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ma triste realidade que já atinge a infância. Crianças com menos de 10 anos sofre m problemas de transtornos ali- mentares, como a anorexia. P e s q u i s a d o res da Universidade de Flinders, na Austrália, entre- vistaram mais de 80 meninas com idades entre cinco e oito anos, e consta- taram que 47% delas gostariam de ser mais magras, para assim se tornarem mais populares entre os amigos da escola. Os pesquisadores de Flin- ders comprovaram também o envolvimento das crianças com as dietas. Cerca de 45% das entre- vistadas afirmaram que fariam dietas se engordassem e, segundo eles, isso prova a consciência das meninas a respeito da importân- cia da imagem corporal na sociedade contemporânea. Para diagnosticar a anorexia em crianças é necessário ter um cuidado rigoroso. Segundo a nutricionista Ana Paula Mendes: “É preciso diferenciar uma falsa anorexia de uma anorexia ver- dadeira. Na falsa, a criança di- minui a ingestão de alimentos, mas isso não interfere em seu desenvolvimento. A alimentação da criança é fundamental não só para o seu crescimento e desen- volvimento geral, mas também como fonte de experiências, de condicionamentos socioculturais, de relacionamento do indivíduo com o mundo. Uma criança que não se alimenta adequadamente irá apresentar um déficit no seu crescimento e no seu ganho de peso, uma subnutrição que quan- do não tratado, pode desen- cadear anemias, problemas car- díacos, pulmonares e outros”. A anorexia é uma doença que atinge 20% dos adolescentes em todo o mundo. Normalmente, a idade em que surge o problema é por volta dos 17 anos e a maior incidência é em mulheres. Muitas vezes problemas do dia-a-dia e acontecimentos inesperados de- sencadeiam a anorexia, como: perda de emprego, mudança de cidade, relacionamento contur- bado em casa, etc. Curiosamente, a maioria dos anoréxicos pertence às classes média e alta, o que mostra a forte relação e influência entre a do- ença e o acesso aos meios de co- municação de massa. O padrão MARIUCHA MACHADO PINTO E REBECA GUIMARÃES Anorexia: fome e beleza corporal Janeiro/Junho 2006 60 Até crianças já sofrem com o controle rigoroso do peso. E vale tudo para atingir o tão sonhado padrão de beleza.

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Page 1: Anorexia: fome e beleza corporal - Portal PUC-Riopuc-riodigital.com.puc-rio.br/media/18 - anorexia fome e beleza... · A anorexia é uma doença que atinge 20% dos adolescentes em

ma triste realidade quejá atinge a infância.Crianças com menosde 10 anos sofre m

p roblemas de transtornos ali-m e n t a res, como a anore x i a .

P e s q u i s a d o res da Universidadede Flinders, na Austrália, entre-

vistaram mais de 80 meninascom idades entre cinco e

oito anos, e consta-taram que 47% delas

gostariam de ser mais magras,para assim se torn a rem maisp o p u l a res entre os amigos da

e s c o l a .Os pesquisadores de Flin-

ders comprovaram também oenvolvimento das crianças comas dietas. Cerca de 45% das entre-vistadas afirmaram que fariamdietas se engordassem e, segundoeles, isso prova a consciência dasmeninas a respeito da importân-cia da imagem corporal nasociedade contemporânea.

Para diagnosticar a anorexiaem crianças é necessário ter umcuidado rigoroso. Segundo anutricionista Ana Paula Mendes:“É preciso diferenciar uma falsaanorexia de uma anorexia ver-dadeira. Na falsa, a criança di-minui a ingestão de alimentos,

mas isso não interfere em seudesenvolvimento. A alimentaçãoda criança é fundamental não sópara o seu crescimento e desen-volvimento geral, mas tambémcomo fonte de experiências, decondicionamentos socioculturais,de relacionamento do indivíduocom o mundo. Uma criança quenão se alimenta adequadamenteirá apresentar um déficit no seuc rescimento e no seu ganho depeso, uma subnutrição que quan-do não tratado, pode desen-cadear anemias, problemas car-díacos, pulmonares e outros”.

A anorexia é uma doença queatinge 20% dos adolescentes emtodo o mundo. Normalmente, aidade em que surge o problema épor volta dos 17 anos e a maiorincidência é em mulheres. Muitasvezes problemas do dia-a-dia eacontecimentos inesperados de-sencadeiam a anorexia, como:perda de emprego, mudança decidade, relacionamento contur-bado em casa, etc.

Curiosamente, a maioria dosanoréxicos pertence às classesmédia e alta, o que mostra a fort erelação e influência entre a do-ença e o acesso aos meios de co-municação de massa. O padrão

MARIUCHA MACHADO PINTO E REBECA GUIMARÃES

Anorexia: fome ebeleza corporal

Janeiro/Junho 200660

Até crianças já sofrem com o controle rigoroso do peso.E vale tudo para atingir o tão sonhado padrão de beleza.

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de corpo e de beleza exibido pelasd i f e rentes capas de revistas, nove-las e programas de estética é dese-jado por todos.

O anoréxico apresenta um pesocorporal abaixo dos níveis espe-rados para sua estatura, masainda assim tem uma percepçãod i s t o rcida quanto ao própriocorpo; apesar das pessoas emvolta notarem que está muitom a g ro, o paciente insiste emnegar e se sente gordo. Para apsicóloga, psicanalista e dou-toranda do Programa de EstudosPós-Graduados em PsicologiaClínica da PUC-SP, Ana CecíliaMagtaz Scazufca: “É curioso eintrigante que este medo intensonão diminua com a progressivaperda de peso. Para os pacientesa perda de peso é vista como umsinal de auto-controle e disci-plina e não pode ser abandona-da, enquanto engordar é consi-derado um sinal de fraqueza efracasso”.

G.M.R. é um exemplo de comoa vontade de estar magra tomouconta de sua vida, a tornou escra-va de dietas e até mesmo dealguns remédios. Desde criançatinha complexo por ser uma dasmeninas mais gordinhas da suaturma e durante muito tempo foialvo de piadas no colégio. Masisso não era visto pelos pais comoum problema, e sim, como mais

uma das brincadeiras infantis.Os sintomas, no entanto, já eramaparentes.

O problema se agravou quan-do chegou à adolescência e pre-cisou de um acompanhamentomédico e familiar para se tratar eaceitar a doença. “Eu estava numquadro de depressão profunda. Jáfazia terapia, mas relutava emaceitar o tratamento psiquiátricopor causa dos remédios. Até o diaem que resolvi aceitar que outraspessoas – minha mãe e minhapsicóloga – me ajudassem. Jáhavia a suspeita da doença e ap a rtir daí fui assistida diaria-mente pelas pessoas mais próxi-mas a mim”, relata.

Para emagrecer, além da dieta,

o paciente muitas vezes se sub-mete a exercícios físicos intensos,induz o vômito, toma remédioscomo diuréticos e laxantes e fazjejum. Mas isso pode trazer pro-blemas sérios para a saúde. Noscasos mais graves é necessário oacompanhamento de uma equi-pe multiprofissional; psiquiatras,psicoterapeutas, nutricionista e aterapia familiar são fundamen-tais durante a recuperação.

Para quem não conhece o dis-túrbio, é estranho entender comoalguém “normal” pode conside-r a r-se acima do peso, estandomuito abaixo. Não há explicaçãoespecífica para o surgimento dadoença, mas deve ser levada asério já que 10% dos casos que

Quer um pedacinho?61

Nutricionista Ana Paula: é preciso cuidado para diagnosticar anorexia em crianças

Sintoma das histéricasO sintoma anorexia é estudado e descrito desde o final do século XIX. Segundo Charles

Lasègue, em D L’Anorexie Hystérique, de 1873, as histéricas reduziam aos poucos sua ali-mentação em função de um mal estar corporal e não em função de uma preocupaçãocom a magreza. Ao final de algumas semanas, não era mais uma repugnância passageiraque ocorria, e sim, uma recusa a alimentar-se que se prolongaria indefinidamente. O impressionante erao fato delas não se sentirem doentes, e estarem bem desta forma. O mesmo ocorre na atualidade.

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requerem internação para trata-mento terminam em morte, sejapor inanição ou suicídio.

Geralmente os pacientes coma n o rexia são encaminhados àpsicoterapia por um médicopsiquiatra. Na maioria dos casos,o paciente, não conseguindoperceber e reconhecer seu mal-estar, é levado para tratamentopela família. O médico acabat o rnando-se porta-voz de umdiagnóstico, dando, muitas vezes,uma identidade ao paciente. Deacordo com Ana Cecília, “é raroem uma primeira entrevista escu-tar dos pacientes: ‘sou umaanoréxica’, ‘tenho anorexia e

bulimia, por isso estou aqui’. Porque o sujeito com anorexia nãoconsegue dizer de seu sofrimento?Isso é o que mais me intriga...”.

A anorexia traz inúmeras com-plicações clínicas que vai de umressecamento de pele e enfraque-cimento dos fios de cabelo àinfertilidade, amenorréia (ausên-cia de menstruação), anemia,p roblemas cardíacos e pul-monares, além da falta de todosos nutrientes. A pessoa fica com-pletamente desnutrida, devido àausência das vitaminas, mi-nerais, açúcares, proteínas e gor-duras.

A cura da anorexia leva tempo

e precisa de muita dedicação dopaciente. G.M.R ainda não sesente completamente recuperadae ainda sofre com os efeitos dadoença. “Eu ainda espero pelarecuperação total. É preciso todauma re o rganização mental eemocional, perc e b e r-se de ma-neira diferente da habitual eaceitar-se. E é muito difícil al-cançar isso, um passo de cadavez. Já consegui recuperar peso,mas estou constantemente mecontrolando e me preocupandocom a balança. Agora o maisimportante para mim está sendotratar das conseqüências, como aanemia e a gastrite”.

Janeiro/Junho 200662

Eclética: Há quanto tempo desenvolveu a doença?E quanto tempo durou?G.M.R.: Há três anos. Durou quase doisanos.E: Uma vez detectada a doença, como se deu oprocesso de recuperação? Foi demorado e compli-cado? Em que consiste o tratamento?G.M.R.: A recuperação é muito difícil e demorada.Na verdade, ainda espero pela recuperação total;não me preocupar mais com meu peso e comminha aparência. Emagreci muito num períodocurto de tempo, perdi massa muscular e desen-volvi uma anemia profunda também. Estava fracademais e precisei da ajuda de outros profissionais,além da terapia: cardiologista, hematologista,ginecologista, nutricionista, etc. O tratamentoenvolve a colaboração e o apoio de todos os profis-sionais envolvidos assim como de pais e amigospróximos.E: Como foi a reação da família e das pessoas mais próximas?G.M.R.: Eu preferi manter minha privacidade, pelomenos isso. Da família, somente meus pais e irm ã osabiam. Meu irmão não reagia muito bem a isso,brigava e gritava comigo. Preferi me afastar dele.Para mim era muito difícil ver e sentir a pre o c u p a ç ã oe o carinho daqueles que estavam ao meu lado.E: Em que momento se deu conta de que precisaria de ajuda?

G.M.R.: Depois que sofri o primeiro desmaiona rua, por fraqueza.E: Como desenvolveu a doença? Você tomavaremédios para emagrecer? G.M.R: Sempre estive acima do peso. Faziadietas sim, mas não usava remédios para

emagrecer. Usei vários tipos de laxantes, naturaise sintéticos. Desenvolvi a doença a partir doquadro depressivo.E: Como era conviver com a doença? O que comia e o quesentia ao ingerir alimentos?G.M.R: Não sei responder bem a isso. Com adepressão, eu me sentia desligada do mundo. Osdias passavam, mas eu não vivia. É estranho, maseu não me dava conta do que estava acontecendo.Não comia praticamente nada e não lembro desentir nada além de angústia, tristeza e certa aver-são à comida.E: Como voltou a comer normalmente?G.M.R: É um processo. Depois que consegui sair doq u a d ro depressivo e que pro c u rei uma nutri-cionista, comecei a me alimentar um pouco me-lhor. Mas é muito demorado, precisei de muitaforça de vontade para melhorar e pelo menos ten-tar me sentir bem comigo mesma. Gostaria de me-lhorar a minha alimentação e tenho certeza deque vou conseguir.

“A recuperação é muito difícil e demorada”