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1 A ESCUTA DA PALAVRA SILENCIADA NA ANOREXIA E NA BULIMIA * Rosane Monteiro Ramalho** Associação Psicanalítica de Porto Alegre Atualmente, na clínica, deparamo-nos com um crescente número de pessoas com anorexia e bulimia, bem como é assunto recorrente na mídia. Tais manifestações, também denominadas “transtornos alimentares” (segundo as classificações psiquiátricas vigentes), “patologias da oralidade” 1[1] ou ainda consideradas “síndromes” 2[2] , consistem numa relação problemática com a alimentação, num medo de perder o controle em relação à comida, acompanhada de uma perturbação da imagem de si. Geralmente afetam as mulheres – 90 % dos casos 3[3] -, o que leva estas patologias a serem consideradas como “doenças especificamente femininas” 4[4] , ou “patologia da adolescência feminina” 5[5] , iniciando comumente na adolescência ou no início da vida adulta. A anorexia caracteriza-se por uma restrição voluntária muito grande da alimentação, levando a paciente a perdas extremas de peso, podendo chegar à morte. Na bulimia, há ingestão de uma quantidade excessiva de alimentos de forma rápida e geralmente compulsiva. A experiência é vivida como descontrole e estranhamento, sendo seguida, geralmente, por vômitos, uso de laxantes e diuréticos, jejuns e exercícios físicos excessivos. É freqüente também estas duas manifestações estarem associadas. Na clínica, a escuta de algumas pacientes com tais problemáticas levou-me a investigar as produções já 1 * Este trabalho é uma versão revisada da palestra apresentada na Jornada de abertura APPOA, com o título: A dor emudecida na anorexia e na bulimia. ** Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC/SP. [1] Chemama (1997). 2[2] Herscovici & Bay (1997), e Nunes et al. (1998). 3[3] Cordás (1993). 4[4] Herscovici & Bay (1997) 5[5] Brusset (1999).

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A ESCUTA DA PALAVRA SILENCIADA NA ANOREXIA E NA BULIMIA * Rosane Monteiro Ramalho**Associação Psicanalítica de Porto Alegre 

Atualmente, na clínica, deparamo-nos com um crescente número de pessoas com anorexia e bulimia, bem como é assunto recorrente na mídia. Tais manifestações, também denominadas “transtornos alimentares” (segundo as classificações psiquiátricas vigentes), “patologias da oralidade”1[1] ou ainda consideradas “síndromes”2[2], consistem numa relação problemática com a alimentação, num medo de perder o controle em relação à comida, acompanhada de uma perturbação da imagem de si. Geralmente afetam as mulheres – 90 % dos casos3[3] -, o que leva estas patologias a serem consideradas como “doenças especificamente femininas”4[4], ou “patologia da adolescência feminina”5[5], iniciando comumente na adolescência ou no início da vida adulta.

A anorexia caracteriza-se por uma restrição voluntária muito grande da alimentação, levando a paciente a perdas extremas de peso, podendo chegar à morte. Na bulimia, há ingestão de uma quantidade excessiva de alimentos de forma rápida e geralmente compulsiva. A experiência é vivida como descontrole e estranhamento, sendo seguida, geralmente, por vômitos, uso de laxantes e diuréticos, jejuns e exercícios físicos excessivos. É freqüente também estas duas manifestações estarem associadas.

Na clínica, a escuta de algumas pacientes com tais problemáticas levou-me a investigar as produções já existentes sobre o tema, estas, porém, em alguns aspectos, não correspondiam ao que escutava.

Muitos estudos na área médico-psicológica geralmente consistem numa descrição fenomenológica, sendo associados a uma exagerada preocupação com o corpo, corroborada pelo ideal social do “corpo perfeito”, que preconiza a magreza como padrão de beleza. Obviamente que a cultura em que estas pacientes estão inseridas tem influência sobre elas, e que, portanto, relacionada a este ideal do “corpo perfeito” – parâmetro este difundido pelas top models e pelo mundo fashion – encontra-se a proliferação de inúmeras dietas, regimes, moderadores de apetite, cirurgias estéticas, bem como de academias de ginástica. Tal padrão de corpo teria mudado na cultura, pois, em tempos atrás, eram valorizadas as formas mais arredondadas.

Entre os estudos psicanalíticos, existe um relativo consenso - do qual também compartilho - em atribuir estes sintomas a dificuldades nas relações primordiais dessas pacientes, que influenciariam na imagem que elas têm de si mesmas. Entretanto alguns deles consistem numa interpretação psicológica, atribuindo, por exemplo, estas patologias a uma recusa da feminilidade, numa tentativa de manter o corpo infantil6[6]. Outros relacionam estas 1* Este trabalho é uma versão revisada da palestra apresentada na Jornada de abertura APPOA, com o título: A dor emudecida na anorexia e na bulimia.** Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC/SP. [1] Chemama (1997). 2[2] Herscovici & Bay (1997), e Nunes et al. (1998).3[3] Cordás (1993).4[4] Herscovici & Bay (1997)5[5] Brusset (1999).6[6] Entre eles, Osório (1996).

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manifestações a uma recusa do corpo estando associado ao sexo, ou, ao “pecado”. Alguns consideram tais manifestações como autodestrutivas7[7], outros ainda, como onipotência, havendo uma recusa da falta8[8], uma recusa da diferença.

Assim, o que escutava de minhas pacientes, em determinados aspectos, se contrapunha ao que encontrava em muitas produções sobre o assunto, nas quais algumas generalizações também me causavam um certo incômodo, uma inquietação, levando-me a escrever. Então, partindo da escuta de um dos casos clínicos e lançando um outro “olhar” sobre estas problemáticas, proponho, assim, uma outra perspectiva de interpretação9[9].

Tomarei alguns fragmentos clínicos do caso de uma paciente – a quem vou chamar de Lia , que atendi há alguns anos atrás.

 Lia procurou-me, pois andava muito deprimida. Vivia desanimada, perguntando-se sobre o sentido de sua vida, a qual lhe parecia não ter razão alguma. Pensava seguidamente em morrer, pois tanto fazia estar viva ou morta.

Ela tinha 18 anos e ainda não havia menstruado. Morava sozinha e cursava faculdade. Sempre fora ótima aluna; porém, não conseguia mais se concentrar nos estudos, pois se dispersava, se desligava. A única coisa que a ocupava era a alimentação. Aliás, isto lhe era um “tormento” há alguns anos. Preocupava-se com o que comia, pois não conseguia ter limite, apesar de tentar fazer regime. Achava-se gorda, “horrível” (embora fosse uma moça bonita e aparentasse ter peso proporcional). Dizia não saber mais o que é fome. Muitas vezes, mesmo logo após as refeições, precisava desesperadamente comer, e comia demais, de pé, qualquer coisa, descontroladamente. Nestes momentos sentia como se não fosse mais ela, mas “uma coisa, um animal, não mais uma pessoa”. Só parava quando não agüentava mais, quando estava “lotada” e com o estômago doendo. Muitas vezes tentava vomitar, para se sentir menos mal – prática que já havia virado um hábito. Com as crises, que chegavam a acontecer várias vezes ao dia, acabou se isolando de todos. A única coisa que ainda continuava era a sua faculdade.

Após algum tempo de análise e com muita dificuldade, começou a falar da relação difícil que tinha com sua mãe. Sempre se sentiu “abandonada” por ela. Segundo Lia, sua mãe nunca tinha tempo para ela: estava sempre envolvida com seu trabalho, só se ocupando da família nas refeições; porém, nestes momentos, conversava exclusivamente com o marido. Dizia que sua mãe lhe dava roupas feias, azuis, masculinas e lhe cortava bem curtos os cabelos (Lia passou a ter cabelos longos e, neste dia – em que falou sobre isso – usava um vestido com uma delicada estampa floral).

Raramente ela contrariava ou discutia com a mãe. Perguntava-se por que a mãe teve filhos, se parecia não querer. Nas poucas vezes em que brigava com a mãe, ia para o seu quarto e arranhava seus braços até sangrar.

Em relação à amenorréia, sua mãe a interpretava como uma recusa de crescer, porém a filha pensava diferente: não era ela que não queria crescer, mas sua mãe que não queria que ela crescesse.

7[7] Por exemplo, Scazufca (1998).8[8] Como encontra-se em Lippe (1999).9[9] Ver também Ramalho (2001).

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Após algum tempo de análise, ao falar que sua mãe sempre lhe disse para se cuidar para não engravidar, não estragando, assim, a sua vida, Lia lembrou-se que nascera de uma “gravidez não desejada”. Seus pais, que nem eram casados, casaram-se às pressas, e sua mãe teve que interromper seus projetos, pois tinham uma intensa vida social e intelectual. Com dor, ela percebeu que seu nascimento “estragou a vida da mãe”.

No início de sua análise, atribuía o começo de seu problema com a alimentação ao fato de sua mãe ter-lhe dado um livro de regime quando ela engordara e iniciara uma dieta. Porém, ao longo de sua análise, conseguiu falar do momento em que desencadeara sua anorexia (a qual se transformou, mais tarde, em bulimia), ou seja, quando, por volta dos seus 14 anos, foi “abandonada” pelo namorado, sendo trocada por outra garota. A partir de então, passou a sentir-se extremamente “feia, gorda, horrível”. Iniciou uma dieta rigorosa, tornando-se vegetariana “fanática”, emagrecendo bastante, ao mesmo tempo em que se isolou de todos, estando muito deprimida. Mais tarde, ela passou a comer sem limite. Ela percebeu que, ao invés de chorar, comia, “engolia o seu choro”. Associava o comer descontroladamente aos momentos em que se sentia insuficiente frente a determinadas situações, momentos de desamparo e abandono.

Mais tarde, ela menstruou. Pararam suas crises de bulimia; no entanto, seguia fazendo as refeições geralmente sozinha e se alimentava quase exclusivamente de lácteos. Sem eles, por mais que comesse outras coisas, não se sentia satisfeita, ficando sempre com fome e agitada. Precisava deles para ficar tranqüila. Ela precisava “manter o controle, ao invés de ser invadida”.

Recordou-se que suas dificuldades com a comida eram bem antigas. Ela nunca gostara da comida que sua mãe fazia. Dáva-se conta de que não gostava do que sua mãe lhe dava; ela queria e precisava de outra coisa que a mãe não conseguia dar, pelo menos a ela. Sempre percebera a diferença que a mãe fazia entre ela e a sua irmã, a quem podia demonstrar carinho, dar um colo, dizer um elogio. Disse que era sempre assim: quando a sua irmã conseguia algo, ela era elogiada; enquanto com Lia não, ela não havia feito “nada mais do que a sua obrigação”.

Lia seguidamente vinha às sessões acompanhada de uma latinha de diet-pepsi. A imagem dela largando a lata em que bebia e se pondo a falar penso ser uma metáfora do que consistia esta análise, ou seja, possibilitar uma inscrição ao que até então era puro ato.

A escuta de pacientes com tais problemáticas, e a de Lia em particular, suscitou-me muitas questões: que sofrimento emudecido, silencioso era esse que só se revelava no “barulho” dos atos repetitivos com a comida (ou a evitando e a reduzindo a quantidades ínfimas, ou nos empanturramentos e vômitos solitários)? Que relação elas estabeleciam com a comida? O que a “comida” significava?

Percebia que, apesar das distintas histórias, essas pacientes apresentavam em comum certas questões, entre elas, uma problemática imagem de si, sendo frágil o que as sustentavam enquanto sujeitos.

Assim, o sofrimento de Lia, mais do que com a imagem do corpo (o sentir-se gorda, “horrível”), dizia respeito à imagem de si. Sua depressão, o andar desanimada, perguntando-se sobre o sentido de sua vida, a qual lhe parecia não ter sentido algum, o pensar seguidamente em morrer, pois tanto fazia estar viva ou morta, tinha relação com a

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imagem de si. Tratava-se, portanto, de uma frágil imagem de si decorrente de suas relações primordiais, da precária consistência subjetiva que foi abalada ao longo de sua vida.

Sabemos que a aquisição de uma imagem de si é conseqüência das relações primordiais estabelecidas. Ou seja, a constituição subjetiva se dá através de uma primeira imagem - também denominada Eu Ideal -, tomada especularmente, a partir do olhar, do desejo de um outro (no caso a mãe, como encarnação deste Outro primordial) endereçado ao sujeito, imagem esta que passa a ser uma matriz simbólica no seu processo de identificação.

Através do seu desejo – ou do seu "engano" de ouvir no choro e nos gritos de seu filho, uma demanda outra, além da do objeto nutricional, por supor que alí já exista um sujeito – a mãe acrescenta às necessidades orgânicas do bebê uma significação que as transforma. Assim, mais do que o leite, o verdadeiro alimento são as palavras.

É, portanto, o discurso materno que reveste o corpo biológico com uma segunda pele - esta simbólica - composta por significantes, a partir do seu desejo. Podemos também denominar esta segunda pele de “envelope narcísico”.10[10] Este, como o próprio nome diz, fornece um invólucro, constituinte do eu, estabelecendo os limites entre o dentro e o fora e permitindo, portanto, as trocas entre o interior e o exterior.

Porém, na falta de um olhar, de um desejo que forneça uma imagem, que defina uma silhueta, em um prazer de troca, é como se este olhar desfalecente materno, dirigindo-se para alhures, atravessasse o corpo do bebê a ponto de torná-lo transparente.11[11] Enfim, trata-se do rosto da mãe que se interpela e que não responde nada. Neste sentido, se o rosto da mãe não responde, o espelho então se torna uma coisa que se pode olhar, mas na qual não se pode se ver.

É o que se encontra na problemática melancólica, isto é, por não poder contar com a ajuda e a estabilidade de uma presença desejante, o sujeito faz-se eco da indiferença ou do vazio que se segue ao seu apelo.

Neste sentido, no lugar de seu reflexo que deveria ter-se sentido objeto de um investimento e também passado ele mesmo a investir, o sujeito viu levantar-se diante dele um modelo ideal inacessível, que todos os seus esforços nunca chegarão a tornar humanamente presente. São tentativas desesperadas para discernir o que, no outro, se definiria como desejo, a fim de respondê-lo e assim obter migalhas de reconhecimento; contudo, a criança só encontra a exigência crescente de um modelo surdo ao seu apelo. A potência do modelo é tão grande que de nada serve querer imitá-lo, nem mesmo esperar ver no rosto da mãe um sinal de acolhimento e de prazer, inibindo a criança em suas tentativas de sedução.

A frágil imagem de si característica das pessoas que apresentam anorexia e bulimia muitas vezes decorre do fato de se sentirem atendidas somente em suas necessidades biológicas e não encontrarem acolhida às suas demandas psíquicas, não lhes sendo oferecido um olhar, através do qual pudessem obter um reconhecimento enquanto sujeito.A dificuldade nas relações destas pacientes com suas mães não fazia parte, a princípio, de seus discursos, mas foi um dos aspectos que percebi em comum nesses casos. Trata-se de construções ao longo dessas análises, uma vez que, diferentemente dos relatos comumente escutados de neuróticos - que se colocam num lugar de vítima, mesmo que sentindo culpa -,

10[10] Conforme propõe Anzieu (1988).11[11] Como considera Lambotte (1997).

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estas pacientes não atribuíam ao outro (no caso, a mãe) a causa de seus problemas. Ao contrário, elas se consideravam as únicas responsáveis por eles, como se sua insuficiência ou desvalor fosse algo inquestionável e razão de suas dificuldades. Ou seja, que, por sua responsabilidade, não se fizeram amar. Seus discursos aí se mantinham, bem como se restringiam às suas dificuldades alimentares, como se estas mulheres não tivessem uma história. Somente ao longo das análises é que foi, então, construída uma narrativa, uma história, que possibilitasse que seus atos acedessem à fala.

No caso de Lia, na tentativa de obter um reconhecimento para si, buscava corresponder ao que supunha enquanto ideal no outro (materno), numa atitude sacrificial. Por não encontrar um lugar no seu desejo em relação a si (ou encontrá-lo de forma frágil), isto é, por não se tratar de um Outro desejante, castrado, mas, absoluto, sem falta, sem desejo, sem a possibilidade (ou com muita dificuldade) de uma alteridade – em relação ao qual era difícil uma separação, uma distinção, só restando o desamparo e a angústia do abandono – ela passou a tentar corresponder, então, a um ideal impossível, inatingível, um ideal de perfeição, muitas vezes, de uma forma obstinada.

Talvez isto possa nos ajudar a entender a demasiada exigência em relação a si característica dessas pessoas. O que também podemos denominar como um “superego sádico, mordaz” (um superego materno). Isto talvez possa também explicar a tendência ao masoquismo nessas pacientes, ou seja, um Eu masoquista frente ao sadismo do superego – o que também encontramos na melancolia12[12].

É comum as pacientes relatarem as crises bulímicas (os empanturramentos, vividos como atos compulsivos) como momentos de angústia, com perda de controle, sentimento de despersonalização, estranhamento e desamparo.

A noção freudiana de desamparo parte do estado inicial de insuficiência psíquica do bebê, que o coloca em uma situação de dependência vital face ao adulto protetor. Freud atribui a este período de impotência objetiva o estatuto de protótipo de uma condição de fragilidade ainda mais fundamental que, além da infância, é inerente a todo funcionamento psíquico. Refere-se à precariedade, à condição de ausência de garantias definidas.

Alguns autores13[13] consideram que a anorexia e a bulimia não constituam uma estrutura psicopatológica diferençável, ao modo das neuroses, perversões e psicoses. Observam que há distintas maneiras de sê-lo, em que as adições se apresentam nas distintas estruturas.

No entanto, o termo “estados-limite” é mais freqüentemente citado14[14] bem como “limítrofes”, “fronteiriços” ou “borderlines” para nomear tais fenômenos clínicos.15[15]

Outras vezes é empregado o termo “patologias do narcisismo”.16[16] Alguns autores também as associam à depressão ou melancolia.17[17] Freud mesmo, – em seu Rascunho G, de 1885

12[12] Freud (1924) diferencia a melancolia da psicose (pois, até então, a melancolia era incluída nas psicoses, assim como, ainda o é para a psiquiatria), bem como, a distingue da neurose. Passa a denominar a melancolia como “neurose narcísica”, resultando de um conflito entre o eu e o superego; a neurose (ou neurose de transferência, abrangendo a histeria, a neurose obsessiva, e a de angústia, ou fobia), de um conflito entre o eu e o isso; e, a psicose, de um conflito entre o eu e o mundo externo.13[13] Entre eles, Staude (1995); Nunes (1998).14[14] Jeammet (1999).15[15] Kovalovsky & Marrone (1995).16[16] André (1996).17[17] Herscovici & Bay (1997); e Brusset (1999).

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–, mencionava a relação da anorexia com a melancolia. Freud também afirma concordar com Abraham em relacionar a recusa da alimentação à melancolia.

Embora estas manifestações não consistam numa estrutura específica, através do discurso destas pacientes, podemos encontrar um substrato do repertório de possibilidades de constituição subjetiva, que mais tarde, no entanto, a vida vai definir. Assim, temos que muitas pessoas, na adolescência ou em alguma situação de injunção ao longo da vida, passam a apresentar tais manifestações, principalmente em situações em que experimentam a perda de uma relação de suporte narcísico, abalando sua frágil consistência psíquica. Podemos encontrar, então, algumas relações que se repetem, apesar das singularidades dos casos. Parece dizer respeito a alguma lacuna simbólica da fase pré-especular do processo de constituição subjetiva, aproximando-se da problemática da melancolia, ou melhor, da neurose narcísica18[18]. Parece haver, assim, uma deficiência, uma precariedade relativa à constituição do Eu Ideal, devido a sentir não ter sido investida de forma a ter significado o falo imaginário materno – ser o que poderia imaginariamente suprir a falta materna. Pois, por mais que se configure ilusório, imaginário e que, além disso, seja preciso deixar de sê-lo para aceder a uma posição subjetiva (isto é, é necessária a castração), sabemos que, para deixar de sê-lo, é preciso “ter sido” antes. Então, é necessário ter havido a alienação para haver a separação. Penso ser esta a problemática de Lia. Há, em seu sofrimento, um apelo desesperado de vir a aceder a uma condição subjetiva. Desta forma, ela passava a esperar dos namorados um desejo, um investimento deles em relação a ela, que sentia não ter encontrado em suas relações primordiais, um desejo que lhe outorgasse, então, uma imagem de si. E, por isso, o rompimento desta relação ter implicado uma desestruturação psíquica, levando-a, inclusive, à eclosão de manifestações de anorexia e bulimia.

No caso de Lia, estas manifestações haviam iniciado em um momento de separação em sua vida, vivido como experiência de abandono, de desamparo, por reeditar uma experiência de abandono anterior, mais arcaica, relativa às suas primeiras relações. Mas, a partir disso, podemos nos perguntar: o que estas manifestações têm em relação com separação – ou abandono?

Podemos pensar que a anorexia e a bulimia – ou seja, a recusa ou a ingestão excessiva seguida pela expulsão do objeto-alimento – parecem ser uma tentativa de estabelecer uma separação, uma falta até então impossível de ser simbolizada, tal qual o brincar infantil de fazer desaparecer o objeto. Isto é, ao invés de ser abandonada, rejeitada, é ela (anoréxica ou bulímica) quem abandona, rejeita. Tenta buscar, na ausência do objeto, a presença de sua representação, uma “presença na ausência”, ou seja, a interiorização da sua imagem (da mãe) na ausência desta, a partir do espelhamento com ela, acedendo, portanto, à dimensão simbólica, tal qual o Fort-da.19[19]

Como sabemos, o Fort-da consiste na observação, feita por Freud, do jogo de seu netinho de fazer desaparecer e reaparecer o carretel, associando-o à experiência de separação da mãe. No entanto, a ênfase deve ser colocada na repetição de uma separação, de uma perda, a qual se refere à perda da relação direta com a coisa, contemporânea ao acesso à

18[18] Neste aspecto, concordo com Jeammet (1999) ao considerar a anorexia e a bulimia como patologias da incorporação sob um modo próximo ao da melancolia.19[19] Freud (1920/1976).

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linguagem – “a palavra é o assassinato da coisa”, conforme propõe Lacan.20[20] É sua própria ação (fazer aparecer e desaparecer) que irá constituir o objeto, estando ali a raiz do simbólico, onde a “ausência é evocada na presença e a presença na ausência”. Tal simbolização é justamente o que possibilita que uma separação se dê, sem implicar uma experiência de abandono, de desamparo.

Assim, na anorexia, há a recusa do objeto (havendo uma equivalência entre alimento-mãe-namorado). Diante do sentir-se abandonada, tenta inverter as posições: é ela, a anoréxica, quem abandona. Tenta passar da experiência que viveu passivamente à atividade. Desta forma, ao invés de vítima, ela se torna a autora da separação, como se dissesse que não precisa mais dele, numa tentativa de se autobastar, negando sua dependência e seu desamparo. Podemos ver que este ideal de auto-suficiência vai ao encontro do ideal social de autonomia, próprio do individualismo moderno; enfim, de poder prescindir do outro, um “fazer-se por si mesmo”. Aliás, nos casos de anorexia e bulimia, o traço identificatório parece ser “o ter de se fazer por si mesma”, ao mesmo tempo em que o sentimento de abandono e desamparo.

Na bulimia, no primeiro momento – o da crise bulímica, do empanturrar-se de maneira descontrolada -, parece existir a tentativa de preencher um vazio. Porém, mais do que engolir tudo, parece ser ela – a bulímica – a engolida; mais do que dominar, é ela a dominada, encontrando-se anulada enquanto sujeito. No segundo momento, o do vomitar (ou o de tomar laxantes e diuréticos, a fim de eliminar, expulsar o que comera) consiste numa tentativa de resgate de uma condição subjetiva ao poder se separar.

Então, na falta de uma introjeção simbólica do objeto, tais manifestações, através de um objeto real (no caso a comida), consistem ou numa recusa – na anorexia – de forma a inscrever uma falta, um limite; ou, mediante a incorporação e expulsão do objeto – na bulimia –, buscar o estabelecimento de uma introjeção, uma incorporação de um significante (e, conseqüentemente, de uma separação). Ambas, de formas, porém, distintas, implicam a possibilidade de uma recusa, na busca de uma diferenciação, de um reconhecimento. Consistem na instauração de um limite, de uma demarcação de um dentro e de um fora.Para Lacan, diferente da projeção, que é imaginária, a introjeção é sempre simbólica (são impressões de traços significantes fornecidos nas relações primordiais). E, portanto, representa um papel essencial na identificação – a introjeção e a incorporação são protótipos da identificação, em que o processo psíquico é vivido e simbolizado como uma operação corporal (ingerir, devorar, guardar dentro de si). Na falta de uma introjeção simbólica do objeto, dá-se a incorporação do objeto real, na tentativa de internalizá-lo.

Em relação a isso, Freud, em vários textos, associa a incorporação com o processo de identificação. Menciona que “o ego deseja incorporar a si esse objeto... deseja fazer isso devorando-o”. Relaciona a identificação primária com a idéia de que uma tal identificação é anterior a qualquer investimento objetal, não sendo, portanto, conseqüência de uma perda de objeto. Lacan a retoma dizendo ser dela que se origina o Nome-do-pai (significante da função paterna). Trata-se, então, da incorporação de um significante, relativo aos primeiros momentos, não cronológicos, mas lógicos da constituição do sujeito.

20[20] Lacan (1953/1983).

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Estas pacientes (anoréxicas e bulímicas) costumam ter uma relação persecutória com a comida: temem perder o controle em relação a ela – reproduzindo a relação que tiveram com seu objeto primordial, no qual não puderam ter confiança, segurança. É freqüente a eleição de alguns alimentos considerados “bons”, ou melhor, permitidos, tolerados, enquanto os demais, classificados como “maus”, são temidos, evitados, segundo uma distinção entre alimento e "veneno".21[21] Geralmente o critério empregado é o valor calórico – o que pode ter a influência do ideal social do corpo magro – (aliás, elas sabem de cor a tabela de calorias de diversos alimentos), mas também a origem, ou consistência, o significado que acabam tendo. O objeto-alimento (considerado bom) passa, assim, de sua qualidade de conteúdo a um papel de continente, no qual se torna o objeto que suporta e sustenta o sujeito, que se sente, ao mesmo tempo, envolvido pela sensação de saciedade, dela extraindo um sentimento de existir e de continuidade que, por outro lado, lhe falta.

Então, é a incorporação dos significantes do Outro o que possibilita a separação; porém, não há introjeção sem expulsão. Enfim, trata-se de um processo dialético, no qual, como já afirmava Jean Hyppolite22[22]: “a negação vai desempenhar um papel não como tendência à destruição... mas, enquanto atitude fundamental de simbolicidade explicitada”.

Considero esta questão importante para pensarmos a problemática da anorexia e da bulimia, pois, muitas vezes, são interpretadas como atos puramente destrutivos, quando parecem tratar-se justamente do oposto. Assim, ao meu ver, tais manifestações, paradoxalmente, por mais que possam levar à morte física, consistem também numa luta pela vida, sendo uma tentativa desesperada de estabelecer uma falta, uma separação até então impossível de ser simbolizada.23[23] Discordo, portanto, de alguns autores que sustentam a idéia de uma recusa da separação na procura de um aquém desta, e também de uma recusa de qualquer internalização.

Nesta direção, tanto na anorexia quanto na bulimia, encontra-se uma problemática de domínio, de controle, porém, mais do que controlar, dominar o objeto, a tentativa da paciente parece ser de defesa, de sair da condição em que se encontra dominada, anulada, “engolida”. Podemos pensar que a recusa ou a expulsão da comida consiste na única forma obtida de se rebelar, de dizer não ao Outro – negação esta necessária ao acesso a uma condição subjetiva, conforme já foi abordado. Estabelece-se, assim, a problemática de domínio versus submissão, continente versus conteúdo, por se encontrarem fragilizados os limites tanto corporais quanto psíquicos.

A anorexia e a bulimia são, no entanto, respostas diferentes e, por que não dizer, opostas, à mesma questão fundante; isto é, são os “dois lados da mesma moeda”, ou, ainda, o direito e o avesso de uma mesma questão. Na anorexia, a recusa parece ser mais efetiva, tanto é que a paciente se orgulha, tornando sua manifestação ego-sintônica, e, portanto, raramente procura ajuda em função dela. Quando vem a tratamento é porque é trazida, geralmente pela família, que se encontra muito angustiada. Na anorexia, a recusa do objeto da necessidade pode ser entendida como uma tentativa de que o Outro (a mãe) emerja em seu

21[21] Emprego, aqui, objeto “bom” e objeto “mau” não segundo Melanie Klein, mas, como propõe Freud, sobre o Juízo de Atribuição.22[22] Hypollite (1954/1985). 23[23] Posicionamento semelhante encontra-se em Bruch (1971), ao afirmar que a recusa do alimento representa uma busca de identidade através de um rígido controle do corpo, um pedido de ajuda e de imposição de limites.

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desejo. Isto é, no “alimentar-se de nada”, parece haver uma tentativa de estabelecer uma falta, uma separação que possa, então, ser simbolizada. Neste sentido, sua recusa da alimentação, mais do que autodestrutiva (o querer morrer), trata-se de um buscar a vida, uma diferenciação que lhe seja então possível. Assim, o forçá-la comer – atitude freqüentemente tomada em muitos tratamentos – acaba fazendo, geralmente, com que ela intensifique a resistência, por se encontrar acuada, ameaçada psiquicamente, por se sentir invadida, dominada, “engolida”, pois o que ela mais teme é a perda de controle em relação à comida, em relação ao Outro, ou seja, sua morte psíquica. Por isso, o fato de a intervenção analítica tomar o sintoma da paciente como uma busca pela vida, por um reconhecimento enquanto sujeito, – enfim, tomar o seu aspecto constitutivo –, pode, justamente, implicar no abrandamento, por parte da paciente, da necessidade de seu sintoma. Isto é, fornecer uma via discursiva para o ato.Já na bulimia, a paciente encontra-se mais angustiada, desesperada, sem conseguir recusar – pelo menos no momento da crise (do comer sem limite) –, ficando à mercê do Outro, numa perda de uma condição subjetiva. Diferentemente da anoréxica, ela se envergonha destas manifestações – tanto que suas crises geralmente são solitárias, às escondidas – e tudo o que queria era poder recusar, ter controle sobre a comida, defender-se, ao invés de ser controlada, dominada por ela, “engolida”. Sua condição subjetiva encontra-se, portanto, mais enfraquecida, sucumbindo a uma demanda imperativa, engolidora, despedaçante. E só através da expulsão – pelos vômitos, ou pelo uso de laxantes e diuréticos – é que consegue expulsar, separar-se, resgatando uma condição de sujeito.

Assim, no caso destas pacientes, através de seqüências de plenitude e vacuidade com objetos eminentemente reais, há uma busca de estabelecimento de uma falta que poderia então ser simbolizada. Há uma espécie de apelo da paciente à sua mãe, para que ela seja capaz de produzir uma pacificação por uma via que não seja traumática, uma via simbólica, portanto.24[24]

Desse modo, a partir destes casos, penso existir, uma outra perspectiva de interpretação destas manifestações, não como uma recusa da castração, recusa da falta ., mas enquanto uma tentativa de instaurá-la. Assim, a recusa da comida (seja através da evitação ou de sua expulsão pelos vômitos), muitas vezes interpretada como onipotência no manter a relação fusional com a mãe, ou como perversão no controle exercido sobre o objeto, no meu entender, consiste numa tentativa de inscrever uma falta, uma diferença, um limite. Porém, por não se ter dado por uma via simbólica, faz-se pelo real do corpo, através do ato – sob o modo de uma defesa primária que ilustra muito bem o mecanismo da expulsão. Neste sentido, diferentemente da conversão histérica, em que o corpo “fala” (simboliza outra coisa), o corpo aí é só corpo, justamente “não fala”. Ou seja, devido à precariedade simbólica, torna o ato quase uma via obrigatória, em detrimento da possibilidade de substituições – metafórica.25[25] Podemos fazer uma relação destas manifestações de anorexia e de bulimia com as problemáticas psicossomáticas, as quais, também, pela impossibilidade de uma via simbólica, se dão através do real do corpo. Enfim, emerge o ato ao invés da palavra.26[26]

24[24] Conforme também afirmou Melman, na conferência: “O real, o simbólico e o imaginário na relação de objeto”, proferida no Seminário de verão da Associação Freudiana Internacional, 1992.25[25] Relativo a isso, ver Brusset (em Schevach, 1999).26[26] Sobre isso, ver também Hekier e Miller (1996).

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Assim, tais problemáticas, a partir destes casos, mais do que uma recusa, trata-se, sim, de uma tentativa de instaurar uma diferenciação, uma falta, enfim, a castração simbólica. Nesta mesma direção, tais manifestações, ao invés de uma recusa da feminilidade, numa tentativa de manter o corpo infantil, conforme algumas interpretações, acredito, a partir destes casos, que se trate justamente de uma tentativa de possibilitá-la. Assim, no sofrimento dessas mulheres, podemos escutar um apelo de virem a aceder a uma condição de sujeito, ao desejo, e, portanto, à feminilidade. Porém, é necessário escutar o que está emudecido no ato. Lia, em seu silêncio, "pedia" um reconhecimento enquanto um ser diferenciado. No entanto, trata-se de um limite, que, mais do que impossibilitar uma relação, justamente, a promove, fornecendo-lhe as condições. Buscava um lugar no desejo do outro (materno e do namorado) - todavia, um desejo, não uma demanda imperativa - que lhe permitisse existir, bem como, que lhe fosse “autorizada”, reconhecida a sua feminilidade.

É possível que, muitas vezes, as interpretações de recusa da feminilidade e mesmo de autodestrutividade decorram do impacto que a visão do corpo emagrecido da paciente provoca no terapeuta, ou naquele com quem ela se depara. É como se o horror da figura esquálida se sobrepusesse, dificultando e, por vezes, até impossibilitando a escuta da paciente. A escuta de um sofrimento que requer um esforço para que consiga ser formulado através de palavras, manifestando-se, geralmente, por atos, ou nas “entrelinhas”.

Para além da questão diagnóstica, o que tomo como significativo, no caso destas pacientes, é a especificidade da relação de objeto estabelecida. Aqui se faz importante enfocarmos a questão da falta, pois, estamos falando de mais de uma modalidade. Na recusa do objeto da necessidade (na anorexia) ou na sua ingestão e expulsão (na bulimia), trata-se da tentativa de inscrever uma falta simbólica27[27] - a castração simbólica, conforme vimos antes - uma vez que a problemática destas pacientes parece consistir em uma falta real, da ordem da privação. Assim, tais pacientes parecem lidar com a falta - ou precariedade - deste agente simbólico (e, conseqüentemente, de uma frágil imagem de si, conforme já vimos) que possibilitaria, então, a inscrição desta outra falta, a falta simbólica, esta que promove o desejo - a falta radical que constitui nosso ser.

Neste sentido, mediante essas manifestações alimentares, é como se Lia “dissesse” que, mais do que do objeto da necessidade (orgânica), era do objeto de “necessidade” psíquica que precisava para viver; enfim, que necessitava de desejo para viver, para não morrer enquanto sujeito. Porém, por não se dar simbolicamente, por palavras, dáva-se no real, através de atos. No entanto, tratava-se de atos com uma intenção simbólica.

Através da recusa do objeto da necessidade, essas pacientes buscavam, desesperadamente, o acesso a uma condição subjetiva - ao desejo, portanto –, uma negação da pura matéria em prol do espírito. Entretanto, ao invés de essas manifestações serem consideradas uma recusa do corpo, numa associação com o "pecado", com o sexo (como consideram algumas

27[27] Quanto a isto, Lacan, em 1956, propõe três formas de falta de objeto: castração (ou falta simbólica, resultado da função paterna), frustração (ou falta imaginária, no sentido de um dano causado ou uma lesão, ou seja, de que algo que a criança tinha e lhe foi tirado) e privação (ou falta real, no sentido de um “buraco” real, de um não simbolizado). Entendo esta falta real como sendo o vazio de representação, o não nomeável, o aquém de uma simbolização e, neste sentido, também, a falta de uma imagem de si (ou constituição de uma imagem frágil), decorrente de um não investimento materno (ou de um desejo precário).

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interpretações28[28]), nesses casos, consistem em um apelo desesperado de serem reconhecidas enquanto sujeito, sendo, então, o alimento de que precisam, mais do que somente para a sua vida orgânica (da ordem da natureza), mas também e fundamentalmente, para a sua vida psíquica (da ordem do simbólico).

Assim, estas experiências radicais de borda, mais do que autodestrutivas, consistem, paradoxalmente, em uma luta desesperada pela vida, pela vida psíquica.

Essas pacientes, devido ao seu vazio identificatório, buscavam a possibilidade de dar forma a esse vazio que experienciavam, ou seja, de encontrar uma forma, uma imagem que lhes dessem, então, uma identidade. A tentativa de dar forma ao vazio, ao seu sofrimento (assim como tentar obter uma forma, uma imagem para si) pode ser encontrada também na prática de escrita de diários íntimos adotada por várias pessoas que apresentam anorexia e bulimia, entre elas, Lia. É quando tentam também inscrever/escrever a dor emudecida, silenciada, sufocada, que, até então, só se manifestava através do ato. Enfim, que, no lugar do ato, possa vir a palavra. Não se trata, porém, de preencher o vazio, mas, de dar seus contornos, suas bordas, pois é justamente o que delimita nossa condição de sujeitos, fornecendo o limite entre a vida e a morte – a morte psíquica, a morte enquanto sujeito.

A partir destes casos, penso que esta possa ser uma direção da clínica da anorexia e da bulimia, ou seja, possibilitar que esta dor emudecida e atuada possa ter uma inscrição, uma representação, que possa ser, então, nominada. Enfim, que o vazio consiga adquirir um contorno, uma forma. Porém, acredito que, para isto, é necessário que a paciente encontre uma acolhida no desejo de seu analista, para que possa também ter acesso ao seu, a uma condição subjetiva. Isto é, uma acolhida que possibilite, que permita, uma separação, uma diferenciação.

Por isto, torna-se então necessária, por parte do analista, uma receptividade, uma acolhida, porém, em que possa haver uma positivação do desejo do analista29[29] – diferente do demandar, que pode ser recebido pela paciente como um imperativo –, ocupando o lugar, portanto, de um Outro faltante, castrado. Pois, caso contrário, a paciente corre o risco de permanecer subjugada a um imperativo totalizante, perpetuando, assim, seu desamparo e o vazio em que ela se encontra. Assim como a clássica neutralidade tomada como uma posição de indiferença poderá também manter o vazio existencial da paciente, ao invés de “fazer diferença”. Isto é, que o analista possa fazer semblante deste Outro a quem os escritos nos diários destas pacientes se endereçava – o “confidente das angústias”, como referia Lia. Que possa oferecer um “olhar”, um testemunho, possibilitando que o seu apelo emudecido, sufocado e desesperado adquira uma inscrição. No entanto, que consiga transitar com ela, na transferência, no estreito limite entre o abandono e o ingurgitamento; ou seja, nem muito perto, que sufoque, nem muito longe, que abandone.

Enfim, que ela possa encontrar alguém que se interesse pelo que tem a dizer, invertendo-se, assim, os lugares em jogo na transferência, ou seja, que a paciente possa ocupar o lugar da que tem o saber. Um saber, portanto, que possa não mais ser atuado, mas simbolizado, sendo construída uma narrativa. 

28[28] Sobre isto, ver Scazufca (1998).29[29] Posicionamento semelhante encontra-se em Deutsch, apud Urribarri (1999).

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Desta forma, Lia deixa de precisar destas manifestações na medida em que passa a poder falar, simbolizar esta falta, este vazio...à medida que esta dor, até então silenciada, pode ser nominada...que, no lugar do ato, possa vir, enfim, a palavra...na medida em que ela possa reescrever – ou mesmo escrever – sua história. Eu, como a denominei, lia as suas falas, tornando-me o seu diário; e, com ele, tornou-se então possível o preto no branco de sua existência.   REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

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