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rodrigo duguay poetica da imagem # 1 IMPRESSIONISMO Poética da Imagem Rodrigo Duguay INFLUÊNCIAS Realistas e Simbolistas como: Eugène Delacroix Henry Fuseli Caspar David Friedrich Jean Louis Théodore Géricault Francisco de Goya Entre outros...

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rodrigo duguay poetica da imagem

# 1

IMPRESSIONISMO

Poética da Imagem

Rodrigo Duguay

INFLUÊNCIAS

Realistas e Simbolistas como:

• Eugène Delacroix

• Henry Fuseli

• Caspar David Friedrich

• Jean Louis Théodore Géricault

• Francisco de Goya

Entre outros...

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# 2

Eugène Delacroix | A liberdade guiando o povo 1830 | OST 260x325cm | Museu do Louvre, Paris, França

Gustave Courbet | A moedora de grãos 1855 | OST 131×167 cm | Museu de Beaux‐Arts, Nantes, França

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# 3

Jean Francois Millet | As respigadeiras 1857 | OST 83.5×110 cm | Museu d'Orsay, Paris, França

Honoré Daumier | A Revolta 1860 | OST 88x113cm | Coleção Privada

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# 4

Honoré Daumier | Vagão de terceira, 1858 | at the Legion of Honor | Fine Arts Museums of San Francisco CA

IMPRESSIONISMO

• Movimento artístico que surgiu na pintura européia do século XIX.

• O nome do movimento é derivado da obra Impressão, nascer do sol (1872), de Claude Monet.

• Os autores impressionistas não se preocupavam com os preceitos do Realismo ou da academia.

• Abandono das temáticas nobres ou do retrato fiel da realidade.

• O quadro como obra em si mesma. • Elementos estruturais da pintura: A luz e o movimento • As telas eram pintadas ao ar livre para que o pintor

pudesse capturar melhor as variações de cores da natureza.

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# 5

Impressão, nascer do sol (1872), de Claude Monet.

"Impressão, Nascer do Sol -eu bem o sabia! Pensava eu, se estou impressionado é porque lá há uma impressão. E que liberdade, que suavidade de pincel! Um papel de parede é mais elaborado que esta cena marinha".

Pintor e escritor Louis Leroy

• A pintura deve mostrar as tonalidades que os objetos adquirem ao refletir a luz do sol num determinado momento, pois as cores da natureza mudam constantemente, dependendo da incidência da luz do sol.

• • É também com isto, uma pintura instantânea (captar o

momento), recorrendo, inclusivamente à fotografia.

• As figuras não devem ter contornos nítidos pois o desenho deixa de ser o principal meio estrutural do quadro passando a ser a mancha/cor.

• As sombras devem ser luminosas e coloridas, tal como é a impressão visual que nos causam. O preto jamais é usado em uma obra impressionista plena.

CARACTERÍSTICAS

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# 6

• Os contrastes de luz e sombra devem ser obtidos de acordo com a lei das cores complementares. Assim um amarelo próximo a um violeta produz um efeito mais real do que um claro-escuro muito utilizado pelos academicistas no passado. Essa orientação viria dar mais tarde origem ao pontilhismo

• As cores e tonalidades não devem ser obtidas pela mistura das tintas na paleta do pintor. Pelo contrário,devem ser puras e dissociadas no quadro em pequenas pinceladas. É o observador que, ao admirar a pintura, combina as várias cores, obtendo o resultado final. A mistura deixa, portanto, de ser técnica para se tornar óptica.

• Preferência pelos pintores em representar uma natureza morta do que um objeto.

CARACTERÍSTICAS

O Parlamento ao Por do sol, Londres, Claude Monet.

A pintura deve mostrar as tonalidades que os objetos adquirem ao refletir a luz do sol num determinado momento, pois as cores da natureza mudam constantemente, dependendo da incidência da luz do sol.

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# 7

Claude Monet - Madame Monet e seu filho ( O Passeio, a mulher de sombrinha)

Dama com arminho, Leonardo Da Vinci

Abandono das temáticas nobres ou do retrato fiel da realidade. O quadro como obra em si mesma.Elementos estruturais: Luz e movimento.

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# 8

Claude Monet – Alameda de Jardim em Giverny

As sombras devem ser luminosas e coloridas, tal como é a impressão visual que nos causam. O preto jamais é usado em uma obra impressionista plena.

Estação São Lázaro, Claude Monet.

Os contrastes de luz e sombra devem ser obtidos de acordo com a lei das cores complementares. Assim um amarelo próximo a um violeta produz um efeito mais real do que um claro-escuro muito utilizado pelos academicistas no passado. Essa orientação viria dar mais tarde origem ao pontilhismo

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# 9

Rua Saint-Denis, 30 de junho de 1878, Monet.

As cores e tonalidades não devem ser obtidas pela mistura das tintas na paleta do pintor. Pelo contrário,devem ser puras e dissociadas no quadro em pequenas pinceladas. É o observador que, ao admirar a pintura, combina as várias cores, obtendo o resultado final. A mistura deixa, portanto, de ser técnica para se tornar óptica.

PRINCIPAIS ARTISTAS

• Entre os principais expoentes do Impressionismo estão Claude Monet, Edouard Manet, Edgar Degas e Auguste Renoir. Poderemos dizer ainda que Claude Monet foi um dos maiores artistas da pintura impressionista da época.

Claude Monet

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# 10

Edouard Manet.

Édouard Manet não se considerava um impressionista, mas foi em torno dele que se reuniram grande parte dos artistas que viriam a ser chamados de Impressionistas. O Impressionismo possui a característica de quebrar os laços com o passado e diversas obras de Manet são inspiradas na tradição. Suas obras no entanto serviram de inspiração para os novos pintores.

Bar de Folie Bergére, Edouard Manet.

MANET

O Almoço na relva 1862‐63 | 208×265.5m |OST | Múseu d'Orsay | Paris | França

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# 11

Nesse canto do quadro, pode se ver  uma rãnzinha, que em francês é giria  para prostituta

Esta cesta no quadro é uma referência à  uma pintura de Rafael.A cesta virada simboloza a perda da inocência,  e por ela estar virada, mostra que a iguaria  dentro dela foi consumida.

Esse é o irmão de Manet, Éugene,que posou especialmente

para oquadro

A mulher nua no quadro é  Victórine  Meurent,  modelo de Manet  e suposta amante,note que ela encara  

diretamente o  observador do 

quadro

ao seu lado é seu genro,Ferdinand Leenhoff.

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# 12

Influências, apego ao clássico

Giorgione O Concerto Campreste1505‐10

Marcantonio Raimondi detalhe de O julgamento  de Páris gravura baseada em Rafael Sanzio 1520

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# 13

Almoço na Relva, Edouard Manet.

O bar do Folies Bergère 1882 | 96x130cm | OST | Courtauld Galllery | Londres

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# 14

Claude

MonetO mais dedicado lider do movimento

Claude Monet | Impresion Soleil Levant 1872 | OST | 48×63 cm | Museu Marmottan Monet | Paris

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# 15

Claude Monet | Mulher com guarda Sol 1875 | OST | 100x82cm | Galeria Nacional de Arte

Representava:

Luz e Sombra

no uso da captação  

das cores

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# 16

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# 17

EDGAR HILAIRE GERMAINDEGASParis 19/07/1834 | Paris 27/09/1917

•Foi um pintor, gravurista, escultor e fotógrafo francês.

•É conhecido sobretudo pela sua visão particular no mundo do balé,  sabendo captar os mais belos cenários.

“Jamais uma arte foi menos espontânea do que a minha.

O que faço é resultado da reflexão e do estudo dos antigos mestres.”

O absinto 1875‐76 | OST | Museu de Orsay

Sua grande preocupação era flagrar

um instante da vida das pessoas.

Poucas paisagens e cenas ao ar livre.  

Trabalhos em ambientes internos

INFLUÊNCIA DA FOTOGRAFIA INSTANTÂNEA

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# 18

O Rehearsal 1873 | OST 46x61 |

Miss La La at the Cirque Fernando 1879 | OST 117x78 | National Gallery

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# 19

As passadeiras de roupa, 1884 Depois do banho, 1888‐92

Objetivo: Juntar técnicas tradicionais com temas de sua época

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# 20

Edgard Degas 1881 bailarina aos 14 anos | MASP

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# 21

Aula de Dança, Edgar Degas.

.

Pierre-Auguste Renoir

Meninas ao piano.

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# 22

Dança, de Pierre-Auguste Renoir

• Pincipais pintores de influência impressionista brasileiros: Eliseu Visconti, Almeida Junior, Timótheo da Costa, Henrique Cavaleiro e Vicente do Rego Monteiro.

• No início do século XX, Eliseu Visconti foi sem dúvida o artista que melhor representou os postulados impressionistas no Brasil. Sobre o impressionismo de Visconti, diz Flávio de Aquino: "Visconti é, para nós, o precursor da arte dos nossos dias, o nosso mais legítimo representante de uma das mais importantes etapas da pintura contemporânea: o impressionismo. Trouxe-o da França ainda quente das discussões, vivo; transformou-o, ante o motivo brasileiro, perante a cor e a atmosfera luminosa do nosso País".

IMPRESSIONISMO EFEITOS NO BRASIL

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# 23

Eliseu Visconti

Trigal, Eliseu Visconti.

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# 24

A Carta, 1925

RESUMÃO PRA ENTENDER

• Rompe completamente com o passado.

• Inicia pesquisas sobre a óptica / efeitos (ilusões) ópticas.

• É contra a cultura tradicional.

• Pertence a um grupo individualizado.

• Falam de arte, sociedade, etc: não concordam com as mesmas coisas porém discordam do mesmo.

• Vão pintar no exterior, algo bastante mais fácil com a evolução da indústria, nomeadamente, telas com mais formatos, tubos com as tintas, entre outras coisas.

• Grande influência da fotografia no impressionismo e vice-versa.

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Entrevista com Eduardo Peñuela

Poética da Imagem

ResumoA temática da Poética da Imagem tem sido trabalhada de forma crescente nos dias de hoje. Na presente entrevista, Eduardo Peñuela Cañizal situa esse campo de pesquisa, apontando limites e perspectivas com que hoje ela é objeto de indagação, além de relacioná-la no contexto da comunicação contem­porânea. Professor e pesquisador há longos anos no campo da semiótica da imagem, o entrevistado tem autoridade reconhecida na área, visualizada inclusive pela extensa produção a respeito, veiculada em livros e revistas do país e do exterior. Ex-diretor da Escola de Comunicações e Artes, da USP, acumulou larga experiência também na discussão da temática em encontros e congressos, nacionais e internacio­nais, realizados nesse campo de estudo.

NO- Como situar, hoje, o campo de estudo e pesquisa sobre poética da imagem?EP- Em princípio, a poética, quanto aos seus fundamentos, é um termo cujo conteúdo, de um lado, se relaciona com a função estética, tal qual definida por Jakobson. Por outro lado, ela se insere na tradição dos estudos de retórica, revitalizados por Roland Barthes na década de 1970, que já em 1964, publicara, no número 4 da revista Communications, seu famoso ensaio Rhétorique de l'image. Em 1968, Gerard Genette, retomando manuais esqueci­dos de autores como Lamy, Du Marsais, Crevier, Domairon e Fontanier, entre outros, divulga, no número 11 At Tel

Quel, periódico da vanguarda intelectual do momento, idéias defendendo a atualidade do estudo dos tropos em artigo intitulado La Rhétorique et l'espace du langage. Nesse contexto, um grupo de pesquisadores lança, em 1970, um livro que, ainda hoje, se configura fundamental. Refiro-me à Rhétorique Générale, de autoria de J.Dubois, F. Edeline, J.M. Klinkerberg, P. Minguet , F. Pire e H. Trinon. Traduzida em várias línguas, inclusive no português, esta obra parte do pressuposto de que é possível estabelecer princípios universais capazes de sistematizar a análise dos diversos processos metabólicos produ­zidos pelas chamadas figuras de linguagem. Vale dizer, por conseguinte, que as metáforas, por exemplo, subordinam suas múltiplas modalidades constitutivas, seja qual for a cultura em que se realizam, a determinadas causas invariáveis. Nessa perspectiva, a poética se instaura como uma disciplina cujo principal objetivo consiste em apontar o invariável subjacente a qualquer fenômeno que represente uma ruptura dos parâmetros morfológicos, sintáticos e semânticos de um sistema de signos. Em suas raízes, o sistema privilegiado pela Poética foi, quase sempre, o sistema verbal, apesar de Jakobson advertir que os fenômenos poéticos podem ocorrer em qualquer sistema de signos. Nas últimas décadas do século passado, surgem vários trabalhos, principalmente publicados em revistas, centrados nos valores propriamente poéticos de mensagens vi­suais. Paradigmas dessa tendência são, por exemplo, os números que o

Eduardo Peñuela Cañizal é professor e pesquisador, aposentado, junto à Escola de Comunicações e Artes da USP, Departamento de Cinema, Rádio e Televisão.

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periódico 11 Progresso Fotografico dedicou à manifestação dos tropos em mensagens fotográficas. Mas é com o aparecimento do Traité du Signe Visuel, livro lançado pelo Groupe µ em 1992, hoje traduzido em várias línguas, que os estudos sobre a poética do icônico e do plástico ganham consistência. Na atualidade, proliferam publicações dedicadas à poética, o que mostra a pujança deste domínio de estudos. Dentre elas, destaco a revista Visio, vinculada à Associação Internacional de Semiótica Visual. Neste periódico, o leitor poderá encontrar os resultados de pesquisas de ponta realizadas em vários países do mundo e, além disso, a diversidade de tendências que se entrecruzam, neste momento, no complexo território da poética: a manifestação estética nos objetos híbridos ou mestiços, a poesia de mensagens não-verbais dos mais diversos teores, os avanços tecno­lógicos utilizados na função de instrumentos forjadores de configura­ções expressivas originais e, portanto, geradoras de conteúdos insólitos, a plástica e a textura das imagens digitais enquanto traços materiais produtores de sentido, os processos de ruptura nas maneiras de contar, para citar tão somente alguns âmbitos de ocorrência. Pode-se dizer, enfim, que o campo da Poética congrega disciplinas de forte tradição humanística tais como a Filologia, a Estilística, a Estética, a Retórica, a Filosofia da Linguagem, a Lingüística, a Semiótica, a Lógica, Narratologia e a Iconografia, possibili­tando uma integração aberta ao diálogo com outros universos do saber, entre os que certamente estão os da Psica­nálise, da Antropologia e das Ciências ditas Cognitivas.

NO- É possível relacionar esta definição moderna de poética à mais tradicional?EP- Boa parte da crítica de arte que hojelemos em jornais de grande circulação utiliza o termo de maneira indiscrimi­nada. Fala-se sobre a poética de deter­minado autor, por exemplo, a poética de Regina Silveira, de Nelson Pereira dos Santos ou de Glauber Rocha. Isso é

estilo. Eu me filio àquele tipo de pensamento em que se entende poética como a disciplina que estuda os pressupostos invariáveis de considerá­vel conjunto de processos de ruptura ou alotopia, isto é, de fenômenos que alteram as formas expressivas e semân­ticas dos componentes de um sistema de signos qualquer. Os efeitos dessas transgressões se fazem sentir em unidades morfológicas ou sintáticas e, também, nos enunciados de uma frase ou de um relato. Num quadro de Picasso é freqüente encontrar contorções que transfiguram as formas ditas icônicas e num filme de Godard não será difícil constatar que a ordem de uma fábula convencional é desmantelada. Mas tais desvios, embora constituam caracterís­ticas do estilo desses autores, estão subordinados, mesmo que pareça paradoxal, a regras que valem também para outros autores. A elipse, para citar um recurso poético que recai sobre o relato de um quadro, um filme ou um romance, não é apanágio deste ou daquele artista. Conseqüentemente, a elipse é uma figura poética que pode ser utilizada por qualquer criador para conferir ao relato que ele desenvolve uma determinada forma. Vale dizer, portanto, que esse procedimento poético não é propriedade particular, digamos, de Godard ou de Resnais. É, isso sim, um molde poético do qual pode se servir um cineasta ou um pintor. Dessa perspectiva, parece-me mais coerente falar da maneira como o artista manipula o molde e não que o artista possui uma poética particular. Os falantes de uma língua têm, sem dúvida, suas singularidades, mas isso não significa que cada um desses falantes invente uma língua própria. Se assim fosse, ninguém se entenderia. A metáfora, seja em Guimarães Rosa ou em Portinari, sempre será identificada como tal pela simples razão de que essa figura detém, independente de suas particularidades e graus de originali­dade, as características estabelecidas pela poética em sua tarefa de classificar os tropos. Nesse sentido, o conceito moderno de poética se vincula ao pensamento aristotélico, principalmente

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quando se pensa que o filósofo grego perseguia os princípios universais subjacentes a qualquer processo poético. É suficiente prestar atenção no conceito de mimese para perceber esse propósito. Assim, por exemplo, Aristó­teles trata de diferenciar as artes a partir dos objetos imitados e do modo de imitar esses objetos, procurando, com isso, invariáveis de valor universal. Outro tanto se pode dizer quanto às suas idéias a respeito da metáfora, entendida por ele como o resultado da translação de um nome alheio, do gênero à espécie ou da espécie ao gênero. A metáfora seria, pois, uma “voz peregrina” e, se numa obra predomina essa figura, a decorrência semântica será fatalmente o enigma. Também se sabe que sobre a ambigüidade, questão predominante na poética de nossos dias, Platão derramou muita tinta em seus famosos diálogos. No Cratilo, por exemplo, discute em profundidade o problema da arbitrarie­dade dos signos, assunto extremamente relevante para o estudo da manifes­tação das figuras poéticas em sistemas não-verbais, tão manipulados na cultura contemporânea. Enfim, não se trata de traçar aqui um panorama diacrônico da evolução dos estudos retóricos e, por isso, creio que esses conceitos, retomados constantemente no transcorrer de muito séculos, permitem defender o pressuposto de que a poética de hoje mantém vínculos muito estreitos com a tradição. Prova evidente desses vínculos pode ser encontrada se cotejamos os conceitos de metáfora do Groupe µ com os de Aristóteles. A grande diferença radica numa crescente tentativa de precisão, de aperfeiçoar os moldes, esforço que se deixa sentir também se comparamos os conceitos de metáfora utilizados por Jakobson e Lacan com o modelo dessa figura construído pelos autores da Rhétorique Générale. Por outro lado, acredito, ainda, que, uma vez que em nossos dias os estudos de poética que se realizam a partir das mensagens visuais - cinema, fotografia, pintura, vídeo e todo tipo de configurações digitais - têm crescido consideravelmente e propiciado instru­mentos de leitura bastante eficazes, a

visita a alguns tratados clássicos destinados ao exercício de interpretar imagens depara surpresas extraordiná­rias. A esse respeito, julgo fascinantes os comentários de Filóstrato em seu livro Imagines. Suas recomendações, princi­palmente no atinente aos lugares em que se localiza a ambigüidade, são de uma atualidade impressionante. A famosa Iconologia de Cesare Ripa preserva ainda um insólito frescor e suas explicações nos fazem entender melhor o caráter argumentativo da metáfora, tese defendida pelo Groupe µ em trabalho que Jean-Marie Klinkerberg apresentou recentemente em Congresso celebrado na Universidad Autónoma de México. Acrescente-se a isso que algumas passagens de autores clás­sicos, caso específico do relato de Plínio em sua Historia Naturalis sobre a con­tenda dos pintores Zêuxis e Parrásios, merecem ser relidos, pois há neles pro­blemas, o da mimese fundamentalmente, que a poética de nossos dias começa a equacionar de modo adequado, já que também é de interesse da poética a questão dos gêneros e, nesse já lendário episódio é freqüente que os historia­dores da arte passem em branco, obcecados em encontrar as origens do gênero natureza morta, o fato, como conta Plínio, de os pássaros se aproxi­marem de um quadro para bicar os frutos que nele se representam. Eviden­temente, essa proeza conseguida por Zêuxis não é tão sutil quanto à da cor­tina pintada por Parrásios, capaz, no caso, não só de enganar os pássaros, mas o próprio Zêuxis (se é que Zêuxis, em verdade, foi ludibriado, pois, em mi­nha opinião, o famoso pintor grego fin­giu deixar-se enganar para mostrar aos que julgavam o certame que ele possui um entendimento de arte em que a ambi- güidade desempenhava um papel central).

NO- O objeto da ambigüidade, tem sido trabalhado na contemporaneidade?EP- Qualquer tipo de imagem construída em nosso tempo possui, por força, uma dupla ambigüidade. Uma que se mani­festa no texto propriamente dito e outra que se camufla nas relações que esse

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texto tem com outros textos de mo­mentos culturais pertencentes a espaços e tempos muito diferentes. Enquadrar, de ângulos insólitos, um torso feminino, como fizeram alguns fotógrafos surrealistas, para gerar configurações ambíguas é, sem dúvida, um recurso que interessa vivamente a poética. De igual maneira, quando se descobre que a forma dos testículos do touro pintado por Picasso em seu Guernica mantém uma relação ico- nográfica com o to do alfabeto grego e que a testa desse mesmo touro disfarça um a em posição vertical, os enunciados da pintura colocam em evidência um processo de intertextualidade através do qual se infiltra no famoso mural a mensagem de que esse bombardeio da cidade basca era “o começo do fim”. Também esse procedimento interessa à poética. Com os avanços tecnológicos, os recursos expressivos geradores de ambigüidade se multiplicaram de modo impressionante e, conseqüentemente, o conjunto dos objetos de estudo da poética hoje é maior do que nunca.

NO- Buñuel costumava citar a seguinte frase do filósofo catalão Eugênio D’Ors: “Tudo o que não é transição, é plágio”. Na boca de Buñuel, essa parece uma frase muito conservadora. É claro que ambos a diziam ironicamente, mas é que esta frase implica o universo da ruptura, talvez a ruptura seja esta transição. O que o senhor acha a respeito da ruptura?EP- A ruptura, entendida como poética, é um mecanismo que sempre existiu. Desde que o homem passa a ter uma relação social por meio da linguagem, desde que o ato de fala pode ser visto como um ato social, a ruptura se implanta como possibilidade. Portanto, ela existe até nas culturas mais primitivas. A ruptura, tanto a que se dá no plano da expressão quanto a que ocorre no plano do conteúdo, é inerente a qualquer sistema de signos. Sem ela, a linguagem seria monótona e a poesia não existiria. Quanto à frase de D'Ors citada, Buñuel caberia dizer, antes de tudo, que ela é unamuniana, pois foi Unamuno quem, no contexto espanhol,

defendia a tese de que qualquer inovação depende da tradição. Melhor ainda, a frase é quixotesca e não cabe dúvida quanto ao fato de que o cinema de Buñuel é quixotesco, poeticamente absurdo no sentido de que seu cinema lida com o realismo transcendido, traço da cultura hispânica que encontramos em Velázquez, em Cervantes, em Picasso e em Almodóvar. Do outro lado da “realidade” que nos circunda existem “lugares” onde a significação se esconde, é para esses “lugares” que a imaginação se dirige, procurando sempre o rumo de uma transcendência sem fronteiras. Nesse constante movimento de transição, os filmes de Buñuel mostram que é possível romper com a lógica do hábito, com as normas do costume e, sobretudo, com as miragens das aparências. Creio, pois, que a ruptura, nesse contexto da transição, representa o desmantelamen­to de uma isotopia, isto é, dos signifi­cados que por força da repetição se fossilizam, de modo que a ruptura, en­quanto procedimento de abalar tais fossilizações, nada mais é do que um movimento alotópico ou seja, uma tentativa de fugir do “lugar comum” das coisas e descobrir nelas a existência de significados entranháveis. Por isso Buñuel condenava o neo-realismo do cinema italiano. Ele não se conformava com a idéia de que a imagem de um copo, por exemplo, teria de ser inevitavelmente a imagem de um copo com os signi­ficados que objeto possui na vida cotidiana das pessoas. O cineasta espanhol tinha como lema transitar e ultrapassar sempre o lado visível das coisas. Em conferência que fez na Universidade Autônoma do México, o cineasta definiu o cinema como um texto semelhante aos textos oníricos, textos possuidores da capacidade extraor­dinária de fazer visível o que não se vê.

NO- O que é imagem? Não seria exatamente o estado da ambigüidade?EP- A imagem é um texto. E eu defino um texto utilizando o pensamento dos cientistas da linguagem da chamada Escola de Tartu, da Rússia. Um texto é uma tessitura de signos com começo e

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fim. Então o poema é um texto, um filme é um texto, um quadro é um texto. Dentro deste conceito, distingo duas modalidades textuais básicas: o texto homogêneo, feito apenas de um sistema de signos, e o heterogêneo, com vários sistemas de signos. Um quadro, uma fotografia, um filme. Não há nenhuma imagem que possa ser classificada como um texto homogêneo. É muito difícil achar um texto homogêneo. O único exemplo que me ocorre como texto homogêneo é o semáforo porque não se pode ficar diante do semáforo pensando que seu vermelho é bonito, porque essa cor não está ali para criar conotações. Os textos estéticos, artísticos, são todos heterogêneos. Posso dizer que, mesmo não sendo artística, uma imagem, pelo fato de constituir um texto heterogêneo, sempre será ambígua, admitindo, entretanto, que essa ambigüidade possui gradações. Colocado diante de uma imagem, o observador decodifica unicamente significados a partir dos códigos que lhe são familiares, mas isso não quer dizer que o observador, considerando a heterogeneidade do texto imagético, seja capaz de decifrar todos os códigos que se imbricam numa imagem e, em virtude dessas limitações, não me parece arriscado concordar com a idéia de que a imagem seja o estado da ambigüidade.

NO- Como relacionar o contexto atual de mídia eletrônica com o da recepçaõ, sobretudo virtual? A imagem, como texto, de começo meio e fim. Existe a poética da imagem virtual?EP- Restrinjo-me a falar do hipertexto. Hoje vivemos submersos numa galáxia de textos e não é difícil ter acesso a imagens que giram em tomo de um mesmo tema. Mas uma das particu­laridades mais admirável do hipertexto é fazer com que sobre esse tema recaiam enxurradas de informação e, sobretudo, fazer com que o leitor viva a polissemia desse tema a partir do instante em que nele se concentram “vozes”, no sentido que Bahktin atribui a esse termo, vindas de lugares remotos. Landow, em seu já clássico estudo sobre o hipertexto, destacava o princípio de que o

hipertexto é fundamentalmente um sistema intertextual. Mas, em textos literários, por exemplo, a intertex­tualidade é quase sempre uma alusão, ao passo que, nos textos eletrônicos ou nos hipertextos propriamente ditos, as alusões podem se explicitar e gerar ambigüidades a partir dos conflitos que os jogos entre implicitação e explici­tação criam. Constatado isso, temos de admitir que os produtos engendrados pelas tecnologias mais recentes não só produzem imagens impregnadas de poesia, mas demarcam, também, um domínio propício às investigações da poética. Enfim, tanto no atinente ao dialógico quanto no que diz respeito ao hipertextual, a poética encontra campos novos em que pode testar seus instrumentos interpretativos.

NO- Como o senhor relaciona estes processos com o processo de recepção? E quanto à produção, como se dá a produção poética?EP- Tudo o que disse até agora se relaciona, em boa parte, com a esfera da recepção, e também, com alguns aspec­tos da imanência de um texto. Pouco falei sobre a produção, embora tenha de admitir que a intertextualidade tem um forte compromisso com os códigos de emissão. Admitindo como consisten­te a premissa da transição, é evidente que a poética constitui, em certa medida, uma ferramenta útil para estudar aspec­tos de recepção, principalmente quando se trabalha com o pressuposto de que o destinatário da mensagem é também um sujeito da enunciação. Nesse sentido, por exemplo, se as figuras de linguagem possuem valores argumentativos, é evidente que, nesse caso, elas desem­penham papel de relevância nos proces­sos de recepção.

Quanto à produção poética, isso em qualquer época, se dá também pela ousadia e originalidade. Sem atentado aos códigos e sem o efeito de escândalo que eles produzem não há poesia. E entenda-se que não há poesia em ne­nhum tipo de texto, nem no cinema, nem nos poemas verbais, palavras, nem na fotografia, nem na pintura. Como Roland Barthes disse, inspirando-se em idéias

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de Valle-Inclán, dramaturgo e poeta es­panhol que é relativamente bem conhe­cido no Brasil, a poesia nasce no ins­tante em que o poeta é capaz de colocar juntas duas palavras que nunca estive­ram juntas antes. Essa é a definição cha­ve para Barthes e esse é, no fundo, o molde em que cabem todas as figuras de linguagem em termos da sua fabrica­ção. Pensemos, por exemplo, no ponto de vista, tão importante para situar o espectador de um quadro ou de um fil­me, ou mesmo para construir um relato. Os grandes pintores obrigam o observa­dor de uma obra à tarefa de encontra diferentes pontos de vista, ao trabalho de se deslocar diante do quadro para poder atingir aspectos das imagens re­presentadas que só podem ser percebi­dos de acordo com um certo ponto de vista. Outro tanto ocorre com um relato.

NO- E aí está a ruptura?EP- E aí está a ruptura, porque a ruptura também leva o leitor, no processo da recepção, a se deslocar de ponto de vista. Esse deslocamento é como se você regulasse uma lente que não está bem, você a ajeita e consegue ver melhor, ver mais. Também a ruptura provoca um deslocamento, uma saída do lugar comum do próprio receptor. Sempre tive como objetivo, na disciplina Poética da Imagem, que lecionava na ECA, fazer com que meus alunos, no final do curso, fizessem uma crítica. Se realmente se configurasse que, a partir do instante em que eles terminaram a disciplina, eles passassem a ver as coisas de alguma outra maneira, diferente daquela que tinham antes, a disciplina teria cumprido satisfatoria­mente seus objetivos.

Bibliografia do Entrevistado

PEÑUELA CAÑIZAL, E, La Visualidad Sonora em Autoretratos de Frida Kahlo, São Paulo: CEPPI, 2002.

PEÑUELA CAÑIZAL, E, La Consagración Poética de Cartografi­as dei Gesto. México: Universidad Autónoma Metropolitana - UAM, 2001.

PEÑUELA CAÑIZAL, E, Surrealismo: Rupturas expressivas. São Paulo: Atual, 1987.

PEÑUELA CAÑIZAL, E, O Mito e sua Expressão na Literatura Hispano- Americana. São Paulo: Duas Cidades, 1982.

PEÑUELA CAÑIZAL, E, Duas Leituras Semióticas. São Paulo: Perspectiva, 1977. v.l.

PEÑUELA CAÑIZAL, E, La Consagración del Instante. São Paulo: ICHSP/USP, 1968.

PEÑUELA CAÑIZAL, E, A poesia de Fernando Pessoa. São José do Rio Preto/ SP: ICH, 1964.

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Construindo a poética da imagem: da caverna ao cinema

Building a poetic of the image: from the cavern to cinema

Rosemari Sarmento1

Resumo: O artigo investiga o cinema, sob o ponto de vista de sua visualidade, da intenção na

representação imagética do homem, no caminho que a imagem percorreu, desde os primórdios

até a contemporaneidade, na busca de uma ilusão do real. Para tanto passear pelos caminhos

que a imagem artística traçou, principalmente em relação à sua trajetória intencional dirigida à

representação da imagem como desvelamento e envolvimento do imaginário.

Palavra-Chave: cinema, imagem, arte, história.

Abstract: The article investigates cinema, under the point of view of its visual, of the intention of

the image representation of man, from a path the image took, since the first emoluments until

the contemporary era, in search of the illusion of real. In fact, it is through the ways that the

artistic image has traced, mainly in relation to its intentional trajectory directed by the

representation of the image as a revelation and presence of the imaginary.

Keywords: cinema, image, art, history.

As grandes imagens têm ao mesmo tempo uma história e uma pré-história. São sempre lembrança e lenda ao mesmo tempo. Nunca se vive a imagem em primeira instância. Qualquer grande imagem tem um fundo onírico insondável e é sobre esse que o passado pessoal

põe cores particulares. BACHELARD

Ao adentrar numa investigação pelo olhar da arte, da palavra e da

imagem projetada dessa palavra (na dimensão imagética de seus discursos,

como corpora produtores de sistemas de significações que se completam e ao

mesmo tempo se configuram independentes, expressando-se através de

diferentes códigos) é necessário construir essa apreciação a partir do

conhecimento das suas diferentes naturezas e intenções. Para a compreensão

da linguagem cinematográfica como arte, visto que essa posição legitima ainda

1 Especialista em Arte Contemporânea, da Universidade FEEVALE. Mestre em Letras e Cultura Regional, da Universidade de Caxias do Sul. Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Letras, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. (E-mail: [email protected])

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é questionada em algumas abordagens, é essencial refazer a caminhada da

representação imagética do homem em sua história.

Pretende-se passear pelos caminhos que a imagem artística traçou

durante a sua história, principalmente em relação à sua trajetória intencional

dirigida à representação da imagem como desvelamento e envolvimento do

imaginário. Busca-se o sentido onírico, ilusório, não o sentido invocativo da

realidade, lidando com a ilusão dessa realidade, o que projeta uma

materialização da ilusão numa busca projetiva do movimento, o que

incondicionalmente chegaria à linguagem cinematográfica.

Uma das primeiras referências humanas que aparecem na terra são as

imagens desenhadas nas cavernas, hoje chamadas artísticas. Pode-se dizer,

então, que a arte está presente no mundo desde que o homem é homem,

como imagem representativa deste, de suas experiências e proposições diante

do mundo. Assim o fazer artístico e poético atravessou milênios numa

instituição de temporalidade, em que as rupturas entre os vários tempos da

história engendraram mutações radicais das diferentes visões, ideologias,

universos de valores e abordagens culturais específicas de cada época.

A imagem artística existiu desde sempre e, em todos os tempos e

momentos históricos, suscitou um discurso (quer no sentido conceitual, quer no

simbólico) e uma interrogação fundamental sobre sua natureza, seus poderes,

suas funções e intenções, capaz de definir paradigmas no seu processo

evolutivo de produção.

A atividade de criação da imagem mostra-se em inúmeras

potencializações dirigidas aos sentidos através de um discurso, num referencial

que pode priorizar o intelecto, num corpus de observações empíricas,

experimentos e teorias construídas desde a antiguidade. Euclides, em torno de

3000 a.C. foi um dos fundadores da Óptica (ciência de propagação dos raios

luminosos) e um dos primeiros teóricos da visão. Suas afirmações estenderem-

se até o século XIX, quando começa a verdadeira teoria da percepção visual

elevada ao estatuto de ciência: a Fenomenologia. Essa ciência traz

informações visuais e perceptivas do mundo, inclusive nos seus aspectos não

visuais. A Poética, que lida com questões criativas vinculadas ao domínio

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imagético, simbólico, significativo, da própria poiesis, e a Estética, termo que

deriva da raiz grega aisthésis (sensação, sentimento) definiram-se como o

estudo da contemplação das imagens artísticas desenvolvidas de diferentes

formas e perspectivas (filosóficas, semiológicas e históricas essencialmente).

A importância e pregnância da imagem como referencial histórico do

homem é definitiva. Através das imagens artísticas o ser humano traduz toda

sua construção civilizatória, seu papel ideológico, intelectual, social e cultural.

Através da imagem artística e do “olhar” o homem define seu processo

evolutivo e sua leitura do mundo de forma que na compreensão deste há o

privilégio da emoção visual. Novaes propõe considerações interessantes sobre

a questão da predominância do olhar entre todos os sentidos, para ele:

Se a realidade é o domínio do impreciso, das sombras e das cores ocultas, porque a ciência – ou a precisão científica – passou a ter soberania tão absoluta sobre os sentidos e porque, dentre os sentidos, o olhar é o primeiro a ser chamado à ordem? Seria porque, todos os sentidos, “a vista é o que nos faz adquirir mais conhecimentos, nos faz descobrir mais diferenças?” ou é em virtude do prestígio que a visão passou a ter em nossa cultura, concentrando em si a inteligência e as paixões? Por que o olhar ignora e é ignorado na experiência ambígua de imagens que não cessam de convidá-lo a ver? (NOVAES, 2000, p. 9).

Com o aparecimento, há dois séculos, de novas práticas artísticas

baseadas na imagem automática (a fotografia) surge o debate e

questionamento sobre a especificidade da imagem. A invenção da fotografia

redefine a essência da imagem, historicamente da pintura como produção

artística. Frente a esse instrumento de apreensão mecânica da realidade, que

exerce uma profunda influência sobre o direcionamento e desenvolvimento

dos conceitos artísticos, mudam radicalmente as condições materiais de

existência dos artistas, consequentemente, seu papel social e político.

A ideia de que uma imagem poderia ser gravada sobre uma

superfície de prata, já era conhecida há muito tempo. Ao fazer as cópias de

pontos de vista, por volta de 1826, Niepce coloca seu aparelho na janela e

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vê surgir na placa de estanho uma tênue imagem, impressões urbanas,

como que por milagre, simples resultado de luz naquela chapa de metal. A

fotografia, oficialmente inventada em 1839 pelo francês Daguerre é o

primeiro meio que irá se ocupar da produção automática da imagem, algo

até então inimaginável. Sobre a fotografia Aumont poéticamente comenta:

“Ela guarda um traço da luz”, complementa: “começa quando esse traço é

fixado mais ou menos em definitivo, finalizado para certo uso social”, e conclui:

“ a invenção da fotografia segundo Niepce-Daguerre segue a direção da ‘foto-

grafia’ propriamente dita, de uma ‘escrita da luz’.” (AUMONT, 1999, p. 164).

Neste primeiro momento o objetivo era obter o registro mais fiel

possível daquilo que estava sendo fotografado. A fotografia foi considerada,

nas suas origens, como um meio destinado a liberar a pintura do trabalho

ingrato da reprodução fiel. Esperava-se da fotografia uma espécie de

catalogação científica do mundo, simplesmente como técnica de duplicação

óptica, definindo-se, assim, um novo paradigma histórico em relação à

imagem.

Pode-se dizer, ou definir então, dois momentos no processo evolutivo

da imagem, o pré-fotográfico e o pós-fotográfico. Esses momentos são

caracterizadores das transformações fundamentais ocorridas através dos

séculos no mundo em que a imagem é produzida. Dentro do primeiro

paradigma, inserem-se todas as imagens produzidas artesanalmente pelo

homem, numa forma de plasmar o visível ou mesmo o invisível (entram nesse

grupo as imagens nas pedras, o desenho, a pintura, a gravura, a escultura). O

segundo paradigma refere-se a todas as imagens que dependem de uma

máquina ou dispositivo de registro, o que implica necessariamente objetos

preexistentes (definindo-se a partir daí a fotografia e posteriormente cinema,

televisão e até a holografia). Sobre esta passagem do processo fotográfico

Santaella comenta:

Talvez o traço mais revolucionário, que marcou o salto de transformação da fotografia em relação às imagens produzidas manualmente não se encontra tanto na mediação do aparelho interpondo-se entre fotógrafo e a realidade a ser registrada, nem na automatização do ato

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que o aparelho permitiu, mas na possibilidade de multiplicação infinita de fotos a partir de uma matriz reproduzida, o negativo. Foi essa característica inaudita que veio trazer como consequência o advento de um novo processo para as imagens [...] a possibilidade de a imagem ser produzida, seu potencial democrático. (SANTAELLA, 1998, p. 123).

Com a fotografia instaura-se o processo de reprodução mecânica da

imagem como um registro do real, liberando a pintura dessa

responsabilidade. No plano puramente óptico, a fotografia se aproxima da

imagem formada no olho, como olhar um pedaço da realidade numa imagem

nua e crua reduzida a si mesmo, assim como o olho a vê, o que a pintura

exatamente não atendia, pois o artista, de alguma forma, pela imaginação e

manualidade, manipulava essa imagem.

O dispositivo ou instrumento fotográfico definiu-se como um

prolongamento do sistema óptico. Com seus efeitos físicos e reações químicas,

registrando, reproduzindo, com possibilidades de cópias, de um pedaço, um

instante do mundo existente, real, assim como o olho humano o vê. No entanto

difere do olho humano no momento em que eterniza o instante, congela-o

visualmente e indefinidamente como um duplo concreto de um instante já irreal

e com a possibilidade de deslocar, impor para vários olhares essa impressão

de um olhar impossível para o olho humano. Segundo Santaella as imagens

fotográficas são:

[...] capazes de usurpar a realidade, porque, antes de mais nada, uma fotografia não e só uma imagem (no sentido que a pintura é uma imagem) uma interpretação do real; é também uma marca, um rastro do real, como uma pegada ou uma máscara mortuária. Enquanto que uma pintura, ainda que conforme os padrões fotográficos de semelhança, nunca é mais que a afirmação de uma emanação (ondas de luz refletidas pelos objetos), um vestígio material daquilo que foi fotografado e que é inacessível a qualquer pintura. (SANTAELLA, 1998, p. 123).

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Roland Barthes fala de um “gesto colhido num momento de execução

em que o olhar normal não pode imobilizá-lo” quando “a foto imobiliza uma cena

rápida no seu tempo definitivo” (1984, p. 55). Susan Sontag questiona a

“onipresença da imagem fotográfica no mundo atual, a sugestividade e

complexidade da exploração dessas imagens” (SANTAELLA, 1998, p.121)

referindo-se e explorando, sobretudo os problemas estéticos e morais propostos

por estas. Portanto a fotografia, em dados momentos de diferentes

intencionalidades, foge do objetivo de duplicação do real, impondo-se como

imagem artística, transpondo seu objetivo de origem, requestionando e

redefinindo de maneira contundente o papel da imagem. Na mudança de

intenções e proposições, libertou a pintura para ocupar outros terrenos e

seguir novos rumos e propostas, abandonou a representação como

especificidade, já que a fotografia eterniza a imagem baseada nos preceitos de

realismo.

A fotografia, no seu processo de captação de um instante do real,

abarca também o processo temporal, já que o instante, o tempo está

embalsamado no processo fotográfico. O presente/passado fica suspenso no

registro da foto, já que se trata da captação de um instantâneo momento que

foi real, concreto. A questão do tempo é levantada. Surge então o cinema, num

processo de sequencia lógica na evolução da produção da imagem, para

eternizar uma imagem temporalizada que representa indissociavelmente um

“bloco de espaço-duração” (DELEUZE, 1983). Desencadeando uma verdadeira

revolução, o cinema não seguiu a fotografia na sua função de registro

documental, pois criou uma linguagem própria na qual elementos visuais e

narrativos estão ligados a serviço do imaginário. Lida com a ilusão e trabalha

com o movimento falso; na verdade congela instantes fotográficos, mesmo que

bastantes próximos.

O cinema é a reunião de vários blocos (planos) numa continuidade

de ordem e duração, numa montagem de imagens fixas e sucessivas, de

tempos instantâneos, num seguimento fílmico. O objetivo principal do

dispositivo cinematográfico é produzir um efeito de continuidade sobre a

sequencia de imagens, simulando um deslocamento, um movimento simulado

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e abstrato. Diz-se que o cinema reproduz o movimento da vida, mas não há

movimento na imagem cinematográfica, é uma ilusão, um brinquedo óptico. A

imagem que vemos na tela é sempre imóvel; é a impressão de fotografias

(fotogramas de uma figura em movimento com intervalos muitos curtos entre

elas – o nosso olho não é muito rápido e a retina guarda a imagem de forma a

captarmos esta enquanto a anterior ainda está no nosso olho – motivo pelo

qual não percebemos a interrupção) simulando um movimento contínuo,

parecido com a realidade, amplamente crível, com domínio direto sobre a

percepção, como uma pretensa ilusão de realidade, e não como um processo

extraordinário que tivesse sido inventado e manipulado pelo homem sugerindo

o movimento que traz um índice perceptivo de realidade suplementar com o

qual o expectador se identifica e ao qual se entrega.

Não cabe avaliar se o processo de movimento manipulado pelo cinema

é falso ou verdadeiro, e sim pensar a partir das conjecturas de Machado:

[...] que espécie de metamorfose atravessa o material entre esses dois momentos, convertendo a realidade estilhaçada em fantasmas que retornam para atormentar os vivos? Se a percepção do movimento é uma síntese que se dá no espírito e não no mecanismo do olho, o cinema deve ser entendido também como um processo psíquico, um dispositivo projetivo que se completa na máquina interna. (MACHADO, 1997, p. 22).

A fotografia representou um grande avanço no poder humano de

duplicar coisas visíveis, pois libertou as artes plásticas de sua obsessão pelo

realismo, o complexo de semelhança. Como explana Metz: “Olhar uma

fotografia não é apreender um ser-aqui, mas um ter-sido, trata-se então de uma

categoria do espaço-tempo: local imediato e temporal anterior” (1995, p. 18), e

segue: “na fotografia concretiza-se uma conjunção ilógica do aqui e outrora. É

o que explica a irrealidade real da fotografia.” (1995, p. 18).

Embora tenha sofisticado o poder da fotografia o homem sequer

imaginava que a real aventura da reprodução imagética do mundo já havia tido

inicio nos desenhos das cavernas. Como comenta Santaella:

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Tanto a um olhar retrospectivo, antes da fotografia, quanto a um olhar prospectivo, depois da fotografia, fica evidente a vocação, ou melhor, a obsessão humana da reprodução do visível. Desde que o ser humano, ainda nas cavernas, tornou-se capaz de fixar, através do traço, uma imagem da natureza, o mundo começou a ser, cada vez mais crescentemente, povoado por duplos, réplicas do visível, do imaginário e até mesmo do invisível. A fotografia está na linha de continuidade de um processo humano que não começou nem terminou nela [...] depois dela vieram o cinema [...] (SANTAELLA, 1998, p. 130).

Assim pode-se afirmar que a história do cinema acompanha a evolução

do homem e da imagem como uma das mais antigas formas de expressão da

humanidade, desde que algum homem pré-histórico fez projetar a sombra de

suas próprias mãos na parede de alguma caverna, surgindo assim com os

primeiros registros nas cavernas. “Nossos antepassados, os artistas do

paleolítico, tinham os olhos e a mente de um cineasta” (MACHADO, 1997, p.

14). Suas imagens registradas nos fundos mais inóspitos e perigosos das

cavernas escuras, gravadas em relevos nas rochas com cores variadas, eram

propositalmente desenhadas para simular o movimento adquirido à medida que

o observador se locomovia e a luz da lanterna iluminava e obscurecia parte das

linhas e cores, agitando-se, movendo-se e dissolvendo-se. As imagens e o olhar

pré-histórico eram cinematográficos. A história do cinema remonta a uma etapa

na longa história das imagens representativas, a necessidade do homem de

registrar através do olhar a sua própria história evolutiva (ideológica e

imagética).

A questão da especificidade artística do cinema talvez comece na

Antiguidade, com o Mito da Caverna de Platão, no qual este descreveu

minuciosamente o mecanismo imaginário da sala escura de projeção no qual

projetou sua primeira sessão de cinema.

Simplificadamente essa alegoria desenvolve-se da seguinte forma: os

prisioneiros acorrentados, imobilizados dentro da caverna, observam as

sombras das marionetes que desfilam em uma parede. Eles as têm por

seres verdadeiros e creem ouvi-las falar quando na verdade ouvem as vozes

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dos carregadores. Um cativo liberto, deslumbrado pela luz do fogo, é forçado a

olhar as marionetes que passam por cima do muro. Quando tirado para fora do

antro, ele é de início cegado pela luz intensa do sol e é incapaz de observar o

que chamamos de seres reais. Aos poucos vai se acostumando, observando

as sombras e reflexos e depois os próprios seres que projetam essas sombras.

Seu olhar se eleva para a luz do sol e ele conclui que é o sol que produz vida e

tudo o que acontecia dentro da caverna eram simulações, projeções do real,

percebendo assim que as sombras não são as próprias coisas e que o fogo é

uma luz artificial, não uma luz real, que ele agora conhece. Somente quando

liberto e quando deparado com o mundo concreto percebe a diferença da

aparência e da realidade, do falso e do verdadeiro, da luz e das sombras, da

réplica e do original, do simulacro e da imagem do real; assim busca liberto não

do seu estado de prisioneiro da caverna, mas do seu estado de inconsciência

do saber. Para Deleuze a caverna de Platão é:

[...] basicamente uma sala de projeção, situa-se nesse local fronteiriço, nessa zona limítrofe que separa a aparência da essência, o sensível do inteligível, a imagem da ideia, o simulacro do modelo. Ali é o lugar de um desabamento, o “mundo sensível”, para onde descemos, onde literalmente caímos, como animais dominados pelas pulsões. (DELEUZE, 1974, p. 264, apud MACHADO, 1997)

A alegoria da caverna representa o próprio dispositivo de projeção

cinematográfico fisicamente descrito, no qual o fogo que queima está

estrategicamente colocado atrás da cabeça dos prisioneiros/espectadores,

como a luz do projetor, para que esse foco artificial incida na parede da

caverna/tela e reflita, projete a sombra dos objetos simulacros, imagens de

outras imagens de modelos reais, aproximando-se assim ao princípio do

cinema, de manipulação da imagem e da sombra que a máquina traz com a

própria luz, como fonte simulatória do visível, do real. Segundo Machado “O

mundo de sonhos que os prisioneiros contemplam na parede da caverna não é

um mero “reflexo” do mundo de luzes que brilha lá fora”, prossegue: “ antes, é

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um mundo aparte, construído, codificado, forjado pela vontade de seus

maquinadores.” (1997, p. 32).

A situação cinema é evidente na caverna subterrânea e escura (sala de

projeção) onde a simulação, construção de imagens projetadas (inclusive com

som, antecipando o cinema falado) são intencionalmente forjadas, manipuladas

por homens capazes de viabilizar, dominar a técnica da simulação, da ilusão,

do saber, que constroem e mantêm o dispositivo ilusionista. Do outro lado os

prisioneiros/espectadores numa situação de impossibilidade de movimento, de

abandono, com o corpo e mentes entregues, tal qual na sala de exibição onde

esse gesto de entrega e redenção, quase imobilidade, faz-se presente no

espectador. Uma situação que se caracteriza, antes de tudo, no completo

isolamento de uma realidade exterior, fazendo que no final da alegoria o

fascínio que toma conta dos prisioneiros/espectadores os faça preferir a

magia das sombras, da ilusão, a qualquer promessa de liberdade para o

mundo real; assim que a própria ilusão/simulação seja preterida à

verdade/realidade2. Sobre a situação da caverna de Platão em relação à

simulação do cinema, fala Machado:

Anestesiado do espírito vigilante, a suspensão de todo interesse pelo ambiente circundante, projeção de personalidade num sujeito emprestado, adesão de realidade, de desligamento, de passividade de desejo de sonhar: eis algumas das disposições regressivas do espectador acorrentado à sua poltrona na gruta escura. (MACHADO, 1997, p. 55).

Da Caverna de Platão à história oficial do cinema, percorre-se um

longo caminho, no sentido onírico, mágico, ilusório, invocativo de

fantasmagorias e sonhos. Arte do simulacro, da aparência, pululante na

imaginação do homem desde os tempos mais remotos, faz-se necessário

considerar o teatro de sombras dos Chineses, inventores das Lanternas

Mágicas em meados do século XVII. Com mecanismos engenhosos de

2 A diferença entre a alegoria e o cinema é que, no inicio, essa redenção à ilusão pelos prisioneiros é inconsciente, forçada, e o espectador do filme está consciente dessa entrega em todos os momentos.

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transformação e sobreposição de luz e sombra, que simulavam o movimento em

espetáculos populares, com imagens fantasmagóricas num universo ilusório.

Tem origem certamente na Câmara Obscura do Renascimento3. Com a

invenção da Câmara Obscura, que permitia ao artista dar a ilusão de um

espaço em três dimensões, fica evidente a vontade de substituir o mundo

exterior pelo duplo, pela ilusão, pelo simulacro.

É desnecessário comentar e fazer analogia referencial à Caverna de

Platão e ao cinema, no qual através de um foco de luz, que percorre uma zona

escura, traz imagens simuladas de um mundo exterior. Assim todas as

invenções que antecederam o cinematógrafo Lumière, como o

Quinetoscópio4, ou o Mutoscópio5 nada mais são do que o aperfeiçoamento

de um sonho antigo do homem de tornar cada vez mais reais as imagens, de

simular um mundo imagético que passeia entre o sonho e a impressão de

realidade. Resultado da combinação do dispositivo da caverna (imobilidade,

silêncio, escuridão, onirismo) com o mecanismo de domínio técnico

Renascentista de um sistema de projeção óptica numa perspectiva monócular.

Dessa combinação de intenções, na qual se entrelaçam mundos opostos, o

sensível, imaginário, ilusório e desconhecido, com o intelectualmente preciso,

técnico, que captura e desvenda os princípios ópticos, que o cinema se

apresenta. A Câmara Obscura (câmara cinematográfica) se encontra dentro

da outra Câmara Obscura (a sala de projeção) e constitui uma situação em

que a possibilidade de duplicação do mundo visível pela máquina e o aparato

que a envolve é capaz de transformar um universo, no qual esse universo se

torna instrumento do imaginário e da ilusão como um novo sistema de

expressão.

3 Compartimento escuro muito utilizado na Itália, naquele período, onde pessoas sentadas viam projetadas à sua frente imagens que vinham do exterior, através de um pequeno orifício na parede oposta. Estas imagens, no começo apareciam de cabeça para baixo, mas um dispositivo formado por lentes e espelhos permitiu mais tarde, que elas aparecessem de forma correta. 4 Dispositivo que possuía um visor através do qual se podia assistir a exibição de uma pequena tira de filme onde apareciam imagens em movimento. 5 Imagens semelhantes a fotogramas de filmes, impressas em papel, num mecanismo que folheava estas, dando a impressão de movimento.

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O cinema constitui uma linguagem, uma existência cinematográfica na

qual estruturas narrativas e visuais relacionadas com o espaço e o tempo se

articulam e lidam com o real, ou ilusão deste, através de um movimento que é

imaterial, que só se mostra visualmente, mas que sugere, projeta a

materialidade a corporalidade de uma ilusão. Assim o real é irresistivelmente

confundido com o tangível, já que o cinema lida com sombras e luzes, e o

critério da materialidade passa pelo tátil. Barthes fala que as participações

(1984) fotográficas mais intensas não provocam nunca a ilusão autêntica que o

cinema dá. Mesmo que o movimento não seja material, mas visual, ele traz

uma significação e um sentido que se traduz através da impressão de realidade

e a realidade da impressão. A materialidade, corporalidade sugerida, se faz

através de uma produção de sentidos em que o espectador se entrega e busca

significativo envolvimento projetivo com um mundo no qual o sonho emerge

facilmente.

Antes do cinema havia a fotografia, e antes da fotografia havia a

pintura, e antes destas, as imagens nas cavernas, todas, linguagens com

intenções de representação significativa do mundo. Nelas a linha divisória entre

o real e a ficção eram evidentes e intransponíveis; o espectador sabia e

acreditava estar diante de uma imagem representativa de realidade. No

cinema, as imagens não deixam de ser percebidas como imagens, com

muitos índices de realidade. A sensação de movimento, de tempo, a

transposição aceitável de volume, de corporalidade sentida como sinônimo de

vida, traduzindo a simulação, a ilusão de realidade (procurada desde a pré-

história e em todas as artes de representação visual) num desvelamento e

envolvimento do imaginário, do sensível do espectador que, apesar de tudo,

ainda crê serem imagens. De onde surge essa magia da linguagem

cinematográfica, de ilusão e entrega incondicional consciente? Talvez a magia

esteja na linguagem artística nascida da união de várias formas de expressão

do homem (imagem, palavra, música) que são buscas representativas e

significativas do ser humano e que, mesmo unidas, abarcadas pela linguagem

cinematográfica, não perdem suas leis próprias e compõem de forma pungente

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essa nova linguagem, trazendo consigo o “discurso imagético”, que o ser

humano tanto buscou através dos tempos históricos.

O fato de o cinema possuir uma linguagem cinematográfica não o

transforma automaticamente em arte, mas sim o envolvimento poético,

imagético e criativo do seu discurso.

Cinema é arte quando está num contexto sociocultural e possibilita a

leitura do mundo. É contemporâneo quando vai ao encontro do espírito da

época e dos paradigmas subjacentes de questionamento de linguagem. É arte

quando apresenta características formais/estéticas específicas, de

intencionalidade num contexto estilístico, plástico, poético e significativo. É arte

quando produz e desenvolve um trabalho imagético que suscita diferentes

leituras, organizando imagens no inconsciente/consciente de seu espectador,

inspirando novas proposições através da produção de sentidos. É arte quando

traz um projeto estético inovador que compõe, com originalidade, uma

linguagem combinada a um emaranhado de significações, produzindo códigos

que expressam diversas leituras que podem derivar do seu discurso.

Bibliografia

AUMONT, Jacques. A imagem. São Paulo: Papirus, 1999.

BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

DELEUZE, Gilles. Cinema. L’Image-mouvement. Paris: Les Éditions de

Minuit, 1983.

MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & Pós-cinemas. São Paulo: Papirus, 1997.

MERTZ, Christian. A significação do filme. São Paulo: Perspectiva, 1972.

NOVAES, Adauto. De olhos vendados in O olhar. São Paulo: Companhia das

Letras, 2000.

SANTAELA, Lucia e WINFRIED, Nöth. Imagem. Cognição, semiótica, mídia.

São Paulo, Iluminuras, 1998.

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DA RELAÇÃO ENTRE A FOTOGRAFIA E A POESIA: O CASO DA EXPRESSÃO POÉTICA PIVA

RESUMO: Este artigo tem por objetivo analisar no livro analogia como formadora da relação entre os poemas do poeta Duke Lee. As fotografias de Duke Lee não ilustram meramente os versos de Piva, mas estabelecem um diálogo entre linguentre alguns elementos recorrentes tanto nos poemas quanto nas fotografias para uma fundamentação mais acurada dessas proposições. um olhar analítico sobre mais uma das possíveis relações entre poéticas e tecnologias. PALAVRAS-CHAVE: Fotografia

Apesar de pouco estudada,

Piva, construída através da imagem

obscurecida pelos anos de silêncio advindo da maior parte da crítica. Além

disso, não podem ser ignorados

importantes pensadores da

imagem nas manifestações artísticas, especificamente naquelas que se dão a

partir da interseção entre imagem e palavra

Nesse mesmo sentido, a obra do artista

transitou com desenvoltura entre o desenho, a pintura e a

começo dos anos 60, também

acadêmica, mas também pelo público

espaços considerados mais tradicionais, como o MASP, ou em lugares

considerados inusitados, tais como a

* Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais

[email protected] ** Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Geraisdesse trabalho. Imeio: [email protected]

http://dx.doi.org/10.5007/1807-9288.2014v10n1p249

Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons

, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 249-261, jan./jul. 2014. ISSNe: 1807

DA RELAÇÃO ENTRE A FOTOGRAFIA E A POESIA: O CASO DA EXPRESSÃO POÉTICA PIVA-LEE

Leonardo David de Morais

Wagner José Moreira

Este artigo tem por objetivo analisar no livro Paranoia, a partir do conceito de analogia como formadora da imagem poética e operações metafóricas e metonímicas, a relação entre os poemas do poeta Roberto Piva e as fotografias do artista plástico

. As fotografias de Duke Lee não ilustram meramente os versos de Piva, mas estabelecem um diálogo entre linguagens distintas, baseado em certa tensão.

elementos recorrentes tanto nos poemas quanto nas fotografias fundamentação mais acurada dessas proposições. A intenção é a de contribuir com

sobre mais uma das possíveis relações entre poéticas e tecnologias.

otografia. Poesia. Roberto Piva. Wesley Duke Lee.

Apesar de pouco estudada, a poesia fortemente imagética atribuída

, construída através da imagem poética, não permaneceu de todo

obscurecida pelos anos de silêncio advindo da maior parte da crítica. Além

não podem ser ignorados estudos empreendidos por vários e

importantes pensadores da contemporaneidade sobre a importância da

stações artísticas, especificamente naquelas que se dão a

terseção entre imagem e palavra.

, a obra do artista plástico Wesley Duke Lee, que

com desenvoltura entre o desenho, a pintura e a fotografia, desde o

também tem sido redescoberta não apenas pela crítica

acadêmica, mas também pelo público. Por meio de exposições organizadas em

espaços considerados mais tradicionais, como o MASP, ou em lugares

inusitados, tais como a estação do metrô Trianon/MASP

Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil. Imeio:

Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil. [email protected]

9288.2014v10n1p249

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ISSNe: 1807-9288 249

DA RELAÇÃO ENTRE A FOTOGRAFIA E A POESIA: O CASO DA

Leonardo David de Morais*

Wagner José Moreira**

, a partir do conceito de a e operações metafóricas e metonímicas, a

o artista plástico Wesley . As fotografias de Duke Lee não ilustram meramente os versos de Piva, mas

agens distintas, baseado em certa tensão. A comparação elementos recorrentes tanto nos poemas quanto nas fotografias fornece subsídios

A intenção é a de contribuir com sobre mais uma das possíveis relações entre poéticas e tecnologias.

imagética atribuída a Roberto

não permaneceu de todo

obscurecida pelos anos de silêncio advindo da maior parte da crítica. Além

estudos empreendidos por vários e

contemporaneidade sobre a importância da

stações artísticas, especificamente naquelas que se dão a

Wesley Duke Lee, que

fotografia, desde o

tem sido redescoberta não apenas pela crítica

organizadas em

espaços considerados mais tradicionais, como o MASP, ou em lugares

etrô Trianon/MASP,

, Belo Horizonte, Brasil. Imeio:

, Belo Horizonte, Brasil. Orientador

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localizada na cidade de São Paulo, alguns dos trabalhos de Duke Lee puderam

ser apreciados ultimamente (COSTA, 2005).

No livro Paranoia (PIVA, 2000), uma práxis artística delineada por uma espécie

de diálogo interartes caracteriza-se e se manifesta de forma intensa e delirante

a partir da confluência advinda da relação entre os poemas de Roberto Piva e

as fotografias de Wesley Duke Lee. Com um total de vinte poemas

entremeados por setenta e cinco fotografias ao longo de cento e cinquenta e

duas páginas, esse trabalho a quatro mãos, publicado pelo editor Massao

Ohno pela primeira vez em 1963, apresenta-se como um estudo poético e

fotográfico cujo tema é a cidade de São Paulo nos primeiros anos da década

de 60.

Nesse fazer artístico/poético, que nos parece se instaurar em um campo onde

a interrelação entre objetos de naturezas distintas – a palavra poética e a

imagem fotográfica – desponta como linha de força a metodologia a ser

aplicada nesta investigação, como não poderia deixar de ser, baseada na

análise comparativa de versos e fotografias. Assim, antes de analisarmos

propriamente o recorte do corpus mencionado, cabe tomarmos emprestadas

algumas falas que contribuirão para a construção das reflexões sobre as

questões que nos interessam na obra de Piva.

No livro Paranoia, segundo o poeta e crítico Cláudio Willer, em posfácio escrito

para o primeiro volume da reedição da obra completa de Piva, o autor “alcança

sua identidade literária com uma escrita livre, ignorando qualquer restrição

lógica ou vocabular” (2005, p. 150). Ainda segundo Willer, a poesia de

Paranoia é uma “poesia de afirmação vital, e também da negação” (2005, p.

150), que “não apenas proclama a rebelião, mas quer ir além, destruindo

simbolicamente o mundo” (WILLER, 2005, p. 150). Isso se mostra no “Poema

Porrada”, no qual o eu lírico piviano manifesta esse desejo de destruição do

mundo: “eu quero a destruição de tudo o que é frágil: / cristãos fábricas

palácios / juízes patrões e operários” (PIVA, 2000, p. 128). E tal destruição

simbólica se desenrola, nos versos pivianos, como uma panorâmica feita sobre

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a cidade de São Paulo, que em alguns momentos, fixa sua lente num close em

certos elementos que, metonimicamente, representam a cidade de São Paulo

dentro do imaginário cultural, uma metrópole onde o trabalho é sempre a

principal ordem do dia para seus habitantes.

A “ignorância” cultivada por Piva relacionada à “restrição lógica ou vocabular”,

assinalada por Willer, desloca semanticamente o sentido dos longos períodos

que constituem os versos ao mesmo tempo em que erige um diálogo com as

fotos – algo que se materializa a partir de um elemento que caracteriza tanto o

poema quanto as fotografias: a imagem poética. Willer, baseando-se em Pierre

Reverdy, poeta vinculado à vanguarda surrealista no início do século XX,

assevera sobre o aspecto que nos parece pertinente sobre esse elemento que

se revela como uma espécie de coluna dorsal da poesia de Paranoia:

Seu modo dominante é a imagem poética, tal como definida por Pierre Reverdy e adotada pelo surrealismo: “A imagem é uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer de uma comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos afastadas. Quanto mais as relações das duas realidades aproximadas forem distantes e justas, tanto mais a imagem será forte, mais força emotiva e realidade poética ela terá.” (WILLER, 2005, p. 150, grifos nossos).

Para Willer, “há relações de continuidade, e também de complementaridade”

(2005, p. 157) entre a poesia de Paranoia e a de Piazzas (PIVA, 1964), o

segundo livro de Piva, lançado na esteira do primeiro trabalho do poeta. E tais

relações também poderiam se materializar justamente através do uso das

imagens poéticas, hipótese levantada em relação à Paranoia e também

perceptível em Piazzas. De acordo com o poeta e crítico da Geração 60, o eixo

central da poesia em Piazzas “continua sendo a imagem poética, com sua

visualidade” (WILLER, 2005, p. 157).

Todavia, devido à natureza de síntese que deve reger o presente trabalho, nos

limitaremos a analisar apenas a obra Paranoia, deixando a análise do livro

Piazzas para algum outro momento, mais oportuno. Cabe salientar que esse

caso da expressão poética entre os poemas de Piva e as fotografias de Duke

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Lee, anunciado no título deste texto, conforme já entrevisto até aqui, se dá a

partir da materialização da imagem poética, tanto nos poemas, quanto nas

fotos. Materialização que se concretiza, segundo entendemos, a partir da

analogia.

A palavra analogia, do latim analogia, -ae, segundo Silveira Bueno (2000, p.

60) pode ser definida como “ponto de semelhança entre coisas diferentes”, ou

ainda, “influência assimiladora de uma forma sobre outra, habitualmente

associadas ou aproximadas”. Nesse sentido, nos parece que o conceito de

analogia supostamente utilizado por Roberto Piva na construção dos seus

poemas se coaduna não somente com a primeira proposição supracitada.

Aproxima-se, ainda, à definição cunhada pelo poeta futurista italiano Filippo

Tommaso Marinetti, no “Manifesto Técnico da Literatura Futurista”. Segundo o

poeta futurista, a analogia

nada mais é do que o amor profundo que liga as coisas distantes, aparentemente diferentes e hostis. [...] A poesia deve ser uma sequência ininterrupta de imagens novas, sem as quais ela não é uma outra coisa a não ser anemia e clorose. / Quanto mais as imagens contiverem relações vastas, tanto mais longamente elas conservam sua força de estupefação. (apud BERNARDINI, 1980, p. 82, grifo nosso)

De acordo com Willer, o que fundamentaria a analogia seria a “crítica dos

princípios lógicos da identidade e da não-contradição, pelos quais uma coisa,

sendo o que é não pode ser outra” (WILLER, 2005, p. 151). Nesse sentido, e

embasados nas definições acerca da analogia enquanto ferramenta utilizada

na construção de imagens poéticas, neste ponto sugerirmos que as imagens

da poesia piviana e também as das fotos do cronista visual Duke Lee foram

construídas justamente a partir desse processo de pensamento analógico.

Tal ideia se torna mais palpável quando levamos em conta que, na poesia de

Paranoia, as referidas imagens poéticas, regidas pela operação analógica,

transitam por um amplo espectro que vai do extremamente lírico ao

descaradamente blasfematório, dentre outros percursos discursivos

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iconoclastas, estabelecendo assim uma tensão poética erigida a partir das

possíveis e improváveis relações entre elementos aparentemente díspares,

senão equidistantes.

Essa tensão é plasmada de forma magistral em versos como os do “Poema

Submerso”: “Havia um revólver imparcialíssimo vigiado pelas / Amebas no

telhado roído pela urina de tuas borboletas” (PIVA, 2000, p. 25). Uma das

possíveis maneiras de exemplificar essa tensão mencionada é destacar o fato

de haver um contraste entre a natureza de alguns dos elementos desse

poema. Por exemplo, o “revólver”, elemento que representa o poder coercitivo

empreendido através da violência física via máquina, jaz “imparcialíssimo”, em

repouso, vigiado pelas “Amebas”, seres protozoários visíveis apenas sob as

lentes de um microscópio. Sob essa perspectiva, fica evidente a inutilidade da

vigilância empreendida pelos seres unicelulares e a constatação de que o tal

“revolver imparcialíssimo” poderia tornar-se “parcial”, isto é, estar a serviço de

alguém como uma ferramenta para tomar de assalto a qualquer pessoa, a

qualquer momento, gerando evidente tensão concretizada por meio dessa

imagem poética.

Mas essa tensão em Paranoia não se dá apenas nos domínios do verso,

conforme já foi algumas vezes apontado neste trabalho. Ainda no “Poema

Submerso”, a fotografia que divide o poema em duas partes retrata uma vitrine

em que nos chama a atenção, em um primeiro momento, a presença de armas:

dois revólveres, que segundo etiquetas pregadas na estrutura que sustenta

uma das armas que parece estar pairando no ar, são do calibre 22. Mas onde

estaria, nessa fotografia (fig.1), especificamente na composição retratada por

ela, a tensão que já foi atribuída ao poema anteriormente mencionado?

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Fig 1. Foto de Wesley Duke Lee, p. 24

Outro elemento, que não passa de maneira alguma despercebido, é a fagulha

que põe em combustão, nessa foto de Duke Lee, o processo analógico,

gerador da tensão evocada pela pergunta anterior: um pássaro negro, de porte

pequeno, uma possível alusão à morte, repousa em uma espécie de poleiro

junto à armação que sustenta as armas. Há uma sobreposição, na mesma

cena dos revólveres, dos elementos animal e maquínico, normalmente

díspares. E a emissão de sentido captada na relação que se dá entre esses

elementos de natureza distinta no mesmo plano fotográfico, é uma

correspondência análoga às das suscitadas pelas imagens poéticas do texto

em questão e que podem também ser percebidos ao longo de toda a poética

de Paranoia.

Ainda sobre a questão pertinente à analogia como procedimento poético, o

poeta e ensaísta mexicano Octávio Paz, em seu ensaio “Os filhos do barro”

(PAZ apud WILLER, 1980), também chamou a atenção para uma das

peculiaridades advindas de tal recurso:

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A analogia sobreviveu ao paganismo e provavelmente sobreviverá ao cristianismo e a seu inimigo, o cientificismo [...] O poema é uma das manifestações da analogia; as rimas e aliterações, as metáforas e metonímias, nada são senão modos de operação do pensamento analógico. [...] Se a analogia transforma o universo em poema, em texto feito de oposições que se resolvem em consonâncias, também faz do poema um duplo do universo. (apud WILLER, 1980, p. 15, grifos nossos)

Ora, se tanto os poemas como as fotografias estão, de alguma maneira,

contaminadas por essa relação de analogia em Paranoia, nada mais coerente

do que propor também a conclusão de que as fotos de Duke Lee, tanto quanto

os poemas de Piva, são manifestações, mesmo que através de suportes

artísticos diferentes entre si, da própria operação analógica delineada pelo

pensador mexicano.

Outro aspecto relevante mencionado por Paz no excerto anterior e que se

relaciona intimamente ao conceito de analogia tanto quanto em relação à

poiesis seria o da operação metafórica e metonímica. Esse procedimento

constitui uma das linhas de força na construção do texto poético de maneira

geral e se afigura como elemento importante não somente à constituição das

imagens poéticas dos versos de Roberto Piva, mas também em sua relação

com as imagens fotográficas de Wesley Duke Lee.

Há, sim, metáforas e metonímias em Paranoia. E tanto nos poemas, quanto

nas fotos. No poema “Stenaminaboat”, a fotografia que figura ao lado da

primeira página do referido texto apresenta uma composição baseada no

recorte de um céu cinza como plano de fundo, cravado por galhos e folhas que

formam um emaranhado de aparência outonal que se apresenta no primeiro

plano.

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Fig. 2 - Foto de Wesley Duke Lee, p. 87

Nos últimos versos do poema, “minha loucura atinge a extensão de uma

alameda / as árvores lançam panfletos contra o céu cinza” (PIVA, 2000, p. 88),

percebe-se a referência a dois elementos que compõem a foto: as “árvores” e o

“céu cinza”. Ora, nesse sentido, pontuamos aqui mais uma vez a presença de

um movimento de inter-relação entre imagem poética, agora plasmada via

metáfora, e a imagem fotográfica, metafórica e metonímica. A metáfora, nesse

caso, dá-se mediante a transformação, empreendida pelo poeta, das folhas das

árvores em “panfletos”, potencializando assim esse elemento tanto no contexto

do poema quanto no da fotografia (fig. 2).

A presença da relação metonímica acima sugerida revela-se na medida em

que, quando pensamos que ambos, poema e fotografia, apresentam em

comum na sua constituição sígnica os mesmos elementos, “árvores”; “céu

cinza”. Dessa forma, infere-se que pode haver uma maneira de relacionar, de

associar texto e imagem a partir desses elementos, que, na conjunção das

partes, oferece uma modelagem de leitura sobre um todo paradoxalmente

harmônico e tenso.

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O uso de imagens com o intuito de justamente questionar o real, de subverter a

linguagem cotidiana através da palavra poética e das imagens fotográficas, nos

parece ser algo recorrente ao longo de Paranoia. Sendo assim, entendemos

ser cada vez mais claro que o trabalho aqui proposto evidencia o estudo, a

leitura, a interpretação da poética piviana não apenas se valendo de seus

próprios poemas, mas também a partir dessa relação entre a palavra poética

de Piva e as imagens fotográficas de Wesley Duke Lee.

Acerca da relação palavra e imagem, no ensaio “Literatura e Fotografia II”, do

livro Fricções: traço, olho e letra (CASA NOVA, 2008), a professora e crítica

Vera Casa Nova também nos chama a atenção para as relações entre imagem

e texto, além de suas possíveis repercussões. Casa Nova, entretanto, delimita

tais relações a partir dos elementos fotografia e palavra. Tal constatação

parece se coadunar com nossa análise apresentada até o momento:

Signo contínuo e sintético, a imagem por oposição pessoal à cadeia descontínua da linguagem permite, no entanto, criar entre texto escrito e imagens uma continuidade favorável aos efeitos visuais [...] Assim a leitura de uma imagem fotográfica introduz a descontinuidade na continuidade, fazendo do termo um sistema de diferenças. (CASA NOVA, 2008, p. 106)

Em Paranoia, as fotos de Lee operam numa tensão contínua entre

aproximações e distanciamentos, entre diferenças e semelhanças, entre closes

e panorâmicas, gerando exatamente esse efeito de “descontinuidade na

continuidade” apontada na citação anterior.

Para exemplificar tal afirmativa, comparemos uma estrofe do poema “Visão

1961” a outra foto de Duke Lee na sequência (fig. 3), que está localizada na

página imediatamente anterior, espelhando a página do livro de onde foi

retirado o próximo excerto: “imensos telegramas moribundos trocam entre si

abraços e condolências / pendurando nos cabides de vento das maternidades

um batalhão / de novos idiotas” (PIVA, 2000, p. 15).

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Fig. 3 - Foto de Wesley Duke Lee, p. 14

Se concordarmos que as mensagens materializadas através de “imensos

telegramas moribundos” se tornam possíveis apenas quando são transmitidas

através dos fios telegráficos, podemos dizer que há uma relação de

des/continuidade entre a fotografia e o poema (e vice-versa). Um dos

elementos que se destacam no plano de fundo da imagem é justamente o

emaranhado de fios e postes, suporte imprescindível às transmissões dessa

natureza. É a efetiva materialização da relação entre a imagem e a palavra em

plena realização nas páginas de Paranoia.

A imagem fotográfica é um elemento que se afigura tão importante quanto a

própria imagem poética na composição do livro Paranoia. Nesse ponto,

convém citarmos o teórico alemão Walter Benjamin, que em seu ensaio

“Pequena história da fotografia” do livro Magia e técnica, arte e

política(BENJAMIN, 1985), racionaliza sobre aspectos da fotografia que

também nos parecem pertinentes à elucidação acerca dessa relação poética

através de imagens em Paranoia.

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Os poemas – e por consequência, as fotos que se ligam aos mesmos –, devido

à flagrante constituição imagética, teriam um forte acento surrealista, o que

corroboraria com a ideia de Benjamin: “a fotografia surrealista prepara uma

saudável alienação do homem com relação a seu mundo ambiente. Ela liberta

para o olhar politicamente educado o espaço em que toda intimidade cede

lugar à iluminação dos pormenores” (BENJAMIN, 1985, p. 102). Benjamin,

ainda discorrendo sobre o mesmo tema, leva adiante seu raciocínio:

A fotografia nos mostra essa atitude, através dos seus recursos auxiliares: câmara lenta, ampliação. Só a fotografia revela o inconsciente pulsional. [...] Mas ao mesmo tempo a fotografia revela nesse material os aspectos fisionômicos, mundos de imagens habitando as coisas mais minúsculas, suficientemente ocultas e significativas para encontrarem um refúgio nos sonhos diurnos. (BENJAMIN, 1985, p. 102, grifos nossos)

Em Paranoia, tanto nos poemas, quanto nas fotografias, também chama a

atenção a materialização de um ambiente onírico, potencializado pelo tom

monocromático das imagens fotográficas, que oscila entre o luminoso e o

sombrio ao longo das páginas. Nesse encontro dos versos de Piva com as

fotografias de Lee, segundo nosso entendimento, há uma franca relação de

diálogo, longe do óbvio discursivo e, nesse sentido, próxima à escrita

automática surrealista. Ademais, tal relação revela-se pautada na tensão entre

as linguagens, mas sem abrir mão das sutilezas lírico-metafóricas na

composição do poema.

As fotos de Duke Lee em Paranoia se caracterizam por serem em preto &

branco, insinuando dessa maneira uma ambiência levada a termo no jogo

“claro versus escuro” mimetizando graficamente, emulando visualmente, as

imagens poéticas que são formadas por elementos contrastantes, senão

antitéticos.

Na grande maioria, as fotografias de Paranoia registram, através de closes

desconcertantes e de panorâmicas com um discreto acento voyeur, diversos

topônimos da cidade de São Paulo no início da década de 1960. É a

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“metrópole necrópole” (apud COHN, 2009, p. 63) segundo Piva, que figura,

ainda que metonimicamente, de forma ativa nos poemas e fotos. E é

efetivamente esta cidade de São Paulo delirante, conforme concluímos, o

principal tema que desfila, por meio das imagens poéticas, nas fotografias e

versos dessa obra.

A partir de tudo o que foi apresentado e analisado neste trabalho, é possível

concluir que há uma relação nada sutil, tensa, entre as imagens construídas a

partir dos versos de Piva e a das fotografias de Lee, que dividem o espaço

nada pacífico das páginas de Paranoia. E tal relação tensionada,como se

propôs demonstrar, se dá a partir do emprego sistemático de alguns recursos,

como a analogia, a metáfora e a metonímia, que tonifica isoladamente não

apenas cada um dos elementos que constituem os poemas e fotografias de

Paranoia: potencializa a própria interrelação entre tais elementos e o olhar

daqueles leitores mais atentos.

THE RELATIONSHIP BETWEEN PHOTOGRAPHY AND POETRY: THE CASE OF PIVA-LEE'S POETIC EXPRESSION

ABSTRACT: This article aims to analyze the book Paranoia, from the concept of analogy as a trainer of poetic imagery and metaphoric and metonymic operations, the relationship between the poems of the poet Roberto Piva and photographs of the artist Wesley Duke Lee's photographs. Duke Lee does not merely illustrate the verses of Piva, but establish a dialogue between different languages, based on certain tension. The comparison between some recurring elements in both, poems and photographs, provides subsidies for a more accurate reasoning of those propositions. The intention is to contribute to a analytical look at a possible relationship between poetic and technologies. KEYWORDS: Photography. Poetry.Image. Roberto Piva.Wesley Duke Lee.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1996. BUENO, Silveira. Pequeno dicionário da língua portuguesa. 2. ed. São Paulo: FTD, 2000.

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CASA NOVA, Vera. Fricções: traço, olho e letra. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. COHN, Sérgio. (Org.). Roberto Piva. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. COSTA, Cacilda Teixeira da. Wesley Duke Lee: um salmão na corrente taciturna. São Paulo: Alameda/Edusp, 2005. MARINETTI, Filippo Tommaso. Manifesto técnico futurista. In: BERNARDINI, Aurora Fornoni (Org.). O Futurismo Italiano. São Paulo, Perspectiva, 1980. PAZ, Octavio. Os filhos do barro. In: ____. Os filhos do barro: do Romantismo à Vanguarda. Tradução de Olga Savary. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1984. PÉCORA, Alcir. Nota do organizador. In: PIVA, Roberto. Estranhos sinais de saturno. Obras reunidas. v. III. Rio de Janeiro: Globo, 2008. PIVA, Roberto. Paranoia. 2. ed. São Paulo: Instituto Moreira Sales, 2000. PIVA, Roberto. Piazzas. 2. ed. São Paulo: Kairós Livraria e Editora, 1980. PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião. Obras reunidas. v. I. Rio de Janeiro: Globo, 2005. TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro: apresentação dos principais poemas, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas, de 1857 a 1972. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1997. WILLER, Claudio. Introdução à orgia. In: PIVA, Roberto. Piazzas. 2. ed. São Paulo: Kairós Livraria e Editora, 1980. WILLER, Claudio. Uma introdução à leitura de Roberto Piva. In: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião. Obras reunidas. v. I. Rio de Janeiro: Globo, 2005.

Texto recebido em: 14/07/2014.

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//////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////\\\\\\\\Luis Buñuel: uma poética do selvagem1

Eduardo Peñuela CañizalUNIP/USP

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1. Este trabalho faz parte de projeto de pesquisa que realizo com bolsa do CNPq. O texto, com algumas modificações, corresponde ao da comunicação apresentada ao GT Fotografia, Cinema e Vídeo, no XVIII Encontro Anual da COMPÓS, junho de 2009.

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Resumo

Abstract

Palavras-chave

Key-words

Este artículo é uma análise do efeito das rupturas retóricas no nível da trilha sonora e do enxerto de imagens em filmes de Luis Buñuel. Seu principal objetivo é estudar o papel que esses recursos têm numa poética do selvagem.

This article is an analysis of the effect of rhetorical disruptions at the levels of soundtrack and images inserts in Luis Buñuel’s films. Its main objective consists in detaching fragments of films with the finality of studying the role of a wild poetics.

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Luis Buñuel: uma poética do selvagem | Eduardo Peñuela Cañizal

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Numa das sequências de um documentário reproduzido fragmen-tariamente na fita A propósito de Luis Buñuel (2000), o cineasta, no palco do seu rosto, encena gestos e fonações que me intrigam. Nas toscas imagens da sequência em que Buñuel inventa um relato sur-realista– Figura 1 –, os lábios e os dentes do diretor se movimentam no entremeio da confiança de quem diz o que deseja e da convic-ção de quem deseja que o dito adquira um determinado tono. Esses visíveis personagens da morfologia corporal combinam suas ações com as de outros personagens bucais que o espectador não vê2 e, por conseguinte, não percebe as contribuições que eles fazem duran-te a fala. Tudo indica, entretanto, que esses personagens-órgãos são responsáveis diretos por um trabalho de inervação cujos resultados se deixam sentir nas imagens sonoras da fala, nessa espécie de trilha fônica em que um componente tão complexo como a representação de palavra intervém.

Para se avaliar o grau de complexidade de tal representação pen-semos na operação que um usuário da língua portuguesa tem de fazer quando pronuncia uma palavra ou elabora uma frase. Um fa-

Figura 1

2. Não vejo a traquéia, a faringe, a glote, a cavidade nasal ou o palato

duro, para não citar outros.

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lante deste idioma, ao proferir, por exemplo, o substantivo montanha associa a imagem sonora a um sentimento de inervação de palavra e, assim, o falante passa a ser sujeito de uma espécie de pós-fala – um ato de fala em que se repete o dito por outrem –. Esse é o caminho que, segundo Freud3, conduz ao falar sintático: enlaçamos as pala-vras entre si e para completar a frase com uma nova palavra será ne-cessário levar em conta a inervação da última palavra dita e aguardar a chegada da imagem sonora da palavra a ser incorporada. Contudo, a inervação não é algo exclusivo da palavra. Ela também age na es-crita, entendida simplesmente como sistema alfabético ou como ar-tifício de inscrever imagens num suporte apropriado. O processo é semelhante e suas conseqüências no trabalho de leitura podem ser extraordinariamente significativas4. Há vestígios importantíssimos da inervação na grafia de uma letra ou, mesmo, na camada sensível de uma película, pois não se deve menosprezar a idéia de que uma fotografia, por exemplo, começa com o disparo de uma câmera pro-duzido, no geral, por um aperto do dedo indicador5.

Os fotogramas transcritos na Figura 1 se reportam a um conjunto de planos em que Luis Buñuel conta um relato singular. Uma pe-quena anedota, inventada por ele mesmo, para construir uma fábula exemplar sobre o que significa ser ateu e os matizes que esse estado pode assumir num trajeto que vai do sorriso ao riso. O cineasta aí imagina que, na hora da sua morte, reunirá seus melhores amigos – comunistas e descrentes – para que ouçam seu testamento ideoló-gico através da confissão que ele fará a um padre da sua confiança. Declarará em voz alta que ele acredita piamente em Deus e se arre-pende de todos os seus pecados nefastos, pedindo aos que assistem ao ato que tomem sua morte como exemplo. Seus amigos ficarão horririzados ao terem sido envolvidos nessa situação. Rindo de si mes-mo, Buñuel termina sua historíola vendo-se no fogo eterno por ter tramado semelhante brincadeira. O saboroso da inventiva não advém exclusivamente do conteúdo das peripécias, mas também da maneira hilariante de narrar: o cineasta degusta as palavras e toda a sua pós-fala parece que se vai maquinando com o intuito de romper com o já dito e fazer com que a inervação dos gestos expresse o prazer de quem sabe estar elaborando uma espécie de parábola libertária.

A tendência à subversão é uma constante tanto na obra quanto em muitos dos comportamentos deste criador de sonhos, fascinado sempre pela possibilidade de transformar a pacata sensatez do sorriso na liberadora mordacidade do riso. Enquanto vestígio primitivo de

3. Faço um uso não muito rigoroso do pensamento que Freud formula num pequeno escrito intitulado Palabra y Cosa (1993: p.207-212).

4. Exploro alguns aspectos desta questão na leitura que faço de Citizen Kane. Cf. Peñuela Cañizal (2008).

5. Nos meses de outubro e novembro de 2008, o Centro Nacional de las Artes, de México, celebrou a exposi-ção Buñuel entre dos mundos. No catálogo encontramos informações que podem nos servir para explicar melhor o processo de inervação de imagens. A primeira seção desta exposição está dedicada à exibição de fotos feitas pelo cineasta no intuito de compreender a fundo os espaços mar-ginalizados – urbanos e rurais – do México e, também, com o propósito de escolher a localização de cenas de seus filmes mexicanos. Muitas dessas fotos reaparecem, com enquadramen-tos muito parecidos, em seus filmes da fase mexicana. Assim, para dar tão somente um exemplo, veremos a árvore da fazenda San Francisco de Cuadra que “inspirou” os planos de apresentação do filme Abismos de Pasión. Creio que essas fotos são, em relação com o filme a que elas se vinculam, representações imagéticas nas quais, de certa maneira, encarna um sentimento de inervação a partir do qual as sequências fílmicas onde se “repetem” se impregnam, enquanto representações “ditas”, das reminis-cências de algo embrionário: tema sempre presente nos momentos mais marcantes do cinema de Buñuel.

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Luis Buñuel: uma poética do selvagem | Eduardo Peñuela Cañizal

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uma atitude agressiva domesticada pelo animal humano, o sorriso pode se transformar, paulatinamente, na subversão de uma garga-lhada. Criando tensões entre esses dois pólos, o cineasta – como pretendo mostrar neste trabalho – constrói uma poética do selva-gem para tumultuar aspectos da escripção6 fílmica feita mediante combinatórias expressivas em que imagens e sons se interpenetram e buscam, com essa simbiose, as raízes do originário. Uma poética ancorada no princípio retórico da ruptura utilizada enquanto meio de desfigurar as formas expressivo-semânticas dos falares sintáticos consagrados pelo hábito e, no caso, procurar no entremeio dessas desfigurações vestígios do primitivo, ressonâncias do embrionário e das pulsões do instinto.

Não deve causar surpresa que o cineasta tire proveito de suas “pe-tites histoires” e que em muitas ocasiões as utilize dando-lhes uma nuança jocosa. No entanto, quem melhor traduz e interpreta esse traço é o romancista chicano John Rechy (1999: p.34-9). Este escri-tor, alimentando sua imaginação com boatos, elabora um delicioso texto de ficção em que os sons das palavras e a conhecida surdez de Buñuel tecem instigantes mal-entendidos. Um deles se engendra do encontro havido entre o cineasta e Marilyn Monroe durante as filmagens de El Angel Exterminador. Segundo o narrador, a atriz es-tava acostumada a que lhe fizessem perguntas banais – por exemplo, sobre o sabonete usado ao tomar banho antes de dormir – e esperava, fazia tempo, que alguém lhe fizesse uma pergunta diferente, como a feita por Buñuel quando ele quis saber o que ela pensava da vida. E, como se diz ter assistido à filmagem de uma das cenas em que as personagens falam sem parar sentadas à mesa, ela teria respondido: “A vida é um enorme sem sentido.....falando (talking), todos falando ao mesmo tempo... inconscientemente (obliviously).” E ao dizer isso, a atriz lembrou que a primeira vez que usou obliviously – ainda não era casada com Arthur Miller –foi corrigida pelo dramaturgo, quem a intimou a dizer obviously.

A autoritária correção de Arthur Miller carecia de fundamento e Buñuel, anos mais tarde, nas filmagens de Le Discret Charme de la Bourgeoisie, recorda, ao ver a cena em que as personagens ca-minham sem rumo, a frase de Marilyn e, entusiasmado, exclama: “Dedico este filme à la hermosa y brillante Marilyn Monroe!” Mas o assistente – Pierre Lary –, julgando que tudo era fruto de um equí-voco provocado pela surdez de Buñuel, houve por bem colocar as coisas em seu lugar e se dirigiu ao cineasta para informar-lhe que a

6. O termo escripção é por mim usado na acepção que lhe confere Roland

Barthes quando, em várias passagens da sua obra, destaca o compromisso da

escrita com o trabalho manual, com as rasuras do estilete sobre a superfície que venha a ser usada na condição de

suporte. Se pensarmos que a fotografia nasce das marcas que deixa a luz na

superfície de um corpo sensível e que a produção do som implica na

utilização de várias partes do corpo, a escrita fílmica tem sua origem na

escripção entendida como inscrição. Recomendo, a quem se interesse pelos

matizes desta questão, a leitura da coletânea de textos de Barthes sobre

este assunto reunidos em Variaciones sobre la escritura (2002)

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estrela tinha dito “talking” (falando) e não “walking” (caminhando). Mal sabia ele que a questão não era essa: o motivo que levou Buñuel a tal dedicatória vinha do discreto encanto da palavra obliviously en-cenada na bela boca de Marilyn Monroe. O mistério se engendrou na insólita combinatória em que uma forma sonora ambígua de per si se acopla a uma excitante imagem carnal. Essa talvez seja uma das interpretações mais belas e profundas do cinema poético de Luis Buñuel7, sobretudo se a avaliarmos no contexto da pós-fala e do falar sintático. Não há dúvida de que Buñuel constrói uma complexa me-táfora através do processo de substituir o já dito pelo ainda não dito. Um tipo de tropo cuja índole surrealista se faz sentir num processo de associação semelhante ao desencadeado pelo trabalho do sonho com base no estabelecimento de relações analógicas entre o dito na véspera e o não dito a que o sonho enigmaticamente se refere. Nesse jogo arraiga o poder subversor da poética de Buñuel, sempre dire-cionada, através de seus atentados contra a lógica e o lugar comum, no rumo de libertar as energias do instinto.

As experimentações levadas a cabo no trabalho de sincronização de elementos do som e das imagens formam, no domínio poético do audiovisual, um campo de indagação particularmente atraente. Não só pela complexidade dos objetos que o integram, mas também porque a elaboração desses objetos decorre, em muitos casos, de práticas inovadoras e revolucionárias. A esse respeito, vale a pena se deter nalguns dos resultados conseguidos em Belle de Jour, conside-rado um dos filmes mais populares de Buñuel e, supostamente, uma obra de fácil compreensão. O sucesso deste filme é um dado incon-testável. Mas, no atinente à compreensão, o assunto muda de rumo a partir do instante em que o espectador percebe que, nesta obra, o texto foi estruturado seguindo o ardil de confundir cenas atreladas à vida social com cenas comprometidas com o mundo interior dos sonhos. Tal sorte de estratagema constitui, sem dúvida, um atentado contra as plataformas em que se alicerçam as colunas de uma nar-rativa tradicional. E vai mais longe se tomarmos consciência de que ele é também uma ferramenta poética capaz de abalar as estruturas construídas perversamente para acobertar como verdades indiscutí-veis as sectárias inverdades veiculadas por requintados dispositivos postos irrestritamente a serviço do mundo artificial da informação.

Vem daí a força corrosiva que vai pouco a pouco enferrujando a engrenagem que movimenta ordenadamente as concatenações determinadas pelo princípio de causa e efeito. Por isso, diante de

7. Freddy Buache (1970: p.59-60) foi um dos primeiros em chamar a atenção para o poder de sugestão das “ boutades” de Buñuel e a valorização, por esse meio, de fatos aparentemente insignificantes. No texto da entrevista a Conchita – irmã do cineasta – transcrito por Max Aub em seu livro Conversaciones con Buñuel (1984: p.177) se faz menção a um episó-dio saboroso: para se livrar de uma namorada a quem tinha prometido ca-samento, o jovem Buñuel “inventa” a existência um amigo que escreve uma carta comunicando à moçoila que seu namorado tinha perdido a vida num grave acidente de moto. O sarcasmo de fantasias desta índole aparece em muitos dos seus filmes.

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Luis Buñuel: uma poética do selvagem | Eduardo Peñuela Cañizal

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uma imagem e do som que a acompanha, o espectador se vê amiúde aturdido e, longe de ter certeza do significado palpável daquilo que está contemplando, se perde nas incógnitas da ambigüidade. Esse desconcerto aumenta porque, como muito bem assinala Harmony H. Wu, Buñuel se entrega à ironia e ao rompimento das normas uti-lizando as mesmas regras usadas na construção das mundividências que ele deseja destruir:

“… a maneira particular de subverter que se observa em ‘Belle de Jour’,

embora diferente à que se manifesta em ‘Un Chien Andalou’, se asse-

melha com a que aparece em ‘Le Charme Discret de la Bourgeoisie’:

trata-se de se opor às convenções da narrativa sem se afastar, porém,

das mesmas regras de jogo. As cenas “reais” de Séverine em seu apar-

tamento estão acusticamente marcadas pelo tique-taque e as badala-

das dos relógios, sublinhando hiperbolicamente a hipotética “realida-

de” com a progressão “real” do tempo. A obsessão com o tempo não

representa somente a instância mais elevada da estrutura do mundo

da burguesia, como acertadamente sugere Evans, mas também a pro-

gressão da estrutura fechada do tempo na narrativa convencional.” (

1999: p.127)8.

Em algumas ocasiões, Buñuel apresenta os laços de Séverine com sua vida pregressa através de mediações feitas pela manipulação de signos acústicos. Nos devaneios da personagem, freqüentemente os elementos auditivos antecipam o retorno à vida cotidiana ou a regres-são a momentos anteriores ao presente que as imagens designam. Wu destaca várias passagens em que essa técnica é praticada. Assim, quando Séverine-menina está na iminência de ser violada se escuta uma voz que a chama, uma voz cujo ponto de vista é indefinido: não se sabe de onde vem e tampouco se sabe se coincide com o passado ou com o presente da personagem. Signos acústicos como esse são inseridos na transição das imagens e, por esse motivo, geram um clima de ambigüidade que afeta a ordem causal do relato. E, sobretudo, tergiversa a informação a partir da qual o espectador teria a possibilidade de distinguir os atos cotidianos das ações fantasmagó-ricas decorrentes do trabalho da imaginação ou das fantasias a que amiúde se entrega a Bela da Tarde. Esse tipo de enxerto sonoro atua como um elemento intermediário em que oscilam o dito presente no sentimento da inervação e o repetido da representação de pa-lavra, processo através do qual se geram indefinições que afetam a

8. A tradução ao português dos fragmentos de obras que constam da

referência bibliográfica no idioma original em que foram escritas é da

minha responsabilidade.

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significação das imagens e, conseqüentemente, tornam ainda mais ambíguos seus conteúdos.

Além de formatar simbioses específicas das imagens com o som, esse recurso expande as molduras e as bordas dos enunciados9 fílmi-cos e, por conseguinte, alarga as possibilidades de significação. Tanto é assim que, nesse conjunto de cenas formado pela suposta saída de Séverine do prostíbulo até aquelas em que ela é enlameada e insul-tada por Pierre e Husson, os signos auditivos se desencontram com o que seria uma sincronização “realista” e criam uma ambiência enig-mática. No plano fechado em que Séverine aparece ensimesmada, depois de haver queimado suas roupas íntimas, ecoam ressonâncias de sinos que, sinestesicamente, parecem representar os latidos da dor de cabeça fingida pela personagem para justificar, perante o seu mari-do, sua indisposição para ir jantar fora. Mas, depois de uns segundos, essa impressão se dilui e na tela surgem as imagens de um rebanho de touros escuros. De imediato, os animais se metaforizam no diálo-go de Pierre e Husson: passam, de representar o arrependimento, a encarnar a expiação da culpa. Um jogo de palavras mediante o qual se instituem as bases para ampliar os espaços expressivo-semânticos do filme permitindo a entrada de outros textos: no caso, o Angelus, de Millet. A intromissão dessa configuração pictórica faz com que a intertextualidade implantada, vagamente previsível10 nas particula-ridades da trilha fônica instaurada pelo diálogo de Pierre e Husson, não seja fruto de uma expectativa vinculada aos significados ditos na representação de palavras postas na boca destas duas personagens.

De repente, o bucolismo aparente da cena campestre explode e uma vez rompida essa ordem simbólica entra no palco das ações a violência primitiva de Pierre e Husson: Séverine se transforma no alvo da ira moralista dos dois homens e seu corpo é apedrejado e maculado com punhados de lama amassada. Percebe-se que Buñuel estrutura a concatenação das imagens seguindo um modelo em que a representação dos signos acústicos medeia a junção das imagens, com a particularidade, no entanto, de que a representação de pa-lavra, de per si encadeada com a inervação sonora, não atende à expectativa de um espectador acostumado às normas de um falar sintático habitual. Não se espera o salto de uma imagem mental – a de Séverine com suas preocupações sexuais – para a configuração de uma imagem campestre – a do rebanho de touros escuros –. Nem tampouco se esperava a irrupção de uma trilha fônica em que a ilu-são de continuidade acústica se desmorona.

9. Os termos moldura e borda estão sendo aqui usados na acepção que lhes confere o Groupe µ no livro Traité du Signe Visuel (1992: p. 377-399).

10. Digo vagamente previsível porque, no falar sintático de Pierre e Husson, as palavras arrependimento e expiação não necessariamente exigem a presen-ça de um quadro que complemente e ilustre seus respectivos conteúdos, embora o quadro “simulado” no filme remita a uma obra pictórica de Millet que trata do arrependimento e da expiação

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A ironia atravessa o todo das seqüências em questão e sua morda-cidade é, no fundo, iconoclasta. Por trás desse delirante arranjo de imagens e sons se escondem, como nos processos oníricos, sentidos latentes com os que o espectador não atina em suas primeiras ten-tativas de interpretar este fragmento do texto fílmico. A atmosfera sarcástica se faz, no entanto, perceptível. E, envolvido nela, mesmo o espectador desorientado pelos enigmas das metáforas pressente a força das ações selvagens. Em seqüências destas características, a po-esia de Buñuel lança aos campos da imaginação as sementes da ira e, sobretudo, seu permanente desejo de libertação, de arrombar as argolas da moral burguesa e da opressão. Compreende-se que seja este o tipo de arranjo que o cineasta aproveita para introduzir as am-bigüidades de suas “boutades” e, também, que tais enxertos auxiliem a leitura uma vez conhecida a origem dos mesmos. A respeito dessa passagem do filme, lembro que Agustín Sánchez Vidal (1991: p. 257) diz ter ouvido de Jean Sorel – ator que encarna a personagem de Pierre – o que se segue:

“Numa seqüência, Michel Piccoli e eu devíamos arrojar punhados

de lama sobre o rosto e o corpo de Catherine Deneuve, cobrindo-a

também de insultos atrozes, gritando obscenidades muito vulgares e

palavrões que a censura não teria permitido. Em lugar de tudo isso,

Buñuel nos fez gritar os nomes dos escritores que detestava e durante a

filmagem ele ria sem parar.”

Evidentemente, enxertos desta natureza não eliminam a riqueza sig-nificativa do trecho em questão. Apenas apontam para um rumo pos-sível de leitura, ainda quando não tenham sido mantidos – como é o caso – na versão final da fita. Independente de tais enxertos estarem presentes ou simplesmente aludidos, o procedimento de enxertar de-sencadeia, sem dúvida, relações de intertextualidade, muitas vezes paródicas até o exagero, que alargam e dão profundidade aos enun-ciados cinematográficos propriamente ditos. Não raro, eles permitem, por outro lado, a realização de artifícios que acentuam a sua ironia.

Os planos que formam as seqüências finais de Le Journal d’une Femme de Chambre mostram, através de imagens próprias de um documentário de cunho realista, um grupo de manifestantes de ex-trema direita defendendo aos berros seus slogans ultranacionalistas. Um detalhe, porém, chama a atenção de Freddy Buache. Em sua descrição do episódio, o crítico observa:

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“O cortejo desaparece no fim da rua. Os gritos de “Viva Chiappe” con-

tinuam. Na fachada de um prédio, à esquerda, aparece um cartaz em

que se promove a marca do aperitivo Picon. O cartaz escamoteia as

letras PI. (Talvez se trate de um mero acaso da projeção, o que serviria

para mostrar que o acaso nunca é um fenômeno simples!). O resto da

palavra é a injúria sorridente que Buñuel dirige ao chefe de polícia

cujo nome é uivado por um bando de pequenos burgueses fanatizados,

disposto a tudo com tal de que triunfe a mitologia da ordem, da na-

ção, da raça e, no entanto, indiferentes à tarefa de tirar os outros da

alienação....”. (1970: p.152).

Figura 2. Le Journal d’une Femme de Chambre (Frames da última seqüência)

Faz-se necessário, entretanto, prestar alguns esclarecimentos para que o leitor de hoje compreenda melhor o contexto histórico-social em que se situa o comentário de Buache e possa avaliar o alcance de “l’injure souriante” a que se refere o estudioso. Assim, no tocante a Chiappe, o nome do chefe da polícia enaltecido fanaticamente pelos pequenos burgueses tem um antecedente histórico e não é, por con-seguinte, uma personagem arbitrariamente inventada por Buñuel para fazer parte, através de signos sonoros, do episódio. Jean Chiappe foi chefe da polícia de Paris, de 1927 a 1934. Foi precisamente ele quem mandou prender as cópias de L’âge d’or em 1930. Ele teve, pois, um papel “relevante” no escândalo causado pelo filme e reunia “méritos” suficientes para receber, portanto, “l’injure souriante”. Mas a retribuição de Buñuel a este patriota empedernido, sempre apoiado por grupos de extrema direita, não é tão óbvia quanto se possa ima-ginar. O cineasta, na última seqüência de Le Journal d’une Femme de Chambre, se valede dois artifícios para expressar ironicamente

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sua vingança. De um lado, os seguidores de Chiappe são representa-dos, com recursos especificamente cinematográficos, pulando como macacos na estreiteza de uma rua que parece não levar a nenhuma parte. De outro, tal qual se pode constatar nos frames da Figura 2, o diretor utiliza um procedimento escritural primitivo11: constrói uma espécie de hieróglifo a partir da grafia da palavra Picon.

Na caminhada sem sentido dos manifestantes, os indivíduos que passam diante do cartaz do aperitivo fazem com que a palavra se decomponha em PI e CON. O leitor interessado em entrar no jogo instituído poderá armar seu processo de leitura rastreando os indícios dessas duas sílabas. Assim, uma leitura viável nasce do fato de que PI é a transcrição da letra do alfabeto grego π e, em nosso contex-to científico-cultural, essa letra simboliza o número irracional mais famoso da história: um número que nunca se completa. Quanto a CON, é só procurar seus significados num bom dicionário de fran-cês e, feita a consulta, obter-se-á a informação de que CON designa “imbecil”, “indivíduos idiotizados” ou, num contexto mais vulgar, a acepção pejorativa dada ao órgão sexual feminino para fazer insul-tos ou exclamações grosseiros. Dessa perspectiva, o isolamento de cada uma das sílabas possibilita a identificação de conteúdos que se escondiam por trás do nome Picon e, em decorrência, a junção dos novos conteúdos descobertos leva o leitor a uma frase do tipo “um bando de seguidores imbecis”.12

No exemplo de Belle de Jour, os signos acústicos, embora desres-peitando uma sincronização “realista”, são percebidos direta e expli-citamente pelo espectador. Isso não ocorre na passagem escolhida de Le Journal d’une Femme de Chambre. Nesta fita, a sonoridade do rébus se oferece através de um processo sinestésico: o espectador chega ao som das palavras por vias do visual e, uma vez reconstruído mentalmente esse som, ele “escuta” uma voz que vem do interior da palavra, de igual maneira que Séverine, na cena já comentada, escu-ta uma voz que vem do seu mundo entranhável. Séverine deixa que o espectador ouça a ressonância da manada dos seus instintos meta-forizados no caminhar apinhado dos touros. E o cartaz produz, por sua vez, uma ressonância jocosa que somente o espectador da cena escuta, pois o rebanho de idiotas seguidores de Chiappe caminha sem rumo e não tem condições de ouvir sua própria alienação. Essas duas maneiras diferentes de lidar com os elementos sonoros possuem, entretanto, algo em comum: ambas remetem ao entranhável, ao que, tanto nas coisas quanto nos seres, sobrevive do mundo originário.

11. Não nego que esta forma de escrita possa ser fruto do acaso. Mas, de

qualquer modo, ela se apresenta como elemento concreto do filme, o que permite ao espectador participante

organizar sua modalidade de leitura. Tal procedimento não é alheio à

poética de Buñuel, já que esta lida sempre com imagens geradoras de

ambigüidade e é nesse núcleo em que se concentram plurivalências signifi-

cativas onde o leitor pode exercer seu papel interpretante. Não se trata, por

conseguinte, de procurar justificativas nas possíveis intencionalidades do

cineasta. Trata-se, isso sim, de levar em conta que a intencionalidade não é propriedade, consciente ou incons-ciente, de um autor: ela se engendra,

casualmente ou não, no corpo do texto e é desse corpo que emanam

seus significados particulares.

12. O rébus é passível de outras leituras, mas penso que a proposta é

suficiente para compreender seu teor. Cabe observar ainda que este recurso

já é utilizado por Buñuel em L’âge d’or, o que não impede, porém, que ele seja visto como um possível nexo da obra de Buñuel com procedimen-

tos semelhantes postos em prática por Godard. Lembre-se, por exemplo, a

brincadeira que este cineasta faz com a palavra Ri[vie]ra em Pierrot le Fou.

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Daí que o espectador atento viva também, diante das combina-tórias em que se imbricam as imagens e os sons, as tensões de um conflito poético nascido do confronto entre o centrífugo dos compo-nentes imagéticos e o centrípeto dos componentes acústicos. Porque como defende Jean-Louis Alibert ( 2008: p.18), o olho propende à análise, a fazer um percurso e afastar-se, na direção da abstração, das coisas vistas. Em contrapartida, o ouvido tem a tendência ao global e, com isso, favorece a imersão no campo do sonoro, colo-cando o sujeito da percepção no “centre d’une boule sonore.” Vista na perspectiva freudiana13, essa inclinação ao centrípeto se observa também no domínio sonoro da fala, pois, ao sermos donos de um ato de voz passamos a possuir uma representação motriz em que atuam as sensações centrípetas dos órgãos da linguagem. Falar pressupõe, portanto, criar uma inervação de palavra e, ainda, fazer audível em nós mesmos essa inervação, sempre presente, com mais ou menos intensidade, cada vez que exteriorizamos, nos atos de comunicação, a pronúncia da palavra inervada.

Inseridos nesse contexto, os rompimentos poéticos conseguidos por Buñuel em múltiplas combinatórias de imagens e de sons de seus principais filmes evidenciam uma constante preocupação por trazer ao domínio do perceptível os traços originários que se ocultam do outro lado das coisas. Ou seja, explorar recursos retóricos que pos-suam a capacidade de ultrapassar os limites do espaço emoldurado das imagens associadas à sonoridade. Pouco importa se, em ocasi-ões, essa associação é motivada ou inconsciente. O relevante, a meu ver, é ampliar o achatamento da superfície em que se plasmam as imagens pela intervenção inovadora de outros elementos materiais: o som, no caso. Essa técnica produz efeitos contundentes pelo fato de que o caráter centrífugo das imagens, responsável por uma ilusão de perspectiva que o cinema herda da pintura, sofre uma alteração radical a partir do instante em que a força centrípeta dos compo-nentes sonoros passa a intervir. Isso fica claro nos dois exemplos ra-pidamente comentados, mas seu potencial poético se deixa sentir com mais contundência em combinatórias em que, de maneira sur-preendente, a inervação sonora arranha a derme das imagens. Esse procedimento não só fragmenta a unidade da narrativa linear, como ocorre em Belle de Jour: ele alarga o horizonte da significação e, com isso, introduze um ominoso efeito de profundidade nos processos de sincronização. Assim, para me deter apenas num exemplo, acontece em La Voie Lactée.

13. Freud trata especificamente deste assunto em seu texto Palabra y Cosa, in Obras Completas, Volume XIV, 1993: p. 207-218, É verdade que Freud analisa aspectos das perturbações afásicas, mas de qualquer modo suas observações sobre a relação simbólica entre a representação-palavra e a representação- objeto são certamente de utilidade para os propósitos deste trabalho.

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14. O roteiro a que Buñuel faz menção é precisamente Agón, escrito

em colaboração com Jean-Claude Carrière e publicado pelo Instituto de Estudios Turolenses, Teruel, em 1995

O tema abordado é de uma atualidade impressionante: a vida e as ações de

um grupo de terroristas que pretende explodir o Louvre e que a última hora, convencido de que esse ato não causa-

rá nenhum impacto, decide desistir.

La Voie Lactée é um filme, segundo Drouzy (1978), em que não se pretende demonstrar nada. Não é nem um teorema nem uma tese. Mais bem um instigante convite feito ao espectador para que este participe do discreto encanto de um jogo aprazível. Na opinião de Taranger (1990), seu texto funciona com a precisão das parábolas evangélicas, um tipo de escrita onde as metáforas encontram abun-dantes viveiros e proliferam em ambigüidades para, no fim, agrupar-se em alegóricas revoadas. Transitam de um lado para outro – dos dogmas até as heresias –, deixando vestígios que remetem a uma complexa inervação dos sentidos responsável pelos não menos com-plexos mundos da significação. Nas derradeiras páginas de Mi último suspiro (1998: p.297-298), Buñuel não vacila em situar a informação como um dos cavaleiros mais nefastos do apocalipse. Usando me-táforas do texto bíblico – ou seja, valendo-se do dito encarnado na representação de palavra –, o cineasta afirma:

“O último roteiro por mim feito – e que nunca chegarei a filmar –

repousa sobre uma tríplice cumplicidade: ciência, terrorismo, infor-

mação. Esta última, apresentada de ordinário como uma conquista,

como um benefício e às vezes como um direito, talvez seja, em realida-

de, o mais pernicioso de nossos cavaleiros (refere-se aos cavaleiros do

Apocalipse), pois segue de perto aos outros e só se alimenta de suas ru-

ínas. Se sobre ele caísse de repente uma flecha logo se produziria um

descanso do ataque constante em que nos tem subjugados.”14

Na seqüência da Instituição Lamatirne, Jean, um dos peregrinos de La Voie Lactée, imagina, ao escutar a informação modulada com obediência pelas alunas adolescentes do orfanato, um ato terrorista consumado no fuzilamento do Papa que poderia ser realizado por um grupo de jovens revolucionários. Mas Francisco, um dos familia-res das meninas que cantam, escuta realmente os disparos do pelotão de execução e, inquieto, pergunta a Jean se tinha conhecimento da existência de alguma pedreira por lá perto. Jean responde que não, que o ruído ouvido era o dos disparos que ele tinha apenas imagina-do em sua fanatasia de fuzilar o Papa. Mais uma vez, o enxerto sono-ro abala a continuidade das imagens, algo que o cineasta vem prepa-rando para que o espectador se defronte com a ambigüidade na hora de discernir o que acontece na Instituição Lamartine e na mente da personagem. Fica-se com a sensação de que a trilha fônica instituída pelo diálogo das personagens é complementada por aspectos de uma

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trilha sonora em que se privilegia o ruído: os estampidos dos disparos metaforizam um rugido primitivo, uma espécie de rugido animal mediante o qual se instala na cena um clima de inquietação. E não tenho dúvida de que, no caso, esse clima tem suas raízes no ominoso da inervação dos gritos selvagens que rompem, ameaçadoramente, a calma aparente do silêncio protetor.

Figura 3. Fotogramas de Journal d’une femme de chambre

O uso destes recursos de sincronização não só desmantela a estrutura narrativa do cinema clássico e popular, mas se apresenta como uma espécie de atentado poético sobre os conteúdos que os relatos veicu-lam. Já se sabe que o que mais interessa, no geral, aos espectadores do cinema é a concatenação dos acontecimentos e a informação que o avanço da fábula vai paulatinamente fornecendo. Aos espectadores comuns pouco importam os códigos especificamente cinematográfi-cos – tipo de plano, de lente ou de montagem, por exemplo –. Para eles, o relevante é saber ou ter “informações precisas” do que vai acontecer às personagens, pois são completamente alheios ao fato simbólico de que todo esse processo informativo é fruto de um falar sintático em que a representação de palavra impõe as normas da pós-fala. Ou seja, os relatos chamados clássicos e lineares, quase sempre, trabalham sobre dados de uma informação baseada não na inervação de palavra, mas na representação de palavra e, em virtude disso, tra-balham habitualmente com algo já dito e, por conseqüência, com algo já ouvido. Ao contrário, Buñuel, ao desmantelar a fábula mos-

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15. Em seu famoso ensaio sobre o ominoso (unheimlich), publicado em

1919, Freud reconhece que a inquie-tante estranheza se relaciona com o

sentimento de ser despojado dos olhos e, também, com a repetição.

Ambas as coisas são muito significa-tivas para estudar alguns aspectos do papel do originário e do primitivo na

obra de Buñuel.

tra, de um lado, seu inconformismo com a informação e, de outro, seu fascínio pelo originário, por aquilo que ainda não foi dito e se esconde por trás dos sentimentos de inervação. Em soma, as particu-laridades da trilha sonora e da trilha fônica apontadas colocam em evidência que o que Buñuel busca parece ser precisamente o que a teoria da informação deseja, a todo custo, evitar: o ruído.

Dessa perspectiva, os momentos mais significativos, no atinente às imagens, se definem em enxertos em que as forças do instinto estão presentes. Em cenas marcantes de filmes como Los Olvidados, Subida al cielo e The Young One, por citar alguns. Neles, a represen-tação dos fenômenos naturais da morte, do sexo e da alimentação espeta as pupilas dos espectadores através de imagens inesperadas. Os enxertos, sempre situados no entremeio delas, são flashes em que a irracionalidade das pulsões descarrega parte da sua energia. Eles surgem quando menos se espera, mas sua irrupção parece ter uma finalidade bem definida: atentar contra atos de comunicação forte-mente marcados pela informação e implantar as condições mínimas para que o ominoso15 se manifeste.

Tomo como paradigma desse processo o enxerto que aflora numa das seqüências mais instigantes de Le Journal d’une femme de cham-bre (Figura 3). Aparece no entremeio das cenas em que a câmera descreve o passeio trágico da menina na floresta. A adolescente vai vestida à maneira de Chapeuzinho Vermelho e distraída com sua própria inocência. Ela procura caracóis naquele dia de inverno e os guarda numa cestinha de arame. Come frutinhos silvestres no instan-te em que se encontra com Joseph, a quem oferece um. Finalmente se adentra no mato e, depois de algumas alternâncias de planos da personagem e de animais selvagens, o corpo da menina surge inerte com as pernas cheias de sangue e os caracóis caminhando parcimo-niosamente sobre suas coxas. Ao espectador lhe é negada qualquer informação sobre este desenlace, pois não há nenhum tipo de dado informativo que permita apontar com certeza qual o criminoso ou qual a causa da morte. As interrogações se instalam no enxerto e, na atmosfera de ambigüidade que dele emana, Joseph e o javali – um dos animais que participa da ação – se tornam suspeitos.

Para Victor Fuentes (2000: p.167), esta passagem arraiga na pul-são sexual e as metáforas – sendo a mais evidente a da babugem dos caracóis – que nela afloram serviriam muito bem para legitimar essa interpretação. Contudo, não me parece ser, para meus propósitos, os mais relevante neste momento, já que o que me importa é mos-

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trar que a continuidade decorrente da concatenação das imagens, responsável direta pelo relato, foi repentinamente rompida. E, com isso, criou-se a possibilidade de inserir na sequência outras probabi-lidades narrativas capazes de alterar os conteúdos da fábula central e, assim, deslocar as fontes de informação para colocar em seu lu-gar imagens pertencentes a um saber instintivo. Ou seja, imagens que possuem as características inerentes aos sentidos que antecedem à inervação. Algo semelhante ao que ocorreu com os enxertos de componentes acústicos já comentados ocorre também com os signos imagéticos. Por isso, minha inclinação se prende à idéia, defendida por Charles Tesson (1992: p. 263), de que existe no bestiário mani-pulado por Buñuel o desejo de colocar em questão “le mystère de la provenance”. O desejo de buscar a origem e esse desejo se manifesta em suas constantes tentativas de expressar o inexpressável de coisas que são visíveis e não se podem ver ou de coisas que são audíveis e não se podem ouvir.

Em suma, os aspectos da sincronização que acabo de comentar mostram, de um lado, que as rupturas poéticas levadas a cabo por Buñuel no uso dos componentes sonoros privilegiam o aparecimen-to do ruído e, de outro, que as promovidas no campo das imagens favorecem a participação dos animais, domésticos ou não. Pode-se dizer que a junção de tais elementos produz efeitos de ambigüida-de em que o ruído e a irracionalidade se apresentam como traços predominantes, como forças que se opõem às estruturas normativas sobre as quais assentam as ações dos relatos do cinema clássico. Além disso, a maneira de configurar esses rompimentos expressivo-semân-ticos caracteriza o que aqui se entende por poética do selvagem.

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