no contexto da cena de casamento. Apenas Isaac

não vai até a terra de Rebeca, mas o servo de seu pai é quem vai e torna-se hóspede.

Oferecer hospitalidade é algo arriscado. Permitir que o outro transponha a soleira da casa

pressupõe uma diferença de autoridade entre quem recebe e quem chega, e também uma

predisposição, por parte de quem acolhe, a romper a barreira da diferença e estabelecer igualdade.

Dessa forma, a hospitalidade é um gesto de oferecimento não só de abrigo e teto, mas de autoridade

e dignidade. Torna-se ainda mais completa e complexa quando se trata de hospintralidade, aquela

que é oferecida no âmbito da casa que é o próprio ser e que consiste em recepção do outro no

interior de si.

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A hospintralidade que Sara, Rebeca, Raquel e Lia oferecem a Abraão, Isaac e Jacó é

exatamente o que lhes confere a autoridade necessária para serem chamados Patriarcas. Isto se dá de

modo bem claro, porque em determinado momento eles precisaram de uma descendência que lhes

veio por uma hospedagem interior bem específica oferecida pelas respectivas esposas. Aliás, a

palavra autoridade tem a mesma raiz de autoria. Quando elas hospedam em si seus maridos,

oferecem-lhes a possibilidade de uma existência e de uma autoria sobre suas próprias identidades. O

risco é que eles ganham também autoridade sobre a identidade delas e é daí que lhes vêm tantas

angústias.

Considerações finais

Fato é, para efeito de um encerramento necessário, que a hospintralidade oferecida pelas

quatro matriarcas das quais falamos é a virtude central em suas imagens. É neste gesto que está

sintetizada sua oferta de si, sua atenção ao outro, sua renúncia e a dádiva que são elas mesmas. Nele

alcança sentido e grandeza o silêncio que guardaram, e compreende-se a expressividade que

alcançaram, em contraste com as frustrações das personagens masculinas.

Entendemos que a virtude essencial que J quis registrar em suas palavras é exatamente esta

praticada em favor do outro. Da mesma forma, o erro essencial não teria sido uma fruta comida

dentre tantas no Paraíso, ou uma desatenção à voz de Deus, ou mesmo a atenção à voz de uma

astuta e inteligente serpente falante, mas sim o atentado contra a vida do outro e a falta de

responsabilidade por seu bem. A grande ironia de J foi ter construído uma obra na qual Deus parece

figurar como personagem principal, mas ter colocado o modelo das virtudes nas personagens

femininas, [só] aparentemente secundárias.

Esperamos, nestas breves considerações, ter alcançado o objetivo de colocar em relevo o que

de melhor Sara, Rebeca, Raquel e Lia oferecem como modelo para sua posteridade, e que J

registrou com maestria para seus leitores. Abandonada ao que podemos chamar marginalidade

literária, sua capacidade de ser em favor do outro fica oculta sob tantas perguntas que se impõem ao

texto bíblico. Sua feminilidade que é autoridade e nunca submissão, que é reconhecimento e

acolhimento da alteridade, que é comprometimento com o bem do outro, e que traduz-se em luta

pela justiça, emerge, assim, como uma instância que deve ocupar e constituir o ser de todo homem e

mulher.

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Referências

ALTER, Robert. A arte da narrativa bíblica. Tradução Vera Pereira. São Paulo: Companhia das

Letras, 2007.

BLOOM, Harold. O Livro de J. Tradução Monique Balbuena. Rio de Janeiro: Imago, 1992.

BRIGHT, John. História de Israel. 9. ed. São Paulo: Paulus, 2010.

CHALIER, Catherine. As matriarcas: Sara, Rebeca, Raquel e Lia. Prefácio: Emmanuel Levinas.

Petrópolis: Vozes, 1992.

GRADL, Felix; STENDEBACH, Franz Josef. Israel e seu Deus: guia de leitura para o Antigo

Testamento. São Paulo: Loyola, 2001.

LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Tradução José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70,

1980.

VOGELS, Walter. Abraão e sua lenda: Gênesis 12,1 – 25,11. São Paulo: Loyola, 2000.

Incline your pitcher so I can drink: the female through the eyes of the author Jahwist of the

Pentateuch

Abstract: The literary corpus denominated by biblical exegesis as Pentateuch is the result of the

compilation of several literary traditions, among which the oldest one is called Jahwist (J). Harold

Bloom argues in favor of the hypothesis that its author would have been a woman and its traces

could be found, above all, in Genesis and Exodus. The discourse that treats the narratives of the

Pentateuch as patriarchal does not apply to the plots of J. It does not construct the figure of heroes,

whereas the biblical interpretation has given great importance to the male characters. Her female

characters are adorned with qualities that, absent from the male characters, contrast with attitudes of

weakness, immaturity and dependence, that leave them in the shadow of these emblematic women.

Our study seeks to retake the considerations and reasons of Harold Bloom to affirm the feminine

authorship behind this fundamental tradition. It is also our proposal to analyze the outstanding

characteristics of the four Matriarchs in J: Sara, Rebeca, Rachel and Lia, paying attention to the

plots and choices in which they are involved. This is, therefore, a proposal to rereading the work of

author J, who seeks to highlight the virtues that shape the being of her women. For Emmanuel

Lévinas, such qualities become paradigms for the construction of a concept of Female that must be

found in every human being as a search for justice in love and an interruption of self- complacency,

that implies in existing for the other.

Keywords: Female. Jahwist. Matriarchs. Bible Literature. Harold Bloom.