ilustraÇÃo e devoÇÃo: estudo sobre iluminura mariana no lecionÁrio de … · triunfante, o...

4
1 ILUSTRAÇÃO E DEVOÇÃO: ESTUDO SOBRE ILUMINURA MARIANA NO LECIONÁRIO DE REIMS GODOI, Pamela Wanessa (UEL) VISALLI, Angelita Marques (UEL) Financiamento: Projeto de Bolsa IC-UEL Peter Burke nos afirma que as relações não-verbais de uma sociedade podem ser mais bem compreendidas quando analisamos a documentação imagética existente nesta sociedade (BURKE, 2004: 16-17). No caso medieval, percebemos que esse tipo de documentação permite uma ampliação considerável nas perspectivas de entendimento sobre a devoção, já que se trata de uma sociedade que tem na relação imagem e escrita um valor que transcende a explicação do mundo natural. Nossa pesquisa tem como objeto uma imagem de Maria que foi pintada em um manuscrito feito na catedral de Reims, no nordeste da França, antes de 1096. O livro chamado Lectionnaire de l’office de la cathêdrale de Reims” se encontra conservado ainda hoje no gabinete da catedral. No período medieval os livros eram produzidos para a difusão da palavra de Deus, porém os clérigos eram os responsáveis por transmitir aos laicos seus conteúdos, eram eles os que manuseavam e produziam esses objetos no século XI. O Lecionário estudado é um livro litúrgico e foi entregue juntamente com outro manuscrito que tinha a mesma função. Foram utilizados para auxiliar nas missas realizadas na catedral. O livro é escrito em latim, como a grande maioria desse período. Nele encontramos quarenta e três iluminuras, sendo todas elas letras iniciais, algumas apenas decoradas e outras contendo representações de personagens bíblicos em seu interior. A iluminação é a arte que nos manuscritos alia a ilustração e a ornamentação, por meio de pinturas com cores vivas, ouro, prata, de letras iniciais, flores, folhagens, figuras e cenas, em combinações variadas, ocupando parte do espaço reservado ao texto e estendendo-se pelas margens, em barras ou molduras. As obras produzidas neste período muitas vezes eram dadas como um presente, pois além de serem muito caras, na corte carolíngia dos séculos VIII- IX a literatura religiosa e a

Upload: doannhu

Post on 30-Nov-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

1

ILUSTRAÇÃO E DEVOÇÃO: ESTUDO SOBRE ILUMINURA

MARIANA NO LECIONÁRIO DE REIMS

GODOI, Pamela Wanessa (UEL)

VISALLI, Angelita Marques (UEL)

Financiamento: Projeto de Bolsa IC-UEL

Peter Burke nos afirma que as relações não-verbais de uma sociedade podem ser mais

bem compreendidas quando analisamos a documentação imagética existente nesta sociedade

(BURKE, 2004: 16-17). No caso medieval, percebemos que esse tipo de documentação

permite uma ampliação considerável nas perspectivas de entendimento sobre a devoção, já

que se trata de uma sociedade que tem na relação imagem e escrita um valor que transcende a

explicação do mundo natural.

Nossa pesquisa tem como objeto uma imagem de Maria que foi pintada em um

manuscrito feito na catedral de Reims, no nordeste da França, antes de 1096. O livro chamado

“Lectionnaire de l’office de la cathêdrale de Reims” se encontra conservado ainda hoje no

gabinete da catedral. No período medieval os livros eram produzidos para a difusão da palavra

de Deus, porém os clérigos eram os responsáveis por transmitir aos laicos seus conteúdos,

eram eles os que manuseavam e produziam esses objetos no século XI.

O Lecionário estudado é um livro litúrgico e foi entregue juntamente com outro

manuscrito que tinha a mesma função. Foram utilizados para auxiliar nas missas realizadas na

catedral. O livro é escrito em latim, como a grande maioria desse período. Nele encontramos

quarenta e três iluminuras, sendo todas elas letras iniciais, algumas apenas decoradas e outras

contendo representações de personagens bíblicos em seu interior.

A iluminação é a arte que nos manuscritos alia a ilustração e a ornamentação, por meio

de pinturas com cores vivas, ouro, prata, de letras iniciais, flores, folhagens, figuras e cenas,

em combinações variadas, ocupando parte do espaço reservado ao texto e estendendo-se pelas

margens, em barras ou molduras.

As obras produzidas neste período muitas vezes eram dadas como um presente, pois

além de serem muito caras, na corte carolíngia dos séculos VIII- IX a literatura religiosa e a

2

liturgia foram especialmente valorizadas. É a partir dos luxuosos manuscritos carolíngios,

uma das expressões do Renascimento Carolíngio, que percebemos o início da prática de

indicar a autoria da cópia (DUBY, 2002: 155-158).

Já a respeito das decorações, raramente eram mencionados os pintores, que podiam ser

os próprios clérigos copistas ou artistas leigos. Isso possivelmente se deveu as grandes

discussões teóricas a respeito de adoração de imagens, pois havia certo receio quanto ao real

valor e função da imagem.

A imagem sobre a qual concentramos nosso trabalho é a iluminação pintada no verso

do folio 109 do manuscrito, que representa Maria entronizada com o menino Jesus dentro da

inicial Q. Esta foi desenhada a partir de uma forma amendoada e tem em seu prolongamento

um dragão, no qual Maria repousa delicadamente os pés, descalços e ornados.

O texto copiado ao redor remete a um sermão sobre a Assunção do corpo e da alma da

virgem Maria ao céu. Esse dogma, que só foi confirmado pelo papa Pio XII em 1950, já se

apresenta como parte integrante da cultura medieval do século XI. O que ressaltamos é a não

relação do texto com a imagem e suas funções diferenciadas, mesmo sendo apresentados em

um mesmo veículo. O Lecionário tinha no texto suas funções didáticas, porém a imagem não

é um complemento deste texto. Neste caso a imagem retrata Maria, porém não no episódio da

Assunção. Assim a função da imagem também é relacionada com a emoção, e com a devoção.

O espectador, que também é o leitor, aprende com o texto, e pode se sensibilizar com a

imagem.

Essa representação de Maria é um das poucas encontradas neste tipo de documentação

quando analisamos os registros desta região e deste período. No ano de 1150 encontramos em

Amiens um Lecionário da abadia de Corbie que possui uma imagem bastante parecida com a

de Reims, a Virgem, porém, está sem o menino Jesus ao colo. O texto que a acompanha,

assim como no Lecionário de Reims, trata da Assunção de Maria.

As outras imagens pintadas no livro de Reims são também iniciais que apresentam

adornos florais ao redor e algumas cenas específicas, como Abraão com três anjos, Cristo

triunfante, o anúncio a Zacarias, Cristo e a igreja e o martírio de santo André. Estes temas

indicam uma espiritualidade ainda muito preponderante com base no Antigo Testamento

(VAUCHEZ, 1995: 11-64).

A análise sobre a imagem está inserida nas discussões sobre história cultural, na

medida em que esse tipo de documentação permite percebermos a expressão artística contida

3

na época e suas funções teológicas e culturais. Não nos esqueçamos que a imagem tem

profundo apelo religioso, foi produzida em um ambiente clerical para permanecer neste

ambiente, seus espectadores, seus leitores, entram os clérigos, a sua aplicação se deu neste

meio que sabia ler o seu texto e compreender suas imagens. Sendo assim, são evidências que

possibilitam aos historiados uma melhor perspectiva na análise estrutural do pensamento e da

representação dessa categoria social.

Em uma sociedade onde o letramento era restrito a apenas uma parte da população, os

clérigos, a imago (SCHMITT, 2007:11-22), ainda mais que a escrita, adquiriu um significado

que além de ser representação, como nos vitrais ou em pinturas, referia-se também a

imaginação, a alegorias da linguagem, as visões, as “imagens mentais”. Essa complexa

definição da imagem medieval a torna parte integrante na construção da cultura do medievo,

uma sociedade que é o próprio exemplo de uma imagem – pois a lógica cristã entende o

homem como imagem e semelhança de Deus, como cita o texto bíblico de Genesis 1,26 – tem

nas suas relações não-verbais, mais do que simples práticas estéticas, são, com efeito, práticas

culturais (LE GOFF; SCHMITT, 2002: 591-605).

Neste contexto percebemos que o uso da imagem pode ser entendido como elemento

estratégico na edificação do imaginário devocional do espectador. O aspecto visual das

iluminuras estudadas como evidências históricas, auxilia na compreensão do ambiente

devocional em que elas estão inseridas, sendo elas também caracterizadas como elementos de

mediação entre o visível e o invisível, onde o valor estético não é dissociado da função

religiosa e ritual que a imagem apresenta.

Ao estudarmos um veículo como o Lecionário, procuramos entender que a devoção a

Maria teve, antes da sua explosão junto ao laicado, no século XII, discretas aparições no

contexto das pinturas iluminadas dos manuscritos. As iluminações muito mais voltadas para a

devoção dos clérigos pouco influenciaram o apelo popular que a Virgem terá nos séculos

seguintes, porém é preciso ressaltar que esse tipo de expressão, apesar ter uma relevância

relativa dentro desse universo, faz parte do imaginário clerical que nesse período de pouca

produção laica manteve viva a imagem de Maria, permitindo que essa fosse apropriada e

transformada segundo os interesses laicos dos períodos seguintes.

4

Anexo

Figura: Virgem entronizada com o menino Jesus.

Fonte: http://www.enluminures.culture.fr/ (MS 295).

Uma imagem pintada em um manuscrito de 1096 na região de Reims, onde

Maria simboliza a posição da Igreja que segura Jesus para que todos o

adorem.

Referências

BURKE, Peter. Testemunha Ocular – história e imagem. Bauru: Edusc, 2004

BASCHET, Jerôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo:

Globo, 2006

DUBY, Georges (Org). História Artística da Europa: Idade Média. Tomo I e II. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 2002.

ENLUMINURES. “l'Institut de recherche et d'histoire des textes (CNRS)”. Reims, ms. 0295.

Disponível em <http://www.enluminures.culture.fr/documentation/enlumine/fr/rechguidee_00

.htm>. Acesso em 21 ago. 09.

LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean- Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval.

Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002.

PELIKAN, Jaroslav. Maria através dos séculos: seu papel na história da cultura. São Paulo:

Companhia das Letras, 2000.

SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens – ensaios sobre a cultura visual da Idade

Média. Bauru: Edusc, 2008.

VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média ocidental (séculos VIII a XIII). Rio de

Janeiro: Zahar, 1995.

VISALLI, Angelita Marques. Cantando até que a morte nos salve: estudo sobre laudas

italianas dos séculos XII e XIV. Tese. São Paulo, Universidade de São Paulo, maio. 2004.

VOLPE, Carlo. “Os primitivos” In: VALSECCHI, Marcos (Org.). Galeria delta da pintura

universal, volume I. Rio de Janeiro: Editora Delta S.A.,1972. p 67-72.