imalk - pioneiros da emancipação africana no mundo

122
PIONEIROS DA EMANCIPAÇÃO AFRICANA NO MUNDO IMALK

Upload: wandersonn

Post on 31-Oct-2015

100 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

PIONEIROS DA EMANCIPAÇÃO

AFRICANA NO MUNDO

IMALK

Page 2: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

FICHA TÉCNICA Título: Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo Autor: IMALK

Coordenadores: Silvério Ronguane & Nelson Da Cruz Samo Editora: Dondza Editora

Arranjo Gráfico: Faustino Lessitala Colaboradores: José Belmiro e Sérgio Raimundo

Nº de Exemplares: 500

Patrocinador: Embaixada dos EUA

Page 3: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

Índice

PANORAMA GERAL DO PENSAMENTO AFRICANO - 5

Silvério Ronguane

MONDLANE NA LUTA PELA LIBERTAÇÃO

E EMANCIPACAO DE AFRICA - 9

Silvério Ronguane

Mandela, O Pensador e Filósofo - 69 Silvério Ronguane

Booker Washington e William Du Bois - 80

Nelson da Cruz Samo

Martin Luther King, Um Marco na

Emancipação Negra no Mundo - 122

Sérgio Raimundo Samuel

Page 4: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

Panorama Geral do Pensamento Africano O homem tem sido definido como sendo um animal racional, o que significa que

o que o constitui como ser distinto dos outros seres, sobretudo, os que lhe são

próximo pela aparência exterior, os animais, é a razão, a reflexão. Portanto, é

ponto assente que o que constitui a diferença especifica do homem é a sua

capacidade de pensar, de organizar e recriar o mundo, conforme o que lhe vai

na alma, na mente, isto é, organizar o mundo de acordo com o seu querer, sentir

e percepção. O que equivale dizer que o que distingue o homem é a sua filosofia

de vida. O que quer dizer que os homens se distinguem e se definem pela sua

filosofia.

Um homem sem filosofia ou um grupo de homens sem filosofia própria, é o

mesmo que dizer que tal homem ou tal grupo de homens, não existe

genuinamente como um grupo autónomo. Esse homem ou esses homens não

tem alma, não tem especificidade, não tem originalidade, não tem humanidade.

E como tal devem, como os animais, serem obrigados a adoptar o mundo que

outros homens, os verdadeiros homens lhes impingir.

É por isso que qualquer discurso de emancipação, deve começar por perguntar

se esse homem, se esses homens a ser emancipados, se esses homens que

exigem ser reconhecidos, tem ou não uma filosofia própria, um pensar, uma

organização do mundo, um sentido de vida e de estar digna de ser tida como tal.

É nesta óptica que a primeira coisa que se colocou e se coloca aos africanos

que exigiam ou exigem ser reconhecidos, respeitados e emancipados, é se

existia ou não existe filosofia africana.

Há ou não há um pensamento africano genuíno, ou melhor, o que pode definir a

africanidade da filosofia?

Todavia, para responder a esta pergunta é preciso primeiro, como é evidente,

definir o que é filosofia. Ora, isto não é consensual embora não impeça que se

possam traçar linhas de força que demarcam e distinguem o discurso filosófico

dos outros. E vários foram os filósofos que tentaram responder a esta pergunta.

Heidegger, por exemplo, meditando sobre as várias definições da filosofia,

chega à conclusão que à parte o "amor ao saber", implícito na etimologia da

palavra filosofia, defini-la é já de si, filosofar. Isto é, procurar uma definição da

Page 5: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

filosofia é enclausurá-la na concepção do autor. E se alguma vantagem existe

nisso, é sugerir a disposição do autor para com o saber:

O que encontramos é apenas isto: disposições heterogéneas do pensar. Dúvida e desespero de

um lado, posessão cega de princípios improvados, de outro, opõem-se reciprocamente. Medo e

angústia misturam-se com esperança e confiança. Muita vez transparece de longe que o pensar

seja um modo de calcular e uma concepção racional livre de toda disposição. Mas também a

frieza do cálculo e a prosaica sobriedade do planejar são características de uma disponibilidade.

E não apenas isto; mesmo a razão que se guarda de toda influencia das paixões está disposta,

enquanto razão, à confiança na inteligibilidade lógico-matemática de seus princípios.

E conclui reconhecendo que a filosofia é uma linguagem, um vocabulário, uma

forma de abordar, de lidar com a realidade, com o mundo, com a vida, com a

morte, com os homens e mulheres, consigo próprio. Mas uma realidade que é

construída por essa mesma linguagem - A definição de Heidegger, redunda por

isso, num círculo vicioso.

Não obstante, não faltam autores africanos ou africanistas que reivindicando a

identidade filosófica dos seus trabalhos, ou apenas reflectir sobre a filosofia e

África, criaram conceitos operativos, com os quais possamos nós também

debruçar-nos sobre um tão discutido assunto.

Assim, queremos sugerir que, embora o discurso filosófico, possa ser dessecado

do resto, especificado e particularizado, como uma disciplina autónoma; pelo

facto de ser uma actividade do homem e da mulher, não escapa aos

condicionamentos inerentes à natureza humana, enquanto conjunto, totalidade,

sistema. Pelo que não se pode pensar a filosofia como algo desligado das outras

realidades particulares. Ela está intimamente conectada à vida como uma

totalidade, ora distinguindo-se e afastando-se de tudo o resto, para abstrair o

pensamento puro; ora convergindo com as outras realidades, identificando-se e

confundindo-se com elas, de tal modo que se torna difícil, senão mesmo

impossível estabelecer limites nítidos, entre ela e a sociologia, a linguística, a

cultura, o mito, a ideologia, a religião, a política, etc. Nesta acepção, que nos

parece mais acertada e mais seguida hoje em dia, teria todo o sentido falar da

filosofia grega, da filosofia alemã, ou noutro prisma, da filosofia cristã, da filosofia oriental-budista, africana, etc.

Page 6: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

Mas a condição peculiar de África, vista durante muito tempo, como um

continente onde imperam as trevas, análogo ao período medieval do continente

europeu, tem sido a razão de fundo para negar capacidade filosofante ao

continente negro. Ora, esta forma de pensar contrasta com os factos, se

tivermos em conta o passado glorioso do continente negro, da época dos faraós,

dos grandes impérios do Nilo, das grandes civilizações Yorubas, etíopes ou

mesmo indo mais para baixo, dos reinos ouríficos da região do grande

Zimbabwe, etc.

Os próprios gregos, Protágoras, Pitágoras, só para citar alguns exemplos,

parecem conscientes da sua influência egípcia e, como estes, muitos sábios

gregos apelam para o Egipto, como argumento de autoridade académica. Aliás,

quem ignora que os reinos do Egipto são o berço da civilização?

O problema coloca-se portanto, noutro nível. O de saber onde procurar a

filosofia africana: em que autores, em que séculos começa, qual é a sua

trajectória histórica, etc.

Nessa demanda, destaque especial vai para aqueles, segundo os quais, a

filosofia é uma disciplina científica teorética individual, tal como a física, a

linguística, etc, e como tal emergiu sempre em oposição ao mito, as religiões

tradicionais e as perspectivas dogmáticas e conservadoras dos povos. Não

serve por isso para ressuscitar um passado ou dele se tomar guardiã, nem

sequer para defender uma tradição no seu presente activo. Ela é por isso, uma

continuadora criadora de transformação consciente, crítica e contínua da

tradição perante os desafios do presente e futuro. "Neste sentido, ela é

indissociável da actividade intelectual escrita.

A africanidade da filosofia será assim definida pela africanidade dos filósofos.

Consiste na pertença dos filósofos ao continente africano, na origem e

identificação. É um diálogo de africanos e nunca um logos sobre África. Mais do

que no conteúdo, a sua especificidade está inscrita no modo de tratar esse

conteúdo peculiar de África, mas que não deixa de ser comum a todos os

homens. Portanto, mais do que falar da filosofia africana, devemos falar de

filósofos africanos (note-se que na acepção etimológica da palavra, havia era

filósofos, como havia filárguros (amigo da prata) filótimos (amigo da honra) e não

filosofia, isto é, a filosofia do autor X que por sinal é africano assumido, torna

Page 7: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

africano o modo como encara e lida com a realidade, portanto, a sua filosofia.

Do mesmo modo que é por ser alemão Hegel que o hegelianismo é uma filosofia

alemã e não o contrário, só para citar um exemplo.

Não há filosofia oral. A filosofia não pode ser reduzida a um arquivo de

tradições, sejam elas quais forem. Pelo contrário, é uma relação criadora de

transformação consciente, crítica e contínua das tradições, perante os desafios

encarnados pelos humanos no seu devir quotidiano. A filosofia africana é, ainda

para estes, algo em gestação, que emerge com os africanos instruídos de hoje,

da sua crítica e actividade criativa

Não obstante, outros pensadores, não menos africanistas, preferiram olhar para

a filosofia como algo inclusivo, isto é, a filosofia ao mesmo tempo que é reflexão,

razão, é também arte, sabedoria. Donde se depreende que, embora filosofar em

África não deva coincidir com a descrição duma cultura, o que seria etnologia ou

antropologia, é na e através da cultura que ela é feita. Ela é, nesta óptica, o

esforço consciente para compreender e, obviamente, justificar os princípios

gerais que regem as crenças dum africano singular, dum povo concreto e de

todos os povos africanos. A filosofia é, em última análise, uma meta-cultura.

É o esforço que os próprios africanos fazem para dar razões a vida. Para

responder a questões vitais, tais como: Qual é o lugar do homem no universo?

Como conhecer o que se conhece? Como aceitar como seguro tal

conhecimento, etc? É preciso não esquecer que os problemas da ordem, por

exemplo, a que os mitos fundadores tentam dar resposta, são continuados na

filosofia dos precursores gregos. Tales, Anaxímenes e Anaximandro. transitando

apenas de uma lógica vertical para uma lógica horizontal que a substituição do

templo pelo fórum significou. Filosofia africana é saber explicar a própria cultura.

As religiões tradicionais, os mitos, por exemplo, estarão na base de qualquer

tentativa de fazer filosofia em África. A africanidade consiste na experiência das

culturas usadas nesse experimento ou reflexão, podendo ser feito tanto por

africanos como por não africanos, como aconteceu aliás com etnólogos

europeus.

Um terceiro paradigma da filosofia africana é apresentado por aqueles que,

julgam que a filosofia africana, há-de estar emanada dos velhos sagazes que

Page 8: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

durante a sua vida procuram compreender criticamente o mundo e a vida, de

cujo saber os investigadores europeus teriam sido simples catalisadores (note-

se que Sócrates, o velho ateniense que não deixou nada escrito, só alcançou o

estatuto de filósofo que tem hoje, graças à pena do grande escritor, Platão).

Esses, quanto mais afastados dos europeus, melhor encarnariam o espírito e a

mundividência africana, visto que aqueles não só assumem os valores herdados

como também os recriam, os criticam duma forma independente e distanciada

da cultura. A escrita não é condição "sine qua non" para haver filosofia. Houve e

continua a haver homens africanos que pelo seu próprio intelecto e intuição

abstraem e se distanciam do senso comum.

Existem também os que julgam que a filosofia africana há-de ser essencialmente

filosofia sócio-política. Para estes, filosofia é actividade intelectual que procura

construir valores e ideais humanos, para o homem e a mulher, mas também

para a sociedade como um todo e justificá-los por meio da razão e da intuição.

Os valores familiares, a socialização, o humanismo, anteriores ou que

sobreviveram ao colonialismo são o ponto de partida para a filosofia africana.

Disto se segue que, os dirigentes das independências, como Nkwame Nkrumah,

Amilicar Cabral, Julius Nyerere, Eduardo Mondlane, Mandela, só para citar

alguns nomes, tendo posto em causa e com êxito a ordem colonial vigente, são

os que melhor encarnam e cristalizam os valores e a inteligência africana, igual

e distinta, soberana e dependente da dos outros povos. Sem emancipação não

há filosofia africana.

A guisa de conclusão, podemos afirmar que existem quatro escolas de filosofia

africana. A primeira acha que a filosofia em África é algo novo, em embrião, a

emergir ainda e que é monopólio dos africanos instruídos e escolarizados.

Porém, não nos dar sentido à própria existência. Nesse artigo queremos sugerir

que, assim como Platão, mas sobretudo, os filósofos Jónicos, fizeram os seus

discursos intertextualmente, isto é, numa relação dialógica com a tradição grega,

a tradição religiosa de que faziam parte, os mitos africanos são veicultores de

verdades ancestrais sobre a organização política. Na verdade, sem o discurso

de Homero, Hesíodo, Anaxágoras, etc, a filosofia de Platão teria sido outra.

Page 9: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

MONDLANE NA LUTA PELA LIBERTACAO E EMANCIPACAO DE AFRICA A sugestão que queremos defender neste capítulo é a de que o trajecto

intelectual e político de Mondlane permite descortinar vários caminhos que

tomou a libertação de África. Muitos países como é o caso de Moçambique

proclamaram a sua independência sob a batuta do marxismo-leninismo como

veio logo a se confirmar dois anos após a sua proclamação pela adesão do país

a este ideário político. Mas mesmo naqueles que o fizeram sem recorrer a tão

drástica mudança e inusitada forma, ainda é possível, como tentamos provar,

descortinar mais linhas de demarcações ou estilo dos movimentos libertários,

referimo-nos àquela que cinde uma visão de África de inspiração latina daquela

de inspiração anglo-saxónica. Para facilitar a nossa exposição e dado que a

divisória entre estas duas formas e o marixismo é óbvia, começaremos por falar

um pouco desta última.

No caso português e das suas colónias, as independências surgem num

contexto de guerra, logo à partida, portanto, de conflitualidade e menos propício

a uma análise sistémica, uma vez que esta acaba por perverter o andamento

normal das instituições. Aliás, em Portugal, é um dado adquirido que a libertação

das colónias coincide com a libertação da metrópole, o que não deixa de ser

insólito. Portanto, para uma boa abordagem em vez da via curta e imediata,

seguiremos a via longa, partindo de casos similares e através de aproximações

procurar compreender o caso Português.

Já foi dito, aqui, que Portugal, no que concerne ao objecto do nosso estudo,

enquadra-se naquilo que consideramos o mundo latino, que durante muito

tempo foi liderado pela França, que como sabemos produziu os maiores líderes

africanos desta escola, como Senghor e Césaire, só para citar alguns exemplos.

E facto muito significativo, Senghor é considerado muito próximo de Portugal.

Nas democracias liberais o poder é alcançado e exercido, normalmente, através

de partidos políticos e são estes que pautam e balizam as condições do seu

exercício. Pelo que as mudanças constitucionais que ditam a reforma dos

sistemas e dos regimes processa-se dentro e por meio dos partidos políticos. A

África não constitui nesta matéria nenhuma excepção. As independências

Page 10: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

africanas quando não resultaram de guerras, apareceram ao abrigo de Partidos

Políticos, donde a análise do aparecimento destes em África ajudará e muito a

esclarecer também a sua natureza.

Um dos grandes estudiosos dos Partidos políticos do tempo da descolonização

em África, Dmitri Lavroff, assim se exprime: Talvez os partidos políticos não

tenham, em qualquer outra parte do mundo assumido e desempenhado um tão

preponderante papel na vida política, como os que se instituíram na África

Negra. Na verdade, os partidos políticos da África Negra foram, na sua

generalidade e antes de tudo, movimentos emancipalistas que lutaram pela

liberação dos seus países, meros territórios explorados e sugados pelos

impérios coloniais1.

Parafraseando o autor que estamos citando, Dmitri Lavroff, o nascimento dos

partidos políticos nas colónias francesas foi pautado e muito pelo centralismo

que caracterizou a França desta época. O que torna, por um lado, fácil estudar o

caso francês na globalidade das suas colónias já que todas estavam submetidas

ao mesmo sistema administrativo. E a data do seu nascimento coincide com o

27 de Outubro de 1946, aquando da entrada em vigor de uma nova

Constituição, embora com datas mais ou menos variáveis nos muitos territórios

sobre a alçada francesa. Na verdade, esta nova constituição teve o condão de

conferir a qualidade de cidadãos franceses aos súbditos africanos, que

obtiveram a partir dessa data, o direito de voto, de representação na Assembleia

nacional e um regime de liberdades políticas. E, continua, terá sido este facto

que proporcionou o nascimento de partidos políticos, donde a extensão à África

Negra dos partidos metropolitanos, a criação de partidos próprios dos territórios

africanos tanto abrangendo apenas um territórios como vários.

A este respeito, sublinha Dmitri, entre 1946 a 1950, os partidos políticos

existentes na África negra são, ou prolongamento dos partidos metropolitanos

ou grupos locais ligados a partidos metropolitanos. Ora, isto aconteceu porque

era intenção da França integrar os africanos numa vasta e grande comunidade

francesa; e porque esses novos eleitores atraiam os partidos da Metrópole, ao

1 Dmitri Lavroff, Os Partidos Políticos da África Negra, tradução de Eduardo Cambezes, Edição Bertrand, Lisboa, 1970, contracapa.

Page 11: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

mesmo tempo que algumas personalidades locais viam nisso um caminho

aberto para fazer parte da Assembleia nacional francesa.

Em todo caso, as relações entre os partidos da metrópole e das colónias podiam

reflectir uma verdadeira e completa integração, tornando o partido africano uma

pura secção local do mesmo, como aconteceu com o Partido Socialista

Senegalês, fundado em 1935 por Lamine Gueye, que veio a se tornar uma figura

destacada da Libertação de África. Neste caso a confluência entre dirigentes

metropolitanos e locais era assinalável com maior preponderância para os

metropolitanos. E o mesmo sistema caracterizou o Congo médio e o Daomé.

Mas vezes existem em que a ligação era menos óbvia, como aconteceu com a

Reunificação Democrática Africana (R.D.A), partido criado por africanos de

África, mas aparentado ao Partido Comunista Francês, pelo menos até 1950.

Só nesta altura é que a separação entre partidos africanos e metropolitanos

começou a desenhar-se. Mas esta separação dos partidos metropolitanos foi

compensada pela união dos partidos dos vários territórios, que deu vida aos

partidos inter-territoriais. A R.D.A é um exemplo de um partido apostado no

combate à burguesia e claramente de orientação marxista por via do seu

parente, o partido comunista francês (P.C.F).

Esta ligação adquire uma importância especial na medida em que ao assumir os

mesmos temas comunistas, isto é, a ideologia comunista, a solidariedade dos

povos coloniais e oprimidos, as massas proletárias e a exploração capitalista,

criou as primeiras condições para a dissidência, na medida que o comunismo é

combatido na própria França. Mas esta identificação com os temas marxistas

não só criou problemas na relação com o governo como também o afastou das

populações africanas. Na verdade só depois da rotura com o P.C.F é que a sua

base eleitoral aumentou significativamente. Com efeito, em 1955 consegue 55

lugares nas Assembleias territoriais repartidos por quatro territórios e oito

deputados na Assembleia Nacional.

O exemplo do R.D.A fez com que existisse uma reacção em força que esteve na

origem da constituição do Grupo dos independentes do Ultramar que gravitou

em volta de Senghor. Mas o aparecimento desta força política tem um

Page 12: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

significado especial, na medida em que não só consolidou uma forma de fazer

oposição ao colonialismo francês, feita no quadro do liberalismo, mas também

abriu caminho para um novo tipo de partidos, posto que enquanto existem

partidos do estilo do R.D.A, partidos de massas e doutrinários, outros como a

Convenção Africana de Senghor são de personalidades, isto é, é um conjunto

de pessoas aglutinadas por uma certa personalidade, muitas das vezes um

intelectual visionário e carismático.

Enquanto aqueles se inspiram no marxismo, estes têm como referências

quadros e personalidades reconhecidos. Estas diferenças reflectem em certa

medida o que distingue os partidos da esquerda e da direita, nos países

ocidentais e ancora mesmo no nascimento dos partidos políticos. Posto que

enquanto uns gravitam em torno de uma doutrina globalizante e buscam a sua

força nas massas populares, alimentando-se do desespero e esperanças

defraudadas dos povos, outros, os da direita, gravitam em torno de nomes

sonantes da história e das localidades, líderes carismáticos que encarnam o

espírito da época e afirmam-se representantes de certos projectos comunitários,

que são bem sucedidos quando as suas ambições, traumas, sonhos e

sofrimentos coincidem com os da maioria ou ao menos fingem identificarem-se

com os seus concidadãos.

Com o advento da lei de 23 de Junho de 1956, denominada loi-coidre, que cria

assembleias e conselhos de governos com poderes para se manifestarem

acerca dos problemas específicos dos territórios ultramarinos e estabelece o

sufrágio universal, assiste-se a uma grande viragem: de partidos de contestação

passa-se muito rapidamente para os partidos políticos orientados para a gestão

dos órgãos de um determinado território. Daqui, o florescimento de partidos ao

serviço de ambições de homens, que olhando os vários espaços territoriais à

sua medida, aumenta e triunfa. É assim que enquanto o R.D.A. consegue

manter a sua posição hegemónica como um partido inter-territorial, a nível local

serão estes novos partidos que hão-de governar. É o que aconteceu com o

Senegal de Senghor, mas também no Alto Volta e Níger. Em todo o caso, o

R.D.A havia marcado um estilo, ao controlar governos de vários territórios

africanos.

Page 13: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

Mas em termos gerais podemos dizer que a esta altura, nos territórios de

colonização francesa, os partidos nascentes eram todos nacionalistas, no

sentido de querer fazer vincar a especificidade de África em relação à Metrópole.

As divergências eram relativas às datas, já que todos não advogavam uma

separação completa e total da África. O que estava em causa era o tipo de

comunidade ou confederação entre eles e a França. É assim que ao terminar a

IV República Francesa os partidos africanos ao mesmo tempo que convergiam

quanto à necessidade de uma visão inter-territorial, convergiam também na

necessidade de manter um vínculo com a França e tudo dentro de um quadro

governativo de inspiração liberal. Estas eram, podemos dizer, as aspirações

tanto do maior partido em territórios sob o domínio francês, o R.D.A, como do

P.R.A que agrupava os oposicionistas.

Com a subida ao poder do general de Gaulle e a criação de um novo quadro

constitucional, aqueles dois partidos intensificam as suas reivindicações, ao que

o general responde com a declaração de que é preciso clarificar os objectivos:

ou a secessão ou a associação. Daí que quando o projecto constitucional

termina era imperioso pronunciar-se contra ou a favor de uma comunidade que

criava a associação de tipo federal, pondo de parte, portanto, a independência.

É neste contexto que se enquadra a célebre frase do general em Brazzaville, em

1958: “A Independência, podeis proclamá-la, mas se não a proclamais, será a

Comunidade”2. E a resposta veio, mais ou menos matizada de um consenso em

relação a estas palavras de Senghor: “Queremos a Comunidade africana, de

preferência à Comunidade franco-africana”3.

Independentemente dos resultados que vieram ditar mais tarde, mesmo nos

territórios francófonos, um quadro institucional que nada tem a ver com uma

comunidade e muito menos uma comunidade franco-africana de tipo federal, a

existência só por si deste grande debate, não deixa de ser muito elucidativo

quanto a natureza do colonialismo francês. Mais ainda, reforça a ideia de que de

facto, a questão das independências africanas não foi só uma questão dos

colonizados, mas também dos colonizadores, tese que quisemos defender neste

2 Cf. Dmitri Lavroff, op. cit. p. 21. 3 Idem, p. 21.

Page 14: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

trabalho, dado que é a prova contundente da capacidade dos povos e de modo

particular, dos povos liberais para se auto-criticar e reformar.

O que em última análise nos permite afirmar que, ad intra e ad extra dos

Estados, não são só as contribuições que vêm debaixo que contam como

também as que vêm de cima, como queria o pragmático Rorty, no sentido de

que no interior dos Estados, a união entre as classes mais desfavorecidas e as

mais favorecidas é condição do sucesso, o que sugere que a nível internacional

também a concertação entre Estados fortes e frágeis é importante para a

melhoria das condições da habitabilidade do globo.

Feitas estas observações e antes de dissertar sobre as implicações que o

sobredito tem com o caso que estamos reportando, à política liberal de

Mondlane, faremos uma breve análise ao caso Britânico e das suas colónias.

II O primeiro aspecto a ressaltar no relacionamento entre a Grã-Bretanha e as

suas colónias é que para aquele cada colónia era um caso, pelo que fica logo

desde princípio afastada a ideia de um partido inter-territorial como aconteceu no

caso francês, donde um estudo exaustivo acarretaria a análise de todos os

casos separadamente. Mas dado que o nosso intento não é fazer um

levantamento exaustivo dos partidos políticos em África, nos ateremos a um

conjunto de casos exemplares.

A década de 50 e 60 é tal como no caso francês, um marco fundamental. Não

obstante, isso não se deve a um acto jurídico que cobrisse a totalidade dos

territórios africanos sob domínio inglês, mas sim a algo que está até na origem

do acto jurídico francês, a saber, a Carta Atlântica das Nações Unidas que

instou todos os poderes coloniais a conceder a independência aos povos sob

seu domínio. É neste quadro que tanto se deve entender a mudança do quadro

jurídico francês que redundou nas independências de África e o Livro Azul,

publicado em 1948 pelo governo trabalhista, que marcaram o arranque para a

autonomia, primeiro e logo depois, para a independência.

Page 15: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

No caso inglês, na medida em que a administração indirecta exigiu e

proporcionou o concurso das autoridades tradicionais, tornou necessário a

criação de partidos para canalizar os sufrágios. Por esta razão, os partidos

africanos em territórios de colonização inglesa são, desde o princípio, partidos

só de africanos e para África. É verdade que se registam excepções como

aquela da influência de Herbert Macanley na formação da Convenção nacional

dos Cidadãos Nigerianos e J. Casely Hayford no seio do Congresso Nacional da

África Ocidental, no Gana.

Assim, a par de estar mais próximos da realidade local, os mesmos partidos ou

eram expressão das classes tradicionais dominantes favorecidas pelo poder

colonial ou das novas elites e muitas das vezes intelectuais e favoráveis à

independência. O Congresso Popular do Norte, na Nigéria é um exemplo do

primeiro caso, enquanto que o Partido da Convenção do Povo, de Nkrumah, ou

a União Nacional Africana do Quénia, de Jomo Kenyatta, no Kénia, do segundo.

Isto explica também a identificação étnica dos partidos de expressão inglesa: a

União nacional Africana do Quénia era claramente uma força Kikuyu, tal como o

Congresso Popular do Norte tinha uma origem Haussa, só para citar alguns

exemplos. Em todo o caso, isto não impediu a Inglaterra de depositar neles o

poder na altura das Independências. Eram as instituições políticas funcionais

que tinham implantação no terreno. Tanto mais que a Inglaterra para conceder o

autogoverno (self-government) exigia que as bases funcionassem segundo o

modelo Britânico, o que foi facilitado pelo longo tempo de experiência

governativa.

Mas não deixa de ser interessante que as cabeças dos partidos de reacção nos

territórios sob tutela inglesa, tenham participado activamente, nos movimentos

de negritude da América do Norte, com efeito, Nkrumah e Kenyata são alguns

dos líderes africanos que frequentaram os congressos boasianos.

III

Voltando ao caso Moçambicano que é, o que nos interessa, começaremos por

chamar a atenção para o facto de a figura de proa na Frelimo, após a morte de

Eduardo Mondlane, que conduziu o país à independência ser Marcelino dos

Santos, na medida em que embora fosse Samora Machel o líder oficial que

Page 16: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

sucedeu a Eduardo Mondlane, aquele era o verdadeiro líder. Isto é fácil de ver,

dado que a tróica formada pelo impedido da sucessão automática de Eduardo

como lhe assistia como vice-presidente, Urias Simango, contava para além

deste com Marcelino dos Santos e Samora Machel. Mas só aqueles dois

primeiros eram realmente membros da direcção quando Mondlane morreu.

Portanto, a luta de poder era entre Simango e dos Santos (Chefe das Relações

Internacionais) e Machel foi usado pelo segundo para poder controlar as forças

armadas, já que era o chefe do Estado Maior.

Ora, o percurso de Marcelino dos Santos até à Frelimo é muito elucidativo.

Segundo João Cabrita, Marcelino dos Santos quando contactou com a

UDENAMO em 1961, já havia tomado contacto com alguns intelectuais africanos

e indianos do círculo de Lisboa, como Lúcio Lara e Agostinho Neto de Angola,

que tiveram muita influência na sua visão política. Tendo passado de Lisboa

para França em 1951, frequentou os círculos da esquerda francesa, bem como

países do bloco leste. É neste sentido que em 1953, esteve presente no festival

da juventude socialista em Bucareste, tendo depois visitado à China. E em 1955

esteve em Varsóvia, para em 1957, visitar a própria União Soviética.. E só em

1960 é que foi expulso da França e foi fixar a sua residência em Marrocos, onde

participou na fundação e tornou-se secretário da Conferência das Organizações

Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP). É nesta qualidade que toma

contacto com Adelino Guambe, o fundador da UDENAMO, um dos movimento

que está na base da FRELIMO. Guambe aceitou Marcelino na sua organização,

tendo o nomeado secretário geral da mesma4.

A CONCP, embora não da maneira tão vincada como aconteceu com o R.D.A

das colónias francesas, pretendia ser a voz de todas as colónias portuguesas.

Mais, a inspiração comunista da CONCP bem como a ligação com o partido

comunista português na clandestinidade, e com o próprio partido comunista

Francês é indiscutível.

Uma vez que não queremos entrar em detalhes neste ponto basta dizer que

depois de alcançar a independência, os partidos que faziam parte desta

4 João M Cabrita, Mozambique, The Tortuous Road to Democracy, edição da Palgrave, Grâ-Britânia, 2000, p.7.

Page 17: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

coligação, a saber, o MPLA de Agostinho Neto, o PAICG de Amílcar Cabral,

impuseram o comunismo marxista como a via para os seus respectivos países.

Aliás, da sua ligação com a França e os movimentos independentistas

franceses é testemunha a Argélia, que no caso vertente de Moçambique, treinou

e armou o primeiro contingente militar que lutou pela independência de

Moçambique. E mais, um dos homens que fazia parte deste contingente é

exactamente, Samora Machel que anos mais tarde, como foi dito, foi usado por

Marcelino dos Santos para instrumentalizar o exército em seu favor.

Este dado era importante para perceber a especificidade de Mondlane e do seu

movimento político, a Frelimo. Para já é preciso dizer que ela só mais tarde em

1977 se constituiu em partido político, devido à condicionante da guerra que teve

de travar com Portugal antes de proclamar a independência de Moçambique.

A Frelimo é, como já foi dito, resultante de três movimentos políticos, todos

criados em países de dominação inglesa. E dado que a origem da Frelimo está

envolta de uma grande polémica, seguiremos a versão do próprio autor,

Eduardo Mondlane, que relata as origens do nacionalismo moçambicano no seu

artigo, “The Struggle for Independence in Mozambique”. Nesse trabalho,

Eduardo conta que a União Democrática Nacional de Moçambique (UDENAMO)

é, do ponto de vista temporal, o primeiro dos três a ser formado. Diz ainda que

nasceu em Salisbury, Rodésia do Sul, actual Zimbabwe paralelamente aos

grupos de luta pela independência do Zimbabwe.

Mondlane terá contactado alguns elementos deste movimento em 1961,

aquando da sua visita a Moçambique, a quem teria sugerido a formação de um

movimento unificado com outros nacionalistas exilados. O fundador desse

movimento, segundo o autor, é Adelino Guambe que estava no Zimbabwe ao

serviço da PIDE, mas que tendo abjurado, abraçou a causa do seu país. E foi

este homem de 23 anos que foi enviado para Dar es Salaam aonde foi contactar

outros nacionalista agrupados em volta da União Nacional Africana de

Moçambique (MANU), formada por moçambicanos que tinham estado a

trabalhar na Tanzânia, Quénia e Uganda, como foi dito acima e presidido por

Mateus Mmole e procurar atraí-los para a formação de um movimento único.

Page 18: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

Uma vez na Tanzania, Guambe foi aceite como membro de pleno direito da

MANU e foi nesta qualidade que este foi participar numa conferência contra o

colonialismo Português em Rabat. Mas uma vez lá, apresentou-se não como

membro da MANU que efectivamente o enviou para tal conferência, mas sim

como da UDENAMO, o movimento que ajudara a fundar. E como representante

desta retornou para Dar es Salam.

É assim que no princípio da década de 60, somente a UDENAMO e a MANU

existiam como movimentos políticos moçambicanos. Mais tarde, Baltazar

Chagonga, presidente de outro movimento chamado Partido da Independência

Nacional de Moçambique (UNAMI) sediado no Malawi, chegou a Dar es Salam e

escreveu para Mondlane, ainda este estava nos Estados Unidos, pedindo-lhe

para o ajudar a organizar uma Frente comum para a Libertação de Moçambique.

Esta foi, finalmente, estabelecida em Junho de 1962. E para preparar o primeiro

congresso dessa frente comum, foi proposta uma comissão ad hoc, constituída

por Eduardo Mondlane, como presidente, Urias Simango, vice-presidente, David

Mabunda, secretário geral, Mateus Mole, tesoureiro, Paulo Gumane, secretário

geral – deputado, Leo Milas, secretário das relações públicas, e outros quatro

membros que Eduardo Mondlane não refere. Silêncio tanto mais intrigante se

tivermos em conta que nesta comissão, o nome de Adelino Guambe não consta,

quando é referido como tendo desempenhado um papel importante, tanto na

formação da UDENAMO, como nos contactos com a MANU, que como vimos,

constituem a base da FRELIMO. Este facto só por si, indicia que a luta pelo

poder havia já começado nos movimentos nacionalistas. E de certa maneira vem

confirmar muito do que foi sugerido por Malhuza, no que se refere ao papel de

Adelino Guambe no surgimento da FRELIMO, bem como as intromissões da

PIDE. Para todos os efeitos, uma boa parte dos membros deste comité ad hoc,

transitou e constituiu o primeiro comité central da FRELIMO.

Com efeito, o relato de Mondlane não coincide com a descrição que é feita por

Cabrita, seguindo de perto as declarações bombásticas de Malhuze. É claro que

nós subscrevemos o ponto de vista de Mondlane, tanto mais que no essencial,

as duas versões não se diferem muito e uma vez que as considerações de

natureza étnica tornam bastante parcial e contraditório o relato de Cabrito. Por

Page 19: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

exemplo, Cabrita alega que Mondlane recolheu 116 votos num total de 135, por

razões tribais, quando reconhece que os membro da MANU, quase todos eram

macondes do Norte, como os membros da UNAMI que eram do centro do país e

de certa medida, os membros da UDENAMO, não sendo muito claro, como se

chega a escolher, com base étnica, um sulista como Mondlane. Neste aspecto,

há que reconhecer que Cabrita faz uma interpretação errada. Mondlane foi

escolhido graças à sua ascendência intelectual. Esta é a verdade sobre a qual é

impossível qualquer sofisma, mesmo se isso nos custar a digerir.

Mas a nós, o que interessa sublinhar é antes de mais, o facto do ambiente

anglo-saxónico em que estes grupos aparecem testemunhado pelo próprio

Cabrita em oposição à influência latina veiculada pela facção de Marcelino dos

Santos colada ao comunismo que veio a triunfar, ajudada também pelo facto de

a colonização portuguesa ter muito mais a ver com o caso francês do que inglês,

mas sobretudo, as necessidades de sustentar uma guerra contra um país que

fazia parte da NATO, portanto, com maior probabilidade de ser apoiada pelo

comunismo soviético, do que pela América, como de facto veio a acontecer,

criando um corte no desenvolvimento do nacionalismo moçambicano que custou

a vida ao seu verdadeiro mentor, Eduardo Chivambo Mondlane.

Na verdade, Mondlane enquanto oriundo de uma família de chefes tradicionais

em Moçambique, mais faz pensar um nacionalismo veiculado pelos partidos

adstritos ao poder das classes dominantes locais das colónias inglesas, à

semelhança dos líderes do Congresso Popular do Norte na Nigéria, referido

acima, mas enquanto intelectual representa a expressão da reacção por parte

das elites intelectuais como Nkrumah, Kenyata, Nyerere, também fenómenos do

mundo anglo-saxónico. E tal como ele, a FRELIMO também se mostra bastante

próximo ao modelo dos partidos anglo-saxónicos do que francófonos, na medida

em que não tem, pelo menos à nascença nenhum laço nem com os outros

partidos das colónias portuguesas, a não ser o vínculo que Marcelino dos

Santos e outros estudantes vindos da Europa, como Joaquim Chissano, Pascoal

Mocumbi, etc hão de imprimir mais tarde, nem tão pouco com partidos ou

movimentos de luta pelo poder, na Metrópole.

Page 20: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

Mais, a FRELIMO enquanto resultado de um grupo de homens e grupos de

homens em volta de uma personalidade da estatura de Mondlane, mesmo se

quiséssemos compará-lo aos partidos francófonos não seria, na certa, como o

R.D.A, um partido de massas e doutrinário, antes sim, um partido de

personalidades e quadros, de alguém que havia percebido que tinha chegado a

sua hora. E nisto se afasta também do tipo de movimento que a facção

triunfante de Marcelino dos Santos fez da Frelimo.

É desta maneira que a FRELIMO de Mondlane se constitui como um caso único

de nacionalismo no contexto das colónias portuguesas, posto que pelo menos

na sua origem, ela nada tem do mundo latino. Isto é importante ter em conta se

quisermos perceber a natureza e sentido das guerras dentro e fora dela que

culminaram com a morte de Eduardo Mondlane.

Mas antes de prosseguir queremos chamar a atenção para o facto de a

ganância, as ambições pessoais, os preconceitos étnicos, raciais e demais

vícios de que enferma a raça humana poderem tido, para além das ideologias,

crenças e tradições intelectuais, uma influência decisiva, mas impossível de

catalogar e medir, pelo que a leitura que fazemos baseada nestes últimos

critérios, ser insuficiente para explicar este caso humano. Admitindo, todavia,

que os homens agiram compelidos apenas por estes ideais, é um facto que um

dos problemas com que a Frelimo teve de lidar foi a questão do elitismo,

normalmente associado à figura do Padre Mateus Guenjere, alegadamente um

agente infiltrado do colonialismo português, suposição mais do que improvável.

Segundo a revista Monthly Review, na sua edição de Março de 19735, é certo

que depois que em 1967 abandonou o país para se juntar à Frelimo depois de

ter ajudado muitos moçambicanos a se juntar a ela, inflamado por sentimentos

racistas terá estado por detrás do conflito que se gerou no Instituto

moçambicano, originado pela decisão de os alunos terem que passar o seu

tempo de férias nas frentes de combate, agravado pela opção por parte da

Frelimo de usar o português e não o inglês naquela escola da Frelimo. Mais

ainda, este terá incitado os alunos a se rebelarem contra os professores

brancos. Situação que veio a provocar o encerramento do tal instituto por algum

5 Monthly Review, March, 1973, p. 34.

Page 21: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

tempo e terá também estado atrás de algumas mortes não muito bem

esclarecidas de combatentes da Frelimo.

Caso este que segundo a mesma revista veio a se juntar um outro, desta vez

protagonizado por Mzee Lázaro Kavandane que havia sido um líder activo dos

movimentos cooperativistas orientados pela MANU e mais tarde político

eminente, sobretudo na ligação com as bases, tendo sido secretário provincial

de Cabo Delgado, província onde começou e se intensificou a guerra, acabando

mesmo por ser membro do comité central. Este terá organizado a produção nas

zonas libertadas em proveito próprio e assumido um estilo de um verdadeiro

chefe tradicional à maneira dos barões tradicionais do Quénia. E mais tarde

estimulou o tribalismo e a consciência makonde, sendo por isso um exemplo

acabado de regionalismo e localismo em volta da sua pessoa.

Ora, independentemente das motivações que terão estado por detrás das

tomadas de posição destes dirigentes, o facto é que eles espelham muito bem, a

sua consciência política forjada num ambiente anglo-saxónico em que a

preparação dos africanos que deveriam tomar o poder depois da descolonização

era um imperativo; em que a assunção dos valores do poder tradicional estava

garantida e que a organização étnica, tribal e regional dos africanos era

considerada benéfica para um desenvolvimento harmonioso deste continente.

Portanto, por mais que tenha havido comportamentos duvidosos ou mesmo

criminosos por parte destes homens, é ponto assente que estes eram

veicultores de um modus faciendi, diferente daqueles que tomaram o poder

depois da morte de Mondlane. E por mais que nos custe, é preciso reconhecer

que partilhavam mais pontos de vista com Mondlane do que aqueles que os

condenaram. Talvez seja verdade que Mondlane, mercê do seu sentido

intelectual, tenha se apercebido mais cedo que, num clima de guerra, a aliança

com o comunismo seria mais vantajosa do que com o Ocidente, uma vez que

este por razões de afinidade não podia apoiar uma guerra contra Portugal,

também um país Ocidental.

Assim, subscrevemos a ideia de que o processo do nascimento de uma nova

liderança após a morte de Mondlane, representa o culminar de uma luta entre

Page 22: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

duas perspectivas ideológicas, uma de inspiração marxista, liderada por

Marcelino dos Santos que foi ganhando terreno devido aos imperativos da

guerra, posto que, como bem disse John Marcum, no seu artigo intitulado: Um

Mártir por Moçambique, no qual discute o significado da morte de Mondlane para

os americanos e para os africanos, a administração Kennedy estava a

considerar a hipótese de suportar o embargo da ONU contra Portugal, mas que

a necessidade do uso das bases dos Açores deixou tudo a perder6. Uma vez

mais um caso exemplar dos sentimentos mais puros dos americanos postos em

cheque pelas suas necessidades elementares de segurança, ou se quisermos, a

tradição liberal americana encalhada nas aventuras militares que os senhores de

guerra americanos já nos acostumaram.

Sem suporte militar e a navegar fora do seu terreno é lógico que a tradição e

prática política de Mondlane e da Frelimo, hauridos no mundo Saxónico, tenham

capitulado diante da investida marxista e comunista. Com isto não queremos

isentar de responsabilidade histórica que os chamados reaccionários possam ter

nos casos em que para levar a sua avante, renderam-se ao inimigo ou com ele

colaboraram traindo a própria causa que defendiam, mas apenas mostrar que no

rol das culpas que pesa sobre eles, encontram-se muitos aspectos ligados a

convicções ideológicos e pragmaticistas consolidadas.

De facto, o documento de Urias Simango que serviu como gota de água no frágil

compromisso que existia entre o bloco comunista e nacionalista dentro da

Frelimo, Glooms situation, provocando a rotura, refere muito a necessidade de

purificar os comunistas das fileiras da Frelimo e é um facto que ele contava com

o apoio do nacionalismo negro patente em muitas figuras do governo

Tanzaniano.

Porém, este apelo foi um fracasso completo, por um lado, porque o próprio

Nyerere embora não fosse um comunista, sentia uma certa atracção por esta

ideologia globalizante, mas por outro e, sobretudo, porque de facto, só a União

Soviética estava em posição de dar e dava o apoio militar que era vital para

sustentar a guerra.

6 Anexo 8.

Page 23: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

Mas também não se pode negar que uma ideologia globalizante e de feição

igualitária num contexto de ausência de património e bens duráveis, em que

tudo se joga no discurso e na esperança, fosse mais apta para mover e arrastar

homens para uma batalha desigual que em muito atingia as raias da imolação e

suicídio colectivo. Além do mais, por esta época, o imperialismo soviético tinha

meia África nas mãos, simplesmente porque para a massa dos pobres e

ignorantes nada mais fascinante do que a perspectiva de uma revolução radical.

A prova é que a mesma revista reconhece que só depois da morte de Mondlane

e do afastamento do seu vice-presidente Urias Simango, viveu-se dentro da

Frelimo um clima verdadeiramente revolucionário sem oposição. Mas a

afirmação é tão importante que não resistimos a fazer uma transcrição literal da

mesma:

O espírito que prevaleceu no último encontro do Comité Central revelou que nós,

finalmente, tínhamos alcançado uma fase avançada no processo da purificação

das fileiras. Francamente reinava uma amizade e fraternidade revolucionárias em

todos os membros. O clima que nós conseguimos era o resultado de uma unidade

ideológica entre nós. Pela primeira vez, na história da FRELIMO, não existiam

vozes discordantes no Comité Central que fossem uma oposição às posições

revolucionárias; isto constituiu um bloco sólido e unido.

Nós consideramos que uma importante vitória tinha sido conseguida e que por

isso devia ser preservada e defendida a todo o custo. O Comité Central

recomendou a continuação da vigilância em ordem a que a vigilância fosse mais

eficiente, o Comité Central clarificou alguns conceitos. Assim, o Comité Central

apurou a definição do inimigo. O inimigo tinha duas faces: o principal e directo

inimigo, isto é, o imperialismo e colonialismo Português que estava em

confrontação aberta travada nas batalhas, e em relação ao qual não havia

confusão nem dúvida possível. A outra face era um inimigo indirecto e

secundário que circulava entre nós com a capa do nacionalismo revolucionário,

por isso de difícil identificação. O Comité Central reafirmou que a caracterização

do inimigo para nós nunca deveria ser derivada da cor , nacionalidade, raça ou

religião. Por outro lado, o nosso inimigo que estava a explorar ou a criar

condições para a exploração do nosso povo não tinha cor, raça, nacionalidade

ou religião7.

7 The spirit which prevailed at the latest meeting of the Central Committee revealed that we have already reached an advanced phase in that process of purifying our ranks. Frankness reigned –

Page 24: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

Esta declaração é importante no sentido de que constitui uma prova clara e

inequívoca de que, durante o consulado de Mondlane, a opção Marxista estava

longe de ser assumida pela Frelimo, e sobretudo, é uma indicação clara de que

enquanto este esteve vivo, o diálogo e a coabitação de várias tendências dentro

do movimento era natural e incentivada. Ao contrário, depois dele estabeleceu-

se a tirania da opinião única e indiscutível que se estendeu para a governação

depois de 1977.

Mas a definição do inimigo se é verdade que adquiriu contornos Foucaulianos,

na medida em que passa a ser todo o sistema sem rosto e difícil de identificar,

também é verdade que a rejeição da cor da pele, da raça, nacionalidade e

mesmo religião como critérios relevantes na hora de identificar o inimigo,

embora louvável e de grande valor, não deixa de significar um recuo na luta dos

negros pela sua emancipação, uma vez que tanto o colonialismo como a

escravatura, visou em primeiro lugar aos negros, como raça e como cor e depois

aos africanos em geral.

Tanto como Mondlane nos mostrou, a exploração económica e a privação dos

direitos cívicos era definida em função da raça e da cor da pele. Portanto,

quando o marxismo pretendeu pôr de lado as questões de raça e de cor, não só

traiu a causa africana, que é uma causa para todos os efeitos, balizado de

acordo com características raciais. Antes da independência ser branco ou preto

era algo muito relevante, pelo que a correcção desse erro passa,

necessariamente, por equacionar e não por ignorar o problema. Não obstante,

nesta correcção se, se seguisse uma política que incriminasse todos os

there was friendship and revolutionary fraternity among all members. The climate that we felt was the result of the ideological unity that existed among us. For the first time in the history of FRELIMO, there were no discordant voices on the Central Committee which were opposed to the revolutionary positions; it constituted a solid and united block. We consider that a great victory has been achieved, one that must be preserved and defend at all costs. The Central Committee clarified certain concepts. Thus, the Central Committee stressed its definition of the enemy. The enemy has two faces: the principal and direct enemy, i.e., Portuguese colonialism and imperialism, which are open enemies we confront daily on the battlefield, and in relation to whom no doubt or confusion is possible. The other self under the cover of a nationalist and even a revolutionary, thus making it difficult to identify him. The Central Committee reaffirmed that the characterization of the enemy for us will never be derived from color, nationality, race, or religion. On the other hand, our enemy is that one who exploits or creates conditions for the exploitation of our people, whatever his color, race, nationality, or religion. (“The African Revolution”, em Monthly Review, March, 1973, p.43).

Page 25: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

indivíduos em virtude da sua raça ou cor, seria também um erro trágico e

irreparável. Mesmo do ponto de vista religioso, não haveria verdadeira justiça se

não se tivesse em conta que no tempo colonial ser protestante, católico ou

seguidor da religião tradicional fosse relevante.

Mas é evidente que Mondlane criado no sistema anglo-saxónico e de modo

especial na América, nunca teria considerado irrelevante o equacionamento das

injustiças cometidas de acordo com a cor da pele e raça e muito menos ignorar

que na reparação dessas injustiças históricas tivessem que ser tidas em conta.

Aliás, mesmo a questão da criação duma elite intelectual como forma de

preparar o futuro governo de Moçambique não podia ser considerado herético

por alguém como ele que percebia e muito bem, que a independência exigiria

um corpo de quadros e técnicos bem qualificados.

Com a ascensão de uma liderança mestiça e branca dentro da Frelimo, a

questão da raça tornou-se incómoda e naturalmente devia ser combatida; assim

como a questão da formação de uma elite africana facilmente era vista como

uma ameaça para este grupo de indivíduos que anos de colonização havia

criado condições favoráveis para que o seu estatuto nunca viesse a ser posto

em causa.

Na verdade, ao mesmo tempo que estes mestiços e brancos já com uma certa

instrução na maioria dos casos do nível secundário, via garantido uma posição

privilegiado depois da independência, os seus familiares, durante a guerra,

continuavam a progredir intelectualmente nas melhores escolas e universidades

do país e do estrangeiro, ao passo que a maior parte dos combatentes veria,

uma vez alcançada a independência gorada as suas esperanças e sonhos,

condenados para sempre a ocupar os piores lugares da sociedade como veio,

realmente, a acontecer ou na pior das hipóteses, ocupar indevidamente os

lugares cimeiros, arrastando consigo o país e os seus concidadãos para uma

situação catastrófica que servisse a longo prazo para incutir nos negros uma

ideia crónica de incapacidade e inferioridade, que acabaria por tornar o

colonialismo e neocolonialismo algo natural e uma questão de sobrevivência

para a raça negra.

Page 26: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

Com isto não estamos a defender que todos os que defendessem a necessidade

do incremento das elites locais fossem movidos por um ideal de serviço e

fraternidade, mas apenas a reconhecer que uma luta de libertação que não

passasse por uma educação e preparação da população negra em vista a

estabelecer o equilíbrio entre os povos, estaria, à partida, condenada ao

fracasso. Para evitar especulações e interpretações quanto a posição de

Mondlane sobre esta matéria, é mister, ouvir o próprio. Com efeito, num

documento cheia de simbolismo, referimo-nos a petição que este apresentou às

Nações Unidas no dia 7 de Novembro de 1963, em nome da FRELIMO e dirigida

directamente ao Secretário Geral, pronunciada no encontro do quarto comité,

não só rematou uma por uma as alegações de Portugal para continuar a exercer

o seu poder sobre Moçambique, como também a principal razão que Eduardo

apresenta e cita quase de forma obsessiva é a discriminação racial.

Nesse documento histórico, enquanto primeira apresentação formal da exigência

do povo moçambicano a autodeterminação e independência feita à comunidade

internacional, com a presença das autoridades portuguesas, Mondlane depois

das habituais saudações e agradecimento, começa por dizer que estava ali para

representar as esperanças e aspirações de milhões de africanos ainda não

independentes. Que estava ali a representar sete milhões de moçambicanos e

para dar eco ao sentimento e sofrimento de outros povos da África Austral,

especialmente aqueles que estavam sob domínio Português. E relembra que já

esteve ali e teve a oportunidade de relatar os factos que tem a ver com a forma

como os portugueses lidavam com o seu povo e que já teve ocasião de contar a

história do controlo que Portugal tem exercido sobre eles, e de descrever as

condições actuais do país, especialmente o controlo económico feito por

Portugal e os inadequados programas educativos de Portugal. Que no ano

anterior havia já respondido a muitas questões postas pelos membros do comité.

Mas que desta vez tinha muitas esperanças de que finalmente o povo de

Moçambique havia de ser ouvido.

Denunciou também que Portugal para escapar as disposições da ONU,

principalmente, aquelas emanadas na Carta Atlântica que instava a todos os

poderes coloniais a conceder a independência aos territórios sobre o seu

domínio, forjou um novo quadro jurídico, aprovado em 1961, chamada Lei

Page 27: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

Orgânica para os Territórios Ultramarinos, na qual os povos coloniais passam

teoricamente a gozar o estatuto de cidadão do império e as colónias, províncias

ultramarinas, como aliás, já havia sido feito em 1951-1952 através da primeira

Lei Orgânica, mas sem que isso significasse uma mudança real nas condições

de vida, já que a população negra continuava impedida de participar em actos

eleitorais e privada do direito do voto e sem direito a opinião.

E mais flagrante ainda, diz Mondlane, é que Portugal dividiu a população em

dois grupos, os assimilados e os não assimilados, sendo que os primeiros são a

totalidade da população branca em detrimento dos asiáticos e da maioria

africana, que são considerados, ipso factus, primitivos e por isso mesmo sem

direitos; embora pressionado Portugal, se tenha visto na necessidade de

conceder o estatuto de civilizados a uma minoria insignificante de negros e

asiáticos.

A este flagelo, continua, junta-se outro de natureza económica, os negros não só

são pura e simplesmente excluídos da administração da coisa pública com

algumas concepções feitas a alguns e pouquíssimos mulatos e gente de cor,

como também a terra, o comércio e todas as actividades lucrativas e produtivas

serem controladas por Europeus ou por asiáticos como acontece no comércio,

estando a presença dos africanos vedada. E para além disso a população negra

é obrigada a trabalhar sob pena de morte e castigos corporais, ao que se junta o

facto de que esta é praticamente deportada para trabalhar nos países vizinhos

em favor do governo Português, que fica com os louros e lucros desse trabalho.

O mesmo princípio discriminatório, disse, aplicava-se a nível da educação, na

qual os negros eram sistematicamente excluídos, como demonstrava o facto de

só duas dúzias de estudantes no principal liceu de Moçambique, num universo

de mil alunos, ser de raça negra e na ùnica universidade não existirem mais de

dez negros, para além de noventa e cinco por cento dos estudantes no ensino

oficial serem brancos, estando a educação da população negra encarregue à

Igreja Católica e outras igrejas protestantes, sendo que a este nível,

acrescentou, a discriminação ultrapassava aquela que era praticada na África do

Sul.

Page 28: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

E é depois de desenhar este quadro para os membros das Nações Unidas

reunidos num comité especial para a descolonização que Mondlane, produziu o

seu libelo de acusação e o seu manifesto político que ficou para a história e

esclarece de uma vez por todas a sua visão de independência. E para terminar,

citá-lo-emos literalmente, embora por uma questão de economia do espaço,

apenas algumas partes:

Como eu mencionei, tempos atrás, Senhor Presidente, nós estamos

determinados a conseguir os nossos direitos, quer Portugal queira ou não.

Primeiro que tudo, nós não estamos interessados em fazer parte de Portugal. Nós

vimos esta sinistra modalidade que Portugal está a fazer agora, ser feita antes.

Refiro-me aqui à modalidade dos anos cinquenta seguida por outras potências

coloniais, especialmente aquelas da língua latina. Nos anos cinquenta, a França

encontrando-se em apuros no sudoeste Asiático, experimentou aplicar uma lei-

quadro para os africanos que não a aceitaram. Essa lei-quadro era mais na

direcção de autonomia do que a lei orgânica Portuguesa aqui alegada. Nós não

estamos interessados em nenhuma lei-quadro para Moçambique. Como

expressão da nossa atitude como moçambicanos, nós não estamos interessados

numa comunidade portuguesa prescrita por Portugal. Queremos deixar claro que

o que nós queremos é, nem mais, nem menos, uma independência completa na

qual possamos organizar o nosso próprio Governo de acordo com a nossa

imagem e desenvolvê-la de acordo com a imagem de África. Desenvolveremos as

nossas vidas, política, económica, socialmente sem ser amparados por ninguém.

Nós nos consideramos a nós próprios um povo livre. Fomo-lo antes da vinda de

Portugal. Éramos e continuaremos a sê-lo sem Portugal. E se este tiver um

interesse em relacionar-se com África, fê-lo no contexto de uma sociedade das

nações, mas sem controlar o nosso povos no seu caminho. Não estamos

interessado em nenhuma lei-quadro que nos torne importantes como comissários

distritais ou governadores. Não estamos interessados em nenhuma autonomia

semelhante àquela que a França construiu para as suas colónias em África. Do

que estamos interessados, Senhor Presidente, é numa completa independência.

Nós próprios estamos a prepará-la, a trabalhar por ela e estamos determinados a

ganhá-la.8

8 As I mentioned last time, Mr. Chairman, we are determined to get our rights whether Portugal wants it or not. First of all, we are not interested in becoming part of Portugal. We have seen the sinister moves that Portugal is making now being made before. I refer here to moves in the Fifties by other colonial Powers, especially the Latin language powers. In the Fifties, France, in finding herself in trouble in southeast Asia tried to push the loi-cadre to Africans who would not accept it. Even the loi-cadre was more in the direction of autonomy than Asia tried to push the loi-cadre to Africans who would not accept it. Even the loi-cadre was more in the direction of autonomy than the Portuguese Organic Law being pushed to us here. Even the loi-cadre we would not accept. Portugal must not have any misconceptions about this. We are not interested in any loi-cadre for

Page 29: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

Portanto, sem o devido enquadramento no espírito independentista que, por esta

altura, se vivia no mundo anglo-saxónico, estas declarações de Mondlane

podiam surpreender-nos; já que tantas vezes nos acostumou a uma grande

capacidade de compromisso. Mas é, exactamente, o compromisso que nos

remete para duas esferas distintas de Mondlane: uma a que tem a ver com o

seu lado fraco e criticável; outra, para a sua vocação filosófica de que falaremos

no próximo e último capítulo.

Mondlane é criticável no sentido de que tanto esteve centrado no seu objectivo,

a saber, a libertação de Moçambique que não se coibiu de aceitar e incorporar

apoios e contribuições que se vieram a revelar contraproducentes. É nesta linha

que surgem as vozes que desconfiam que Eduardo Mondlane fosse um agente

da CIA. A este propósito, a Revista francesa Africasia, cujos editores não

conseguimos apurar, num artigo denominado, La CIA, dá-nos conta de que esta

organização da Contra-Inteligência Americana disponibilizava fundos destinados

a capitalizar os líderes dos movimentos libertários de África para a América e

que Mondlane sabedor ou não da origem desses mesmo fundos, ter-se-á

servido deles. A prova, dizem, é que organizações como a N.A.A.P.C e a

A.M.S.A C, ligadas ao movimento de renascimento negro nos Estados Unidos,

no qual Mondlane se inscreve, como tivemos ocasião de referir, serviam também

para camuflar interesses americanos não confessados. E esta última, acusam,

terá organizado em 1963 uma conferência em Washington que reuniu os

grandes nomes do nacionalismo africano, dentre os quais se destacava

Mozambique. As an expression of our own attitude as Mozambicans we would not even be interested in a Portuguese community. We want to make it clear that what we want is nothing more or less than complete independence in which we will organize our Government according to our own image, to develop it according to an African image. Self-determination is the completion of our own lives in the way we wish it. We wish to the completion of our own lives in the way we wish it. We wish to develop our lives politically, economically and socially without being hampered by anyone. We consider ourselves a free people. We were a people before Portugal came. We were a people and we will continue to be without Portugal. If Portugal is interested in anything else in Africa they should be interested in having good relations with other states as members of the organization of the human race, but not to control the people of our country in any way. So we make it clear and we would like to have no misconceptions here that were not interested in any developments which may tie us directly to Lisbon, as this Organic Law indicates. Nor are we interested in any kind of loi-cadre which may give some of us some position of importance as district commissioners or governors of some districts and of even Portugal. We are not interested. We are not interested in even in some kind of independent autonomy as France tried to build in French Africa. We are not interested. What we are interested in, Mr. Chairman, is complete independence. We are preparing ourselves to get this, we are working for it. We are determined to gain it. (Eduardo Mondlane, “Petição apresentada às Nações Unidas, 1963 - Cf. Colecção Herbert Shore, Oberlin College).

Page 30: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

Mondlane, Oliver Tambo, presidente do A.N.C, enquanto Mandela esteve preso

e outros. Por trás dessa conferência que se realizou em Howard, a maior

Universidade Negra da América de então, estaria a CIA, cujo objectivo era

observar esses líderes para encontrar plataforma de colaboração com eles9.

O tom especulativo e por isso mesmo pouco fiável do documento supracitado é

evidente, mas não deixa de levantar uma questão muito séria na prática política

de Eduardo Mondlane: a indefinição ideológica e política dos adiamentos. Na

verdade, só o facto de Mondlane não esclarecer o seu alinhamento político e

admitir na Frelimo a coexistência de duas linhas ideológicas distintas, a

revolucionária de tipo marxista veiculada por Marcelino dos Santos e a

reformista de tipo nacionalista inspirada no ambiente anglo-saxónica, na qual

tudo indica que ele mais se revia, não ajudou muito ao desenvolvimento rápido

da Frelimo, antes serviu para arrastar problemas que muito provavelmente

contribuíram e muito para o seu assassinato. Mesmo na hora de admitir pessoas

para fazer parte da sua direcção Mondlane, mostra em muitas ocasiões uma

flexibilidade muito para além do admissível e possível, já que tanto incluía gente

da esquerda como da direita, tanto moçambicanas como não.

A direcção do Instituto moçambicano, a única escola da Frelimo nesse tempo e

com uma importância capital devido a questão do analfabetismo que grassava

nas fileiras da Frelimo, confiou-a Mondlane à sua mulher, Janet, que era norte-

americana. Mais, Leo Milas, negro americano, ocupou a pasta sensível da

defesa num clima em que a Frelimo se propunha a iniciar a guerra contra o

invasor estrangeiro. Só estes exemplos são ilustrativos de como Mondlane tinha

uma política de mãos largas, inclusivista, mas talvez em demasia. Aliás, do

ponto de vista religioso Mondlane deixou-se rodear de gente das mais diversas e

opostas confissões religiosas, posto que ao lado de um devotado marxista,

encontrávamos um fervoroso Católico, como seria, por exemplo, o caso do

Padre Guenjere e do Aquino de Bragança. Pelo que tanta diversidade era

inevitável que viesse a provocar uma guerra para dentro, na qual ele seria a

primeira vítima a abater.

9 Africasia, La CIA en Afrique, pp. 9-11.

Page 31: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

Com isto não estamos a defender que devesse agir de outra maneira, mas

apenas a sugerir que Mondlane tanto foi conciliador que ultrapassou as

exigências de um político cuja acção pedia em muitos casos, o sacrifício de

alguns idealismos inapropriados. Neste sentido tem razão Pedro Borges, ao

chamar a atenção de que Mondlane mostra-se em tudo um grande sociólogo,

mas talvez tenha faltado dizer que tanto era sociólogo e psicólogo que não

conseguiu vestir a pele do político, na concepção ordinária do termo.

Porém, este carácter conciliador nada desmerece da filosofia que o inspira, o

pragmatismo americano. É comum as pessoas referirem-se ao pragmatismo

como uma filosofia de vida fácil, usar-se o adjectivo pragmático para designar

uma pessoa prática no sentido de superficialidade, de não se importar por

exemplo, com a legitimidade ou não dos seus actos, preocupado apenas com os

logros e ganhos que disso conseguir. É, sem dúvida, como bem assinala John

Baldwin um conceito errado e até oposto ao verdadeiro pragmatismo

desenvolvido na América por autores tais como Mead e Dewey10. Não obstante,

esta ideia não deixa de revelar alguns aspectos da verdadeira filosofia

pragmática, na medida em que esta ao se inspirar na ciência e por

consequência nas ciências ditas experimentais cujo objectivo final é a técnica e

promoção de melhores condições de vida, acaba por tornar os resultados um

critério de grande peso nas decisões.

Ora, um ideal de vida que atribui ao resultado um grande valor, acaba por, na

famosa discussão entre meios e fins, facilmente, poder valorizar mais os fins do

que os meios. De facto, Richard Rorty que é, hoje, uma grande figura do

pragmatismo, exactamente na linha de Dewey, no juízo que faz entre as

personalidades que marcaram a América de uma forma positiva, não só acaba

por nos apresentar um leque de individualidades que inclui pessoas que pelos

seus actos chocam a nossa sensibilidade, como por fazer confluir na mesma

luta, pessoais que no seu tempo, se consideravam inimigos de morte, tais como

Woodrow Wilson e Eugene Debs, Franklin D. Roosevelt e os afro-americanos11.

10 John D. Baldwin, op. cit. p. 14. 11 Richard Rorty, Forjar Nuestro País, op. cit. p.49.

Page 32: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

Mas que o pragmatismo é uma filosofia da tolerância e tão tolerante que acaba

mesmo por tornar muito ténues os limites entre o aceitável e o inaceitável, o

passível de ser permitido e do não permitido, tal como a sociologia e a psicologia

que tanto justificam os marginais, criminosos, inadaptados sociais que no limite

se tornam incapazes de reconhecer a necessidade de a sociedade e os

responsáveis sociais puni-los e responsabilizá-los pelos seus actos, pensamos

que é algo que reúne consenso dos pensadores e estudiosos destas duas

perspectivas do conhecimento, pelo que terminaremos este trabalho por aqui.

Page 33: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

ANEXOS

índice dos Anexos

1. Cronologia da Vida de Mondiane segundo Pedro Borges

2. Currículo de Vida de Mondiane apresentado por Ele próprio

3. Biografia de Mondiane segundo George E. Simpson em 4 de Fevereiro de 1969.

Simpson foi professor e director do Curso de Sociologia e Antropologia que Mondlane

frequentou em Oberlin College, entre 1951-1953. Dessa circunstância nasceu uma grande

amizade, à qual Mondlane deve a sua continuação dos Estudos em Northwestem University e

o ingresso no funcionalismo das Nações Unidas.

4. Biografia de Mondiane e Palavras de Reconhecimento vindas da Parte da Direcção da

Universidade onde Mondlane leccionou durante os últimos anos da actividade docente.

5. Biografia e congratulação de Mondlane por parte da Direcção de Oberlin College, aonde

Mondiane aportou na América pela primeira vez e frequentou o primeiro ciclo da Universidade.

6. Serviço Fúnebre de Mondlane.

7. Página da Revista Jeune Afríque, que ilustra o conflito que não obstante a necessidade,

Mondlane teve com a Internacional socialista, na pessoa de Che-Guevara.

8. Artigo de Eduardo Mondlane que veio a dar o título ao seu livro mais famoso — Lutar por

Moçambique. Texto particularmente interessante porque a partir da página quatro relata a

história dos Movimentos Nacionalistas de Libertação, na óptica dele e na página sete, a sua

autobiografia.

9. Quadro de Honra dedicado ao Estudante Eduardo Mondiane em Oberlin College.

Page 34: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

Cronologia de Eduardo Mondlane segundo Pedro Borges 1920 (20(?) Junho) — Eduardo Chivambo Mondlane nasce na aldeia de

Machecahomo ou Khambane, então Distrito de Chibuto e depois Distrito de

Manjakaze na Província de Gaza 1920/1932 — Vive no ambiente da Cultura

Tsonga, onde desempenha tarefas de pastor, crescendo sob o estatuto de

sucessor do chefe do clã que, no século XIX, antes do domínio Zulo/Shangana,

constituía uma font unidade política. Possui um imaginário fantástico sobre os

brancos — "mágicos pavorosos, de rosto enfarinhado, brandindo uma zagaia de

fogo e um escudo brilhante como o sol" — e, por volta dos 10-12 anos, vê um pela

primeira vez.

1932/1936 — Influenciado pela mãe, decide começar a estudar "para compreender a

feitiçaria do homem

branco". Levado pelas irmãs mais velhas, frequenta a pequena escola dominical

presbiteriana do professor nativo Mutumbeni. Passa, por pressão da mãe e do irmão

mais velho Tiago, para a escola primária/rudi-mentar local oficial, situada a cerca de

5 km da sua aldeia - A escola era administrada a partir de Lourenço

Marques, o professor era negro, não falava a sua língua e era déspota. Vai para

Manjacaze, por iniciativa

da mãe, para casa de familiares, e frequenta a escola da administração, tomando

contacto com a "civilização"

e aprendendo a manejar dinheiro. Passado algum tempo, acaba por optar pela

escola da Missão presbiteriana de Maússe. É iniciado pelos missionários suíços nos

Mindlawa, grupos juvenis de reflexão e intervenção socio-religiosa. Vai fazer o

exame oficial do ensino primário rudimentar a Majancaze e passa.

1936/40 — Com 16 anos, viaja para Lourenço Marques para frequentar a escola

primária regular, trabalhando como empregado doméstico nas instalações da

Missão Suíça. Passa de candidato a iniciado nos Mindlawa e depois a chefe de um

desses grupos, tomando consciência do problema da relação entre a tradição e a

modernidade. Desempenha também a tarefa de catequista das regiões da Polana e

Laulane.

1940/1944 — Vai frequentar um curso de agricultura de sequeiro na Missão

Metodista Americana de Cambine (Distrito de Inhambane). É nomeado

encarregado de um coro de 80 rapazes e depois começa a formar Mindlawa com

objectivos agrícolas. Acaba como encarregado de curso na Escola Bíblica da

Missão ensinando "espírito de grupo", regulamentos e formação de candidatos.

Depois com cerca de 23 anos, antes de prosseguir os estudos, como era seu

Page 35: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

desejo, na África do Sul, é encarregado da pequena paróquia de Dingane, em

Manjacaze, como uma espécie de prova para ver se a sua motivação era, segundo

André Clerc, "por ambição pessoal " ou "para serviço do seu povo e seu Senhor ". É nesta altura que escreve a autobiografia que André Clerc publicou sob o título

Chitlango, Filho de Chefe.

1945/1948 — Viaja para a África do Sul e faz os estudos secundários em regime

intensivo na Douglas Lang Smit Secondary School, a primeira estação missionária

do primeiro missionário suíço no Transval do Norte. É eleito pelos seus colegas

Chairman da Students Christian Association, experiência que teráeventualmente

influenciado a fundação do Núcleo dos Estudantes Secundários Africanos de

Moçambique (NESAM). Na correspondência que mantém com André Clerc dá conta

da sua desilusão relativamente às divisões do cristianismo e à perfeição que

imaginara ser o mundo civilizado dos brancos. Em 1946, é pela primeira vez

publicado, em língua francesa, Chitlango, filho de Chefe.

1948 - frequenta a Jan Hofmeyr School of Social Work em Joanesburgo, onde

também estudaram futuros líderes como Winnie Mandela e Joshua Nkomo. Porém,

mostra-se insatisfeito com o ensino de nível médio e manifesta o desejo de ir para a

Universidade, o que viria a conseguir com o apoio de André Clerc. Num período de

férias em Moçambique, antes de entrar para a Universidade, participa num conjunto

de reuniões que originaram a criação do Núcleo dos Estudantes Secundários

Africanos de Moçambique no Centro Associativo dos Negros de Moçambique.

1949 - Frequenta um conjunto de disciplinas para obtenção do degree of Bachelor

of Arts in Social Studies na University of the Witwatersrand. Antes do início das

aulas, trabalha à tarde no Intemational Club a lavar chávenas e dactilografar

pequenos trabalhos, apoiando os trabalhos religiosos aos fins-de-semana. É

escolhido pela Comissão Executiva do Nacional Union of South African Students

(NUSAS) para representar os estudantes do l° ano numa conferência na Cidade do

Cabo, em Julho, sobre os problemas sociais da África Austral. Não chega a viajar,

pois o seu visto de residência não é renovado por ordem do Ministério do Interior em

Junho. Interpõe um recurso que é recusado. Volta para Lourenço Marques, em

Agosto, e faz os exames por correspondência em Novembro. Enquanto os

missionários tentavam arranjar-lhe uma bolsa para os Estados Unidos, é

aconselhado por estes a prosseguir os estudos em Portugal, para agradar às autoridades, que entretanto o interrogaram sobre as suas actividades.

1950/1951 — Vive em Lourenço Marques e acompanha o missionário Labauch nas

campanhas de alfabetização, utilizando um método inventado por este. Em Maio ou

Page 36: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

Junho de 1950, viaja para Lisboa para tratar da inscrição na Universidade. Vai

passar o Verão à Suíça, onde faz sucesso entre a rede missionária como o

verdadeiro Chitlango a quem o missionário André Clero dera vida enquanto

personagem supostamente literária. Frequenta o 1° ano de Licenciatura em

Ciências Históricas e Filosóficas na Universidade de Lisboa. Vive em Carcavelos no

Seminário Evangelista. Tem contactos com o grupo nacionalista da Casa dos

Estudantes do Império, mas a sua atenção concentra-se principalmente no estudo e

nas actividades da Junta Evangélica Portuguesa, como membro da Comissão

Cultural. Entretanto escreve a André Clero pedindo-lhe para concluir a licenciatura

em Portugal "e voltar logo para Moçambique e começar a trabalhar".

1951/1953 — Com 31 anos, parte no Verão para os Estados Unidos, financiado pelo

PheIps-Stokes Fund, profere palestras em campos de juventude da Igreja Metodista

e matricula-se no Oberlin College, no Ohio, onde viria a obter o grau de Bachelor of

Arts em 1953. Causa desde logo curiosidade porque era proveniente da Portuguese

East África, uma excepção no conjunto dos estudantes africanos vindos sobretudo

das colónias inglesas. Conhece Melville Herskovits, o antropólogo pioneiro dos

estudos afro-americanos, que o introduz no meio universitário. Ainda estudante, dá

conferências no Seminário sobre a Africa Contemporânea da Universidade de

Northwestern e na Universidade de Chicago, e escreve um artigo para a obra

colectiva "África in the Modera World", na qual participaram autores prestigiados

como Georges Balandler, Hans Morgenthau e o próprio Herskovits. Sob influência

deste, decide inscrever-se na Universidade de Northwestern para obter o grau de

Master of Arts, no domínio da Sociologia, interessado em estudar os problemas

urbanos e rurais do processo de mudança social na África, com o objectivo de

regressar a Moçambique e trabalhar em instituições religiosas e municipais.

1954/1956 — Frequenta a Universidade de Northwestern, financiado pela Carnegie

Foundation, e a sua investigação desloca-se para o campo da Psicologia Social.

Profere palestras em reuniões organizadas pela Igreja Metodista, na Universidade

de Roosevelt e no Garrett Biblical Institute. Obtém o Master of Arts, em Junho de

1956, com uma tese de Psicologia Social intitulada Ethnocentrism and the Social

Definition of Race as In-Group Determinants. Com 36 anos, casa com Janet Rae

Johnson, de 22 anos, enfrentando uma oposição de natureza racista por parte da

família da sua mulher e da Igreja Metodista. É-lhe retirado um convite para fazer

trabalho de campo no Congo Belga, financiado pelo National Councü of Churches of

Christ, e é-lhe recusada pela primeira vez uma bolsa de estudo para o ano lectivo

de 1956-1957.

Page 37: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

1957/1959 — Colabora com o estudo Anticolonialism in the United States numa

obra colectiva, publicada pelo Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de

Investigações do Ultramar, sob a coordenação de Adriano Moreira. Publica um

ensaio intitulado Guardian Spirils of the Bantu, uma abordagem interdis-ciplinar na

confluência da Sociologia da Religião com a Antropologia da Medicina. Entra para a

Organização das Nações Unidas, para o Trusteeship Division, como Assistant

Social Research Officer e, nessa condição, conhece e trava amizade com Julius

Nyerere. Prepara a tese de doutoramento e concorre a um lugar de Professor de

Sociologia da Universidade do Ghana, mas não consegue ser seleccionado.

1960/1961 — Obtém o Ph.D. na Northwestern University com uma tese de

Psicologia Social sobre percepções etnocêntricas em situações dinâmicas de

grupos multirraciais. É aconselhado por Adriano Moreira a concorrer ao lugar de

Professor da recém criada disciplina de Antropologia Tropical no Instituto de

Medecina Tropical, em Lisboa, mas acaba por recusar. Manifesta o desejo de se

tornar deputado da Assembleia Nacional, mas Salazar recusa. Visita Moçambique

nos inícios de 1961, após 10 anos de ausência, acompanhado da mulher e dos

filhos, e é alvo de uma grande curiosidade popular por ser negro, universitário e

casado com uma branca. Tem contactos com pequenos núcleos anticolonialistas,

nomeadamente com o de José Craveirinha, em Lourenço Marques. Mas numa

homenagem que lhe foi prestada em Gaza, na qual estava presente o Governador

da Província, enalteceu o progresso verificado desde que partira e a atitude

multirracial da Cultura Portuguesa. De regresso aos Estados Unidos, a convite de

Melville Herskovits, profere uma palestra na Universidade de Northwestern sobre a

situação em Moçambique. Durante o Verão, viaja para a Europa e envolve-se na

procura de Universidades e bolsas de estudo para um conjunto de estudantes

africanos que tinham abandonado Portugal, principalmente angolanos. No Outono,

pede a demissão das Nações Unidas, toma-se Assistant Professor da Universidade

de Syracuse (Nova Iorque) e adere abertamente às ideias nacionalistas,

participando no 4° Congresso da African Studies Association com uma crítica

contundente ao sistema colonial português. É convidado para participar, em Nova

Deli, no seminário sobre as colónias portuguesas organizado pela Conferência das

Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas, ao lado de Marcelino dos

Santos, Adelino Gwambe e outros.

1962/1967 — Em Dar-es-Salam, funda em Junho a Frente de Libertação de

Moçambique e promove em Setembro o Congresso com 80 delegados. Em

Novembro apresenta-se como peticionário nas Nações Unidas e, em Março de

Page 38: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

1963, demite-se da Universidade de Syracuse para se dedicar somente ao

movimento de libertação nacional. Coordena a preparação dos primeiros

guerrilheiros e a estratégia da diplomacia, da propaganda e da formação de

quadros, criando em Dar-es-Saiam o Instituto Moçambicano, destinado aos

estudantes secundários. Viajou frequentemente para angariar apoios, deu várias

entrevistas e publicou dois artigos na revista Présence Africaine sobre a FRELIMO,

Em 1967, começa a ter que gerir uma crise interna crescente, devido a divisões de

natureza étnica e ideológica, chegando a ser suspeito de ser pró-americano,

financiado pela CIA, e a ser criticado quanto à sua estratégia político-miiitar.

1968 — Em Março, enquanto se encontrava ausente nos Estados Unidos, num

colóquio sobre violência, na Universidade de Northwestem, os estudantes

provocaram graves distúrbios no Instituto Moçambicano, em Dar-es-Salam, em

protesto contra os brancos que aí trabalhavam. Passados dois meses, novos

distúrbios, dessa vez na sede, localizada no centro da cidade, provocados por uma

multidão constituída principalmente por elementos da etnia Makonde, resultando em

vários feridos e na morte de Sansão Muthemba, membro do comité central. Em

Julho, Eduardo Mondiane vê-se obrigado a convocar o 2° Congresso da Frelimo,

em que teve de reestruturar a organização de acordo com as reivindicações do

grupo de Marcelino dos Santos, no sentido da definição ideológica da FRELIMO

enquanto movimento tendencialmente marxicista-leoinista. Entrevistado nessa altura

por Aquino de Bragança, define a sua posição como próxima de um tipo de

socialismo africano especificamente moçambicano. Considerava que o sistema

político e económico a adoptar após a Independência era uma questão do futuro

que escusava de ser debatida antes de tempo, e que também seria benéfico que os

portugueses fossem ficando por cinco, dez ou mais anos para se avançar na

mudança dos valores tradicionais, como ensinava a experiência de administração

das chamadas zonas libertadas.

1969 — Em 3 de Fevereiro, morre assassinado em Dar-es-Salam, com um livro

armadilhado, nunca se tendo identificado os autores do crime. Publicação póstuma,

em inglês, do seu livro Lutar por Moçambique (a primeira edição moçambicana

sairia a público somente em 1996).

Page 39: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo
Page 40: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo
Page 41: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo
Page 42: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo
Page 43: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo
Page 44: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo
Page 45: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo
Page 46: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo
Page 47: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo
Page 48: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo
Page 49: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo
Page 50: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo
Page 51: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo
Page 52: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

THE STRUGGLE FOR INDEPENDENCE IN MOZAMBIQUE REBIRTH OF NATIONALISM:

Those Africans who have ever had any illusions as to the good intentions of Portuguese

colonialism could not help but wake up to the facts as they are. They began to see their

people become gradually poorer as the white people were getting wealthier. The more

the black people tried to force themselves into the European system of life, the more

stringent the Portuguese laws against them and this more frustrated they became. While

earlier the Portuguese had been talking about "civilizing" the black man through assimila-

tion by insisting upon certain cultural and educational standards, later they began to

restrict the facilities which might have made it possible for at least a few Africans to get

the necessary tools to gain access to the power structure.

AS a reaction to the above situation, Africans began to organize themselves into

associations camouflaged as regional civic and mutual aid organizations. But from time to

time these groups have come .to demand the rights which they have lost to the white man,

and each time they have been ruthlessly slapped down by the Portuguese government. In

the earlier part of the century, when the Portuguese people themselves were still groping

for a more democratic system of government than they ever had before, many African

groups arose in various parts of the country and formed organizations which were more

openly aimed at political emancipation. I am referring here to such organizations as the

Associação Africana and the Centro Associativo dos Negros de Moçambique, whose

membership tended to reflect the colour line between the so-called mulattoes or mixtos and

the indigenous Africans. Later, however, the Portuguese government was able to purge

them of the more nationalist minded leaders and plant its own stooges as leaders. Even

though these two African associations still exist today, they are both either thoroughly under

the control of the government or their leaders dare not show their true feelings about tho

situation. In any case, they are really not what one might call popular organizations,

precisely because they serve no visible purpose for the majority of the African peoples.

They are at best simply bourgeois social clubs, often called upon to shout their part in the

militarized chorus of allegiance to Salazar, which is from time to time demanded of them by

the present regime.

Other forms of nationalistic groups have been organized. from time to time in the past, but

mostly on a regional or linguistic basis. Since the beginning of pan-African nationalism,

Page 53: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

however, these have either died. away or given way to an all-Mozambique kind. of

nationalism.

Before I discuss the source and development of the Mozambique Liberation Front,

however, I should like to mention just one other type of crypto-nationalistic organization

which also made its imprint in Mozambican politics. I am referring to the Associação dos

Naturais de Moçambique (Association of Native-born Mozambicans). This organization was

for a long time, and even today still is to a great extent, established, run and supported by

white people. In fact, it was meant to be for Europeans born in Mozambique and not for

Africans or Asians. For a long time it openly discriminated against the so-called Non-

Europeans in its membership and services. Only in the last 15 years, especially after the

rise of African states, did it begin to encourage other racial groups for membership in it. In

fact, during the mid-fifties the Associação dos Naturais de Mocambique developed a policy

favouring social integration between the two major racial groups and for an autonomous

Mozambique, which would finally lead into independence. The leaders of the organization,

realising the paucity of educated black Africans, launched a scholarship campaign to

subsidize the education of promising Africans in secondary, technical and commercial

schools. One of its most outstanding leaders was the son of a former Portuguese governor,

Jose Cabral.

At first the government encouraged the efforts of this group, believing that the leaders were

interested only in the general cultural and social welfare of the African peoples, but when it

began to note a tendency towards a more genuine Mozambican nationalism, it took severe

steps to stop it. These steps included, arresting all the top leaders of the organization,

replacing them with more fascistic groups and placing the organization under the direct con-

trol of the Social Welfare division of the government. That was the end of the effectiveness

of the Associacão dos Naturais de Mozambique as a political channel for a future multi-

racial Mozambique. In view of the present status of our nationalist movement, one might

venture the prediction that the Portuguese people, as a European white group, will regret

the emasculation of this organization, for with its demise as a multi-racial nucleus may have

gone all the hopes for a racially tolerant Mozambique.

THE NATIONAL LIBERATION MOVEMENT

So far I have dealt with what I might call the embryonic beginnings of nationalism in

Mozambique. Since this is not meant to be a lengthy paper, I glossed over less important

Page 54: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

groups which from time to time have played a part in the formation of a national attitude

among Mozambicans, Now I must turn to the discussion of the organizations which were

formed with the clear intent of rallying their people towards self-government and

independence. But before I discuss these, I should like to indicate that there was a transi-

tional period between the kind of organizations outlined above and the more directly

political organizations which I am about to discuss. Living examples of the former still exist

in Mozambique, but the present political climate would not permit me to even mention any

one of them.

The Mozambique Liberation Front, also known as FRELIMO (from Frente de Libertação de

Mozambique) is a new political organization formed in June 1962, out of the merger of

several political parties, some of them in exile, others still functioning underground within

Mozambique. Again for security reasons I shall not say anything about those groups still

working within Mozambique, except mentioning that they were instrumental in instigating

union among all the forces working towards independence for Mozambique. While I was

visiting Mozambique in 1961 on furlough from the United Nations, they urged me to resign

from my position with the Trusteeship Department, go to East Africa and call on all the

exiled political groups from our country to unite and free Mozambique immediately.

The most important of the exiled, political parties now fused. into FRELIMO are: the

Mozambique African National Union (MANU) and União Nacional Democrática de

Mozambique (UDENAMO, The Mozambique Africa National Union had been organized,

originally by Mozambicans who had seen working in Tanganyika, Kenya and Uganda.

Some of the leaders of that party had been involved in the political parties of those

countries during the formative periods of their development. Then when it became clear that

the political power in East Africa was to be handed over to the African majority, these

Mozambicans felt obliged to concentrate their energies on the preparation of their own

people for independence. This was the case with Mr. Matthew Mmole, who was president

of MANU. The former secretary general of MANU, M. M. Mallinga, represents another

background, the labour union movement. Mr. Mallinga had been in East Africa for many

years. He worked in the labour unions of Kenya, Tanganyika and Uganda, in the first and

the last as organizing officer for dockworkers in Mombasa and among the cotton workers in

Uganda. He worked with Mr. Tom Mboya for some time while he was in Kenya.

Meanwhile, some of the Mozambicans who were either working in Southern Rhodesia and

Nyasaland began to interest themselves in organizing a political body to guide the

nationalist aspirations of their fellow citizens from the coast. This was the beginning of

UDENAMO, with its first temporary headquarters in Salisbury, Southern Rhodesia. So long as

Page 55: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

the Rhodesian Africans were allowed to form parties, Mozambicans continued to carry out

their work unhampered.. When I passed through Salisbury from Mozambique early in 1961,

I found several groups working sometimes in cooperation with, sometimes apart from, each

other. In speaking to several of them, I suggested that they organize a unified movement,

which would be linked with the nationalist forces in Mozambique as well as with groups

working in exile. One of the officers of the UDENAMO party was Mr. Adelino Gwambe, a

23 year old fellow who, according to his own account, had been a member of the greatly

feared Portuguese secret police force (PIDE) and who had been sent by the government of

Portugal to spy on his fellow countrymen in neighboring Rhodesia. Once in Rhodesia,

however, Mr. Gwambe decided, to throw his lot with the nationalists and accepted to be

sent to Dar-es-Salaam, Tanganyika to contact members of MANU and see if a common

front could be established. At that time, 1959, Tanganyika was preparing for

independence.

On arriving in Tanganyika, Mr. Gwambe was warmly received by MANU leaders and taken

in as a full member. A while later, a conference of nationalist organizations against

Portuguese colonialism was to be held in Rabat. Since most of the members of MANU

could not speak Portuguese, they asked Mr. Gwambe to attend the conference

representing MANU. During the conference Mr. Gwambe announced that he was

representing UDENAMO, and returned to Dar es Salaam as chief representative of that

party. For a while Dar-es-Salaam had both MANU and UDENAMO as the only two

Mozambican political parties in East Africa. Later on Baltazar Chagong’a, the President of

another Mozambican party joined. them as representative of a Nyasaland-based group

called Mozambique National Independence Party. Mr. Chagong'a was for many years a

medical aid in Mozambique. He had been forced to retire because of his nationalistic

inclinations, which the Portuguese government could not tolerate. When the situation

worsened, Mr. Chagong’a left Mozambique and settled for some time in Blantyre,

Nyasaland, but since the Portuguese police are free to arrest Mozambicans in this country,

he had, to continue on to Tanganyika. Prom here he wrote to ^a while I was with the United

Nations, asking mu to come over to help establish the united front.

AS referred to above, the Mozambique Liberation Front was established in Dar-es-Salaam

in June 1962. The Front is the only political party representing the interests of the people of

Mozambique. The union of the various parties represents the determination of our people

to attain independence in the shortest possible time.er the various groups represented at

the conference in which the union was made agreed with -the terms proposed, an ad-hoc

Page 56: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

committee was elected and entrusted with the responsibility of carrying on work until the

first congress of the new organization. These were: Eduardo Chivambo Mondlane, who

was elected national president; Uria Simango, vice-president; David Mabunda, secretary-

general; Matthew Mmole, treasurer; Paul Gumane, deputy secretary-general; Leo Milas,

publicity secretary, and four other people holding supporting positions.

Page 57: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

It may be appropriate at this stage to give a brief description of my background as president

of FRELIMO in the context of my present functions in the movement. I was born in

southern Mozambique in the Gaza district, which lies on both sides of the Limpopo basin.

My father was a leader of a section of southern Mozambique known as Khambane, which

is part of the Tsonga peoples described by the great Swiss anthropologist, Philippe A.

Junod, in his The Life of a South African Tribe. I was the last child of his third and last wife.

Early in my life I joined my elder brothers in herding cattle, sheep and goats like most

young men in my country. My father died when I was very young. Therefore, I was

brought up by my mothers and my elder brothers. When about 10 years of age, my genetic

mother in-sisted that I attend a local government school because, she argued, the old world

of my father was on its way out, and it would be wiser if I prepared myself for the new

world. I began learning to read and write and to speak Portuguese in the government

rudimentary school of Manjacaze in 1931.

Then two years later I transferred to a mission school nearer my residence. On finishing

rudimentary education in 1936, I was taken to the capital city of Lourenco Marques, where I

continued my education until I obtained the primary school certificate. This was the highest

educational achievement allowed an African in Mozambique. But not being satisfied with it,

I decided to continue in one way or another. Bo I enrolled at an agricultural school for dry

farming. . Two years later I completed the courses given and returned to the Gaza area,

where I taught dry farming to the people of the Manjacaze region for two years. While I

was taking agricultural training, I learned some English privately. In 1944, I received a

scholarship- to study in a high school in the northern Transvaal, where in 1947 I obtained

the Matriculation Certificate of the South African Joint Matriculation Board. This enabled

me to enter Jan H. Hofmeyr School of Social Studies in Johannesburg in 1940. However,

soon after entering Hofmeyr School, I was offered a private scholarship to enter the

Witwatersrand University at I.Milner Park, Johannesburg to continue my studies in the

social science.

In 1949 the Nationalist Government, under Dr. Daniel F. Malan, refused to renew my permit

as a foreign student, obviously because I was a black student in a white university. On

returning to Mozambique in October 1949, the Portuguese government had me arrested for

investigation. At that time I had organized an African students association which drew its

members from the few African secondary, commci-ciu.1 and technical school students of

Page 58: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

Mozambique. The government thought the organization was really a political group,

camouflaging as a social and academic group. They arrested as many of members of

that. organization as they could, and investigated them to determine what relationship there

was between my expulsion from South Africa and the activities of the organization. After

three days and nights of constant questioning, in which the police covered every phase of

my abundant life in South Africa, they drew up a report to the attorney general of the-

Portuguese Republic of Lisbon.

A few months later the attorney general issued an analysis of the report with his office's

conclusion, which ran generally this way: (a) that I was politically a threat to the colony, but

that since there as nothing definite about my past history they could not prefer charges

against me; (b) that I had been infected with a comunist virus, which might affect others,

especially the young people who were members of my association; (c) That I had an em-

bryonic spirit of black nationalism which should b& uprooted as soon as possible, in order

to prevent it from affecting others amongst the African people. The attorney general

prescribed two major courses of action: (1) that I be put wider strict surveillance by the

police, and (2) that if possible I should be given a scholarship to study at a Portuguese

university, in order to keep me away from the African population, and to see if I could be

cured of my intellectual and political proclivities.

Meanwhile, arrangements were being made by my friends in South Africa and elsewhere to

get me an independent scholarship so that I could go overseas to continue my studies. By

the time the Portuguese government came through with a scholarship offer, I had already

obtained one from the Phelps-Stokes Fund of New York. I was then able to sail for Lisbon

in mid-1950, where I registered at the Faculty of Letters in the autumn of that same year.

As far as I know, I was the first black Mozambican ever to enter Lisbon University.

It was here where for the first time I met African intellectuals from Portuguese colonies.

They were mostly from Cape Verde Islands, Guinea (called Portuguese), Angola and 51,

Tome in that order. Amongst these were the now well-known leaders of the political

movements of these same colonies, such as Dr. A. Agostinho Neto, the physician, poet,

former president of the MPLA (Movimento Popular para a Libertação de Angola); Mário

Pinto de Andrade, the former MPLA secretary for external relations; Amilcar Cabral, the G-

uinean agronomist, President of Guiné; and Marcelino dos Santos, our FE.ELIMO

secretary for external relations and general secretary of CONCP (Conference of the

Page 59: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

Nationalist Organizations of the Portuguese Colonies). Mr.Marcelino dos Santos was at the

School of Commerce in Lisbon, and Dr. Liahuca, a physician now working with the Angolan

refugees in Leopoldville under the auspices of UPA (Union of the Peoples of Angola).

Although the concern of the majority of the students in Lisbon at that time was about the

ordinary civil rights of Portuguese citizens, our political interests were clearly nationalistic.

We wanted Portugal to at least acknowledge the right of self-determination for the peoples

of all her colonies. We expressed our feelings with every means available to us.. For

example, Dr. Agostinho Neto, who was already a recognized poet, wrote plaintive sonnets

clamoring for freedom for the black man; Mario de Andrade had facilities of expression in

cultural and sociological essays relating to the African past, while I concentrated on the use

of the spoken word in closed meetings of mostly students, faculty member? and some of

the more liberal Portuguese, describing the contradiction of the Portuguese colonial policies

as I knew them in my own Mozambique. Consequently, we were constantly harassed by

the PIDE (Polícia Internacional para a Defesa do -Estado). • Practically every month my

room was ransacked by the police looking for documents, letters, pictures of I do not know

what, trying to find evidence of what they were suspecting about my political views. The

same applied to Neto, Andrade, Santos, Cabral and most of the African students in Lisbon.

After one year of studies I felt that 1 could not continue under these conditions. So I

arranged to have my scholarship transferred to an American university. I received an

additional scholarship from Oberlin College in Ohio, and in the autumn of 1951 I entered.

the United States. I completed my work towards the Bachelor of Arts degree at Oberlin in

June 1953; after that I continued my studies at Northwestern University, Evanston, Illinois,

where I obtained the M.A. and Ph. D. degrees in sociology under Professor Kimball Young

and the late Professor Melville J. Herskovits. After one year at Harvard University, where I

did research in role conflict under the advice of the late Professor Samuel Stouffer and

Professor Gordon Allport, in May 1957, I accepted a position in the Department of

Trusteeship of the United Nations, as a research officer on conditions in Tanganyika, South

West Africa and the British Cameroons.

Meanwhile, some of my former African colleagues at Lisbon University had also given up

trying to finish their degrees in Portugal; they had left for France» mostly at the Sorbonne,

where they studied, under a healthier intellectual climate. Amongst these were Mario Pinto

de Andrade and Marcelino dos Santos, already mentioned above. Drs. Neto and Liahuca

Page 60: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

continued their medical studies in Lisbon, under very difficult conditions, until they

completed their work; Dr. Agostinho Neto, on finishing his degree returned to Angola, but

was arrested by the Portuguese government less that two years later, and sent to the Cape

Verde Islands and later to a prison in Lisbon, charged with nationalistic activities.

Page 61: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

Late last year Dr. Neto managed to escape. Dr. Liahuca left Lisbon soon after finishing his

course work in medicine, along with more than one hundred other African students, and is

now with the National Liberation Army in northern Angola fighting for the independence of

his people. As for me, after almost five years with the Trusteeship system of the United

Nations, I returned to Mozambique for three months, under the protection of my position as

an international civil servant, and in the autumn of 1961, resigned from the United. Nations,

taught at Syracuse University's Maxwell Graduate School, and openly joined the nationalist

movement.

For a number of years while I was with the United Nations I had been receiving letters of

appeal from many Mozambicans at home and abroad, asking me to come out openly

against the Portuguese. As an officer of the United Nations this was, of course, impossible.

The alternative was to resign and exile myself in an independent African state. At the time I

began to work for the United Nations the only independent African states were Egypt,

Ethiopia and Liberia, all. of which are thousands of miles from Mozambique. I did not think

that it would be effective for me to work against the Portuguese from such a long distance. I

then decided to wait until a neighboring African state received independence. Since I was

working in the Trusteeship Department, I could See that within a reasonable short "time

Tanganyika would be independent, and I would work from there. Consequently, when

Tanganyika became independent in December 1961, I immediately arranged to return to

East Africa.

UNITY UNDER FRELIMO

By this time I had been in close communication with the leaders of the various political

parties in and outside of Mozambique, most of whom had been clamouring for unity. In June

1962, 1 came to Dar-es-Salaam with the sole purpose of convincing those who were still

doubtful about unity. I must mention the part played by several African political leaders in

urging all Mozambican politicians to unite. Amongst those are Dr. Julius K. Nyerere, the

President of Tanganyika, and Mr. Oscar Kambona, the Minister for External Affairs and

Defense, who tirelessly supported unity right from the outset; also Dr. Kwame Nkrumah,

President of Ghana, who, at the Freedom Fighters' Conference in 1962, both publicly and

privately strongly urged our Mozambican politicians to unite, at least to avoid the tragic

division which is now hurting the cause of freedom in Angola. Practically all African

statesmen who have had anything to do with Portuguese colonial issues at the international

Page 62: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

level have always insisted on unity within Mozambique. All of these forces were in-

strumental in leading us towards the formation of the Mozambique Liberation Front.

AS to the details of the steps taken by those of us who worked out the first basic of the union,

I need not belabour them in this paper, for they are a matter of public record. I shall now

turn to the first Congress of FRELIMO, which took place in September 1962. Soon after the

formation of the Mozambique Liberation Front it was decided that there should be a

conference that same year which would formulate the main lines of the policy of the new

organization a elect s. group of officers who would carry out its work. The congress was ~,s

meet in Dar-es-Salaam, and would be attended by delegates representing the various

political groups of Mozambique exiled in East Africa, and as many others as could send

delegates from within Mozambique.

Page 63: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

In the last half of the month of September, the congress finally took place, attended by

80 delegates and more than 500 observers from Dar-es-Salaam, Tanga, Lindi,

Morogoro, Songea, etc., in Tanganyika, where there are more than 100,000

Mozambicans working in various spheres of life, including thousands of refugees who

liad just recently arrived from Mozambique. There were also observers from Zanzibar,

an island off the coast of Tanganyika, where over 30,000 Mozambicans work in

shipping and clove farms and plantations; from Mombasa, Kenya came several people

representing a Mozambican community of over 20,000 in the dockyards; and a few

came from the Rhodesias and Nyasaland. All in all, the first congress of our party was

a very representative affair, inspite of the fact that it was the first of its kind in the

history of our country.

PROGRAMME OF FKELIMO

The Congress of FRELIMO examined carefully the present situation in Mozambique and

made recommendations for the Central Committee to carry out during the year. During the

discussion; of the Congress, the following points were noted:

(a) that the people of Mozambique were still under the subjection of Portuguese

colonialism, characterized by political, economic, social and cultural oppression;

(b) that the Portuguese government in Mozambique denied the basic freedoms to which

modern man is entitled;

(c) that the Portuguese government failed to recognize the primacy of the interests of the

Mozambicans, and that it opposed the right of the people to determine their own destinies,

continuing to insist upon labeling Mozambique as an "overseas province";

(that Portugal, instead of seeking a peaceful solution to the conflict, between her and the

people of Mozambique, continued to use fascist methods of repression, reinforcing the

military and police apparatus by the dispatch of military contingents, massacring innocent

people; imprisoning and torturing people suspected of nationalistic tendencies.

The Congress noted further that as a result of the above facts, the people of Mozambique

were being forced to seek effective methods of suit-defense. It also considered that the

recent reforms promulgated by Portugal were within the framework of the same colonialist

spirit that has typified Portuguese action for centuries; that because they were taken uni-

laterally, even if they were fair to the people, they would still be inacceptable. The

Congress, therefore, called upon all Mozambican patriots to unite under FRELIMO’s banner

Page 64: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

to fight for the independence of their country. It went on to call attention to the- existence of

an alliance between the racist powers of Portugal, South Africa and the so-called Central

African Federation, led by Salazar, Verwoerd and Wellensky, aided by a multifarious system

of economic interests financed in London and New York, and- urged all freedom-loving

peoples of the world to condemn and act in such a way as to frustrate thy inhuman activities

of these forces.

The Congress of FRELIMO declared its determination to promote the efficient organization

of the struggle of the Mozambican people for national liberation and adopted the following

measures to be carried out by the Central Committee:

1) Development and consolidation of the organization of FRLLIMO;

2) Development of unity among Mozambicans;

5) To use every effort be expedite the access of Mozambique to freedom;

6) To promote the social and cultural development of Mozambican women;

7) To develop literacy programmes for Mozambican people, creating schools wherever

possible;

8} To encourage and support the formation and consolidation of trade unions, student and

women's organizations;

9) Encourage as much as possible cooperation with nationalist organizations of Angola,

Guinea and Cape Verde;

10) To procure all means of self-defense and prepare the people for every eventuality;

11) To appeal for financial support from organizations which sympathize with the cause- of

the people of Mozambique;

12') To establish permanent centers of information and propaganda in all perts of the world

13) To seek diplomatic, moral and material help for the cause of freedom in Mozambique,

especially from the already independent states of Africa, and from all peace and freedom

loving countries - of the world.

I’m sure you-would also be- interested in knowing about what FRELIMO is doing to

implement at least some of these decisions by the Congress. AS you may realize, it would

be unwise for me to give you any indication of what we are doing to implement those

resolutions which have to do with direct action within Mozambique. There are, however,

two areas of action we can freely outline publicly without danger. These are: diplomatic

action and education. Since the formation of FRELIMO, and even before, diplomatic

contacts have been intensified in all parts of the world. For example, we have made certain

that our point, of view is well understood by those committees of the United Nations which,

Page 65: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

are directly responsible for gathering information on Portuguese colonies. Consequently,

as soon. As the meetings of the Congress ended, I flew back to New York to petition in the

Fourth Committee of the General Assembly when our territory Was being considered. We

also intensified our contacts with international conferences in Africa, Asia and the A-

mericas. At -the .annual conference of PAFMECSA which met at Leopoldville, Congo, Mr.

Uria Simango, the vice-president of FRELIMO, presented a petition on our behalf.

At the Moshi Conference of the Afro-Asian Solidarity Council, we sent a team of five

members of the Central Committee who shared the responsibility of presenting our case. In

the United States,- I attended the first Nugro Leadership Conference on Africa, whore I

presented a background paper on conditions in Mozambique and. participated in informal

discussions, giving sub:.; Lantive informa.tion to the delegates. Our univers.ity students in

Europe and North -america also carry the responsibility of informing their fellow-students on

Mozambique whenever they attend international student conferences. They have a student

organization, União Nacional dos estudantes de Mozambique (UNEMO), which works in

close cooperation with FRELIMO. We believe that our case against Portuguese colonialism

deserves to be known by all peoples of the world. We also hope" that through this

knowledge the representatives of the peace loving peoples of the world will be able to take

the proper steps to convince Portugal of the stupidity of her position. Finally, we have

launched a crash programme for educational advancement for the people of Mozambique.

I have made reference to the almost complete lack of education for the black peoples of

Mozambique. The Congress of FRELIMO, taking into account the sad state of educational

facilities in our country under Portuguese colonialism, has asked the Central Committee to

study the education of the Mozambique people as a priority matter.

In response to this situation, the Central Committee of FRELIMO has divided the problem

into three levels of action: the university level, the secondary school level and the mass

literacy level. At the university level it was decided that we should send out to all countries

any available Mozambicans with educational background equivalent to secondary school.

For this purpose we have sent out to most independent countries of the world requests for

scholarships for Mozambicans for education in any school above the secondary level. We

have also appealed to the united Nations to do all it can to help us in this respect.

Consequently, we have received offers for scholarships from many countries in Eastern

Europe, North and South America and Western Europe. So far we have been able to send

out students to the United States of America, where facilities for both training and

transportation were liberally given by governmental and private bodies; to Western Europe,

Page 66: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

especially France, where training especially in medicine is being given to several

Mozambicans, and Italy, in law and economics. We also have some students in the Soviet

Union, taking courses in various fields of study, including technology. We have more

scholarships offered to us than we can take. Therefore, with a generous grant from a

private foundation in the United States, the Mozambique Institute (Instituto Mocambicano)

has been formed under the directorship of my wife, Janet, in Dar-es-Salaam. This institute

is separate from the political body of FRELIMO, but caters to the needs of refugees from

Mozambique who have yet to complete their secondary education.

The Institute will provide housing for 50 young students, and educational and cultural

facilities for any Mozambican refugees who. wish to partake of them.. The Institute's

activities also include a general survey of the refugees in Tanganyika and neighboring

countries in order to assess the number and needs of these people. In addition, literacy

programmes are needed to reach the millions of our people who are not able to read or

write. We believe that without at least literacy, our efforts for a stable, progressive and

peaceful Mozambique cannot be crowned with success. We, therefore, appeal to all those

who believe in the effectiveness of these programmes to give us whatever help they can

afford.

AS can be deduced from the foregoing, our struggle against Portuguese colonialism is a

formidable one. We wiill do everything we can to hasten the demise of colonialism in

Mozambique, even if it takes giving up our own lives. For some tint; we believed that the

people of the world were committed to morality and the rule of law, but as we went forth to

present our case to the United Nations, to governments within each country, and to the

press of the world, we began to realize that interests other than morality and the merits :f

our case seem to be more important. For example, we know that the United States and her

NATO allies are the paramount sources of military and economic power for Portugal. When

we presented the facts at our disposal to the peoples of the United States, we were met

with a deaf ear. Not even the press was interested in reporting the news of our plight.

Instead, the American people are being fed with propaganda through high powered public

relations firms receiving millions of dollars from Portugal and the Anglo-American interests

which exploit our people. The people of Mozambique will appeal to all those who believe in

freedom to help in every way possible in this struggle ""' against Portuguese colonialism.

Our people will not rest until they have gained their independence.

Page 67: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

Eduardo C. Mondlane,

President

Mozambique Liberation Front

P. 0. Box 15274

Da -es-Salaam

Tanganyika.

ADDENDUM - April 1963

The officers of the Central Comaitte of the Mozambique

Liberation Front are as follows:

President: Dr. Eduardo C. Mondlane

Vice President: Rev. Uria Simango

Secretary-Treasurer: Laurence Mutaca

Treasurer: Johannes M. McMchambellues

Deputy Treasurer; James Msadala

Administrative Secretary: Silvério Nungu

Secretary for external Affairs: Marcelino dos Santos

Secretary for Information: Pasquale Mocumbi

Deputy Secretary for Information; Paulo Bayeke

Secretary for Labour: J. Chiteji

Secretary for education: Mariano Matsinye

Secretary for Health: Baltazer Chagonga

Secretary for Defense Security: Leo Milas

Page 68: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

Mandela, O Pensador e Filósofo

Introdução

Tendo tido a dita de contactar com a obra de Nelson Rolilhahla Mandela, Long Walk to

Freedom, traduzida em português com o título, Longo Caminho para a Liberdade, por

Ana Saldanha, nós que já o admirávamos como Estadista e líder exemplar, passámos

a admirá-lo ainda mais como pensador eminente, sinceramente empenhado em

passar par o discurso a sua experiência de homem e de homem africano e Xhosa,

aberto ao mundo inteiro.

Nessa mesma obra colossal, encontra-se o discurso de sua defesa, pronunciado em

1962, num tribunal de Pretoria, funcionando como que a síntese de toda a obra, assim

como a Apologia de Sócrates, pode funcionar como luz das ideias defendidas por este

controverso e enigmático personagem, fictício para alguns e real para outros, que

também terá comparecido num tribunal da capital da Hélada, Atenas, no ano 399 a. c.

Por isso não é de admirar que tenhamos optado por um estudo comparativo, para

apurar o que há de genuinamente filosófico e por isso universal, nestes homens que se

desvela nesses discursos, donde se segue que ficam de fora todos os outros aspectos

de seus pensamentos e personalidades, e temos como dados adquiridos que estes

discursos são autênticos e foram pronunciados pelos seus autores em momentos

concretos e críticos de suas vidas.

Servimo-nos como textos bases da tradução feita por Manuel de Oliveira Puqlquério,

para o texto socrático e da tradução de Ana Saldanha para o texto de Mandela), talvez

valha a pena dizer também que, este só ocupa as paginas 352 ate 356 do total da obra,

embora a sua compreensão tenha exigido de nós, não só a leitura completa de toda a

obra, mas também de muitas outras.

Page 69: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

Sócrates é Sócrates; Mandela é Mandela

É caso para perguntar, que tem a ver um discurso pronunciado passam já séculos,

perante um tribunal por nós desconhecido, o tribunal dos Heliastas, para responder sob

uma acusação aparentemente de teor cívico e religioso: Sócrates é culpado de

corromper a juventude e de não crer nos deuses em que crê a cidade, mas em

divindades novas1; que tem a ver com este outro de Mandela, pronunciado nos nossos

dias, para responder por traição à Pátria e atentado contra o Estado? Que ligação pode

haver entre o discurso de um velho de setenta anos, que durante a vida só compareceu

uma vez em tribunal, pela primeira vez, depois de setenta anos de idade, compareço

perante um tribunal2; com um advogado que sempre viveu em tribunais e processos

judiciais?

Como comparar as palavras de um elitista3, é coisa assente que Sócrates se distingue

em alguma coisa da maioria dos homens, que nem via com bons olhos o poder

popular: qualquer homem que, generosamente se oponha a vós ou a outra assembleia

popular para impedir que se cometam na cidade, muitas injustiças e ilegalidades não

tem hipótese de se salvar; que até se orgulha de não ocupar cargos públicos: nunca

exerci qualquer cargo público na cidade''; com estas outras de um jovem liberal,

defensor acérrimo da democracia e líder incontestável das massas? É que na Apologia

de Sócrates as palavras de ordem são: verdade (assinalada mais de vinte vezes);

sábio (com mais de vinte registos); enquanto na de Mandela, política e democracia é

que registam maior número de ocorrências.

Além do mais, Sócrates declara-se movido por um deus, a ser o que é: Vivo por isso

em extrema pobreza, por estar apenas ao serviço do deus , enquanto Mandela alega a

sua própria consciência: por causa da minha consciência.

Platão, Apologia de Sócrates, Críton, tradução de Manuel de Oliveira Pulquério, Edição do Instituto Nacional de Investigação Científica, Coimbra, 1984, pg. 27. É o texto desta edição que serviu de base para o nosso trabalho, embora nos tenhamos socorrido também doutras edições que aparecerão no momento oportuno. ²Idem, pg. 19 ³Idem, pg.36 4Idem, pg. 39 5Idem, pg. 36 6Idem, pg.26 7 Nelson Mandela, Longo Caminho para a Liberdade, tradução de Ana Saldanha, 3a edição. Editores, S. A., 1997, pg. 354.

Page 70: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

Quer dizer, à primeira vista, as preocupações teoréticas e morais que

atravessam todo o discurso socrático, não encontram nenhum paralelo na defesa

do jovem Xhosa, que de imediato declara, palavras textuais: Não era um apelo

judicial, mas uma declaração política8

III. Mandela versus Sócrates e Vice-versa

Exactamente neste ponto em que as posições parecem se extremarem, começa

o vislumbre de alguma aproximação: Tanto um como outro citado por um

tribunal, ignoram essa circunstância, transformam o momento de defesa, num

púlpito para manifestar as suas ideias; homem prático, di-lo claramente o sábio

africano:

Queria explicar ao tribunal quando e como me tinha tornado o homem que era,

porque tinha feito o que fizera, e porque se tivesse nova oportunidade, o voltaria

afazê-lo9; secundado pelo célebre ateniense, que na sua ironia costumeira

afirma: Atenienses, e insisto neste ponto: se me ouvirdes defender-me com as

mesmas palavras que costumo usar, quer na praça pública, junto aos balcões

dos mercadores, onde muitos de vós me tendes escutado (...) não vos admireis

nem protesteis por causa disto (...) me parece justo pedir-vos que me deixeis

usar a minha maneira normal de falar 8.

8Idem, pg. 352. 9 Nelson Mandela, o. c. pg. 352. 10 Platão, o. c-, pg. 19-20. 11 Basta recordar que os géneros literários eram conformes aos dialectos usados: Na Literatura Grega, cada género Literário tem o seu dialecto próprio, que é ordinariamente aquele que os seus primeiros representantes cultivaram. Depois, por um rígido formalismo literário, este dialecto é religiosamente respeitado e imitado pêlos sucessores (...) Aquele em que foi escrita pela primeira vez uma obra de um género particular permanece o único meio de expressão para esse género, tomando-se parte integrante da correspondente forma artística. Exemplo, a linguagem com que Homero escreve as suas duas epopeias foi a linguagem para sempre adoptada pêlos épicos gregos até à época medieval bizantina. (Cf. Ana Paula, os dialectos Gregos, apontamentos, departamento de humanidades clássicas. Faculdade de Filosofia de Braga, Braga, 1996). Ora se havia esta ligação entre dialecto e conteúdo, muito mais razões há para afirmá-la entre género e conteúdo. Assim sendo, num discurso forense, seria impensável usar o estilo da filosofia, à minha maneira segundo Sócrates, como aparentemente pretende ser a apologia. Aliás, numa outra obra de Platão, o Banquete, a propósito de discursos de louvor ao amor, Sócrates propõe fazê-lo à sua maneira, no seu estilo, o que acabou por se transformar num discurso doutra ordem, a ordem filosófica, diferente dos seus amigos, cujos estilos e conteúdos eram de índole diferente.

Page 71: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

.

Page 72: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

Já referimos também que o discurso de Mandela é uma resposta política a uma

questão política: Não era apelo judicial, mas uma declaração política, o mesmo

acontece com Sócrates, por mais incrível que pareça, basta pensar que Anito, o

principal acusador13, conforme atesta também a obsessão com que é referido

por Sócrates ( mais de dez vezes), durante a sua defesa, é apresentado como a

face visível dos políticos queixosos: Meleto mostra-se irado em nome dos

poetas, Ânito em nome dos artífices e dos políticos, Lícon em nome dos

oradores1'1. Aliás, uma das razões de queixa era declaradamente política: Em

todo o caso diz-nos, Meleto, (...) que eu corrompo os jovens: certamente é

ensinando-lhes a não acreditar nos deuses em que a cidade acredita5. É política

esta acusação porque os deuses da cidade na Grécia antiga eram a base do

poder do Estado16 e a juventude, como em qualquer Estado, o seu futuro17. Tal

como Mandela, Sócrates é réu por atentado contra o Estado e ambos fizeram-

nos mais por discordar com ele, por divergências de ideias políticas do que por

uma acção concreta: A lei transformou-me num criminoso, não pelo que eu tinha

feito, mas devido àquilo que representava, pelo que pensava18

Esta afirmação também se pode aplicar a Sócrates sem correr risco de errar19,

pois de próprio afirma: não sabias que delito real me havias de imputar20.

12 Nelson Mandela, o. c. pg. 352. 13 Que Ânito foi o principal acusador, é largamente defendido e provado por I.F. Stone no seu livro O julgamento de Sócrates, num capítulo dedicado a este ponto, nas páginas 180 até 185, que a determinada altura afirma: Dos três acusadores, só Anito realmente tinha peso. 14 Platão, o. c. pg. 26. É notório, a este respeito, que logo no começo Sócrates afirme: A estes temo eu mais que a Ânito e aos que o rodeiam.(pg. 20). Note-se bem , a Ânito e não a Meleto que para efeitos formais aparece como acusador principal e muito menos a Licon. 15 Idem, pg. 29. lt Esta interpretação já foi feita por Hegel: É certo, diz. que há derrocada do Estado ateniense quando esta religião pública em que tudo assenta desfalece...) A religião determinada estava, portanto. em íntima conexão com a vida pública e o estado não podia subsistir sem ela; a religião constituía um aspecto da vida pǘblica. A introdução de um novo deus, que tinha por principio a consciência de si e provocava a desobediência, era, portanto, necessariamente um crime aos olhos do povo Cf. Hegel, traducao de Carlos Aboim de Brito, o. c. pg. 101. ¹7 Novamente Hegel faz a mesma leitura A ligacao entre pais e filhos e ainda mais sólida, e ainda a base moral da vida dos atenienses ... a piedade e a tonalidade fundamental, o substancial do Estado Ateniense Ibem. Nelson Manada, o. c pg. 354. 19 Stone põe estas palavras na boca de Sócrates: Não me acusam de ter feito algo, e sim de ter dito e ensinado certas coisas. Ameaçam-me de. morte por não gostar de minhas ideias e meus ensinamentos... Cf. Stone, o.c. pg.215. 20.Platao, o. c. pg. 31.

Page 73: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo
Page 74: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

No entanto, a par desta costela política que é peculiar de ambos, e do apego

incondicional à verdade e às ideias, como acabamos de demonstrar, une-os

ainda algo de genuinamente filosófico, de que vamos ocupar-nos agora.

Segundo Aristóteles, um dos grandes contributos de Sócrates para a filosofia foi

o de ter sido o primeiro a falar da definição, que, como sabemos, consta do

género e da diferença específica, o que supõe conceitos universais21.

O primado do universal, na apologia é claramente afirmado: não se preocupando

tanto com as coisas da cidade como com a própria cidade e procedendo da

mesma maneira com o resto das coisas22; mas é quando se transforma numa

maneira de ver as coisas na sua totalidade, numa visão de conjunto, numa

identidade universal dos problemas humanos, que se toma altamente filosófico e

presente tanto no velho Acaio: vós, que sois meus concidadãos nãos fostes

capazes de suportar as minhas conversas e os meus discursos, que se vos

tomaram tão importunos e (...) poderiam outros suportá-los facilmente? Muito

longe disso Atenienses 3; como no jovem Baniu: Não se trata de um conflito

exclusivo deste país. Ele põe-se a todos os homens conscientes, a todos os

homens que pensam e sentem profundamente, em todos os países24.

É nisto e também no primado da consciência já sugerido, que eles mais se

identificam, preferência miticamente formulada pelo sábio grego: mas antes

quero obedecer ao deus do que a vós25; modernamente reformulado pelo ancião

africano: me vira obrigado a escolher entre a adaptação à lei e o respeito pêlos

ditames da minha consciência26. Mas, o mais admirável é que tanto num como

noutro, este apego à verdade, este compromisso político, este reconhecimento

do primado do indivíduo, não se transformou numa insensibilidade às questões

afectivas e familiares: 21 Isto di’lo claramente Aristóteles... havendo Sócrates tratado das coisas morais, ... nelas procurando o universal e, pela primeira vez, aplicando o pensamento as fefinicoes Cf. Aristóteles, Metafísica, Vol. I e II, traducao de Vincenzo Cocco, 2 edicao, editada pelo Instituto para a Alta Cultura, Coimra, 1969, pg. 34. 22 Idem, pés- 41-42- 23 Idem. pg. 43- 24 Idem, pg. 353 25 Platão, o. c. pg. 33-34. 26 Nelson Mandela, o. c. pg. 354. Que Sócrates não achava indigna a morte, é sugerido no Fédon e no Criton e talvez por causa disso Stone o acusa de procurar a mane: Sócrcses queria ser condenado e fez o que pode para hostilizar o júri (Cf. Stone, o.c. pg. 186).

Page 75: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

Também eu. meu caro amigo, tenho, sem dúvida, parentes (...) e mesmo três

filhos, ajuízes, dos quais um é já adolescente e os outros dois são crianças e

ainda: Não foi fácil para mim, (...) separar-me da minha mulher e filhos, dizer

adeus (...) a perspectiva de me sentar com a família para jantar28. É de espantar

ainda a fé na natureza humana implícita, nestes apelos derradeiros, apelos que

aliás, atravessam todo o texto, já que sem a fé na razão e na piedade dos

homens não teriam sentido qualquer apologia ou discurso de defesa ou de

propaganda ideológica, nem tão pouco uma lição de filosofia.

Não serão assim os filósofos? Homens afeitos ao universal, sem descurarem o

particular; consagrados ao pensamento mas capazes de apreciar o "delírio" da

existência; cumpridores das leis humanas embora reconheçam como lei

suprema, a consciência. Deus mesmo, do qual deriva e se funda qualquer

sociedade? E sobretudo, homens que por amor dos homens se distanciam

deles; por amor a vida, perdem a mesma vida; homens livres duma liberdade

que supera a própria morte: a minha atitude no futuro não será modificada, nem

que eu tenha de sofrer mil vezes a morte, porque nada pode desviar as pessoas

de princípios.

Em suma, a julgar por estes textos, se bem que não esgotam, nem explicam

tudo e de forma definitiva o que estes dois gigantes da história, foram e são para

o mundo; Mande Ia e Sócrates são da mesma estirpe, a estirpe dos sábios,

porque ambos contemplaram aquela verdade primeira, que permite ao homem

afirmar no meio de toda a casta de tribulações: certamente era preciso que as

coisas se passassem assim e eu creio que tudo está certo ; expressão de uma

alma profundamente optimista, dum homem que chega ao fim da sua carreira

com a consciência do dever cumprido que tanto falta, hoje em dia: Cumpri o meu

dever para com o meu povo e para com a África do Sul32. Na defesa de Mandela

uma frase pode também dar azo para tais especulações; Esta vida foi

infinitamente mais difícil do que cumprir uma pena de prisão. Cf. Mandela, o. c. pg. 354).

27 Platão, o .c. pg. 39. 28Nelson Mandela, o.c. pg. 355. 29 Platão, o. c. pg. 34. 30Neslon Mandela. o.c. pg. 355. 31 Platão, o. c. pg. 45. 32Nelson Mandela, o. c. pg. 356.

Page 76: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

76

Conclusão Em suma, tem razão Hegel em afirmar a propósito da apologia Socrática que, um direito

enfrenta outro (...) ambos são direitos que se opõem e um deles é destruído pelo outro;

ambos caminham para a sua perda e ambos são, portanto, justificados um em relação

ao outro35 E na verdade, isto que se diz de Sócrates, com muito mais razão se deve

dizer de Mandela, visto que enquanto naquele, é o direito natural, reminiscência de

épocas primitivas, anteriores à Polis, neste, é o direito Baniu, mais primitivo e mais

universal conforme foi testemunhado pelo mundo inteiro contra o direito do regime de

apartheid condenado universalmente, mas que para todos os efeitos visava um fim

nobre, a conservação dum povo e duma nação minoritária, ameaçada pela maioria.

É esta confiança no diálogo (dialéctica para usar uma expressão cara à Sócrates), feito

com fé na capacidade de o homem atingir a verdade, com serenidade e esperança no

futuro, que ligou indelevelmente estes dois gigantes da história, predizendo um, o que

outro havia de realizar: Simplesmente, não vos consigo convencer disso, porque não

tivemos muito tempo para dialogar. Se entre vós houvesse uma regra, como a que

existe entre outros homens, que não permite decidir da pena de morte em apenas um

dia, mas em vários, creio que vos teria convencido.

Uma confiança que lhes permitiu rejeitar inequivocamente a tirania da opinião, do

politicamente correcto para usar uma linguagem dos nossos dias, proclamando a justiça

e a verdade, sem fanatismo nem prepotência, como demonstra o livre acatamento das

mesmas leis que criticavam e pelas quais foram sentenciados, testemunhas

indesmentíveis do respeito que nutriam pela ordem e pêlos adversários, convencidos de

que embora vissem mais longe, não eram donos da verdade.

33.Hegel, Lições Sobre A História da Filosofia t. II, pg. 323-337, ed. J. Vrin, 1971, in Platão, Apologia de Sócrates, rradução de Carlos Aboim de Brito, o. c. pg. 104. Idem, pg. 64.

Page 77: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

77

BOOKER T. WASHINGTON E WILLIAM EDWARD BURGHARDT DU BOIS

1. ORIGENS E INFÂNCIA

Booker T. Washington nasceu perto de Hale's Ford, num acampamento de escravos, em Franklin, Estado de Virgínia, Sul dos Estados Unidos, em 1856 (Abril, 5)(1). Era fílho mestiço de uma negra escrava com um branco anglo-saxão, proprietário de escravos que ele jamais conheceu, o qual nunca quis saber do filho. Booker nasceu escravo e numa extrema pobreza. Doze anos depois, em Great Barrington, Estado de Massachussetts, nasceu William Edward Burghardt Du Bois (1868, Fev. 23), também ele mestiço, no entanto de ascedência holandesa e francesa e orgulhoso de não ter nenhum sangue anglo-saxão nas veias. Du Bois nasceu livre e numa família (relativamente) abastada do Norte.

Booker Washington viveu fundamentalmente com a mãe, uma cozinheira do acampamento e dois irmãos, John e Amanda, primeiro em Franklin e depois em Malden. Em Franklin, Booker fazia os trabalhos reservados ao filho de Mãe Negra na escravidão do Sul: varrer o chão, entre outras tarefas domésticas, levar água aos seus irmãos de raça nas plantações de algodão, percorrer longas distâncias levando milho à moagem e, após sua primeira promoção na vida, passou a espantar moscas durante as refeições do seu dono com a família. Du Bois não pôde experimentar realidades semelhantes nas condições de liberdade e relativo conforto no Norte. Em 1865, Booker transferiu-se com a família para Malden, Virgínia Ocidental, no que ele descreve como a viagem "Rumo à terra de Canaá"(2). Lá (sobre)viveu em meio uma moldura humana multirracial de desenrascados e anónimos e em permanentes conflitos. Empregou-se com nove anos de idade nas salinas que cercavam a vila e depois numa mina de carvão, antes de terminar como empregado doméstico da exigente senhora Viola Rufner, esposa de um general do exército confederado. (1) Embora, por vezes, com algumas reservas, a maior parte da bibliografia consultada fixe como ano do seu nascimento, 1856. Porém, na sua autobiografia, o autor põe em hipótese duas datas mais tardias, 1858 ou 1859, sem mencionar o dia exacto nem o mês. (cfr. B. T. Washington, Ku Hluvuka…, 1953:7). Por aquilo que o autor recorda e nos contados seus dias em Franklin e Malden, somos induzidos a admitir como mais provável o ano de 1856. (*“E purasini” = numa plantação ou acampamento ou localidade?) (2) 1865, Abril – 9: data que marca o fim da Guerra Civil (Guerra de Secessão) nos EUA após 4 anos menos três dias. Cfr. Schoell, F. (1959):70. Para os Negros Escravos significava o fim (oficial) da era da escravatura e o começo duma era de liberdade, emancipação; era a “passagem” tão esperada quanto desejada. Daí a metáfora bíblica que Booker emprega.

Page 78: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

78

2. PERCURSO ACADÉMICO Du Bois passou por escolas importantes, tendo sido graduado pela Fisk University(3) aos 20 anos de idade (1888) e recebido o doutoramento em Filosofia pela Harvard University, aos 27 anos (1895), com uma dissertação intitulada “The Supression of the African Slave-trade to the United States of América, 1638 -1870"(4), publicada no ano seguinte.

Booker Washignton só conheceu a 1a escolarização em Malden e muito se valeu da

sua abnegação como autodidacta, a ponto de ele mesmo reconhecer que os

professores de Malden sabiam até menos do que ele. Com 16 anos de idade (1872)

partiu para o cobiçado Hampton Institute de Alabama, donde sairia já formado em 1875.

Retornando a Malden, dedicou-se durante dois anos à instrução escolar, ocupando-se

das crianças durante o dia e dos adultos, durante a noite. A eles ensinava a ler, a

escrever e a manejar até uma escova de dentes. Posteriormente ingressou o Wayland

Seminary de Washington D.C. (1878 -1879), mas nunca optou por se dedicar

exclusivamente aos estudos. Du Bois, ao contrário, teve uma sólida formação em

História e era preparado em Ciências Sociais. Dedicou-se, por quase 20 anos a

investigações sociológicas sobre os negros na América, resultando em 16 peças

monográficas publicadas entre 1897 e 1914.

3. PROJECÇÃO INDIVIDUAL

Booker Washington foi integrado, com 23 anos de idade (1879) no corpo de

instrutores do Instituto de Hampton, onde também foi nomeado chefe do dormitório

indiano e da Escola nocturna, além de ter sido aí secretário do General Samuel C.

Armstrong(6).

(3) Fisk University existia desde 1866 fundada a par de outras escolas para Negros, na Era da Reconstrução, isto depois da Guerra Civil. Faz parte deste grupo a Atlanta University de Geórgia (1869), Howard University de Washington, D.C. (1867), Hampton Institute de Alabama (1868) —cfr Scholl, op cit. p. 85. Mais tarde nasceu a Tuskegee Normal and Industrial Institute, fundada e dirigida por Booker Washington desde 1881 em Alabama. (4) N- A- "A supressão do tráfico de escravos africanos para os Estados Unidos da América, 1638 - 1870". (5) Cfr. The New Encyclopaedia Britannica, n0 5,15th Edition. USA -1975, 1075 -1076. (6) Samuel Chapman Armstrong era um branco. Tinha comandado um regimento de negros durante a Guerra de Secessão. Muito religioso desde a raiz (seu pai fora pastor Evangélico no Hawai), sentia campaixão dos negros, pobres e sem instrução (educação). Uma vez terminada a Guerra, fundou e dirigiu o Instituto de Hampton. Mais tarde confiou-lhe (i. é, a Booker Washinton) a missão de abrir o

Page 79: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

79

Por seu turno, Dr. Du Bois foi professor de renome na Universidade de Atlanta. Recebeu propostas para ingressar a máquina de Tuskegee, o que fracassou em 1902 após dois encontros infrutíferos com Booker Washington, em que este apareceu "tão perturbado e silencioso..."(7). Booker Washington tornou-se famoso não só pela dimensão do seu Instituto de Tuskegee, mas sobretudo pela sua intervenção na convenção de Atlanta (1895). Daí passou a ser (re)conhecido como educador e reformador e o mais influente porta-voz da Consciência Negra Americana entre 1895 e 1915. Du Bois foi o 1° Sociólogo negro americano e também o mais importante líder do protesto Negro na 1a metade do Séc. XX. Fundou o movimento Pan--Africano (Pan-Africanismo)(8) em 1900, o movimento do Niágara (1905) e o NAACP (1909)(9). Liderou o gabinete de pesquisas do NAACP e editou o magazine propagandístico desta associação (Crisis), tendo sido um homem bastante viajado e de grandes sessões, aparecendo sempre em defesa de ideais dos cidadãos negros da América. Ao contrário, Booker Washington só se deslocou uma vez à Europa, para ser laureado como "Master of Arts” pela Universidade de Cambridge(UK) em 1896, ao lado de personalidades da época, tais como o general Nelson Miles, o Reverendo Minot J. Savage, entre outros, e uma outra vez agraciado por amigos de Tuskegee. Foi o 1° Negro distinguido pelo Colégio Americano.(…) Foi também condecorado pela Darmouth College, nos EUA (1901).(10)

4. PERSONALIDADE: BOOKER T. WASHINGTON E WILLIAM EDWARD DU BOIS

Tanto quando sabemos de seus traços físicos é que ambos eram uns colossos, homens possantes e altos. O paradoxo porém consiste em que Booker Washington tinha todo o seu cabelo mas com toda sua barba cortada. Du Bois era calvo, no entanto, barbudo. A diferença essencial entre eles reside precisamente na personalidade de cada um:

instituto de Tuskegee. Morreu em 1896, semanas após ter visitado Washington no seu Instituto. Era velho e tinha os membros todos inutilizados, — Kuhluvuka., p. 119. (7) Cfr.Du Bois, op. Cit., p. 6. (8) Cfr. Du Bois, op. cit., p. 8; Eduardo dos Santos (1968): dedica toda uma obra sobre a questão (Pan-africanismo de ontem e de hoje). P. 6 (9) Em 1905, 29 intelectuais negros junto com Du Bois fundam uma Organização no Canadá, nas margens do Niágara. Recusavam-se a aderir ao programa de Washington e decidem-se a prosseguir na senda de john Brown e Frederick Douglass. Em 1909 nasce o NAACP, National Association For the Advancement of Colored People, uma organização já multirracial e que muito lutou pela igualdade de direitos, sobretudo entre os anos 1950 – 1960, no solo americano. (10) Cfr. Kuhluvuka,

Page 80: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

80

Booker T. Washington revela-se muito reservado e às vezes excessivamente cauteloso. Na hora das grandes discussões, longe de se envolver, refugiava-se no seu Instituto Tuskegee, onde se entregava obstinadamente ao trabalho e, na exaustão, recorria ao aconchego do seu lar , onde tinha esposa (Senhora Davidson) e três filhos (Portia, Davidson e Baker). Paradoxalmente, Du Bois pautava pela frontalidade e firmeza de carácter, revelava um espírito livre, jamais servil e quase indomável. Crítico sagaz e activista de iniciativa, tomou partido de um compromisso com a causa de seu povo humilhado por um passado de escravidão, um presente de segregação e um futuro tanto mais difícil de prognosticar, dadas as circunstâncias do próprio tempo. Booker Washington e Du Bois tinham ambos o dom da palavra.

5. OBRAS IMPORTANTES DOS AUTORES

Booker Washington publicou em 1901 a sua autobiografia intitulada Up From Slavery, uma espécie de “Best Seller” de então nos Estados Unidos e traduzida para cerca de 15

línguas estrangeiras, entre elas o Shangana. Na versão shangana intitula-se Ku Hluvuka Ku Huma e Vuhlongeni, tradução feita por Samuel Jonas Baloyi e publicada

pela Missão Suíça na África do Sul, em 1953.

Dois anos depois de Booker Washington ter lançado a sua autobiografia, isto é, em

1903, Du Bois apareceu também com o seu The Souls Of Black Folk, um

extraordinário "Best-Seller" que, em 1940, 37 anos depois do seu lançamento, já

contava 24 edições todas através da A.C.McCIurg & Co de Chicago. Também conheceu

outras edições da obra através da Blue Heron Press, da cidade de New York, das quais

tivemos em mão a de 1953(11). The Souls of Black Folk suscitou enorme interesse fora

dos EUA, na Inglaterra, Alemanha e mesmo Japão. Max Weber esteve com Du Bois na

Conferência de Atlanta (1904) e mostrou-se interessado em editar a obra em Alemão o

que não se verificou. Em 1937 houve esforços de Yasuichi Hikida, oficial do Consulado

Japonês em Nova Yorque, no sentido de publicar uma edição da obra em Japonês com

o título "The Negro Through Oriental Eyes", o que também não aconteceu.

(11) Esta edição foi limitada a 1000 exemplares apenas. Foi uma edição especial contanto que Du Bois, com ideias socialistas, era então vítima da Guerra Fria e do McCarthismo. – Du Bois, op. cit.

Page 81: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

81

As duas obras — Up from / Kuhluvuka e The Souls — constituem a base deste

trabalho, no entanto, há uma diferença de fundo entre as mesmas: enquanto a obra de

Washington constitui uma colecção daquilo que ousamos chamar "Lições para a vida",

uma catequese ou propedêutica de vida de estilo clássico, em que se salvaguardam as

virtudes cardeais e se condenam os pecados capitais de forma tão perspicaz e ténue, a

obra de Du Bois é o contrário disso; ataca e abala toda uma estrutura doutrinal

tradicional pela base e lança sementes, não de reforma, mas sobretudo de revolução

nas mentes dos Norte-americanos.

No terceiro capítulo da obra, com o título "Of Mr. Booker T. Washington and Others", Du Bois lança um ataque contundente mas coerente contra o tipo de educação social defendido e propagandeado pelo superior de Tuskegee, marcado pela resignação e acomodação face ao poderio do Homem Branco.

Em suma, a obra de Booker Washington (ku hluvuka) é fundamentalmente pedagógica de tipo clássico e a obra de Du Bois é marcadamente crítica.

Outras obras destacadas de Booker Washington são Tuskegee and its people (1885);

Putting the most into life (1906); Frederick Douglass (1907); The story of the Negro

(1909); My larger education(1911); The man farthest down (1912), entre outros escritos.

Du Bois também escreveu ainda as seguintes obras: Black reconstruction: an assay

toward a History of the part which folk played in the attempt to reconstruct democracy in

América [1860-1880], 1935; Dark of Dawn. An Assay toward an autobiography of a race

concept (1940); co-editou "Review of race and culture" (1940) e começou um Projecto

inacabado (1945), entre outros trabalhos.

Booker Washington veio a morrer aos 59 anos de idade, sempre em Tuskegee, Alabama (1915), defendendo ainda seu conservadorismo ferrenho, no entanto, sem a mesma aceitação dos anos idos. Du Bois, cansado das vicissitudes da vida na América, vítima da rejeição, como simpatizante das ideias de Marx e membro do Partido Comunista, refugiou-se no Ghana de Kwame Nkrumah (1961), renunciou a cidadania americana (1962) e morreu a 27 de Agosto de 1963, já ancião de 90 anos de idade.

Page 82: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

82

B — SEGREGAÇÃO (RACIAL) — DISCRIMINAÇÃO: APORIAS DA DEMOCRACIA AMERICANA l. O NORTE E O SUL PÓS-SECESSÃO

A vitória dos republicanos na Guerra de Secessão levou o Presidente Andrew Johnson e o Congresso maioritariamente de republicanos radicais, anti-esclavagistas e abolicionistas, a imporem-se pela força sobre o Sul, o que semeou um clima de terror, desordem e anomia nesta esfera do País. Contra a tendência de maior parte dos Estados Sulistas que votavam leis severas de repressão (códigos negros), ao abrigo das quais prendiam e puniam muitos negros libertos como vagabundos, o Congresso respondeu com uma lei em 1866 que declarava que os Negros eram cidadãos dos Estados Unidos e, como tais, tinham o direito a um tratamento igual à luz da lei (cfr. Schoell, op. cit., 77). No ano seguinte, impõe uma ocupação prolongada aos Estados rebeldes do Sul por forma a estancar a forte sabotagem à lei, seguidamente, instaura o direito de voto aos Negros e, em 1869, a (…) emenda constitucional dispôs que os negros eram cidadãos dos Estados Unidos, resgatados ao mesmo título de cidadãos americanos, e frisava, a 15a Emenda constitucional que “O direito de voto dos cidadãos americanos não será suprimido ou limitado pelos EUA em nenhum Estado, sob algum pretexto de raça, de cor ou de servidão anterior". (Ibid,78)

Em suma, entre 1866 e 1875, o congresso tentou proteger os negros contra

intimidações; procurou garantir-lhes o direito de voto e o de propriedade, além de livrá-

los do trabalho forçado a fim de que gozassem de todos os direitos de cidadão.

No entanto, o que traiu os esforços do Congresso e minou as relações entre Brancos e Negros foi a luta encarniçada entre republicanos gananciosos e os irredutíveis plantadores do Sul, estes agastados com certo paternalismo dos primeiros em relação aos Negros — nasceram em consequência sociedades secretas de xenofobia e crime organizado, como a ku-klux-klan(4), os Cavaleiros da Camélia Branca, de brancos exaltados e ameaçados por dois motivos:

(4) Ku - klux - klan, organização secreta nascida em Pullaski, Tennessee. Promovia intimidação sistemática contra os Negros para os afastar das urnas eleitorais. Os membros usavam máscaras e distintivos próprios, segundo títulos hierárquicos e, durante as rusgas nocturnas, matavam e aterrorizavam — Cfr. Schoell, Op. 86; Ku hluvuka. p. 53,54,55.

Page 83: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

83

Primeiro, o desfecho inglório na guerra de secessão e depois a nova tendência de progresso dos seus antigos escravos. Booker Washington chama a Linchagem de "mau costume de esquartejar uma pessoa até morrer". Um branco que era capaz de fazê-lo a um Negro, sê-lo-ia capaz de repeti-lo também contra outro Branco. (ku hluvuka, p. 132). Du Bois reconhece o esforço de Washington contra a Linchagem, mas as consequências do compromisso de Atlanta andavam posteriormente associadas a este fenómeno de que eram vítimas sistemáticas, Negros de tendências políticas abertas, e pelos anos subsequentes.

2. O ÊXODO, A EVASÃO E A ILUSÃO

Perguntar-nos-emos da reacção imediata dos negros após a proclamação da

emancipação (5): Sem dúvida, uma explosão selvagem de alegria nas ruas das cidades e

vilas e nas plantações. No entanto, provou-se mais cedo do que tarde a amargura da

experiência da emancipação, o preço caríssimo da liberdade — muitos Negros libertos

ficaram sem terra, sem dinheiro e nem amigos, à mercê do frio, do calor e da fome, apenas

com a força de trabalho nos braços. Foi uma página negra na história dos Negros nos

Estados Unidos da América.(6)

Eclodiu então um fenómeno de migrações interiores: muitos trocavam o campo pela cidade

e outros partiam do Sul em aventura para centros industriais do Norte como Atlanta,

Birmingham e Nova Orleães, onde havia salário e possibilidades de ganhar a vida melhor

que no Sul. Deixavam então para trás a semi-escravidão do Sul e a triste vida em grupos

compactos, desorganizados e isolados.

(5) A Emancipação dos Negros foi proclamada em três tempos:

(lª) em 1862 (22/ Setembro) como promessa: para l de Janeiro de 1863; (2ª) a l de Janeiro de 1863, com Abraham Lincoln a prodamar a emancipação universal e definitiva em Boston, na Igreja Baptista de Tremont Temple e,

(3ª) sob forma da histórica 13a emenda constitucional de 18 de Dezembro de 1865: "Nenhuma escravatura nem forma de servidão involuntária, excepto em caso de crime em que o acusado será considerado culpado, poderá existir nos Estados Unidos da América e em nenhum lugar sob sua jurisdição" — Schoell, Ibid, 71 - 72. (6) Booker Washington descreve a penúria total do Sul no Capítulo IV da auto-biografia, o facto sobretudo da falta de auto-disciplina no Negro, que estava sempre endividado. Os antigos proprietários e os antigos proprietários e os alforriados mudaram as relações de trabalho e firmaram novos contratos em que o proprietário fornecia terra, habitação e um mínimo de víveres e equipamentos para sobrevivência do "tâcheron"/ "metayer"/ “tenant”. Resultado: este contratado (Negro) sistematicamente contraía dívidas em crédito para suprir as suas inúmeras necessidades. Por falta de pagamento, caíram muitos na semi-escravidão, num nível económico baixo — Vide também Schoell, op. cit. 97 -100; Du Bois, op. cit. 56.

Page 84: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

84

Para frente lhes esperavam certamente trabalhos menos duros nas cidades, mais segurança, anonimato, tranquilidade psicológica, escolarização melhor para as crianças

e certo sentimento de progresso ou promoção. Este movimento migratório, que teve

razões razões económicas de peso, acabou se revestindo do sentido religioso do Êxodo

bíblico, interpretado pelos próprios Negros ora como "A fuga do Egipto", "A evasão da

Escravatura", ora como "A partida para a terra Prometida", "A marcha para o país de

Canaá"(7) — Eram os negros a incarnar a figura de Povo sofredor, torturado e

humilhado, durante quatrocentos anos por outro povo estrangeiro, como acontecera

com Israel na diáspora do Egipto. O Mississipi tomou a figura do Mar Vermelho e,

durante a sua travessia, ecoava em cada garganta humana o grito de Moisés

ordenando o Faraó: Let My People go! (Deixa meu povo ir!). Mas no fim da travessia, à

frente, as dificuldades eram ainda maiores nos ghetos de Nova Yorque e pelas outras

cidades industriais do Norte, de sorte que a desilusão, a frustração e o desespero

estavam mais perto do que a realização dos sonhos que traziam consigo milhares de

Negros oriundos do Sul.

3. A SEGREGAÇÃO PROPRIAMENTE DITA

Desde (,,…) que se acham os primeiros alforriados legais na Virgínia, até à abolição do tráfico (1863), o número de escravos libertos cresceu gradualmente, tanto no Norte como no Sul, sobretudo durante o meio século de 1790 a 1860(8). Os livres tinham geralmente melhores oportunidades, relativamente aos (ainda) escravos e alguns tinham-se tornado igualmente Senhores Negros de escravos Negros(!)(9); no entanto, em função da sua raça ou cor, todos eram vítimas duma cerrada segregação (entenda-se exclusão) social, na escola, no emprego, nos transportes públicos, nos restaurantes e casas de cinema e mesmo nas igrejas. (7) A Terra Prometida para milhares de negros escravos do Sul era a Norte da linha Masson - Dixon, nos Estados livres da União e/ ou no Canadá (Wells, D: 1993,13). De 1890 a 1900, 32% de negros estavam nas vilas do sul e 10 anos depois eram 35%; de 1916 a 1918, meio milhão de Negros tinham emigrado do Sul para o Norte, com apoio sempre de cúmplices brancos (scalaways) e de ex-escravos ora sediados no Norte – Schoell, Ibid, 127 – 130.(8) Em termos numéricos, fala-se então de 60 mil a 250 mil libertos no Sul e 230 mil outros no Norte – Schoell, Ibid, 50. (9) Charleston da Carolina do Sul tinha 132 Negros proprietários de Escravos Negros, constituindo eles uma nova elite social – Ibid, 50.

Page 85: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

85

Essa exclusão ou rejeição foi vivida tanto por Booker Washington como por Du Bois. Seus esforços materiais e suas energias cerebrais foram empregues numa luta contínua e tenaz contra este mal existencial que (ainda) perdura.

Historicamente, em Abril de 1877, Hayes completava a retirada das últimas tropas federais no Sul, nomeadamente da Carolina do Sul e Louisiana — era o reconhecimento da derrota republicana nos estados situados a baixo da linha Mason-Dixon e o complemento da retomada do poder pelos racistas democratas de supremacia branca. Para os Negros, essa exclusão ou rejeição foi vivida tanto por Booker Washington como por Du Bois. Seus esforços materiais e suas energias cerebrais foram empregues numa luta contínua e tenaz contra este mal existencial que (ainda) perdura.

Historicamente, em Abril de 1877, Hayes completava a retirada das últimas tropas federais no Sul, nomeadamente da Carolina do Sul e Louisiana — era o reconhecimento da derrota republicana nos estados situados a baixo da linha Mason-Dixon e o complemento da facto teve um significado pesaroso: constituiu um autêntico revés na concepção de sua emancipação e nos esforços pela sua igualdade de direitos com a camada branca — uma vitória inelutável do racismo e do "apartheid" brancos, e uma vez mais o malogro dos sonhos da população negra nos Estados Unidos.

3.1. A Segregação Escolar

Esta constituía o principal veículo da restante exclusão social e política. Em princípio, os Negros não tinham direito explícito à instrução; no entanto, a partir dos anos 30 do séc. XIX, nasceram as primeiras escolas erguidas por Negros para seus filhos (10).

Ao esforço dos negros nos Estudos, o Ostracismo dos brancos do sul respondia com medidas tais tendentes a afectar negativamente esse progresso da Instrução dos Negros: quando os adultos se aperceberam que a sua condição racial determinava de antemão seu estatuto de servidão, independentemente de ser-se ou não instruído, então a escola perdeu algum prestígio.

(10) Tais escolas eram um fracasso e um ridículo segundo Du Bois (op. Cit. 44); Booker Washington verificou mais tarde uma qualidade deplorável das pessoas apesar dessas escolas existirem antes da era de Tuskegee Institute e outras. Notou que as crianças tinham muito pouco tempo na escola e não tinham material didáctico (livros de leitura) – Ku hluvuka, 68…

Page 86: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

86

Era a expressão da sede do saber e da ambição dos Negros em diminuírem o véu de ignorância, para se tornarem em cidadãos esclarecidos e provarem desse modo serem efectivamente Homens, mulheres, verdadeiramente pessoas, tanto quanto se sentiam os brancos.

Cinquenta anos depois da emancipação, os progressos eram então mais que evidentes e surpreendentes; os negros tinham invadido as escolas e provavam suas capacidades no domínio dos conhecimentos e asseguravam por si mesmos a educação de seus filhos. Entretanto, o decreto do princípio "Separate but equal" pelo Tribunal Supremo em 1896, embora tenha assegurado um progresso constante da escolaridade das crianças negras, fê-lo porém em ritmo lento, tanto quantitativa como qualitativamente, até cerca de 1915, em resposta à proposta de Booker Washington. No começo da década 20 já se achavam escolas bem integradas mesmo em Harlém, o bairro negro mais populoso em Nova Yorque. 3.2. A Segregação Racial Nas Igrejas Foi ela que conduziu à constituição de novas Igrejas negras separadas, sobretudo

cinquenta anos após a Guerra Civil, primeiro em Delaware, Pensylvania e Ohio (Norte

dos EUA) e depois também no Sul através dos novos libertos. A proliferação destas

igrejas protestantes, nomeadamente a Presbiterana, a Congregacional, a Metodista e a

Igreja Baptista e suas numerosas seitas causou um autêntico caos religioso no qual

imperava impunemente uma aspiração de Liberdade. Aos poucos, estas igrejas se

agruparam e constituíram a Igreja Negra, Instituição religiosa e social importante para

as esperanças dos afro-americanos mas cujos pastores negros perderam prestígio nos

começos do séc. XX, por não exercerem uma influência social ao nível do que as

massas populacionais negras queriam, a favor do aumento do número de eleitores

negros.

3.3. A Exclusão Do Sufrágio O direito de voto, pressuposto de base para a equidade social e política entre os

cidadãos nos Estados Unidos foi um pretexto para a exclusão dos Negros desse

mesmo direito fundamental.

Page 87: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

87

Se durante os primeiros tempos da Emancipação, sob apadrinhamento dos republicanos que buscavam alicerces e riquezas no Sul, promovendo e apoiando sobremaneira iniciativas abolicionistas ou anti-esclavagistas, os Negros então aprenderam o ABC do uso do voto em Democracia — graças aos Carpet - Baggers(11) — e chegaram mesmo a exercê-lo para candidatos negros a cargos governamentais(12), depois dos acontecimentos de 1877, os Negros passaram a ser sistematicamente proibidos de exercer seu direito de voto conquistado 11 (onze) anos antes através da 15a emenda constitucional (1866). Para o efeito, as estratégias empregues foram a violência, a fraude eleitoral ou a redacção artística das leis.

Fundamentalmente, as leis então votadas a Sul da linha Mason - Dixon, visavam interditar às urnas o maior número possível de Negros e o menor possível de Brancos — Eram leis irritantes que causavam estupefacção dos Negros instruídos. Franck Schoell seleccionou algumas tremendamente paradoxais(13):

• O eleitor devia saber ler e escrever — mas em 1880, 70% de Negros eram analfabetos e em 1910 subsistiam ainda 30% deles (!);

• O eleitor devia possuir bens avaliados em pelo menos 300 dólares ($300) e com o imposto pago sobre tais bens, além do pagamento devido do imposto de capitação (Poll-Tax) — mas antes de 1863 (data de abolição universal da Escravatura) os negros não tinham nenhum direito de propriedade e, depois desse período, eram vítimas regulares da concorrência económica;

(11) Os Carpet-bagers eram civis do Norte, adeptos do Partido republicano. Depois da guerra de secessão desceram ao Sul com maletas vazias para extorquir os pobres. À procura de influência e ganho fácil, encostaram-se praticamente aos Negros, contra os antigos Senhores; patrocinaram escolas Para Negros, ajudaram o Negro nos negócios e no jogo político (exercício do Voto em Democracia) –Schoell, Ibid, 82 – 83. (12) Schoell atesta que havia em 1871, 55 deputados negros na Camara do Mississipi, e fornece uma lista da qual consta Blanche Kelso Bruce, também focado por Booker Washington (op. Cit, 56), senador republicano (?), juntamente com Lucius Quintus Cincinnatus Lamar, pelo Mississipi, durante 6 anos (1867 – 1881) – Schoell, Ibid, 84. (13) Schoell, Ibid, 90

Page 88: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

88

• O eleitor devia ter uma ocupação regular — muitos Negros porém eram jornaleiros no desemprego ou meros trabalhadores anónimos; • Todo descendente de soldado da confederação tinha direito "ipso facto" de voto nas urnas. Este privilégio não tocava nenhum Negro e, ao contrário, favorecia até brancos indigentes;

• Podiam votar pessoas de boa vida e modos (carácter) exemplares, aqueles que cumpriam os deveres de cidadão — ora, como poderiam os excluídos/revoltados (Negros) ser considerados cidadãos honestos e exemplares?

• Podiam ser inscritos os cidadãos ou descendentes de cidadão que tinham votado em 1867 e 1869 ou mais antes ainda, caso se apresentassem dentro do prazo —mas só beneficiaram desta chamada cláusula do avô, brancos de toda estirpe!

• Podia votar todo aquele que compreendia os artigos da Constituição Federal, examinado pelo "registrar" — ora, quantos Negros eram então capazes realmente de tal proeza, comparativamente aos brancos de tradição escolar?

Boker Washington olhava então para esta tela de cláusulas legais (uma ilegalidade legalizada) como um espectro de exclusão dos Negros do convívio político; em seguida, fitava o ambiente em redor e via (pois) Brancos gordos de todos os poderes soltando risos trocistas e carregados de sarcasmo, e uma massa de Negros desesperados, famintos, ignorantes, desempregados e andrajosos, com seus poucos intelectuais também rejeitados; acto contínuo, num gesto de resignação, Booker Washington virava os olhos em direcção à sua "Oficina" de Tuskegee: dando dois passos, convidava então a multidão de Negro, mulatos a seguirem atrás de si.

— "Não/ Nunca!" — surgia do meio deles o jovem Du Bois, com os olhos encolerizados e que cuspiram fogo para todas as direcções, reprovando com palavras duras e coerentes, acompanhadas de gestos firmes, contra todas aquelas absurdidades políticas de uma Falsa Democracia, estampadas aos olhos dos Norte-americanos e do Mundo inteiro. De imediato, Du Bois pôs-se a apedrejar a tela e convidou a todos (Negros, Mulatos e até Brancos de bom senso) a seguir o mesmo exemplo. Então a incredulidade caiu sobre os trocistas Brancos enquanto muitos outros Negros da multidão levavam tempo a compreender o gesto atrevido do jovem Du Bois.

Page 89: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

89

4. CIRCUNSTÂNCIAS DA AMÉRICA NOS TEMPOS DE BOOKER WASHINGTON E DU BOIS

O território actual dos Estados Unidos da América não teve sempre as mesmas dimensões nem a mesma composição humana (antropológica-racial-cultural) que hoje apresenta. Fruto de um passado colonial marcado pelo tráfico de escravos, de que foi o principal epicentro a nível global entre a primeira metade do séc. XVII e a segunda do séc. XIX, o território conheceu metamorfoses que ditaram inexoravelmente o rumo de sua História posterior, seja a nível da sua evolução antropológica, seja a nível do desenvolvimento e progresso (material e espiritual) no tempo. Booker Washington viveu pouco mais que metade de um século (59 anos), entre a segunda metade do séc. XIX e o primeiro quartel do séc. XX. Du Bois viveu quase um século inteiro (90 anos), sendo grande parte da segunda metade do Séc. XIX, toda a primeira metade do séc. XX e mais a década seguinte e pouco mais... De comum viveram e enfrentaram corajosamente a segregação, a discriminação, sob diversas facetas. É a crise de negação da humanidade negra pela privação e soberba brancas, à qual Booker Washington deu uma resposta “sequitur" de acomodação e resignação e Du Bois deu uma resposta "non-sequitur” de exigência de auto-afirmação, auto-respeito, auto-determinação da humanidade de raça Negra, de forma progressiva e peremptória. Vamos por ora expor e analisar os que consideramos eixos principais da História dos Estados Unidos segundo uma perspectiva pretensamente descriptivo-fenomenológica: A—DA TRANS (IM)PLANTAÇÃO ÉTNICO-CULTURAL À ESCRAVATURA: A EPIFANIA DUMA MENTALIDADE HOMICIDA.

l. INDIOS, EUROPEUS E AFRICANOS/ESCRAVATURA

América é originariamente terra dos "pele-vermelha", os índios, (assim chamados por perpetuação de um erro histórico cometido por Colombo, desde 1492). Povo de várias tribos — Atabascos, Algonquinos, Iroquois, povos do Sudeste, Sioux e Shoeshones — eles contentavam-se da sua agricultura (produziam muito milho), da pesca e da caça desportiva do bisonte. Com o advento do Europeu-colonizador, o destino dos pele-vermelha seria a condenação por não serem europeus. Bartolomeu de las casas (1484 - 1566) tentou evitar a morte dos índios, mas só logrou mudar-lhes de cemitério: A partir de 1661 (data da ratificação da escravatura na Virgínia) passariam os índios a

Page 90: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

90

jazer nas minas e na construção de fantásticas metrópoles coloniais. Nas plantações de algodão, de milho, de tabaco, de cana, estaria o escravo negro, trazido de África. Ainda no primeiro quartel do Séc. XVII, chegaram os primeiros deportados africanos na América, e entraram através de Jamestown, a primeira Colónia Inglesa na Virgínia, e seu destino era Flórida, Texas e Novo México [cfr. Schoell (1959):13]. A ratificação legal da escravatura (1661) e o "privilégio de Assiento" engrossaram o volume do tráfico no séc. XVIII e, mesmo a interdição legal de 1808, não fez senão uma mera passagem do tráfico legal ao tráfico ilegal, ainda mais lucrativo até às vésperas da Guerra Civil em 1860.

Booker Washington testemunha que, para o Negro, a situação era pior— mesmo o índio dispensava-lhe um tratamento de desprezo (ku hluvuka, 62), mas quem era o Índio e quem era o Negro diante do Colono? — Eram não-europeus e apenas isso bastava para partilharem da mesma sorte diante do mesmo "Senhor". No auge da escravatura (1860) havia proprietários de escravos dos dois sexos, o que favorecia cópulas geradoras de mão-de-obra quase gratuita (Schoell, op. Cit.,18)* — A sede do ganho e do lucro, transformou residências e propriedades senhoriais em laboratórios genéticos, em busca também de qualidade. Desde o século XVII que eram frequentes cruzamentos genéticos hetero-raciais, primeiro, entre brancos e índios, depois, entre negros e índios e mais tarde, entre brancos e negros, e o fenómeno de miscigenação cresceu no Séc. XVIII. Brancos-Índios-Negros; Poder e jugo: Amor (?!), gozo, frustração, sexo e estupro legal, fazem emergir, contra certas leis sociais, uma nova espécie humana que, nas feições e no carácter, a um tempo se aproxima e se distancia dos seus ascendentes de raça. Frederik Douglass, Booker Washington, Du Bois, Langston Hughes, entre outros mulatos, a seu tempo, cientes do seu hibridismo buscam a própria identidade, personalidade e dignidade humanas nos Estados Unidos. (Parece mesmo que a segregação racial é uma doença sem futuro!) (*) Lê-se no original francês: “Aussi bien, à 1'apogée de 1'esclavage, lorsque le prix du bétail humain eut une tendance soutenue à s’élever, les copulations génératrices de main-d’oeuvre quasi-gratuite furent favorisées de tout les manières par les propriétaires d’esclaves des deux sexes".

Page 91: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

91

2. INDEPENDÊNCIA E CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS Em 1776 foi proclamada a independência dos 13 (treze) Estados Americanos que constituíam o núcleo primitivo da colonização, mas a Inglaterra só a reconheceu em 1783. (l9) A Escravatura explodiu, tornou-se mais severa nos códigos. Afirmavam pois o direito absoluto de posse de dominação, pelo uso da força, dos Senhores sobre seus escravos (Negros), reduzidos estes a uma obediência rigorosa e à passividade "religiosa" — o escravo estava interdito de circular livremente à noite; de se reunir com outros escravos; estava sujeito à repreensão nas rebeliões colectivas, à prisão, à tortura, à condenação à morte nos tribunais. Por lei, era um crime, qualquer tentativa de instruir o negro escravo, como sinónimo de instigá-lo à revolta e a ser esperto (20).

Schoell apresenta medidas constitucionais de 1789 (21) que então beneficiavam o tráfico efectivo de escravos, estabelecendo que:

• A repartição dos representantes parlamentares e das taxas directas entre os diversos

Estados só seria efectuada segundo o número específico de seus habitantes, o qual era determinado pela junção ao total de pessoas livres, de 3/5 de todas as outras pessoas, (sem dúvidas, os escravos africanos!) — Art° 1°, Secção 2;

• O Congresso não proibiria antes de 1808, a migração ou importação de tais pessoas (outra vez escravos africanos!) cuja admissão parecesse conveniente aos Estados então existentes, impondo no entanto uma taxa de importação de 10 dólares por cabeça — Art° 2°, Secção 9;

• Ninguém em serviço num Estado poderia livrar-se do mesmo ou refugiar-se em outro Estado não fosse exclusivamente por reclamação daquele a quem devia serviços — Art°. 4°, Secção 2, parágrafo 3.

Ora, como interpretar esta destrinça constitucional?

19 - A Guerra de Independência dos Estados Unidos opondo a Inglaterra aos colonos rebeldes decorreu entre 1775 e 1783, no entanto, já tinha sido assinado em 1776 a Declaração da Independência das 13 colónias: New Hampshire, Massachussets, 20- cfr. ku hluvuka, 53-55; Schoell, op. cif, 24-25). 21- Rhode Island, Connecticut, New York, New Jersey, Pensylvania, Delaware, Mariland, Virgínia, North Carolina, South Carolina e geórgia.

Page 92: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

92

Primeiro, parece evidente que a constituição então reconhecia uma inferioridade ontológica (isto é, de ser) nas pessoas escravas (escravos negros em particular) e, Segundo, então autorizava o seu tratamento como mercadoria de negócio especialmente rentável, como bens de propriedade úteis e como mais-valia segura na produção e na economia dos Estados. Mas, desse modo, a constituição era por demais coerente, em função do propósito inicial do tráfico — Se os escravos tinham seus donos, era seu dever servi-los como a seus Senhores, não passando por meros bichos de estimação! — Doravante, o destino da raça Negra (africanos e seus descendentes) nos Estados Unidos estava traçado. A morte como uma espécie humana reconhecida como tal, e o seu ressurgimento como algo coisificado, máquina e instrumento nas mãos dos verdadeiros homens, conquistadores e dominadores de Raça Branca, (pre) potentes e sempre cheios de ambição. Aos Negros restava apenas a humilhação e a dor, na dura servidão de sonhos alheios. 3. A GUERRA DE SECESSÃO Veio pois a Guerra de Secessão (Guerra Civil) entre o Norte (união / federação) e o Sul

(confederação) como corolário inevitável de duas posições mutuamente opostas, baseadas em diferenças sócio-políticas, económicas e de mentalidade, sob a divisória Mason-Dixon(22). No centro da questão estava o escravo Negro, por um lado, elemento-chave na economia rural do Sul e, por outro, considerado já desnecessário e supérfluo nos esquemas de uma (nova) economia industrial e capitalista que soprava a partir do Norte. O desfecho deste evento crítico foi a promessa de tempos novos de liberdade e de emancipação para os afro-americanos. Mas... poder-se-ia confundir de antemão essa mera promessa com o miraculoso re-surgimento do Phoenix; ou antes, que estava ainda por vir? (22) Nos EUA, o Norte e o Sul estão limitados pela Linha Mason-Dixon. Aquando da Guerra de secessão, os dois blocos antagónicos estavam assim organizados: A- Confederação do Sul - Carolina do Sul, Flórida, Geórgia, Texas, Louisiana, Mississipi, Virgínia Oriental, Arkansas, Tenessee e Carolina do Norte. A capital era Richmond, Virgínia. B— União / Federação do Norte — Novo México, Indiana, Missouri, Kentuky, Colorado, Kansas, Nebraska, lowa, Illinois, Ohio, Virgínia Ocidental (desde 1863). A capital era Washington , D.C.

Page 93: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

93

LIBERTAÇÃO E PROGRESSO NA SUBMISSÃO — B. T. Washington Por ocasião da Exposição Internacional dos Estados Algodoeiros do Sul, a 18 de Setembro de 1895, em Atlanta, Estado da Geórgia, Booker Washington, superior do já famoso Instituto Tuskegee, surpreende toda a América, mergulhada então na sua Questão Social de fundo (Questão Racial), com uma proposta de Conciliação — reforma nos hábitos, nos costumes e na mentalidade dos americanos. Ele faz um apelo à aproximação mútua e à salutar cooperação entre as diferentes raças que compõem o tecido social dos Estados Unidos, tudo em função do Progresso conjunto, rumo a uma Nova América. Mas a proposta de Booker Washington inclui uma paradoxal cláusula política / racial: Ele promete que os cerca de 8 milhões de Negros (Africanos-Americanos), com os seus 16 milhões de braços, vão abdicar das suas reivindicações políticas e sociais, para constituírem a 3a parcela (= 3° escalão) de cidadãos; leais e submissos e inteiramente consagrados ao trabalho e à promoção da paz e do progresso na (nova) América.

Assim formulou a sua tese: (1)

«Em todas as coisas puramente sociais (a) nós podemos ser tão distintos (b), tanto quanto os (cinco) (c) dedos, no entanto, sermos uma e única mão (d), nas coisas essenciais ao progresso comum.»

No discurso ( - compromisso) de Atlanta e nos eixos principais do pensamento de B. Washington, encontramos binómios (quase) invariáveis e centrais — Liberdade/ Liberta- (1) Vide, Kuhluvuka, p-100; Du Bois (op. Cit, 42), Schoell (op. cif, p. 118), Dos Santos, Eduardo (1968): 71. São diferentes versões da mesma tese, de acordo com os autores, mas o fundo (=conteúdo essencial) mantém-se único. (a) "Puramente sociais", lê-se nas versões de Dos Santos, Schoell, Du Bois...; na versão Shangana-Tsonga se lê inteiramente "E Ka swa ku hlangana ka vanhu (...)", isto é, Nas Questões de convivência Social (= entre os homens/as pessoas) sentido aparentemente mais próximo e claro. (b) Distintos = diferentes, separados, diversos,... segundo a complexidade e a particularidade de cada um e de cada outro. (c) O numeral "cinco" encontra-se, entre as 4 versões citadas, na de Du Bois. (d) A versão Tsonga frisa mesmo a ideia de um punho cerrado:"tani hi loko xandla xi hlanganisile tintiho", isto é, sermos um só (= unidos) como os dedos em punho.

Page 94: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

94

Cão - Submissão /Opressão;(2) Progresso/Avanço — Retrocesso/Estagnação/Taralisia de esforços" (3) — cujo entrosamento dialético acha nas relações sociais (político-económico-jurídicas), definidas estas (ainda), pelo padrão racial na Américaí(4), o seu ponto de partida e de chegada. Vamos perseguir o sentido profundo da (antí)tese de Booker Washington segundo um procedimento hermenêutico. Termos Chaves: Liberdade e Práxis da liberdade (— Libertação) Os burgueses do séc. XVIII conquistaram para os indivíduos as liberdades formais, consagradas nas Constituições dos Estados em progressiva democratização, a partir dos ideais de Liberdade—Igualdade—Fraternidade. No século XIX, porém, as circunstâncias fazem emergir as liberdades reais (=concretas) —Liberdades económica intelectual, social e política — em oposição à liberdade metafísica, moral, interior/psicológica, individual e numa ênfase cada vez mais elevada. Destas, a Liberdade social e a Liberdade política constituem o conjunto das condições de libertação; a primeira, como referente às relações entre pessoas ou grupos humanos (Cfr. Polis, n° 3, P. 1116), transcende a simples propriedade do acto individual (i. é, a Liberdade individual), porquanto incapaz esta de explicar a passagem do Estado Natural para o Estado Civil (i. é político), vista em Hobbes como uma ruptura, mas igualmente uma continuidade em Spinoza. (A América deste Período padece das suas próprias aporias sociais-políticas, que paradoxalmente se confunde com o estado natural...). É no contexto da Liberdade Social que se pode achar a Liberdade Política, uma subclasse da primeira, e que é, segundo Hayek, «o sector da liberdade que estende ao homem a possiblidade de participar na escolha do próprio Governo, no processo da Legislação e no controle da administração». (In Polis, n° 3, P. 1117); mas não há necessidade de confundir os conceitos de "povo livre" e "povo de homens livres", que são diferentes entre si (5).

(2) Booker Washington não emprega de forma explícita o termo Submissão ou Opressão (pelo menos na versão Tsonga / Ku hluvuka), enquanto faz a proposta de resignação dos Negros; mas emprega o equivalente "Hi ta mi fela" (— morreremos por vós), não menos comprometedor. Em muitos casos, esses conceitos estão subjacentes aos actos de fala de que faz uso ao longo do texto do discurso de Atlanta e, em geral, de toda a obra (Ku hluvuka). (3) Paralysis of effort, Vide, 2° período do último parágrafo do texto de Du Bois, op. Cit. 45. (4) Raça Branca — Raça Negra, o binómio fundamental que subordina a si os restantes, dada a dimensão do conflito existencial entre o Branco e o Negro na América deste período. Entre estes cria-se uma simbologia de referência tal que o White (anglo-Saxão) designa ser superior, evoluído, e o Negro, Black ou Nigger designa, real ou pejorativamente, o sinónimo de ser inferior, atrasado, bruto. (5) Povo livre = povo soberano; Nação juridicamente independente e autónoma em relação às outras, e, portanto, passível de ser sujeito do seu próprio destino temporal. Mas, povo de homens livres, parece um

Page 95: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

95

A Liberdade Política implica (pois) os indivíduos considerados na categoria de cidadãos, e remete a sociedade ao império da Lei (= Estado de Direito) pois, tanto no plano político (Locke) como no plano da moralidade (Kant), o princípio fundamental é que onde não há lei não há liberdade. O indivídulo-cidadão só é efectivamente livre enquanto cumpre com -os ditames da lei pois, a liberdade implica necessariamente, para um cidadão, direitos (= privilégios) e deveres (= obrigações).

Mas, como entender o conceito de liberdade? Por etimologia, liberdade deriva do latim

libertate, como condição de ser aberto à acção livre, consoante as leis da sua natureza,

da sua vontade ou da sua fantasia; entende-se também como condição de possibilidade

de algum sujeito realizar (sem coerção ou impedimentos externos) os próprios desejos e

aspirações. Modernamente, a Liberdade entende-se como um "conjunto de condições

de libertação" (polis, n° 3, 1115); seja, a satisfação das necessidades elementares ou de

sobrevivência mínima do indivíduo ou do conjunto social.

Em suma, o conceito de liberdade, depois do séc. XIX, está em correlação íntima com o conceito de libertação. Esta é, em outros termos, a praxis da própria liberdade; o processo dialéctico de materialização da liberdade (assunto que podemos remeter a Marx).

1.2. Liberdade — Progresso/Avanço

A liberdade humana consuma-se finalmente com a Praxis (praxis social). A ela e à racionalidade se deve qualquer forma de progresso humano. O conceito de progresso deriva etimologicamente, de Gressus (= passo) e pro (= para diante), termos latinos e cujo significado literal é "Passo para diante", que Booker Washington denomina com precisão e insistentemente como um Avanço (= Kuya e mahiweni), dado de forma gradual na escala evolutiva dos indivíduos, do conjunto social e/ou de suas partes (instituições).

No Séc XVIII, esta ideias atinge seu apogeu, com a filosofia das luzes, dando azo ao surto do desenvolvimento técnico-científico do Renascimento (C. XVI - XVII), criando o mito do homem super-dotado, mentor e realizador dum macro-projecto de progresso indefinido e universal, da humanidade inteira(6). Este progresso (material / real) domina pois, na essência, o pensamento moderno, chegando a ser identificado em suas manifestações com a felicidade ideal.

Page 96: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

96

2. HERMENÊUTICA DO PENSAMENTO BOOKERWASHINGTONIANO 2.1. VISÃO DE BOOKER WASHINGTON: (CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADE DO

PROGRESSO PARA A NOVA AMÉRICA) [As ideias culturais do Ocidente, i.é., da Europa, penetram nos Estados Unidos através do Norte de Mason — Dixon, cujo "espírito nacional" é manifestamente aberto à cooperação externa e igualmente flexível às mudanças, rumo ao progresso. O pragmatismo será justamente fruto desse compromisso histórico-filosófico demonstrado por Dewey e seus condiscípulos na América a partir do séc. XVIII...]. Booker Washington concebe acima de tudo uma ideia de progresso comum, generalizada para a totalidade dos americanos, independentemente das suas diferenças particulares. O pressuposto de base é que todos (eles), elevados à categoria de cidadãos, são consequentemente sujeitos legítimos de direitos e deveres e devem pois pautar por uma sã convivência, esquecidos das mágoas e conflitos do passado anterior a 1895(7); devem pensar na possibilidade duma situação nova, uma América de Paz e Progresso fundada na base de cooperação entre os actores sociais. "Descei O Balde"(8), é o princípio vital que Booker Washington busca inculcar em cada particularidade americana/ para uma hermenêutica da situação — da passagem de negatividade para a positividade nas relações sociais-políticas-ecómicas (relações humanas na América); é um apelo à cooperação (co-laboração) entre as partes diversas dum todo relacional (América do Norte —Amerika wa N'walungu / EUA—com as suas instituições envolvidas num dinamismo de relações "inter"), o que supõe uma aproximação-comum (comunhão) necessária das dimensões antropológica, política e social, na única dimensão histórica do progresso humano, material e espiritual. (6) É, sem dúvida, o espectro da utopia corrente de mundialização do progresso; em outros termos, o evento da actual globalização mundial que gera, simultânea e necessariamente, globalizantes (Nações/Estados ou grupos economicamente poderosos) e globalizados (Nações/Estados ou grupos económicos fracos), isto é; dominantes (Norte) e dominados (Sul), numa ordem Económico-Política Global ou restrita (num país: Os fortes que se impõem aos fracos). (7) “Não devemos permitir que aquilo que no passado nos impediu o Avanço (progresso) continue ainda hoje a prejudicar-nos" — Cfr. Kulhuvuka, 100. (8) B. T. Washington usou no discurso de Atlanta —— uma alegoria para explicar a situação de cada parte da totalidade Americana. "Colocou" dois barcos no alto-mar, sendo um em apuros, e o outro apto a socorrer. Do barco em apuros se ouvia o clamor insistente de pedido de água, repetidas vezes; mas a resposta do outro era sempre a mesma: "Descei o balde e tirai água de onde estais" [ehlisani bakiti mika kwalaho mi nga kona]. Quando enfim o capitão do barco em apuros experimentou seguir o conselho, desceu o balde ao mar e de lá trouxe água bem límpida e tipicamente saborosa, da foz do Amazon. (Amazonas?). Cfr. p. 97 - 98. (a) Autrui - pauper, termos bastante usados por E. Dussel na Critica à ideologia de exclusão. O general Armstrong várias vezes aconselhara Booker quanto à necessidade de não discriminar os pobres de raça branca nos seus projectos educacionais, pois era necessário mostrá-los também o caminho do progresso — Cfr. Ku hluvuka, 85 . 119. (9) Va hlangana va vumbana, Wonge i vumba ra semendze" = "… como um monumento de betão", (p. 97) e a partir dos factos da 1ª Guerra Mundial, a política do governo americano mostrou-se redondamente voltada para a conquista do espaço internacional, como nova (super) potência económica, política e militar em busca da hegemonia global.

Page 97: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

97

Por último, Consequentemente, esse princípio exige a eliminação das barreiras raciais (racismo), do Ostracismo (forçada exclusão física-moral); do homicídio ( - Linchagem) e de quaisquer focos de violência, a partir mesmo das destrinças da Constituição republicana. Exige a América como uma totalidade relacional aberta ao mundo, sob uma política de tolerância na Práxis social. O sentido da cooperação em B. Washington é a promoção humana do autrui (outro) que é pauper (pobre)(a) O rico ajude o pobre a crescer(9); O Branco apadrinhe a ascensão do Negro; O Norte ajude o Sul, como uma estratégia virada a reduzir os índices de desequilíbrio social, e para a criação paulatina (aparentemente ad libitum) de condições para um diálogo renovado e aberto, crescente e construtivo, entre as pessoas das duas raças. Ambas passariam, finalmente, a constituir um sujeito único e coeso duma história vitoriosa comum da pátria americana em relação à diversidade das nações do globo. 2.3. Libertação e Progresso na Submissão O facto de todo mais controverso do discurso de Atlanta resume-se nestas palavras de Booker Washington: «Nós (os Negros) estaremos do mesmo lado convosco (os Brancos) (a) (...); Estaremos decididos ao sacrifício das nossas vidas por vós (b), caso for necessário (...) Seremos (em tudo) o 3° escalão (c) do total das pessoas das três parcelas (do País)(d)» (ku hluvuka, p. 100). (Sem dúvida, trata-se esta de uma contradição difícil de superar, quando no pensamento-chave e no discurso de Booker Washington, a promessa da sua submissão é concomitante à aspiração objectiva da Libertação e do progresso dos Negros (africanos-americanos). [os críticos leais do superior de Tuskegee, entre eles Du Bois, e também os seus detractores, apoiam-se neste trecho do seu discurso, clara ou implicitamente, para contestarem o que chamam de filosofia racial de Booker Washington, ou mesmo para condená-lo.] (a) Hi ta yima na n'wina. (b) Hi ta tiyimisela ku mi fela loko swi laveka . (c) Xiphemu xa vurharhu (— também se pode ler: a terça parte de) (d) Logo depois do cabeçalho do discurso, lê-se que o País inteiro (Estados Unidos) estava dividido em três parcelas (swigava swirharhu), equivalendo os Negros a uma dessas parcelas nos territórios do Sul (le matikweni ya le Dzongeni). — Cfr. Ku hluvuka, p. 97

Page 98: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

98

Quando Booker Washington advoga, dum lado, o progresso comum dos americanos na sua totalidade como Nação, e o Progresso particular da parcela dos Negros, por outro, fá-lo convicto de que o mesmo só é possível e eminentemente real, sob condição (única) de liberdade para o Homem. Mas quem é o Homem livre para Booker Washington? Se tomarmos como base a ideia clássica de liberdade como condição essencial do homem livre, o qual é aquele que tem a possibilidade de dispor de si mesmo e (de usufruir) dos frutos do seu próprio labor; o homem livre como sinónimo do que tem poder de exercitar a própria vontade sem riscos coativos e em benefício próprio. Então, nesta perspectiva, Booker Washington não encontra homens efectivamente livres na América. Os primeiros desgraçados são os Negros, submetidos a um sistema rígido de Dominação (— Escravatura física-moral-psicológica), mas segundamente, os seus patrões (Senhores) acabam sendo vítimas do mesmo Sistema, igualmente arrastados pela engrenagem, uma vez dependentes da produção económica da força escrava. Quando foi da vez da Emancipação dos escravos (ku chunxiwa ka mahlonga, vide capítulo II, secção B) Booker Washington atesta que os antigos Senhores sofreram ainda mais, não só pelas restrições alimentares a que se tinham habituado durante décadas ou séculos, mas sobretudo porque o Senhor, a Senhora e os fidalgos nada tinham aprendido a fazer com as próprias mãos (cfr. Ku hluvuka, p. 17).

Os escravos-negros tinham uma limitação da própria liberdade por outros motivos:

Embora possuíssem a força de trabalho nos seus braços, não poderiam usufruir dos

seus frutos. A sua produção e todos os mecanisnos de labor, de consumo e de

repouso, eram determinados, não por si mesmos, mas por outro sujeito poderoso,

dentro do sistema de controlo e dominação, sendo impossível que os Negros se

manifestassem na sua autenticidade como seres racionais e livres. (Estavam

forçosamente reduzidos a uma forma de existência inautêntica, como seres alienados).

O princípio de que "O trabalho liberta o homem", era mais utópico que realista para os

Negros, porquanto lhes faltava um correlativo necessário ao mesmo princípio, i.é, o

auto-benefício do próprio trabalho, como seus realizadores- Mesmo depois da

emancipação (12), a contínua segregação racial e as formas diversas de exclusão

social minavam o progresso real dos Negros — progresso político-económico-cultural

— e a sua epifania pública como homens livres e sujeitos conscientes dum destino

próprio. (12) Trata-se da erradicação Jurídica da escravatura de 1863, mas que a História já provou quanta distância existe

entre o ideal e a realidade (a teoria e a prática), porque o fenómeno em si prosseguia na prática, sob formas mais diversas de manifestação.

Page 99: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

99

Dai uma oportunidade de paz aos Negros e eles provar-vos-ão das suas competências e capacidades — pedia dum lado, Booker Washington, aos ricos e poderosos Brancos do Norte e do Sul da América — e, quanto a vós. Homens da minha raça, dedicai-vos ainda ao trabalho, contentai-vos com uma oportunidade de emprego para embolsar uma moeda nos ofícios, nas fábricas, nas farmas, nos afazeres domésticos; do que com a ocasião de gastar essa quantia num cinema (bayisikopo)! — aconselhava por outro lado aos pobres Negros (13). E o escopo era o gozo das liberdades sociais (Liberdades reais) e a sua projecção como uma casta social rica em valores humanos úteis para a sociedade (14).

A submissão dos Negros toma duplo sentido em Booker Washington. Em primeiro lugar, há uma submissão em relação ao poderio suprematista branco, cujos significado é a cessação de hostilidades, uma trégua nos esforços pela obtenção dos Direitos sócio-políticos (fim de violência, de guerras e greves!?!); Em segundo lugar, uma submissão em relação ao trabalho que liberta (— abnegação no trabalho), cujo significado se traduz numa submissão a si mesmos, porquanto, sendo eles a força de trabalho, este emana de si próprios (da sua vontade, da sua força muscular e cerebral) em função dos objectivos particulares do indivíduo (um Negro) e do grupo (os Negros). 0 primeiro dos dois sentidos é meramente um meio-termo estratégico, "captatio benevolentia", para facilitar o segundo, que é a essência fundamental do que arriscamos denominar de filosofia de libertação e de progresso de Booker Washington. O último dos dois sentidos de submissão — a submissão como a condição que gera a libertação — está bem vincada na visão global do pensamento do Mestre de Artes de Tuskegee, sobre o Avanço (= Progresso) do Negro, quando (ele) realça o sucesso conquistado em várias partes do Sul, pelos homens, mulheres e jovens formados no seu Instituto. (Cfr. Ku hluvuka p. 135) Aliás, a exposição de Atlanta (Setembro de 1895) era, para Booker Washington, um facto-testemunha das capacidades de fazer (e bem-fazer) e de certo progresso (avanço) do Homo Nigrus Africanus-Americanus. (Faltar-lhe-ia porventura um complementar necessário: Auto programação ou o operar sob esquemas complexos!) O progresso em si é traduzível pelas produções (ou artefactos) sociais, pela complexidade das instituições e pela integração-tipo dos actores sociais no sistema.

(13) Esta versão do pensamento de Washington — é inteiramente pessoal — Cfr. Ku hluvuka, p. 101 -102. (14) B. Washington lembra que apesar da sua condição servil, os negros escravos sabiam compartilhar a dor e o luto dos seus donos—Cfr. Ku hluvuka, p, 14 - 15.

Page 100: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

100

Vale dizer, avalia-se em termos quantitativos e qualitativos, seja progresso material e/ou espiritual. Como educador, Booker Washington respeita as duas dimensões do Progresso humano. Mas, em termos de prioridade, ele inclina-se para um critério quantitativo materialista de avaliação do progresso, critério tal aliado ao conceito do "Homo faber", por ele tomado como antecessor e primordial (!) protótipo do "Homo politicus". Para Booker Washington, esta é uma relação explicativa necessária de qualquer avanço humano, e um salto qualitativo implicaria sair de A (homo faber) para B (homo politicus), necessariamente. Um procedimento em sentido contrário é uma aberração filosófica e um espectro ilusório, porque a tendência natural do homem é subtrair-se de condição "faber", refugiando-se nas comodidades políticas. (Mas será aí que se achará finalmente livre?). Booker Washington, sustenta pois que, o verdadeiro homem livre (= emancipado) só nascerá do Progresso (= Avanço) material, quando enfim satisfeitas as suas necessidades de primeira grandeza — provimento alimentar, abrigo, cuidados sanitários, necessidades biológicas e de segurança — acompanhado de um concomitante progresso espiritual, associado este à satisfação das necessidades superiores de ordem espiritual e intelectual. Tanto que as necessidades superiores dependem necessariamente das inferiores e estas constituem apenas o escalão mais baixo (= a base) na escala do progresso, o qual deve partir daqui (destas) e desaguar lá (nas superiores). Ambas dependem-se umas às outras. O Negro americano deverá conquistar a riqueza para (eventualmente!) colocar-se diante do Homem Branco em igualdade de circunstâncias (?), num debate político posterior, somente justificável nessa igualdade mediante a base material. A liberdade humana, portanto, tem que ser entendida em termos de um processo dinâmico (— uma dialéctica de acção prática) tendente a estabelecer um equilíbrio também dinâmico entre as duas raças no contexto das suas relações sociais. Os Negros em gradual ascensão, vão sendo paulatinamente livres — impossível será tentar isolar e eternizar um instante só, que seja sinónimo da epifania do Negro livre — vão, doravante definindo seu perfil político, num processo de libertação social, extensivo às outras dimensões do ser humano, tomado na integridade do seu valor; submissos a si mesmos pelo trabalho, laborando em condições de paz e tranquilidade pelo próprio avanço e pelo avanço da América.

Page 101: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

101

2.4. A Intervenção da Providência e a Responsabilização Histórica do Homem «O sofrimento foi o caminho traçado pela Providência (15) para nos mostrar o progresso» —Ku hluvuka, P-16 (a) Providência, tomando sobre si mesmo, nos seus ombros, o fardo da responsabilidade histórica que lhe cabe. Terá porventura a Providência dividido os homens em categorias raciais, cabendo a uns o privilégio nato de superioridade, (Brancos?), e a outros o prejuízo da inferioridade (Negros?). Ambos no entanto se complementam na dialéctica histórica da libertação e do progresso humano, (como se de dois pólos dum circuito eléctrico se tratassem). Mas, o ser superior ou inferior não é um respectivo essencial do Branco ou do Negro; qualquer pessoa ou raça (rixaka) tem a possibilidade de se tornar superior, seguindo um caminho sinuoso — (pois), não existe raça humana alguma, capaz de glórias nas questões terrenas, sem que antes passe por objecto de zombaria durante muito tempo, diz Washington (cfr. Ku hluvu A Booker Washington parece assim que o filho de Negro é um abençoado (Ukatekile), porquanto nasce com herança de enormes dificuldades, a enfrentar, para alcançar o sucesso, ao contrário de um filho de raça branca que, em virtude de sua herança biológica, acha um ambiente favorável, sem necessidade de esforço, para alcançar um cargo público importante, muitas vezes sem o devido mérito. Contudo, na visão de Booker Washington, a Providência colocou às portas do Norte (dos brancos do Norte) uma Missão nobre de auxiliar a transformação da situação no Sul — mudança dos hábitos, usos e costumes, instituições e mentalidade esclavagistas—a responsabilidade de apoiar a transição do Sul para a Liberdade e para o progresso, rumo à restauração de "Novos Céus e Nova Terra". (Cfr. ku hluvuka, p. 102). Enfim, Negros e Brancos deverão ser co-sujeitos duma história comum, partilhando juntos o fardo da responsabilidade humana perante a história, actuando, uns na base, e outros no topo, rumo a um destino comum traçado (supostamente) pela Providência (a).

Booker Washington tem uma visão providencialista da história humana. Mas a Providência na sua visão, não determina em absoluto o curso da história, antes, procura cooperar com o género humano no Processo histórico e no acto de perfeição cósmica. Cabe então ao Homem co-responder ao apelo incessante da Providência, tomando sobre si mesmo, nos seus ombros, o fardo da responsabilidade histórica que lhe cabe. (15) Em Ku hluvuka, aparecem com certa raridade estes dois termos: N'wini distinto de n'wini, e Xikwembu. Na nossa tradução atribuímos a N'wini (= Dono) um sentido absoluto, com referência ao Senhor Eterno, Transcendente, dono absoluto de tudo e de todos e que tem providência.(a) “Ku hluvuka ku va ndlela ya N'wini ya ku hi kombisa ku ya e mahlweni."

Page 102: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

102

CAPITULO VI CONTRA-CRITICA DUBOISIANA A — AS SEMENTES DA DISCÓRDIA

William E. B. Du Bois levanta-se como o crítico contemporâneo mais sério, sistemático e

leal de Booker Washington, segundo o anúncio por si dado: «E ainda vem o tempo em

que alguém falará com toda a sinceridade e alta cortesia das falhas e descaminhos do

"Mr." Washington, tão bem como dos seus triunfos (...).»(1) — O filósofo contesta o

seguinte: Os conselhos de submissão, o programa educacional demasiado estreito e o

ofuscamento da crítica (criticism) pela opinião pública.

l. A POLÍTICA DE SUBMISSÃO Segundo Du Bois, os conselhos e a política de submissão defendidos por Washington retiraram do Negro certas elementos da verdadeira virilidade (the true manhood) e contribuiu para a intensificação do sentimento rácico no Sul e no Norte, porque Washington aceita no seu programa a alegada inferioridade da Raça Negra. Em consequência, se dá:

— O desbaratamento (disfranchisement) do Negro i. é, exclusão; — A criação dum estatuto legal de inferioridade civil para o Negro; — A retirada constante da ajuda de instituições (do Norte) para a preparação mais

elevada do Negro (do Sul).

Porquanto Booker Washington obriga os Negros a abdicar do poder político, da insistência dos direitos civis e da educação mais-elevada da juventude Negra.

(1) Du Bois, Web "Of Mr. Booker Washington and others", in The Souls of Black Folk (1903), p. 44. Toda a crítica

de Du Bois a Booker Washington encontra-se amalgamada neste capítulo da sua obra.

Page 103: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

103

2. A ESTREITEZA DO PROGRAMA EDUCACIONAL O programa educacional de Booker Washington é demasiadamente estreito. Ele se

satisfaz em fazer Negros artesãos, homens de negócios e proprietários; insiste na

poupança e no auto-respeito e defende escolas-comuns e o treino industrial, mas

deprecia as instituições de mais alta aprendizagem. Então, Du Bois encontra

precisamente aqui os desenganos de Booker Washington (ou o tríplice paradoxo da

carreira de Washington); porque:

a) Sem o direito de voto (sufrágio), nenhum indivíduo pode subsistir sob os métodos competitivos modernos;

b) A submissão silenciosa leva à inferioridade social e mina desde a base a vitalidade de qualquer um;

c) Sem o concurso de colégios Negros (de ensino elevado), que fornecem pessoal instruído, nem Tuskegee e nenhuma outra Escola comum poderia continuar aberta.

3. O OFUSCAMENTO DA CRÍTICA A opinião pública da Nação, veiculada pelos Mass Media, tem ofuscado a crítica dos Negros a Booker Washington, elevando muitas das ideias suas e causando em falso a sensação de grande triunfalismo. No entanto, a mesma opinião dos Mass Media nunca reporta a oposição duradoura que Booker Washington enfrenta, que chega a extremos de rancor e violência — os demagogos depostos andam rancorosos e os Negros educados levam consigo um sentimento de profundo pesar, mágoa e apreensão, segundo Du Bois.

Mas, proibir a crítica de oponentes honestos é algo perigoso pois, «uma séria e honesta crítica (...) — crítica de escritores pelos leitores, do governante pelos governados, dos líderes pelos seus liderados — (essa) é a alma da democracia e a salvaguarda da sociedade moderna (...) >> (Du Bois, op. cit.,45). Du Bois reconhece, no entanto, o papel de Booker Washington como diplomata sério e maduro, e que se coloca entre dois extremos opostos e consegue grangear respeito de ambos os lados. A sua popularidade (com 10 milhões de adeptos numa nação de 70 milhões) confunde os próprios inimigos.

Page 104: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

104

B— PROGRESSO OU RETROCESSO? — Duplo Movimento

Quando Du Bois faz um memorial histórico da liderança Negra nos Estados Unidos, encontra que o facto mais controverso da história do Negro americano desde 1876 (data que coincide com a retomada do poder pelos suprematistas Brancos no Sul) é a própria ascensão de Booker Washington à cabeça da Comunidade Negra. O facto é que Booker Washington não foi eleito por sufrágio silencioso de seus camaradas, como era hábito na tradição da liderança Negra nos Estados Unidos; ele foi imposto como líder do grupo e o Norte tratou de promover a campanha e a opinião a seu favor. Isso acontece num momento psicológico particularmente favorável quando, por um lado, há uma decepção generalizada e uma já falta de confiança em relação ao Negro e, por outro, para suprir a crise económica, todas as atenções estavam viradas à busca dos dólares e o Sul era um autêntico campo de batalha. (2) A emergência então de um Negro com um programa tão simples de se tomar num estilo de vida, favorável aos ideais de um comercialismo triunfante e duma prosperidade material, na base de uma declarada submissão e silêncio nas controvérsias políticas e sociais, uma proposta de conciliação do Sul, causou enorme susto, estupefacção e também admiração desde o Sul até Norte. No Sul, o superior de Tuskegee astutamente pôde converter tanto os Radicais como os Conservadores (3), os quais aprovam seu programa, publicamente sintetizado na exposição de Atlanta (1895).

Du Bois interpreta o facto de ascensão de Booker Washington a líder da Nação Negra americana de dois modos (como um duplo movimento): Primeiro, como um ganho (o Progresso) e depois, como uma perda irreparável (Retrocesso). Trata-se de um ganho, porquanto os Negros recebem um líder, mas é indubitavelmente uma perda irreparável porquanto não terá havido um auto-questionamento dentro da comunidade, um momento metafísico importante para encontrar e empossar o próprio líder. (2) É a altura em que vagueiam pelo Sul os Carpet — Baggers e outros gananciosos, os quais vão ajudar Booker Washington a erguer e a consolidar o seu Instituto Tuskegee, entre muitas escolas Negras. (3) Conservadores e radicais são os dois principais Partidos da tradição da comunidade Negra nos EUA. Os Conservadores escusam-se de emitir o seu juízo e concordam com Washington e com seu plano como uma base de trabalho e de entendimento comum (É útil); os Radicais são rebeldes e vêm na proposta de Washington uma rendição, uma perdição para os Negros. Estes também acabam concordando com Booker Washington porque pensam na evasão (transpor as fronteiras dos EUA) como única alternativa para o Negro recobrar suas esperanças.

Page 105: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

105

É um marco negativo no crescimento social dos Negros, um retrocesso, diz Du Bois. A ascensão de Booker Washington ao topo, vem ironicamente afirmar que o auto-respeito viril é de valor subestimável à necessidade de (ter) terras e casas e, que um povo que aspira a uma civilização mais valiosa tem de abdicar da luta pelo auto-respeito, fazendo uma rendição voluntária de si mesmo.

I. QUESTÃO CENTRAL

«E possível e provável que nove (9) milhões de pessoas possam realizar-se num efectivo progresso em linhas económicas, sendo privados de direitos políticos, reduzidos a uma casta servil, e concedidos apenas a mais escassa oportunidade para desenvolver seus excepcionais filhos?» (Du Bois, op. cit. p. 51)

A resposta óbvia para Du Bois é um enfático Não! — um Progresso feito não na base da equidade e da justiça sociais, mas sim na base da submissão de uns a outros, é tanto humanamente injusto quanto desequilibrado e abre precedentes para futuras tensões e conflitos... continuamente.

Du Bois coloca a luta pela afirmação e exercício dos direitos cívicos e políticos dos Negros na vanguarda do todo o Progresso almejado. Ele exige precisamente o que Booker Washington subestima, ou que adia indefinidamente: a) O direito de voto, isto é, o direito de participação no sufrágio, como uma

prerrogativa necessária da masculinidade moderna;

b) A denúncia da discriminação racial como barbarismo e crime nacional; c) A necessidade urgente de uma mesma educação para os jovens Negros e

Brancos (significa: igualdade de oportunidades e de trato na Escola; não-separação / apartheid educacional, segundo o princípio do "separate but equal", de 1896.)

Doravante, Du Bois vê o Problema do Negro (o outro sentido da questão racial ou da questão social na América) como uma Questão Nacional e não meramente para os homens de Raça Negra.

O Negro é um elemento existencial a respeitar na América, é um cidadão; e a América pertence inclusivamente ao Negro, de modo que a sua exclusão ou submissão mesma é um crime qualificado, que deve ser resolvido por via jurídica e não diplomática. E perante o assassínio de 9 milhões de seres humanos duma raça cruelmente tratada, o

Page 106: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

106

Norte e o Sul partilham a culpa. Du Bois, em nome do Patriotismo e da legalidade, mobiliza todos os esforços humanos e materiais para uma crítica activa e acurada, da qual depende um desenvolvimento moral seguro e robusto e mentalmente sadio, da geração nova de crianças negras, brancas e de outras raças da América. «Não temos nenhum direito para permanecermos em silêncio porquanto as inevitáveis sementes são espalhadas para a colheita de desastre para nossas crianças negras e brancas» (Du Bois, op. cit., 55) E se o Negro é um elemento, dentro da sociedade, capaz de progresso, esse mesmo progresso, em Du Bois, tem de ser visto em função da geração nova das crianças de ambas as raças, que devem crescer mentalizadas não na tradição retrógrada de senhor-escravo, mas na plena consciência de igualdade do ponto de vista ontológico-humano, o que permitirá uma cooperação salutar entre uns e outros. Esse progresso será partilhado equitativamente por todos (= ambos), dentro de uma sociedade menos injusta, e no gozo das liberdades socialmente possíveis e úteis e na partilha das responsabilidades. O reconhecimento da virilidade do Negro, isto é, da capacidade racional, física, moral/ética do Negro como cidadão e humanamente digno de respeito porque livre na sua integridade como pessoa, é a condição-chave para responsabilizá-lo em qualquer questão social. Porém, tudo passa pela crítica mordaz a certa parte do trabalho do seu maior líder (Booker Washington), em que parece ignorar uma verdade de fé, a de que «todos os homens são criados iguais; que são dotados, pelo seu criador, de certos direitos inalienáveis; que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade.» (Du Bois, op. cit, p. 59). 2. A RESPONSABILIDADE DO INTELECTUAL Quando tocamos o conceito "intelectual", o seu sentido clássico remete-nos a um indivíduo que lida fundamentalmente com conceito, com matérias do intelecto, sem necessariamente abdicar das coisas materiais, porque igualmente mundano como os outros. A ideia de um intelectual austero, profundamente entregue à reflexão e aos juízos, em contraste com outro, obstinadamente entregue às paixões do corpo, faz-nos levantar a seguinte questão:

Será o intelectual um metafísico ou um materialista; Qual é o papel social de um intelectual? Du Bois distingue, a começar, três etapas no progresso da atitude crítica dos Negros americanos, nas circunstâncias da sua opressão e humilhação: (1a) a rebelião; (2a) o ajustamento e assimilação (submissão); e a (3a), o esforço de auto-realização e desenvolvimento determinado.

Page 107: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

107

"A atitude de rebelião comanda os descendentes espirituais de Vesey, Turner e Gabriel (os radicais), em quem a fúria da paixão chega a ser incontrolável; a atitude de ajustamento e assimilação nasce concomitante àquela do esforço pela auto-realização. Booker Washington representa no pensamento Negro a velha atitude de ajustamento e submissão (= resignação) — Du Bois, Op. cit., p. 50. Os radicais são condescendentes para com Booker Washington. Du Bois, activista da auto-realização e do auto-desenvolvimento, da manifestação da atitude viril do Negro, contesta o silêncio dos intelectuais conservadores — Grimkes, Kelly Miller, J. W. E. Bowen, entre outros — que se tornam presos de consciência. Por julgarem Booker Washington um homem sincero, útil e sério, omitem seu justo juízo crítico. A tarefa do intelectual é a daquele que se situa entre o topo e a base, procurando

interpretar a linguagem de uns e de outros, para viabilizar o diálogo entre as partes. O

intelectual é um criativo-reflexivo-hermeneuta-intérprete, cuja base de apoio não é o

vão metafísico, mas as circunstâncias que o rodeiam e que deve experimentar em

consciência. Seu escopo último, entre a crítica ao injusto e o fornecer alternativas

viáveis de pensar e de agir, será oferecer um momento de possibilidade de auto-

transcendência, porque ele perscruta o que está para lá do horizonte próximo (é um

filósofo!), tem a possibilidade e a capacidade de colocar tudo em possibilidade.

3. O SENTIDO DA HISTÓRIA NEGRA Contrariamente a Booker Washington, Du Bois acredita que todos os homens nasceram livres, iguais e com direitos inalienáveis. Booker Washington vê castas humanas diferenciadas entre si, um absurdo, para Du Bois. A história da raça Negra na América, é espelhada pela memória das vicissitudes do próprio grupo de liderança, tão instável nas suas características. Mesmo tendo que partilhar do destino comum das "raças americanas", a raça Negra tem, no entanto, ou faz uma história que toma um perfil típico, singular, como memorial das tragédias que acompanham o Negro onde quer que esteja, história dum povo que sofreu humilhações no seu percurso à civilização mais avançada, um povo que celebra, no entanto, o triunfo — a conquista da liberdade paulatinamente e a experiência do progresso — como um facto unificador. A cultura negra (The Blackfolk) une e tende(rá) a unir todos os Negros do mundo, sendo a Mãe-África o centro de referência para todos eles.

Page 108: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

108

C — RUPTURA E CONTINUIDADE l. OS RADICAIS E OS CONSERVADORES

A partir de Booker Washington e Du Bois, duas posições ficaram (quase) definitivamente claras, como duas tendências mutuamente opostas dentro da Comunidade Negra nos Estados Unidos e que dividem os Negros do Norte e os Negros do Sul, a nível da mentalidade. Os radicais identificam-se com a tradição abolicionista do Norte, e os conservadores, descendentes dos Ex-escravos do Sul, são habituados à austeridade e à submissão. Facto aparentemente paradoxal é que, na realidade, os Negros do Sul, mais fechados

do que os liberais do Norte, sabem ainda discriminar outros Negros (espécie de uma

xenofobia de Negro-para-Negro), porquanto se julgam eles superiores aos outros

negros que não tiveram a sua experiência passada da escravidão. Booker Washington

também gravou esse orgulho do ex-escravo do Sul na sua autobiografia: Os Negros da América são superiores a todos os outros negros (da África) pelo seu poder, religiosidade e inteligência (Cfr. Ku hluvuka, p. 15).

Trata-se de um signo epistemológico fundamental: O auto-desenvolvimento da

comunidade em si, tem nos dois pólos extremos as premissas lógicas necessárias para

o (seu) processo dialéctico.

2. BOOKER WASHINGTON — DU BOIS: CONTRADITORIEDADE OU

COMPLEMENTARIDADE?

Enquanto Washington se levanta com uma antítese "sequitur" — seu posicionamento,

de facto causa um movimento e mudança substanciais — Du Bois fá-lo com outra

antítese "non-sequitur”, igualmente com um efeito dialéctico. Um claro antagonismo

envolve os dois, inicialmente a nível de carácter: Booker Washington é um submisso

exemplar (e submissista), Du Bois, um insubmisso, inconformista. No entanto, julgamos

que não se pode negar o facto de que ambos perseguem um problema comum: É o Problema do Negro, tão complexo nas suas articulações e mesmo na simples

formulação teórica. Booker Washington sabe, assim como Du Bois, que é um problema

estrutural. (b) "Vantima lavaya va le Amerika va tlula vantima van'wana hi tlhero ra vukhongeri bya vona ni hi vutivi ni

swa rifuwo."

Page 109: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

109

O primeiro equaciona-o como um problema económico e propõe-lhe uma solução

económica. O Segundo percebe o reducionismo do primeiro e, também, supõe-lhe um

outro extremo reducionista, tomando-o como um problema sócio-político, cuja solução é

um inventário de exigências políticas. Ora, então, quem é mais relevante do que o

outro, entre os dois?

Obviamente, cada um dos dois tem uma meia-verdade; nós porém buscamos a verdade completa e cremos que esteja mais próxima da conciliação das duas posições. Vejamos: 2.1.— Booker Washington defende o Negro Fabro-económico, mas é o mesmo que, ao

mesmo tempo em Du Bois, se exige seja tomado como um cidadão de Direito nato, um político: por outras, o reformador quer negros burgueses e o filósofo, negros intelectuais. Mas, hoje, qual é a nação qual é ela que, aspirando a um real progresso prescinde conscientemente de uma burguesia activa e/ou de uma elite de intelectuais e políticos comprometidos com os altos propósitos nacionais?

2.2. — As ideias de um acentuado Progresso material defendidas por Booker Washing-ton, precisam necessariamente de um complemento político (progresso político), que lhes sirva de escudo nos moldes modernos de concorrência económica (e esses estão defendidos em Ou Bois). Porém, é também verdade que na maior parte dos casos, os direitos políticos — sobretudo a liberdade — perdem sentido sempre que o seu sujeito careça de uma autonomia económica, quando nele subsiste o espectro de dependência desta natureza em relação a outro;

2.3 — Booker Washington não parece ter excluído (em absoluto) a necessidade de uma preparação intelectual conveniente e mais segura para o Negro; simplesmente, ele acentuou demasiado a necessidade de um treino industrial e de uma educação completa da pessoa — saber fazer, saber ser, saber apresentar-se — tal que unisse simultaneamente os valores das mãos, da cabeça e do coração (Ku hluvuka, p. 99). Du Bois também não se mostra hostil ao trabalho manual e à formação humana do Negro; ele condena sim o que chama dupla escravidão — escravidão industrial e escravidão social — quando, por um lado, o Negro que produz "industrialmente" não se beneficia dos frutos do seu labor, (injustamente por falta de protecção legal e, por outro lado, (auto-)transformado num animal de trabalho (um perfeito "burro de carga”), porque é vítima sistematicamente da segregação, da exclusão social, por falta de uma postura viril, agressiva, na

Page 110: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

110

expressão exterior da sua vontade de readquirir (reconquistar) a sua liberdade usurpada e todos os legítimos direitos da sua humanidade negada;

d) Enfim, Booker Washington e Du Bois concordam ambos que a liberdade e o

progresso são duas condições e metas concomitantes à Realização (isto é, à felicidade) de um Povo (= nação), e que entre o trabalho humano socialmente útil e o sonho de paz, de justiça, de Progresso, deve prevalecer o sentido de Cooperação e fraternidade entre uns e outros... Nisto, os dois mais parecem de mãos dadas do que de costas voltadas.

Page 111: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

111

CONCLUSÃO

Tanto quanto se quis dizer neste trabalho, resume-se no seguinte:

1°. O sonho de liberdade e de progresso para um povo é uma questão vital;

2°. Que os esforços pela sua materialização no tempo e no espaço devem partir

necessariamente do próprio povo, das próprias circunstâncias, e do seu auto-

conhecimento como o sujeito da situação e

3°. Que a modalidade de libertação e do progresso da nação, tem de ser uma questão

de escolha própria e não necessariamente fruto dum determinismo exterior, alheio a si.

Tese l — Nas circunstâncias actuais de Moçambique, Booker Washington e Du Bois significam duas tendências legítimas na praxis social (i. é, no pensar e no agir)

Ora, quais são as reais circunstâncias de Moçambique, actualmente? — É, juridicamente, um Estado soberano (É reconhecido na ONU), que procura realizar uma adaptação possível dum regime político democrático-tipo ocidental, às condições locais, em fase que se pode chamar de Reconstrução, após a experiência da guerra civil [1975 - 1992]. Este País vê na cooperação e na Participação (= Cooperação) um factor positivo para o seu lançamento e afirmação no plano económico (Moçambique está entre os PALOP na CPLP, na Common-wealth Britânica e Preside a SADC!...); é estrategicamente um mercado periférico de preferência para investidores do Centro, tornando-se num espaço de concorrência económica, mas para lucro estrangeiro (tal como chegou o ser o Sul dos EUA, com Booker Washington fazendo promessas e propostas às vezes insuportáveis).

Esta abertura ao capital externo, se acaso foi uma escolha própria, então foi uma escolha irremediável porque chegou a hora de pagar a dívida aos padrinhos que nos levaram ao Altar de Roma para as núpcias da reconciliação, e não temos senão o mar, as praias, os campos por lavrar, as reservas florestais com espécies faunísticas já raras, mármore e metano e outros tesouros do subsolo... É a nossa moeda com que devemos efectuar o pagamento; é a nossa soberania que está em jogo!

Page 112: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

112

Alguns regozijam-se com as possibilidades e as perspectivas de um triunfo económico oferecidos pela ideologia da globalização. Muitos entendidos / intelectuais limitam-se a concordar que não temos outra alternativa por enquanto e omitem a sua crítica e mergulham-se também no turbilhão à procura de comodidades enquanto outros indignam-se perante os paradoxos existenciais da nossa sociedade epocal: 1°. O propalado crescimento económico é acompanhado do acúmulo da dívida

externa (somos até devedores de Portugal, apesar da História do Passado!); 2°. Cresce o grau de discrepâncias económicas, entre uma minoria cada vez mais

abastada que vive a europeu (uma burguesia nacional semelhante à burguesia Negra dos anos trinta nos EUA) que ascende na mesma escala de uma maioria em pauperização progressiva;

3°. A carestia da vida — a compra de uma parcela de terreno é para muitos uma utopia, dado o elevado preço, e novos empreendimentos económicos afastam muitos cidadãos da urbe e da periferia, para zonas mais distantes, deixando espaço para os detentores de capital, normalmente estrangeiros ou agentes locais com interesses supra-nacionais;

4°. Os desempregados, os analfabetos, os dementes (que lhes espera um centro metropolitano para breve no Zimpeto, com 9 pisos sem concorrência!) e a população rural, vítima habitual da nossa amnésia intelectual, política e urbana, recordada apenas na hora do sufrágio... completam o quadro das nossas circunstâncias actuais.

(Mas, em vez de críticas, os tambores da festa do milho soam mais alto e insistentemente para abafar os gritos e os clamores das vítimas do nosso utilitarismo e do nosso individualismo, marcos da nossa praxis social de consumo).

Tese 2— A nossa realização conjunta como Nação, passa pelo repensar das estratégias de acção, em função de nós mesmos.

Não se pode honestamente ignorar um conjunto de mudanças extraordinárias que se operam, quotidianamente no nosso espaço vital: Muito contacto com o exterior (mais eles cá, do que nós, lá!); Incremento comercial (maior parte da população sobrevive do comércio informal como “vendistas" ou como compradores); construção de novas e reabilitação de velhas vias de acesso (caso do "Maputo- Witbank"); A entrada para a Bolsa dos valores; a sensação de relativa segurança e gozo de certa liberdade pelas populações; A livre circulação dum extremo ao outro do país, à medida que as memórias do último conflito armado tendem a desaparecer; e a

Page 113: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

113

participação política e o exercício livre do voto (considerando mesmo que a abstenção é também uma forma de participação no jogo democrático...)! Mas, questionar perante este quadro sintomático de Progresso e Avanço (= Ascenção), sobre a nossa própria opção (como a opção do nosso grupo de Liderança), para prever as suas consequências e antecipar-lhes antídotos, julgo que seja uma digna atitude de cidadania, de participação política e de consciência patriótica, porque: a) Quem é Moçambicano tem de saber que a dívida externa remete-nos outra vez à situação de reféns, de escravos, colonizados (—perda de autonomia, da liberdade, da soberania!);

b) A opção do comercialismo como base económica malogrou em muitos o valor do trabalho e cria continuamente a mentalidade de ganho fácil, de derrotismo, de mendicância...

c) Em caso de uma eventual guerra, os primeiros sacrificados serão os que seriam os futuros quadros, retirados da escola para treinos militares, porque o exército novo precisa de Homens com instrução... (como se a função pública abdicasse necessariamente deles!)

Seguidamente, há uma diferença substancial entre Nós e os Negros americanos tratados neste trabalho: Em primeiro lugar, porque enquanto para eles a questão fulcral era de substracto racial (Senhor Branco — Escravo Negro) com suas inferências sociais-políticas-económicas, para Nós a mentalidade homicida é uma questão de injustiça social (que é) classissista e fratricida — privilegiamos o avanço individual ou do grupo individualizado, à custa do sacrifício alheio, matando as possibilidades do avanço de outrem. Não sabemos assegurar a promoção do outro (o próprio irmão!). Devido às nossas escolhas feitas em função do presente, providenciamos com antecedência as certidões de óbito para as crianças de amanhã, nados mortos para uma terra de escravidão e sem futuro para os seus. Em segundo lugar, porque a principal aporia da nossa democracia é o facto de que o acesso ao poder seja uma questão de sobrevivência para grande parte dos nossos líderes ou protolíderes, usando a expressão de Aníbal Aleluia.(a) (a) Aníbal Aleluia: malogrado escritor moçambicano. Publicou vários artigos polémicos no Savana, durante as Campanhas eleitorais de 1994. Neles invocava então certa imaturidade política dos concorrentes na oposição, denominando-os categoricamente de protolíderes ou pseudo-políticos. A polémica sobretudo com Domingos Arouca, só cessou com a morte de Aleluia (C-1996). Providência) das coisas criadas; sendo Ele o seu criador e consumador do seu destino (tudo a Ele retoma). A Xikwembu igualmente ficou um sentido transcendente tal de Espírito absoluto ou Deus, o qual age como providência, sendo ele mesmo a verdadeira Providência. (a) “Ku hluvuka ku va ndlela ya N'wini ya ku hi kombisa ku ya e mahlweni."

Page 114: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

114

Que sentido tomará a nossa realização comum? Que lugar terá a solidariedade no plano deste projecto? Tanto para a novel oposição como para a veterania governante, é uma questão de sobrevivência. Os primeiros desejam experimentar o conforto das comodidades do nosso regime democrático "Sui generis ", ou no parlamento, ou num cargo público qualquer; os outros, porque se trata de manter o prestígio e uma tradição gloriosa, um horizonte paradigmático sem o qual a subsistência para eles se tornaria impossível.

Tese 3 — O nosso projecto de Realização comum como Nação, a um tempo se aproxima e se afasta necessariamente de Booker Washington e de Du Bois.

Esta dupla antítese significa para nós dois modos diversos de pensar e de encarar a mesma realidade. Em Booker Washington temos o exemplo de uma resignação corajosa dos negros americanos perante a hegemonia branca, e de auto-submissão desses negros pelo trabalho manual (tanto quanto buscámos explicar no devido momento). Em Du Bois, ao invés, temos a reacção anti-resignação ou anti-submissão, uma predisposição ao confronto julgado necessário, entre o submissor e o submisso, o dominador e o dominado, em vista à harmonização das relações bilaterais.

Ora, qual das duas opções nos convém? Que benefícios podemos colher duma política de submissão e que prejuízos nos esperam, através duma atitude política de reivindicação pró- "independentista"? A nossa opção ou por Booker Washington ou por Du Bois, ou por ambos, ou mesmo quando temos que nos afastar dos dois, é condicionada pelas próprias circunstâncias que mós envolvem, quando emerge a consciência da necessidade (= entendida esta como carência orgânica), hic et nunc. Se por um lado a visão de Booker Washington é mais compreensível hoje, visto que o poderio (a hegemonia) dos globalizadores condiciona em pormenor as nossas aspirações de Avanço, então, por outro lado, temos que nos questionar sobre este propalado Avanço. Porque ele surge muito tardiamente para nós, a nossa preocupação (que parte da própria vontade expressa pelo nosso grupo de liderança) aponta para um Progresso (avanço) vertiginoso e a um ritmo extremamente acelerado, ao qual não estamos ainda habituados. Vale dizer que podemos estar a

Page 115: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

115

trair-nos a nós mesmos, quando no nosso plano de Avanço actual descuramos, na essência e na materialização, de um critério racional e justo, tal que pudesse transcender os limites do tempo actual e previsse as consequências nefastas de amanhã.

Este emancipalismo pode significar um progresso fantasmagórico, um autêntico retrocesso, do ponto de vista político, ou seja, do usufruto dos direitos de cidadania, seja no prisma das relações internas, seja das relações externas. Nós podemos concordar com Booker Washington na sua proposta de sermos um só, nas coisas essenciais ao progresso comum, mas certas questões vão sempre prevalecer: Qual será a modalidade de sermos um só? (entre Eles, globalizadores e nós, globalizados!). Que padrão de cooperação nos poderá favorecer um progresso efectivo? — Seguramente que o modelo de submissão provou o quanto adia indefinidamente a concretização dos sonhos dos negros americanos, por um lado, e o quanto deforma a mente dos seres humanos (pois, perpetua os complexos de superioridade e de inferioridade, nuns e noutros), por outro lado.

Mas, haverá porventura uma possibilidade material de virmos a ser um só, nas questões inerentes ao progresso comum? Somos também levados a concordar com Du Bois, em oposição a Booker Washington com seus conselhos de submissão ao feiticeiro dominador. Em primeiro lugar, porque nós somos os sujeitos em necessidade, e de nós deve partir a iniciativa de delinear e aprimorar um modelo de Libertação e progresso, que nos satisfaça na nossa condição de moçambicanos. Em segundo lugar, por que Du Bois apela para a nossa virilidade ou macheza (manhood). Na sua óptica, nós só poderemos gozar com legitimidade do direito à liberdade e ao progresso efectivo corno Nação, a partir do momento em que assumirmos a responsabilidade de reivindicarmos sem medo, e como verdadeiros homens (machos), a nossa dignidade usurpada por longos séculos da nossa história negra, desde o passado até o presente. É preciso redescobrir-nos a nós mesmos, primeiro como indivíduos detentores de tradições e cultura próprias e, depois, como um povo (nação) rico em diversidade e que aspira a uma civilização mais elevada, a um progresso conjunto. Seremos um só como os dedos da mão, é o princípio da unidade na diversidade, uma utopia. Pois, se os dedos fazem a mão e a mão é a extremidade de um braço que é, por sua vez, o prolongamento de um corpo com cabeça, tronco e outros membros; se aos dedos da mão cabe o trabalho, a nós igualmente caberá o mesmo

Page 116: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

116

porque comparados aos dedos da mão. No entanto, quem será a cabeça, o motor

do corpo, dos braços, dos dedos? Nós ou os outros? — Parece que se torna

naturalmente remota a possibilidade de uma unificação da diversidade humana,

porque, precisamente aquele elemento que seria aglutinador (a racionalidade), ele

mesmo é uma diversidade dentro de outra diversidade (a do género humano).

Com Du Bois vamos entender o nosso próprio esforço pela Libertação e progresso, como uma luta pela diferença e pela afirmação da nossa particularidade no contexto do Progresso da globalidade mundial. (Não se trata necessariamente de um progresso ou desenvolvimento marginal, pois o mesmo vai resultar do aproveitamento ao máximo das oportunidades oferecidas pela cooperação global, e colocado em benefício de nós mesmos, sem com isso criar outros precedentes para conflitos posteriores de índole intestinal)

Convém reconhecer, mesmo que com mágoa seja, que entre a realidade da submissão e a aspiração da libertação, há um meio-termo de confrontação, no qual, em função das nossas capacidades e possibilidades reais, a resignação pode ser uma alternativa mais viável do que a rebeldia. Que esperança pode restar a um general com um exército desmobilizado e perante uma companhia inimiga e fortemente estruturada e equipada? — Uma de duas alternativas: Ou a rendição (= resignação) para servir o inimigo, ou a resistência até à morte para salvaguardar a honra. Quem poderá de antemão fazer esta escolha, senão aquele que for confrontado pelas próprias circunstâncias?

Do procedimento de Booker Washington e de Du Bois, quando se dirigiam aos Negros americanos, nas igrejas, nas escolas, nas marchas de protesto ou em grandes Conferências internacionais, e quando se pronunciavam sobre os Negros (e sobre o conjunto da Sociedade Americana), somos levados a repensar no papel da Ideologia na formação da nossa consciência como um povo.

Para trazer à memória dos moçambicanos e para fazer valer hoje os valores supremos do patriotismo, do trabalho, da solidariedade mútua, da honra, parece imperioso o retomo ao discurso ideológico.

Segundo Enrique Dussel, os gregos parménides, Sócrates, Aristóteles, Platão, criaram uma ideologia para a tradição ocidental, a partir da sua concepção do Ser

Page 117: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

117

(ontologia) — O ser é, o não ser não é — e que teve como continuadores os primeiros greco-romanos e depois Rousseau, John Dewey, Nietzsche... Graças a essa ideologia cristalizada nas suas mentes, nas formas «Eu sou. Eu conquisto. Eu domino...», os ocidentais detêm hoje a hegemonia do mundo.

Infelizmente, a tentativa dos etnofilósofos africanos de fundamentar nas tradições culturais africanas (negras) um pensamento filosófico sistemático (esforço do belga Placide Tempels) e de criar uma ontologia bantu (Alexis Kagame), não foi mais além. Talvez pudéssemos criar a partir das nossas concepções e com segurança, uma ideologia própria, a nível da ideologia ocidental, e que fizesse valer as potencialidades africanas / moçambicanas.

Se esse discurso ideológico for para perpetuar a ontologia suprematista ocidental, então, de nada nos valerá e terá nenhum interesse. Em sentido mais elaborado, terá que ser um discurso criativo e que responda às nossas ambições de real Avanço, sem a perda da nossa identidade. A nossa tão badalada moçambicanidade carece de substancialidade, e mais se tornou numa simples arma da demagogia política, sem expressão. (Devíamos considerar um opróbrio hoje a paradoxal imagem do moçambicano que, mais do que pobre, é miserável; mais do que humilde, estúpido e mendigo aqui e acolá, de pão, de dinheiro e, de ideias!

A ideologização da sociedade seria assumida como alto propósito patriótico pelos

políticos, pelos pastores, pelos intelectuais; nas famílias, nas igrejas, nas escolas,

nas instituições públicas, através da interpelação oral, da imprensa e dos Mass-

Média.

Enfim, Booker Washington advertir-nos-ia a inclinarmos o balde, a abrir-nos totalmente aos outros, inclusive aos nossos depredadores; ele autorizaria o sacrifício de nossas vidas em troca de um pedaço de pão ou de um relativo conforto financeiro e outras mordomias. (cem milhares de contos será o preço justo por uma cabeça humana?!?) Du Bois levar-nos-ia a recusar veementemente o estatuto de inferioridade e de servilismo, apelando à nossa virilidade e aos nossos dotes intelectuais ao mais alto nível, exigindo o reconhecimento do mesmo direito à dignidade e uma relação dialogai mais equilibrada entre nós e outros. Como será possível consumar efectivamente este propósito?

Page 118: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

118

Bernard Dadié coloca na boca de um branco francês o testemunho seguinte, perante a perplexidade do jovem Climbié, inseguro este quanto à possibilidade de uma real e completa Osmose entre as tradições africanas e a civilização ocidental: «E preciso fazer votos de que a osmose entre nós se cumpra com actos e não palavras. (...) Vamos, demo-nos a mão lealmente e, cada qual, seguindo o exemplo de Pasteur, não perguntemos quais são as nossas opiniões políticas ou nossas crenças religiosas, mas a suma de nossos sofrimentos.» — DADiÉ, B. (1982), p. 132.

O nosso projecto tem assim um novo traço utópico característico: O ódio contra aquilo que nos amesquinha continuamente. Inclinemos o balde para os nossos marginais. Em outros termos, façamos uma verdadeira osmose com os nossos marginais. São eles os grandes derrotados do nosso lado, na luta dura pela vida; os filhos legítimos de uma sociedade esquizofrénica como a nossa. Entre eles e nós há uma relação co-genital. Somos todos marginais, vistos pelos olhos europeus ou americanos. Sendo assim, o nosso destino futuro é comum e tremendamente paradoxal: Ou o Progresso na submissão, ou a dignidade e a honra na vala comum!

Page 119: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

119

Martin Luther King, Um Marco na Luta pela Emancipação Negra no Mundo

Apesar da Constituição de 1776 afirmar que “todos os homens são iguais”, os EUA

bem antes da guerra de secessão12 já era o maior país esclavagista das Américas.

Para o Estado, a legislação seguia conforme estipulava a Constituição, pois os

negros não eram considerados cidadãos de direito. Somente com o fim da guerra

que a população negra foi considerada cidadã.

No entanto, não havia leis anti-discriminatórias, facto que precipitou que a lei ficasse

só no papel, pois na realidade os negros pioraram sua situação, ficando totalmente

à margem da sociedade e marginalizados. Ainda mais, com o fim da guerra, várias

organizações racistas foram formadas, como os Cavaleiros da Camélia Branca e a

Ku Klux Klan. A missão destes grupos era impedir através do terror e da força

violenta o direito dos negros de possuírem terras e de votar. Muitos negros foram

linchados, estuprados e enforcados, gerando uma série de distúrbios nos Estados

sulistas.

Estes factos levaram ao surgimento da necessidade dos negros se organizarem

contra esta violência.

A maior força política do movimento negro norte-americano se deu basicamente a

partir de 1954 até a década de 70. Organizações como o Black Power e os Panteras

Negras na década de 60, sucessores das idéias socialistas de Malcom X,

representavam um novo nível de mobilização contra o racismo. Eram grupos que se

distinguiam das ideias da não-violência encabeçadas por Martin Luther King.

Na verdade a culminação, e não o início, como muitos procuram apresentar, da

mobilização dos negros pelos seus direitos civis deu o seu salto num dia comum,

dentro de um ônibus em Montgomery, capital do Alabama, quando a costureira

Rosa Parks se recusou a ceder seu lugar para um branco. Sua desobediência

12 1861, deu-se início à guerra de secessão, que duraria até 1865 com a derrota dos Sulistas e o fim dos Estados Confederados que voltaram a integrar-se à União. Foi o fim também da escravidão. Esta foi a guerra com o maior número de mortes: 970 mil, o equivalente a 3% da população total naquela época.

Page 120: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

120

perante as leis de segregação racial levou à sua prisão e cunhou-na como a “mãe

dos direitos civis”, sendo um símbolo de resistência que levou ao fim da lei de

segregação.

Neste dia, 1º de Dezembro de 1955, a recusa de se retirar de seu assento reflectiu

nas condições opressores em que milhares de negros viviam. Começou então um

intenso boicote contra as linhas de ônibus em todo o Estado do Alabama. O

movimento que começou no dia 5 de Dezembro de 1955 só terminaria em janeiro de

1957, levando praticamente à falência o transporte público no Estado.

Em seguimento ao movimento de boicote aos ônibus do Alabama, o Reverendo Dr.

Martin Luther King Jr. foi mais incumbido de se tornar uma espécie de “messias”

para todos os negros norte-americanos, sendo um instrumento usado pelo

imperialismo para conter o crescente levante do movimento pelos direitos civis, isto

é, um movimento verdadeiramente revolucionário. Adepto das idéias de Mohandas

“Mahatma” Gandhi, Luther King foi nos EUA o que Gandhi foi no processo de

independência da Índia, ou seja, um freio de contenção de uma mobilização

revolucionária.

Assim, a tomada de consciencia dos negros pelas suas liberdades democráticas

adquiriu um caráter cada vez mais revolucionário. O governo norte-americano tinha

uma grande preocupação em deixar que o movimento chegasse a proporções

incontroláveis. Para isso atuou com a ala direita do movimento negro, como o

próprio Martin Luther King. Ao mesmo tempo em que a repressão aumentava, o

Estado procurava não coibir totalmente o “direito democrático” dos negros de se

manifestarem. Em algumas ocasiões, o governo precisou intervir até mesmo

militarmente contra as recusas dos governos locais em aderir aos direitos

conquistados em Cortes Federais.

O primeiro caso deste tipo foi registrado em 1957, na pequena cidade de Little Rock,

no Arkansas, onde nove estudantes negros conseguiram em uma Corte o direito de

ingressar numa escola só para brancos. Já no primeiro dia de aula no Ginásio

Central de Little Rock, os estudantes foram impedidos de entrar não só pelos

estudantes brancos e por parte da população que compareceu ao local, mas pela

Guarda Nacional do Estado. Diante do descumprimento da decisão de uma Corte

Page 121: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

121

Federal, o presidente Dwight Eisenhower enviou à escola tropas de pára-quedistas

e dissolveu a Guarda Nacional para garantir o ingresso dos estudantes negros. Este

evento resultou no fechamento do ginásio e de muitas outras escolas em vários

estados do Sul dos EUA.

Foi neste contexto que no dia 28 de Agosto de 1963 acontecia na capital norte-

americana a maior manifestação política que o movimento negro já realizou, a

famosa Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade.

Martin Luther King, líder da marcha - foi neste dia que ele fez seu famoso discurso,

”I Have A Dream" – estava totalmente fechado com o governo para dar à mega

manifestação um caráter pró-governo, louvando a aprovação do Ato dos Direitos

Civis, assinado pelo presidente John F. Kennedy, onde mais de 250 mil pessoas

vindas de todo o País ocuparam as ruas de Washington para exigir seus direitos

democráticos e acabar com a Lei de Segregação Racial até então vigente. A

manifestação era formada pela esmagadora maioria de negros, no qual muitos

partiram de suas casas a pé.

A marcha foi o culminar da mobilização dos negros norte-americanos contra a

exploração e a discriminação racial, um golpe fulminante contra o governo, que no

ano seguinte aprovou a lei contra a segregação racial.

Facto curioso é que, embora tenha sido extinta, até hoje, os negros, não só nos

EUA, mas em todo o mundo continuam sofrendo discriminação em todos os setores

da sociedade. Mas, seria então nos EUA que, pela primeira vez na história do país,

maioritariamente branco, foi eleito um negro para dirigir os destinos da nação mais

poderosa do mundo, Barak Hussein Obama.

Na verdade, a eleição de Obama para dirigir a superpotência da actualidade, foi

produto da luta que os negros vêm realizando, com vista a sua emacipação política,

com particular destaque para a igualdade no gozo dos seus Direitos civís.

A partir desta análise, pode-se concluir que desde a marcha sobre Washington,

liderada por Martin L. King em 1963, abriram-se várias perspectivas rumo à

igualdade do gozo de direitos humanos e, sobretudo, civís entre negros e brancos

Page 122: IMALK - Pioneiros da Emancipação Africana no Mundo

122

na América e no mundo. A eleição de Obama deve ser vista como o inicio de um

período de uma nova página na forma de relacionamento entre negros e brancos no

mundo, já que não somente teve apoio dos negros e brancos americanos, mas de

todo mundo.

Representa os interesses da juventude de qualquer parte do mundo,

particularmente dos jovens americanos, quer sejam brancos, quer sejam negros.

Assim, um dos grandes significados desta eleição é demonstrar que é preciso

valorizar cada membro parte de uma determinada sociedade, concedendo-lhe todos

os direitos inerentes aos membros dessa mesma sociedade.

Com base neste princípio podemos dizer de voz alta como King disse: I HAVE A

RESPONSABILITY TO DEMAND EQUAL RIGHTS AND BE RESPECTED.