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iJm ARTIGO ,,- O DESAFIO DA EQUIDADE NO SETOR SAUDE* Elio Jardanovski Administrador Público e Mestrando em Administração Pública na EAESP/FGV, Técnico da Fundação do Desenvolvimento Administrativo (FUNDAP). Paulo Cesar Vaz Guimarães Economista pela Universidade de Brasília (UNB), Mestrando em Administração Pública na EAESP/FGV e Técnico da FUNDAP. * RESUMO: Os países que procuraram construir um siste- ma público unioersalizante de saúde depararam-se com o debate sobre a eqüidade como princípio fundamental de jus- tiça social. O presente artigo discute esta problemática em suas bases teóricas e apresenta, em grandes traços, as carac- terísticas essenciais do sistema britânico de saúde e o seu re- batimento nesta questão, visando a subsidiar considerações sobre a realidade brasileira. 38 Revista de Administração de Empresas --- ---- * PALAVRAS-CHAVE: Eqüidade, Sistema Público de Saúde, Economia da Saúde, Justiça Social. * ABSTRACT: The countries that looked for an universal public health system haâ to face the debate of the equity as a fundamental principie of social justice. This papel' analyses the theoretical basis of equity, stressing the British Nacional Health Service characierisiics, concerning mainly to equity, to subsidize the analysis of the Brazilian reality. * KEY WORDS: Equity, Public Health Sistem, The Econo- mics of Healih, Social [ustice. * Este texto tem por base a pesquisa "Transferências iniergooerna- mentais de recursos da União para o setor saúde: a questão da eqüidade", realizada no âmbito da FUNDAP sob a coordenação de Luciano A. Prates [unqueira, contando com a colaboração de Paulo Eduardo Castro Reis. São Paulo, 33(3):38-51 Mai./Jun. 1993

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iJm ARTIGO

,,-

O DESAFIO DA EQUIDADE NO SETOR SAUDE*• Elio Jardanovski

Administrador Público e Mestrando em AdministraçãoPública na EAESP/FGV, Técnico da Fundação doDesenvolvimento Administrativo (FUNDAP).

• Paulo Cesar Vaz GuimarãesEconomista pela Universidade de Brasília (UNB),Mestrando em Administração Pública na EAESP/FGV eTécnico da FUNDAP.

* RESUMO: Os países que procuraram construir um siste-ma público unioersalizante de saúde depararam-se com odebate sobre a eqüidade como princípio fundamental de jus-tiça social. O presente artigo discute esta problemática emsuas bases teóricas e apresenta, em grandes traços, as carac-terísticas essenciais do sistema britânico de saúde e o seu re-batimento nesta questão, visando a subsidiar consideraçõessobre a realidade brasileira.

38 Revista de Administração de Empresas

--- ----

* PALAVRAS-CHAVE: Eqüidade, Sistema Público de Saúde,Economia da Saúde, Justiça Social.

* ABSTRACT: The countries that looked for an universalpublic health system haâ to face the debate of the equity as afundamental principie of social justice. This papel' analysesthe theoretical basis of equity, stressing the British NacionalHealth Service characierisiics, concerning mainly to equity,to subsidize the analysis of the Brazilian reality.

* KEY WORDS: Equity, Public Health Sistem, The Econo-mics of Healih, Social [ustice.

* Este texto tem por base a pesquisa "Transferências iniergooerna-mentais de recursos da União para o setor saúde: a questão daeqüidade", realizada no âmbito da FUNDAP sob a coordenação deLuciano A. Prates [unqueira, contando com a colaboração de PauloEduardo Castro Reis.

São Paulo, 33(3):38-51 Mai./Jun. 1993

o DESAFIO DA EQÜIDADE NO SETOR SAÚDE

INTRODUÇÃO

A instituição do Sistema Único de Saú-de pela Constituição Federal de 1988 de-finiu a revisão da lógica do modelo deprestação dos serviços de saúde. Cabedestacar o princípio de universalizaçãodo atendimento - a despeito de classe so-cial, localização geográfica, raça, renda,sexo ou qualquer outra forma de catego-rização das pessoas - que pretende tra-duzir um tratamento mais eqüitativo doscidadãos.

Para fazer frente a essa nova realidade,o poder público procura reorganizar-separa garantir recursos em todo o territó-rio nacional, sejam eles de caráter técnico,político, financeiro ou organizacional.Um dos mecanismos selecionados para aconsecução do objetivo encontra-se natransferência de recursos orçamentáriosda União para as outras esferas de gover-no, de maneira a viabilizar a atenção àsaúde.

As características manifestas da políti-ca acarretam a lembrança do sistema desaúde inglês, que tem sido estruturado,desde o pós-guerra, de forma a atenderindiscriminadamente os seus cidadãos.Apesar dos percalços deste sistema, éinegável que ele representa um paradig-ma p<lr<l modelos de saúde de outros paí-ses. Sua menção é feita, principalmente,em relação à eqüidade no tratamento dosusuários do sistema de saúde.

Ao que tudo indica, o legislador brasi-leiro tinha em mente a intenção de propi-ciar ao cidadão um serviço com caracte-rísticas e objetivos similares. Até o pre-sente momento, infelizmente, a falta deregulamentação não esclareceu o querealmente se entende por eqüidade, paradaí discernir o que se pretende. Com taislacunas, o poder executivo tem atuado deforma errática, dificultando a compreen-são da direção e objetivos específicos dapolítica de saúde.

Com os resultados que estão sendo de-lineados, associados à questão da privati-zação no setor saúde, o que se indaga é seo sistema brasileiro não está caminhandomais no sentido do modelo americano,onde as características - prestação diretapública marginal, benefícios com basenas contribuições ao seguro saúde priva-do etc. - são antípodas do sistema inglês.

As conclusões de Fa veret e Oliveira I

reforçam o enfendimento de que há con-tradições entre as intenções expressas naConstituição e a implementação da políti-ca de saúde. No contexto das críticas, ascondições de exclusão que grande parce-la da população poderá vir a sofrer sãomuito reiteradas, uma vez que não conse-guiria acessar o subsistema privado. Pordetrás da argumentação, o que se verifi-ca, em síntese, é a preocupação com a vi-gência das regras de mercado para umapolítica social em uma realidade notoria-mente degradada.

Em contraposição, a corrente que negaa "americanização" do setor saúde defen-de a participação pública na oferta dosserviços, procurando proporcionar a uni-versalização do atendimento, até comomecanismo de salvaguarda dos direitosdo cidadão.

A necessária reflexão que se coloca fa-ce a este quadro implica a problematiza-ção do arcabouço teórico - conceitos,pressupostos, ideologia etc. - que infor-ma correntes de pensamento que anali-sam a temática da eqüidade, verificandopossíveis desdobramentos para a realida-de brasileira.

O presente trabalho discute em pri-meiro lugar a questão da eqüidade, postoque perfaz o eixo da disputa teórica. Emseguida, apresenta-se, em grandes traços,as características essenciais dos sistemasinglês e o seu rebatimento na problemáti-ca da eqüidade, pretendendo subsidiarconsiderações para a realidade nacional.

© 1993, Revista de Administração de Empresas / EAESP/ FGV, São Paulo, Brasil.

1. FAVERET, P.; OLIVEIRA, P."A universalização excludente:reflexões sobre as tendênciasdo sistema de saúde". Planeja-mento e Políticas Públlicas, n.1,1990, p.139-162.

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i1m ARTIGO

2. BATIlSTELA, R.; BEGUN, J."The political economy of healthservices: a review of majorideological influences". In: LlT-MAN, T.; ROBINS, L. (ed.)Health policy and politics. Lon-don: John Wiley & Sons, 1984;CULYER, A.; MAYNARD, A.;WI LLIANS, A. "Alternativesystems of health care provi-sion: an essay on motes andbeans". In: OLSON, M. (ed.) Anew approach to tne economicsof health care. Washington D.C.:American Enterprise Institute,1981; PEREIRA, J. "Justiça so-cial no domínio da saúde". Ca-dernos de saúde pública, n.6,1990, p.400-421.

3. MOONEY,G. Economics, me-dicine and health care. GreatBritain: The Harvester PressGroup, 1986.

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SISTEMAS DE SAÚDE E EQÜiDADE

o significado de eqüidade tem sidofreqüentemente associado ao conceito dejustiça social. Sua definição e os princí-pios distributivos daí decorrentes, depen-dem do conjunto de valores predominan-te nesta sociedade. Desta maneira, o sig-nificado de eqüidade que informa deter-minado sistema de saúde e seus objetivossó pode ser compreendido à luz dos dife-rentes valores de cada organização sócio-econômica e, conseqüentemente, da defi-nição que se coloca sobre o conceito dejustiça social.

Alguns autores- procuraram verificaras implicações na concepção e estrutura-ção dos sistemas de saúde a partir de al-gumas realidades sociais. A despeito dasdiferenças de abordagens, pode-se inferira existência de duas categorias, represen-tando opções extremas de organizaçãosócio-econômica dentro do modelo capi-talista: de um lado, a orientação dita libe-ral/ conservadora e, de outro, a social de-mocrática. Cada uma delas irá condicio-nar, em um primeiro momento, a opçãoou não pela eqüidade, e, em segundo pla-no, a própria concepção de eqüidade apartir das noções de justiça social queelas sugerem.

Para os liberais/ conservadores, a liber-dade e o individualismo constituem-sevalores fundamentais. A liberdade, nestecontexto, refere-se à possibilidade dosagentes satisfazerem suas demandasatravés do mercado; qualquer outro ca-minho, notadamente através da interve-niência do poder público, acarretaria dis-torção na alocação de recursos e feriria osprincípios e valores da sociedade.

Como corolário, tem-se que os resulta-dos nas condições de saúde da popula-ção, inclusive em termos de eqüidade,não estariam incluídos no rol de preocu-pações governamentais. Antes sim, os in-divíduos é que seriam capazes e respon-sáveis para exercer a sua soberania en-quanto consumidores, realizando esco-lhas segundo suas racionalidades, prefe-rências e necessidades. Caso não atinjamuma condição de saúde favorável, tam-bém seriam, exclusivamente, os respon-sáveis pela situação.

A vertente social democrática tem emseu cerne, pelo contrário, a valorização

da noção de igualdade, sendo tal mani-festa na real possibilidade dos agentesefetivarem as suas opções. Em outros ter-mos, as diferenças individuais - econô-micas e sociais - não podem ser condicio-nantes para o consumo dos bens e servi-ços de saúde; portanto, todo aquele quenecessitar de atenção à saúde para modi-ficar uma situação adversa à sua repro-dução social, deverá ter direito assegura-do para superá-la.

Tendo presente que a existência de ummercado puro não se encontra em nenhu-ma realidade concreta, seja no presenteou em períodos passados, na visão socialdemocrata a única maneira de promoçãode condições mais igualitárias de oportu-nidades de consumo de bens e serviçosse daria através da intervenção estatalbuscando a eqüidade.

Existindo a opção pela eqüidade, colo-ca-se a questão de como conceituá-la, vis-to não haver consenso em torno do seuentendimento. Embora seja muitas vezesdefinida em termos de "igualdade", nãoequivale necessariamente a tal atributo.Mooney ' sugere seis possíveis definiçõesde eqüidade em saúde:

1. igualdade de gasto per capita;2. igualdade de insumos (recursos huma-

nos, equipamentos etc.) per capita;3. igualdade de insumos por necessida-

des iguais;4. igualdade de acesso por necessidades

iguais;5. igualdade de utilização por necessida-

des iguais;6. igualdade de necessidade marginal.

A distinção entre gastos e insumos percapita se faz necessária em função da va-riação nos preços dos recursos humanos,equipamentos, medicamentos, recursosorganizacionais etc., incorporados naprestação de cuidados de saúde, entreduas áreas diferentes de um país. Comoresultado, um mesmo nível de gastos po-deria comprar mais insumos em uma lo-calidade do que em outra, o que denota-ria, nestas situações, o privilegiamento deuma em relação às demais.

Igualdade de insumos por necessida-des iguais reflete uma noção mais apura-da de eqüidade à medida que, ao invésde simplesmente distribuir igualitaria-

o DESAFIO DA EQÜIDADE NO SETOR SAÚDE

mente insumos por indivíduos, diferen-cia-os segundo suas necessidades desaúde." Essa definição deve pressupornão só o sentido restrito da quantidadede recursos materiais e humanos (leitos,consultórios, médicos, enfermeiros etc.)por necessidades, mas também a noçãomais ampla da qualidade dos serviçosoferecidos.

A teoria, entretanto, ainda não foi ca-paz de definir o que viria a ser de fato anecessidade por cuidados de saúde." Oúnico ponto acordado é que esta temseus contornos estabelecidos, em primei-ra instância, pelo delineamento e monito-ramento do perfil epidemiológico e, emúltima instância, na relação médico/pa-ciente, com a soberania do primeiro.

O conceito de necessidade nâo se con-funde com o de demanda, estando afetoa algumas características técnicas (méto-do diagnóstico, procedimentos terapêuti-cos, epidemiologia etc.) e não ao mapa depreferências do consumidor, ou seja, opi-niões ou desejos, especialmente em fun-ção do sofrimento, do que este acha quedeveria ser passível ou não de tratamentomédico. Desse modo, nem todas as de-mandas se converterão em necessidadese, de outro lado, nem todas as necessida-des percebidas institucionalmente se con-cretizarão como demandas.

A demanda por serviços de saúde, porsua vez, é influenciada por fatores suple-mentares, como o nível educacional. Nãobastam, por exemplo, garantias de distri-buição espacial equilibrada dos recursospor necessidades. Tais requisitos, emboranecessários, não são suficientes, pois nemsempre asseguram o uso eqüitativo dosserviços. Pessoas melhor informadasusam de forma mais adequada, e commais freqüência, os serviços de saúde.Aspectos culturais e até religiosos podemter influência decisiva. Nesse sentido, Tit-muss", no final da década de 60, já haviademonstrado que os grupos de rendamais alta e melhor nível educacional fa-ziam melhor uso dos serviços públicos desaúde.

Isto remete aos conceitos de igualdadede acesso e utilização por necessidades,onde o primeiro está relacionado funda-mentalmente com o lado da oferta de ser-viços ou cuidados", e o segundo é umafunção tanto da oferta como da demanda

de saúde. Em outras palavras, igual aces-so significa que dois ou mais indivíduosincorrem nos mesmos custos para acessarum determinado serviço de saúde, porexemplo moram a uma mesma distânciado serviço oferecido e usufruem da mes-ma facilidade de transporte para acessá-lo. Se vão usá-lo de forma igualitária,uma vez garantido o acesso eqüitativo,dependerá da valoração que fizerem douso destes serviços e de sua real condiçãode saúde.

Deste modo, a composição entre dife-rentes níveis de acesso e demanda vai re-sultar no nível efetivo de utilização poriguais necessidades, sendo que ocorreráutilização igualitária dos serviços pelosusuários quando as facilidades (ou difi-culdades) de acesso pelos indivíduos fo-rem iguais e quando as demandas pelosrespectivos serviços por indivíduos fo-rem também as mesmas.

A qualidade dos serviços é outro fatorque influencia a demanda. Do ponto devista do usuário, a qualidade percebidacontribui para aumentar a procura ou, in-versamente, desestimulá-la, constituin-do-se forte elemento para a eqüidade (ouineqüidade) na utilização dos cuidadosde saúde.

A "Lei de Atenção Inversa", formula-da por Hart no início dos anos 70, preco-nizava que a disponibilidade de bons cui-dados médicos tende a variar inversa-mente à necessidade da população servi-da, evidenciando que a oferta de qualida-de se ajustava mais fortemente às caracte-

4. Necessidade não deve ser as-sumida enquanto um fenômenodeterminístico, já que semprese estará mencionando umaprobabilidade de ocorrência dedoenças. Ver MUSGROVE, P,"La equidad dei sistema de ser-vicias de salud: conceptos, indi-cadores e interpretacion". Bole-tín de La Oficina Sanitaria Pana-mericana, n,95, 1983, p.525-546; . "Measurementof equity in health". WorldHealth Statistics Quarterly, n.39,1986, 325-335.

5. MOONEY, G. Op. cito

6. VIANNA, S. "Eqüidade nosserviços de saúde". Texto paradiscussão nQ 4, Brasília: IPEA,1989.

7. DANIELS, N. "Equity of ac-cess to health care: some con-ceptual and ethical issues". MiI-bank Memorial Fund Quarterly,n.60, 1982, 51-81.

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Não se pode concluir que a questãodas prioridades, contemplada na eqüida-de internecessidades, não se coloca nasdefinições de eqüidade a partir de insu-mos, acesso e utilização por necessida-des.!" De fato, o que se tem é que na im-plementação de políticas, que tenhamaquelas definições de eqüidade comoprincípio, as prioridades são dadas exo-genamente e não determinadas por qual-quer dos conceitosde eqüidade per se.

A despeito do critério adotado, cabealertar que, não obstante o papel que osserviços de saúde desempenham na re-dução das desigualdades sociais, consta-ta-se que essas diferenças dependem es-sencialmente de variáveis exógenas aosistema de saúde. Em outras palavras,por mais eqüitativos que sejam a oferta eo acesso aos cuidados de saúde, persisti-rão ineqüidades de resultados determi-nadas por desigualdades de renda, de ní-vel educacional ou mesmo de infra-estru-tura sanitária. Essas variáveis, além deassegurarem por si mesmas melhorescondições de vida, contribuem para au-mentar o acesso,o uso e até a eficáciadosserviços, mesmo quando proporcionadosde forma supostamente eqüitativa.

Em função do exposto, pode-se inferirque o conceito de eqüidade de utilizaçãoé aquele que reflete uma noção maiscompleta de eqüidade, pois pressupõeque os outros conceitos já tenham sidocontemplados, especialmente a igualda-de de insumos e o acesso por necessida-des iguais. Ou seja, não se pode pensarno uso eqüitativo dos serviços de saúdepor necessidades quando o acesso, em al-guma medida, não o é.!' Naturalmente,para atingir a eqüidade de utilização, osetor saúde deverá se articular com osdemais setores de intervenção pública,uma vez que não dispõe de mecanismosque dêem conta deste objetivo.

Entretanto, existiria, ainda, uma lacu-na em relação à avaliação vertical dasnecessidades que o conceito de eqüida-de de utilização não contempla e, teori-camente, a abordagem marginalista ofaz. Na realidade, esta desvantagem as-sinalada não existe pelo fato do cálculocusto-benefício, até o momento, não terconseguido dar respostas satisfatóriaspara a mensuração de muitas das variá-veis pertinentes.

8. Idem, ibidem.

9. Vale lembrar que a oferta deserviços de saúde, no sistemacapitalista, é também influencia-da por aspectos outros que ascondições de saúde (por exem-plo, tecnologia, monopólio daindústria farmacêutica etc.),acabando por condicionar aprópria demanda.

10. Os conceitos de gastos percapita e insumos per capita nãoconsideram o problema das ne-cessidades, não se aplicando aanálise vertical de eqüidade.

11. Salienta-se que, teoricamen-te, a igualdade de acesso não étotalmente imprescindível paraa eqüidade de utilização. É factí-vel crer que indivíduos em dife-rentes condições de acesso aosserviços de saúde, poderiamusufrui-los igualitariamente se-gundo suas necessidades. Logi-camente, estariam presentesesforços distintos para acessá-los.

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rísticas sócio-culturais da demanda doque às suas reais necessidades." Em ou-tras palavras, quer-se dizer que a ofertade serviços de qualidade não é unica-mente uma decorrência das definições dapolítica de um sistema de saúde, mastambém função da pressão de grupos so-ciais organizados. 9

Dessa forma, o que se pode deduzir daLei de Hart é que o poder de pressão degrupos de usuários dos serviços de saúdetende a variar inversamente às suas res-pectivas necessidades. Como resultado,ter-se-ágrandes probabilidades de ineqüi-dade de utilizaçãonos cuidados de saúde.

A eqüidade de necessidades margi-nais está baseada na abordagem de cus-to-benefício. Esta corrente teórica partedo princípio de que uma autoridade desaúde vai alocar racionalmente recursosescassos por aquelas atividades ou pro-jetos para as quais a razão entre benefí-cios e custos seja a maior, e continuará afazê-lo até que tenha sido esgotado todoo orçamento. Terá, portanto, que estabe-lecer uma hierarquia de necessidades aserem satisfeitas expressas na razão be-nefício/ custo.

Segundo este critério, provavelmenteos procedimentos relacionados à saúdecoletivaseriam privilegiados, visto que osbenefícios repercutiriam por um maiornúmero de pessoas, associados a custosbaixos. Naturalmente este é apenas umdos elementos utilizados pelos policy-ma-kers, que ponderariam outras informações.

A análise custo-benefício representa,portanto, uma abordagem capaz de valo-rar as diversas necessidades de saúde,possibilitando a hierarquização das mes-mas pela ótica monetária. Tem-se aquiuma diferença sensível em relação às de-finições anteriores, visto que, afora umaanálise intranecessidades de saúde dosindivíduos, permite uma avaliação inter-necessidades.

A análise intranecessidade reflete a no-ção de eqüidade horizontal, onde preten-de-se identificar e tratar igualitariamenteindivíduos que se encontram em uma ne-cessidade de saúde igual. A dimensão in-ternecessidades, que não é contempladapelas definições iniciais, denomina-seeqüidade vertical, que busca o tratamen-to "apropriadamente desigual" de indiví-duos em necessidades de saúde distintas.

o DESAFIO DA EQÜIDADE NO SETOR SAÚDE

Como alternativa factível, acredita-seque o ranking de necessidades deve serdesenhado, em última instância, por umprocesso político. Este, elencando asprioridades para o setor, subsidiaria atomada de decisão com relação à aloca-ção dos recursos e insumos buscando,por fim, a igualdade de utilização poriguais necessidades.

A partir dos diversos critérios sobreeqüidade, conclui-se que não existe umaúnica forma de defini-la. Esta vai de-pender da valoração que se faça sobre aeqüidade em si, bem como em relaçãoaos outros objetivos do sistema de saú-de, que são muitas vezes conflitantes.

Um dos aspectos importantes nessaquestão diz respeito à inter-relação po-tencial entre eqüidade e eficiência. Oconflito pode emergir, muito provavel-mente, quando se trata da eqüidadevertical - tratamento desigual para osdesiguais. Por exemplo, em determina-do contexto, reduzir riscos com poucosrecursos para a maioria da populaçãopoderia salvar menos vidas do que con-centrar esses mesmos recursos parapoucos de alto risco, deixando sem as-sistência, portanto, a maioria. O que severifica, em suma, é uma decisão a res-peito do que corresponderia a umamagnitude ótima para eficiência e paraeqüidade.

Na atualidade, encontra-se esta situa-ção, por exemplo, no debate travado so-bre estratégias de combate às doençasterminais, das quais destaca-se a AIDS.Pode-se argumentar que a análise daeqüidade com base nas necessidadesmarginais (custo-benefício) desaconse-lhasse a alocação de recursos para estacategoria de doenças. Em contraposição,poderia até sugerir a opção pelo atendi-mento daquelas morbidades em que aexpectativa de sobrevida trouxessemaiores benefícios para o indivíduo epara a sociedade.

A decisão sobre este tipo de conflito,no entanto, remete para questões de or-dem ética, e não à racionalização de va-riáveis de dimensão econômica. A res-posta, em última análise, encontra-senas opções ideológicas que cada socie-dade, inexoravelmente, deve realizar aodefinir seu sistema de saúde com suasprioridades.

Neste contexto, o Sistema Nacionalde Saúde inglês fornece um exemplo in-teressante na condução da problemáticada eqüidade. A incorporação da noçãode "direito à saúde" dos cidadãos, inde-pendentemente de qualquer condiçãoprévia, já evidenciava uma opção ideo-lógica que tinha como mote principal adistribuição centralizada dos cuidadosde saúde, através do setor público, vi-sando à eqüidade.

Nos últimos anos, o governo inglêsvem revisando o alcance do sistema. Emdado momento, chegou-se à conclusãoque o objetivo de eqüidade com condi-ções de operacionalização e relativa efe-tividade relacionava-se à eqüidade deacesso. Como forma de alcançá-la, op-tou-se pela inserção de um mecanismode distribuição de recursos financeirosentre regiões que viabilizasse o acessoigualitário.

O próximo segmento procura justa-mente recuperar, de forma breve, o his-tórico do sistema inglês, salientando osaspectos pertinentes à eqüidade e àsmudanças que estão se configurando naatualidade, onde o cerne da questão gi-ra em torno do conflito eqüidade e efi-ciência. A depender do vetor resultante,poder-se-á, inclusive, deslocar os valo-res basilares que nortearam as reformasdo pós-guerra.

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12. LEICHTER, H. A comparati-ve approach to policy ana/ysis:hea/th care in four nations.Cambridge: Cambridge Univer-sity Press, 1979.

13. MOONEY, G. Op. cit.

14. LEICHTER, H. Op. cit.

15. HAM, C. Hea/th policy in Bri-tain. London: Macmillan Publis-hers, 1985.

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A INTERVENÇÃO ESTATAL EM SAÚDE:O CASO INGLÊS

Origem do National Health Service(NHS)

A instituição do Sistema Nacional deSaúde na Inglaterra, em 1946, está inti-mamente relacionada com o descontenta-mento popular, e mesmo da classe médi-ca, com o sistema até então vigente. Umadas explicações para o agravamento dasituação consiste, indubitavelmente, nosimpactos gerados pela Segunda GuerraMundial, sejam aqueles vinculados dire-tamente ao setor saúde ou os de âmbitoexterno, que pressionavam a revisão dasrelações Estado /Sociedade. 12

A explicitação mais marcante deste ce-nário foi a substituição do partido hege-mônico no Parlamento, quando da ascen-são do Labour Party. Como repercussãoimediata, houve alterações nas priorida-des da agenda política, passando a pre-valecer iniciativas para fortalecer o pró-prio Estado do Bem-Estar. Neste intento,contou-se com fortes lideranças políticasque empreenderam esforços no sentidode aprovar um vigoroso sistema públicode saúde, inclusive negociando direta-mente com a classe médica, opositora"natural" da proposta. Cabe a indagação,portanto, sobre quais foram as motiva-ções para a introdução do NHS.

Ao enfocar explicitamente a questão,Mooney 13fornece um quadro da intensacontrovérsia criada em torno do tema,debatendo as contribuições de Lees, Cul-yer e Titmuss. O primeiro argumentava,ainda na década de 60, que o principalobjetivo do NHS era incrementar o con-sumo dos produtos da atenção médica,visto que o padrão distributivo até entãoera acentuadamente desigual. Assim,consistiria passo fundamental a retiradado primado do preço (regras de merca-do) enquanto mecanismo para a alocaçãode recursos. Em outras palavras, melhorseria que "o rol de preferências fosse elabora-do centralizadamente, e então aplicado uni-formemente em todo o país."

Para Culyer, dado um mix de produtosa ser ofertado e uma escala de priorida-des, o sistema público seria mais eficientedo que algum tipo de subsídio ou instru-mento semelhante. Isso decorre, em par-te, do pressuposto de que os valores en-

contrados na comunidade são relativa-mente homogêneos, facilitando o discer-nimento sobre preferências.

Além disso, este autor é da opinião deque a prestação do serviço público con-siste em uma forma das pessoas repassa-rem a responsabilidade da atenção à saú-de da esfera privada para a pública, ten-do em vista as externalidades trazidaspor condições inadequadas de saúde. Co-mo os sistemas calcados no mercado nãolevam em consideração os custos sociaisadvindos da ocorrência de doenças, so-mente um gestor público terá preocupa-ção com a eqüalização da condição desaúde da população e assim reduzir asexternalidades negativas.

Titmuss, por sua vez, vê na instituiçãodo NHS um procedimento que foi capazde incentivar a reciprocidade e obriga-ções entre as pessoas. Ou seja, a sua argu-mentação está essencialmente calcada noproblema ético das organizações sociais,e em particular do altruísmo, a fim deque o espectro das condições de saúdepelos estratos da população não sejamtão desiguais.

Nenhuma das posições, contudo, deuconta, integralmente, do que informou acriação do NHS, pois cada um dos trêsautores privilegia parte do problema. Dequalquer maneira, embora algumas aná-lises alertem para inconsistências e du-biedades na formulação inicial do NHS, éinegável que o legislador pretendia, mes-mo de uma forma não muito elaboradateoricamente, propiciar um sistema deatenção à saúde mais eqüitativo do queentão era o vigente.

Características do NHSA conformação assumida ao longo dos

anos transformou muitas das característi-cas iniciais do NHS, todavia sem nuncaperder de vista o objetivo de fornecer aatenção universal. Aparentemente, aindaque apresentando impactos substanciais,tais alterações parecem ter procuradomais uma adequação do sistema à dinâ-mica social do que medidas de reformu-lação.

Na atualidade, seguindo as indicaçõesde Leichter 14e Ham,15 o NHS cobre amaioria da população residente na Grã-Bretanha, a despeito de idade, sexo, ocu-pação, classe social, raça etc. Para inte-

o DESAFIO DA EQÜIDADE NO SETOR SAÚDE

grar O sistema, o cidadão deve se registrarjunto a um médico de família, que será res-ponsável pelo primeiro contato e, se neces-sário, o encaminhará para um especialista.Caso exista demanda por SADT (Serviçode Apoio Diagnóstico Terapêutico) ou hos-pitalização, somente este especialista esta-rá habilitado a fornecer autorização.

Vale salientar que os serviços de aten-ção primária não são restritos às ativida-des médicas, incluindo enfermeiros, vis i-tors e assistentes sociais. Este nível deatenção atua em centros de saúde, desen-volvendo em todo território ações de va-cinação, pré-natal, prevenção etc. Issonão quer dizer que a cobertura seja per-feita, uma vez que os médicos, por seremautônomos e não empregados, têm a ga-rantia de escolher área de trabalho. Porconseguinte, as possibilidades de plane-jamento sofrem restrições.

A hospitalização é realizada sem qual-quer ônus para o paciente, mesmo paraintervenções complexas e de longa dura-ção. A única distinção colocada diz res-peito ao tipo de leito, visto que uma pe-quena taxa é cobrada daqueles que op-tem por uma modalidade mais "priva ti-vali. Tal aspecto não significa que os lei-tos reservados aos particulares se mante-nham como no início do sistema; dado osproblemas que o esquema implicava -privilégios, corrupção etc., foi abandona-do em meados dos anos 70.

Já para os tratamentos dentários, servi-ços oftalmológicos e produtos farmacêu-ticos, existe alguma forma de comparti-lhamento de custos. No primeiro caso,50% do encargo é de responsabilidade dousuário, embora não arque com a consul-ta e esteja estipulado um teto para a suacontribuição. As despesas com consultasoftalmológicas também são integralmen-te reembolsadas, mas os óculos não. Paraos medicamentos há uma taxa, mas quepode ser dispensada para determinadascategorias de paciente, o que também éválido para outros serviços.

Dentre a clientela, aquelas que atraemmaior ênfase para o tratamento diferen-ciado são os idosos, doentes psiquiátri-cos, gestantes e crianças. Os mecanismosutilizados na diferenciação são múltiplose guardam estreita relação com seus obje-tivos; no entanto, possuem alguns traçosem comum. Mais explicitamente, as polí-

ticas desenhadas para atender as vicissi-tudes daqueles usuários sublinham a re-levância do relacionamento hospital! co-munidade/família. Por este caminho,pretende-se alterar a lógica da prestaçãodo serviço no sentido de maior efetivida-de (leitos especiais, centros de treinamen-to etc.). além da contenção do custo (ser-viços locais, hospitais menores etc.)

As dificuldades para implementar aspolíticas ao nível local, por sinal, repre-sentam algumas das principais críticasque o NHS recebia até meados da décadade 70. Nessa época, as pressões pela rees-truturação impulsionaram a revisão daarquitetura institucional visando: à unifi-cação dos serviços de saúde sob uma sóautoridade; à coordenação entre autori-dades de saúde e serviços locais; e ao me-lhor gerenciamento em todos os níveis.

Após os debates gerados pelas propos-tas, chegou-se a um desenho que privile-giou as autoridades regionais enquantoplanejadores dos serviços de saúde. Aprestação propriamente dita ficou a cargodos distritos de saúde, atuando em estrei-ta relação com os conselhos comunitá-rios. Ao nível central (Departamento deSaúde e Seguridade Social) ficaram vin-culados apenas os comitês responsáveispelo gerenciamento dos contratos com osmédicos, mantendo este uma grande au-tonomia em razão da especificidade desua função.

Para empreender todas as atividades,o sistema de saúde conta basicamentecom os recursos provenientes dos impos-

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16. FENN, P.; MCGUIRE,A. "Lareforma dei Servicio Nacionalde la Salud en el Reino Unido".Revista de economia, n.681-682, 1990, p.27-43; AKERMAN,M. "As recentes mudanças dosistema de saúde britânico: al-voroço na cidade da Corte".Saúde em Debate, n.34, 1992,p.47-50.

17. TOWNSEND, P.; DAVID-SON, N. Inequalities in health.London: Penguin, 1982.

18. TITMUSS,Richard. Commit-ment of Welfore. London: Allenand Unwin, 1968. Apud HAM, C.Op. cít,

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tos (90%) e uma pequena parcela de con-tribuições especiais e taxas. Um rateiodesta natureza permite, a priori, que sealcance a eqüidade no financiamentodos serviços dado que não existe vincu-lação direta entre estes e o pagamentode tributos.

Na última década, contudo, as evidên-cias levam a acreditar na mudança nacomposição do "bolo", pois a gestão dopartido conservador é simpática à maiorparticipação das taxas. Afora isso, tam-bém se advoga o incremento no segurosaúde, onde os benefícios são proporcio-nais à contribuição, além de outros meca-nismos mais característicos de economiasde mercado.

A mais recente manifestação da ten-dência de introdução de mecanismos demercado ocorreu em 1989, quandoanunciou-se as propostas de reformaspara a década seguinte. Basicamente, ()eixo condutor da proposta está calcadono estímulo à concorrência entre os pro-dutores de bens e serviços de saúde,principalmente através da disputa porpacientes. 16

Para que tal venha a acontecer, pre-vêem-se modificações na estrutura defuncionamento, empreendendo-se inte-gração vertical. Esta se dará com a cen-tralização de poderes em um novo órgãogestor (NHS Management Executive), in-cumbido de supervisionar os serviçoshospitalares, sócio-sanitários e os médi-cos de família. Paralelamente, as instân-cias regionais terão concorrentes na figu-ra dos "titulares de orçamento" (budgetholders). Estes, para atraírem o maior nú-mero de pacientes, necessitarão negociarcustos e qualidade com os serviços (hos-pitais, por exemplo). Assim, o consumi-dor poderá exercer alguma forma depressão para garantir a satisfação de suademanda.

Cumpre indagar se os objetivos serãorealmente alcançados ou prevalecerá aatuação de monopólios, como se verificana atualidade, podendo até elevar os cus-tos. Neste caso, com um agravante adi-cional, pois o prestador poderá selecionara sua clientela conforme seus interesses.Além disso, a soberania do consumidor émuito questionável na área da saúde, da-da, entre outros fatores, a mística presen-te na relação médico/paciente.

Conclui-se que as brechas para o incre-mento de serviços de baixa qualidade, as-sociados à discriminação, serão muitas,requerendo forte regulação por parte dopoder público.

Os impactos do NUSUm dos estudos com maior abrangên-

cia sobre a eqüidade do NHS indiscuti-velmente foi o "Relatório Black", cons-tante do trabalho de Townsend e David-sono 17 A pesquisa procurou detectar ascondições de acesso e consumo dos servi-ços de saúde, verificando a ocorrência ounão de desigualdades em relação a trêscategorias: geográficas, classes sociais egrupos de clientela. O resultado estimouelevado grau de privilégios para as clas-ses e regiões mais ricas, o que contrastaviolentamente com a percepção mais di-fundida que tem o sistema inglês comoparadigma da política pública eqüitativa.

A mensuração dos desníveis encontra-dos entre as classes sociais utilizou comoreferencial o comportamento das taxas demortalidade e morbidade, além do graude utilização dos recursos. Uma primeiraconstatação foi relativa ao insucesso doNHS em diminuir as diferenças entre osvalores das taxas de mortalidade perten-centes aos extremos superior e inferiordesde a sua instalação. Este padrão é ver-dadeiro para os primeiros períodos de vi-da (mortalidade perinatal e infantil) epermanece na fase adulta, tanto entre oshomens como em mulheres.

No tocante à morbidade, os estudosnão conseguiram ser tão precisos em de-corrência da precariedade de informações.Não obstante, apontam com relativa fir-meza a discrepância entre doenças de lon-ga duração, que prevalecem com mais in-tensidade nas classes pauperizadas. Dequalquer forma, no geral, os indícios sãomarcantes sobre o maior número de doen-ças para aqueles com menos afluência.

Quando se considera o problema de usodos recursos (eqüidade de utilização), veri-fica-se, desde a década de 60, que os gru-pos de renda mais elevada recebem maioratenção dos especialistas (medida, porexemplo, pelo tempo de duração da con-sulta); usufruem dos hospitais mais bemequipados; dispõem de um atendimento àmaternidade melhor; e alcançam mais fa-cilmente os tratamentos psiquiátricos. 18

o DESAFIO DA EQÜIDADE NO SETOR SAÚDE

o que é curioso, ainda, é que o pa-drão excludente também vale para osserviços de atenção primária. A explica-ção parece residir no fato de que exis-tem grupos que "dominam" estratégiaspara acessar os recursos, e quando o fa-zem recebem mais em relação aos de-mais.

Assim, no resultado final, conformeaponta Le Grand 19, as classes inseridasno limite superior detinham 40% a maisdo gasto por pessoa do que aquelas dolimite inferior. Para o autor, contribuipara tanto o custo proporcionalmentemais elevado que atinge as camadasmais pobres quando necessitam despen-der tempo para se encaminhar ao servi-ço, bem como a própria acessibilidadedos serviços que beneficia os altos gru-pos sociais. O fato principal, no entanto,deve ser procurado mais nas condiçõesmateriais de sobrevivência do que nascaracterísticas intrínsecas do serviço desaúde; ou seja, no quadro geral de dis-tribuição de renda.

Outro tipo de desigualdade discutidono âmbito do NHS foi referente aos des-vios entre grupos de clientela, tendo porparâmetro os padrões de atenção médi-ca. Particularmente, concluiu-se que aatenção aos idosos e aos doentes psi-quiátricos não apresentavam prioridadesignificativa na atuação. É certo que di-ligências foram encaminhadas no senti-do de elevar os gastos com estes seg-mentos que exigem tratamento com ta-xas de longa permanência, mas ficaramisoladas no tempo. Aparentemente, adificuldade está em fazer valer as dire-trizes centrais na disputa de recursos, jáque estes grupos não têm condições depressão ao longo do processo de imple-mentação das políticas.

Por fim, a distribuição desigual de re-cursos entre as regiões geográficas sa-lienta algumas impropriedades do siste-ma de saúde britânico. Naturalmentenão é pretendido, a priori, o perfeitoequilíbrio entre localidades, até porqueseria uma premissa injusta que descar-taria o papel do perfil regional. Entre-tanto, esperava-se que o NHS firmasseum padrão mais eqüitativo, seja medidopelo comportamento na taxa de mortali-dade, seja pela alocação de recursos se-gundo necessidades.

Um motivo que concorre para as desi-gualdades regionais é que este aspectonão pertencia ao rol de preocupação dosplanejadores até a década de 70. De fato,somente com a instalação do ResourceAllocation Party (RAWP) procurou-se"reduzir progressivamente, e o mais rápidopossível, as disparidades entre diferentes par-tes do país em termos de oportunidade deacesso a atenção à saúde para pessoas emigual situação de risco, levando em considera-ção necessidades de saúde e fatores sociais eambientais que podem afetar a necessidade deatenção à saúde". 20

Neste intento, o RAWP seleciona os se-guintes critérios: 21

• tamanho da população: ponderação emfunção do número de habitantes de ca-da região;

• estrutura populacional: por faixa etáriae sexo à medida que esta composiçãoafeta as necessidades relativas;

• morbidade: ponderação em relação àocorrência relativa de doenças inter-re-giões;

• custo: em relação à natureza da morbi-dade (doenças que demandam trata-mentos mais ou menos dispendiosos) eem relação ao preço dos insumos inter-regiões;

• fluxo inter-regiões: atendimento de pa-cientes oriundos de outras regiões ad-ministrativas;

• educação médica e dentária: ajustes emfunção da distribuição desigual de ins-tituições de formação na área da saúde;

• investimentos em capital: ajustes decor-rentes não só do estoque de capital,mas também da sua obsolescência e de-preciação.

19. LE GRAND, J. The distri-bution of public expenditure: thecase of health core. Econômica.v. 45,1978, p. 125-142. ApudHAM, C. Idem, ibidem.

20. Idem, ibidem.

21. MOONEY,G. Op. cit.; HAM,C.Op. cit.; WEST, P. "Theoreti-cal and oractical equity in lheNHS in England". Social Scienceand Medicine, n. 15, 1981,p.177-22.

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mática RAWP em alterar o quadro dedesigualdades vigente no início dosanos 80.26 Como conseqüência, em subs-tituição ao RAWP, sugeriu-se, no bojodas mencionadas propostas de reformu-lação de 1989, um esquema baseado nocontingente populacional ponderadopela condição de saúde e estrutura etá-ria, mantendo-se a SMR (StandardisedMortality Ratio) como proxy de morbi-dade. O fato inovador está no reconhe-cimento da necessidade de algum índiceque considere as condições sociais lo-cais intervindo na distribuição dos re-cursos; infelizmente, o procedimentonão foi esclarecido.

Uma outra diferenciação importanteadvinda daquelas propostas está na insti-tuição dos titulares de orçamento. Nestecaso, a sistemática de alocação para des-pesas com medicamentos e serviços hos-pitalares obedecerá outros critérios. Emespecial, o segundo tipo de serviço utili-zará o número de pacientes registradopelo profissional, referenciado à idade,sexo e condições de saúde (e pelos fatoressociais e locais, sic). Entretanto, ainda énecessário o delineamento mais precisosobre como a proposta será operacionali-zada, verificando os mecanismos que se-rão criados a fim de evitar a discrimina-ção de clientelas; enquanto isso, é válidaa observação de Carr-Hill de que os im-pactos futuros são obscuros.

22. WEST, P. Idem, ibidem.

23. Idem, ibidem.

24. Utiliza-se a StandardisedMortality Ratio (SMR), quecompara o número de mortesatuais em uma região com o es-perado caso as taxas nacionaisde mortalidade fossem aplica-das à população daquela região.

25. HAM, C. Op. cit.

26. CARR-HILL, R. "Allocatingresources to health care: RAWPis dead - long live RAWP".Health Policy, n.13, 1989,p.135-44.

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A operacionalização do RAWP parteinicialmente de uma desagregação dosserviços implementados pelo NHS em se-te categorias básicas, com seus respecti-vos gastos orçamentários médios. Porexemplo, serviços de internação não psi-quiátricos (56% do orçamento global),serviços comunitários (12%) etc.22 Paracada uma das regiões estima-se as neces-sidades dos serviços a partir da pondera-ção dos fatores acima elencados, ajustan-do os recursos orçamentários dos servi-ços específicos (categorias) através dodesvio padrão destes fatores em relação àmédia nacional.

Dessa forma, enquanto os fatores indi-cam o volume global de recursos neces-sários para cada região, a distribuição se-gundo as categorias de serviços subli-nham as prioridades nacionais definidaspelo Governo Central.

Na opinião de West23, a metodologiaelaborada permite satisfazer em grandemedida as eqüidades vertical e horizon-

. tal, visto tratar as diferenças entre orça-mentos, populações, equipamentos,profissionais e custo. Salienta, porém,que estudos futuros sobre característi-cas populacionais deveriam propiciarparâmetros mais adequados sobre amorbidade, já que para esta o RAWPfaz uso de uma proxy>.

Em contraste, outros autores levan-tam críticas à lógica e à operacionaliza-ção da sistemática. Uma primeira ad-vertência recai justamente sobre a perti-nência da proxy de morbidade ser deri-vada de uma medida de mortalidade,dado que não se tem uma posição con-clusiva sobre a correlação entre as duasvariáveis. Outro problema está na acei-tação, sem maiores questionamentos, deque é factível a definição do que seja ne-cessidade de atenção à saúde, assim co-mo a sua mensuração.

Mais importante, porém, é a disjun-ção entre o planejamento global e a ins-tância de alocação, acarretando a perdadas diretrizes da política de saúde.Ham 25 sublinha a incapacidade da fór-mula RAWP adequar-se às mudançasnas prioridades, sejam aquelas decor-rentes da arena política ou da própriaavaliação dos resultados alcançados.

O que transparece das evidências,contudo, é a relativa ineficácia da siste-

CONCLUSÕES E APONTAMENTOS PARA OCASO BRASILEIRO

A estruturação dos modelos de saúderemete à discussão dos princípios nor-teadores de uma política de saúde. Emúltima análise, os resultados daí deriva-dos refletirão o matiz ideológico presen-te em determinada sociedade. Natural-mente não se está afirmando que a confi-guração será monolítica, mas tão somen-te que os segmentos sociais necessitarãoacordar as bases da política de saúde. Apartir destas, encontrar-se-ão negocia-ções ao longo do processo de formulaçãoe implementação.

É neste contexto que a eqüidade cons-titui uma das preocupações centrais.Uma vez que ela incorpora como valoresbasais a igualdade e a noção de "direi-to", pressupõe que os indivíduos devam

o DESAFIO DA EQÜIDADE NO SETOR SAÚDE

receber cuidados fundamentais - a des-peito do critério que se utilize para esta-belecê-los - para assegurar suas condi-ções de reprodução social.

Na área da saúde, a garantia destacondição sugere o discernimento sobreas necessidades de saúde. Exclui-se daavaliação a prevalência de valores e pre-ferências individuais, que caracteriza-riam modelos calcados em princípios li-berais que privilegiam a demanda, inde-pendente dos condicionantes de ordemmacrossociaL

Se, por um lado, o conceito de necessi-dade assume primazia, por outro a suamensuração envolve obstáculos teórico-metodológicos ainda não resolvidos acontento. A superação dessa dificuldade,na prática, tem se dado através do deli-neamento do perfil epidemiológico. Nes-te aspecto, necessidade não se confundecom demanda, visto que o consumidornão tem o arbítrio para estipular o diag-nóstico e procedimentos que atendamsua condição percebida de saúde.

Das várias formas de se definir eqüi-dade segundo as necessidades de cuida-dos de saúde dos indivíduos, considera-se que a igualdade de utilização poriguais necessidades revela-se, em princí-pio, como tratamento mais igualitário ejusto. Além de contemplar definiçõesmais básicas como acesso, a eqüidade deutilização pressupõe que os benefíciosadvindos do uso dos serviços ofertadosestejam em estreita correlação com as ne-cessidades diagnosticadas ao nível insti-tucional. Paralelamente, pressupõe que aeqüidade internecessidades é definidapelo estabelecimento de prioridades atra-vés do processo de negociação políticaentre setores da sociedade.

Ao assumir explicitamente que as op-ções deverão ser debatidas em uma arenademocrática, minimiza-se a influênciaque grupos atuantes pelo lado da ofertade bens e serviços exercem no sistema desaúde. Isso porque, ao deixar de confor-mar diretamente o padrão do consumi-dor individual (via tecnologia, propagan-da etc), os interesses aí presentes deve-rão se manifestar perante outros atoresinstitucionais, com mais poder e informa-ções para se contraporem.

Não deve ser esquecido, porém, quepara a eqüidade de utilização vingar, é

praticamente vital que outros conceitosde eqüidade tenham sido observados.Ademais, nem esta condição é suficien-te, dado que o setor saúde, para propor-cionar a eqüidade de utilização plena,deve também articular-se com outros se-tores sociais.

Entretanto, será necessário reconhecer,até por uma questão estratégica, que ou-tras situações de eqüidade mais exeqüí-veis no tempo devam ser alcançadas pri-meiramente.

Um exemplo dessa postura encontra-se no NHS britânico, onde a distribuiçãode recursos segundo a sistemática doRAWP espelha a tentativa de obtençãoda eqüidade de acesso. Não obstante osavanços alcançados, as próprias autori-dades inglesas admitem ainda a perma-nência de um quadro de desigualdadesnas condições de saúde. Conclui-se que amudança mais radical só teria sido possí-vel com alterações significativas nas va-riáveis sócio-econômicas, que extrapolamo âmbito do setor saúde.

Este não parece o caminho a ser segui-do nos próximos anos, lembrando que asrecentes propostas de reforma atentamexclusivamente para o interior do setorsaúde. Como agravante, o teor das medi-das propugnadas restringem-se aos as-pectos de eficiência, evidenciando umasensível mudança de eixo em relação àeqüidade.

As expectativas com o cenário futurosão até mais preocupantes, tendo emmente a experiência norte-americana. As

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27. HIGGINS, W. "Myths ofcompetitive reform". Health Ca-re MafÍa'gement Review, n.16,1991, p.65-72.

28. Para uma discussão deta-lhada sobre a Lei nº 8080 e nor-matizaçÕes posteriores, consul-tar FUNDAP. Financiamento dosetor saúde: apontamentos so-bre a questão das transferên-cias intergovemamentais de re-cursos da seguridade social.São Paulo: FUNDAP, 1992.

29. A saber: 1- perfil demográfi-co da região; 11- perfil epidemio-lógico da população a ser co-berta; 111- características quanti-tativas e qualitativas da rede desaúde na área; IV- desempenhotécnico, econômico e financeirono período anterior; V- níveis departicipação do setor saúde nosorçamentos estaduais e munici-pais; VI- previsão no planoqüinqüenal de investimentos darede; VII- ressarcimento doatendimento a serviços presta-dos para outras esferas de go-verno; VIII- população propor-cionaI.

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reformas visando à maior competitivi-dade na oferta de bens e serviços de saú-de mostraram-se incapazes de controlarcustos e melhorar a qualidade, prejudi-cando, ao mesmo tempo, a eqüidade dosistema. 27

No Brasil, as transformações que es-tão ocorrendo no modelo de saúde tam-bém acarretam alterações nas caracterís-ticas da oferta de serviços para a popu-lação. Isso porque o padrão de distri-buição de insumos (equipamentos, re-cursos humanos etc.), associada a umadistribuição desigual da renda, compro-mete a eficácia e eficiência da política desaúde no alcance efetivo de maior justi-ça social.

A dificuldade atual de reverter essequadro distorcido na localização espa-cial dos insumos remete ao perfil daspolíticas de saúde no passado recente.Verifica-se a concentração dos investi-mentos e recursos em geral nas áreasmais afluentes e com maior renda per ca-pita, em detrimento de regiões mais de-gradadas socialmente.

Portanto, observa-se a ocorrência deineqüidades segundo a ótica das váriascategorias apresentadas ao longo do tex-to. Tal se dá desde os aspectos menoscomplexos - como igualdade de gastosper capita ou de insumos por necessida-de - até as noções mais elaboradas, co-mo igualdade de acesso e utilização enecessidades marginais.

A preocupação com esta dimensão sefaz hoje presente em razão das disposi-ções elencadas pela Lei Orgânica daSaúde e pela legislação complementar,que preconizam a transferência intergo-vernamental de recursos (Lei nº 8.080,de setembro de 1990,Lei nQ 8.142,de 28de dezembro de 1990, e Norma Opera-cional Básica (NOB) nº 01 do INAMPS,editada pelas Resoluções nº 258e 273).28

A Lei nº 8.080,em seu artigo 3529,aoapresentar a composição de critérios pa-ra transferência, não permite vislumbrarqual o resultado final da repartição dosrecursos da seguridade social para esta-dos e municípios. Idealmente, o objetivoalmejado deveria atentar para um qua-dro caracterizado pela justiça distributi-va. Para tanto, algum conceito de eqüi-dade constituiria um princípio a seradotado para esta repartição, possibili-

tando o direcionamento de uma propor-ção maior de recursos para as regiõescom piores condições de saúde, tal qualna sistemática de repartição inglesa(RAWP).

Diante da normatização apresentadapela legislação brasileira, entretanto, éimpossível afirmar que tal pressupostopossa ser contemplado em sua essência.Sem dúvida, alguns dos critérios refle-tem orientações diversas e até conflitan-tes, como é o caso entre os critérios quemensuram desempenho (financeiro, téc-nico, qualidade etc.), que tendem a favo-recer regiões mais desenvolvidas, e osque procuram medir as condições reaisde saúde através do perfil epidemiológi-co. Neste contexto, fica a questão da per-tinência da utilização de critérios even-tualmente regressivos, que favoreceriamáreas com menores dificuldades para re-solver suas necessidades de saúde.

Além disso, o procedimento que em-basa o sistema de cobertura ambulato-rial instituído pela NOB nº 01 das Reso-luções 258 e 273 também se apóia emcritérios que trazem resultados que nãoconcorrem para a eqüidade. Haja visto,por exemplo, os itens capacidade insta-lada e desempenho assistencial que, emtese, nortearam a definição dos valores,através de uma unidade monetária espe-cífica para cada região, denominadaUnidade de Cobertura Ambulatorial -UCA, para a distribuição de recursos pa-ra os serviços ambulatoriais.

Toda essa discussão, todavia, fica emgrande medida dependente da pondera-ção que os critérios venham a receber,seja no que diz respeito à fixação daUCA, seja com relação aos critérios doartigo 35 da Lei nQ 8.080.Isto porque, lo-gicamente, a assunção de pesos diferen-ciados poderia contrabalançar a prepon-derância de um resultado eventualmen-te regressivo, derivado da aplicação dealguns dos critérios, viabilizando umamaior justiça distributiva.

Portanto, os indícios são de que aeqüidade não constitui, de fato, apesarda orientação universalizante, uma dire-triz básica do modelo de saúde brasilei-ro. Isso se evidencia nas transferênciasde recursos da União que, a nível nacio-nal, ainda representam a principal fontede financiamento, especialmente para as

o DESAFIO DA EQÜIDADE NO SETOR SAÚDE

regiões mais pobres. A sua distribuição,ao invés de atender os ditames pondera-dos pelas necessidades de saúde, res-ponde a critérios casuísticos, delineadossegundo pressões de interesses econô-micos e políticos.

A conclusão mais embasada sobre asverdadeiras repercussões relativas àeqüidade ainda não pode ser elaborada.A implementação do modelo de saúdesugere que a eqüidade não está sendocontemplada institucionalmente, estan-do mais ao sabor das características in-dividuais de cada gerente dos serviçosde saúde.

Desta forma, o resultado da políticareal certamente não reverterá o quadrode desigualdades no setor saúde. Alémdisso, a crise do Estado brasileiro, com aconseqüente degradação na prestaçãodos serviços públicos de saúde, tem pro-piciado, especialmente a partir da últi-ma década, a expansão da oferta de mo-dalidades de seguro-saúde privado. Es-tas acabam por seduzir aqueles segmen-tos sociais com capacidade de conceberestratégias alternativas a um serviço pú-blico ineficaz e de baixa qualidade. 30 Seisto, por si só, já representa um fortecomponente de ineqüidade, fica cornoagravante o fato dos segmentos rema-nescentes, dependentf's do poder públi-co, não possuírem mecanismos de pres-são no sentido de garantir o atendimen-to adequado, em acordo com a linha deargumentação de Titmuss.

No limite, a permanência dessa ten-dência de debilitação do setor públicoface ao setor privado desnudará o emba-te ideológico entre concepções contradi-tórias de modelos de atenção à saúde.Em última análise, ter-se-á que optar pe-la hegemonia do setor público buscandoa universalização da prestação, confor-me defendida pelos grupos que deramsuporte ao texto constitucional, ou pelopredomínio das regras de mercado im-plicando a segmentação da demanda.

A lógica de mercado traz a lembrançado modelo americano de saúde, onde oprincípio norteador do desenho das po-líticas é a liberdade, induzindo a hege-monia do setor privado, sendo portantoa eqüidade relegada a um plano secun-dário. Não obstante, mesmo naquelarealidade, a premência de uma situação

crítica no direito de acesso de classes ex-cluídas do mercado formal de trabalho,forçou a intervenção pública, conquantode forma residual, no fornecimento deserviços CMedicaid e Medicare) com oobjetivo explícito de minimizar as desi-gualdades.

Cabe a indagação, por fim, de comoformular, no Brasil, uma política de saú-de que tenha o princípio da liberdade deescolha pelo consumidor através do me-canismo de mercado (preço), quando énotória a violenta concentração de rendaem termos pessoais e espaciais.

Aqu i, melhor seria o privilegiaroentoda eqüidade como eixo condutor da po-lítica governamental, até como medidade salvaguarda do direito à saúde dagrande massa populacionaL É precisodestacar que isto, por si só, não implica-ria necessariamente a resolução dos des-vios. Como bem ilustra o exemplo britâ-nico, mesmo com a escolha por uma es-trutura pública pretensamente universa-lizante e igualitária, subsistem grandesdisparidades no que concerne à eqüida-de de acesso e utilização dos serviços.Reconhece-se que as razões que dãoconta das causas deste quadro encon-tram-se fora do âmbito das políticas desaúde, mas sim vinculadas ao própriopadrão de distribuição de renda. Nempor isso, ao setor público de saúde ficafacultado o direito de não intervir na-quilo que lhe compete para tentar viabi-lizar a eqüidade. O

Artigo recebido pela Redação da RAE em abril/93, aprovado para publicação em maio/93.

3D. FAVERET,P.; OLIVEIRA, P.Op. cít.

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