ift – 01/06/2017 osvaldo pessoa jr. depto. filosofia...

56
Influências culturais nas interpretações da Teoria Quântica Osvaldo Pessoa Jr. Depto. Filosofia – FFLCH – USP [email protected] IFT – 01/06/2017

Upload: duonghanh

Post on 01-Dec-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Influências culturais nas interpretações da Teoria Quântica

Osvaldo Pessoa Jr.Depto. Filosofia – FFLCH – USP

[email protected]

IFT – 01/06/2017

A ciência é objetiva ou é uma construção sócio-culturalmente negociada?

• Iniciemos com a famosa tese de Forman (1971), traduzida nos Cadernos de História e

Filosofia da Ciência,

suplemento 2 (1983).

Forman parte de uma afirmação de Max Jammer

(1966, seção 4.2)

• “Certas ideias fìlosóficas do século XX não apenas pre-pararam o clima intelectual para a formação das novas

concepções da moderna teoria quântica, mas contribuíram decisivamente para ela, especi-ficamente o contingentismo, o existencialismo, o pragmatismo e o empirismo lógico [?] surgi-ram em reação ao racionalismo tradicional e à metafísica convencional. [...] ”

Max Jammer (1915-2010)

• “A afirmação que faziam de uma concepção concreta da vida e sua rejeição de um intelectualismo abstrato culminaram em sua doutrina de livre-arbítrio, na recusa do determinismo mecanicista ou da causalidade metafísica. [...] Tais correntes de pensamento prepararam o pano-de-fundo filosófico para a mecânica quântica moderna. Elas contribuíram com sugestões no estágio formativo do novo esquema conceitual e depois promoveram sua aceitação.”

Forman fundamenta a tese de Jammer

• Após a derrota alemã, a tendência intelectual dominante no mundo acadêmico de Weimar era uma “filosofia da vida” existencialista e neo-romântica, que se alimentava de crises e se caracterizava pelo antagonismo em relação à racionalidade analítica em geral e às ciências exatas e suas aplicações técnicas em particular.

Forman fundamenta a tese de Jammer

• [Assim, ] um grande número de cientistas alemães, sob a influência de “correntes de pensamento” [...], se distanciou da causalidade na física ou a repudiou explicitamente.

• A tese mais importante de Jammer – de que influências extrínsecas levaram os físicos a desejar ardentemente, buscar ativamente e aderir com entusiasmo a uma mecânica quântica acausal – é aqui demonstrada para a esfera cultural alemã.

Forman fundamenta a tese de Jammer

• Implícita ou explicitamente, o cientista era o bode expiatório de incessantes exortações em favor de uma renovação espiritual, enquanto o conceito – ou meramente a palavra –“causalidade” simbolizava tudo aquilo que era odioso na atividade científica.

• Qual o conceito que simboliza hoje o “odioso” na atividade científica?

Resumo da tese de Forman

• Existiriam indicações de que os físicos e matemáticos alemães ansiavam, e deliberadamente tentaram, alterar o caráter de suas disciplinas enquanto empreendimentos cognitivos e buscaram mudar conceitos específicos nelas empregados, de modo a trazê-las a uma conformidade mais estreita aos valores do meio intelectual de Weimar?

Resumo da tese de Forman

• Estou convencido que o movimento para eliminar a causalidade na física, surgido tãobruscamente e que floresceu luxuriantementena Alemanha após 1918, exprimiafundamentalmente um esforço dos físicosalemães em adaptar o conteúdo de sua ciênciaaos valores de seu ambiente intelectual.

• Se o conteúdo de uma ciência natural busca retratar uma realidade que independe da cultura humana (objetividade),

• como é que o conteúdo da ciência pode ser influenciado pela cultura de um momento histórico particular (relativismo)?

Objetividade x relativismo

Vamos dar um olhada na Física Quântica

• A física dos átomos e da radiação de baixa intensidade.

• Experimento da dupla fenda (Young, 1801):

Vamos dar um olhada na Física Quântica

• A física dos átomos e da radiação de baixa intensidade

• A física dos átomos e da radiação de baixa intensidade.

• Experimento da dupla fenda (Young, 1801):

Vamos dar um olhada na Física Quântica

• A física dos átomos e da radiação de baixa intensidade

• A física dos átomos e da radiação de baixa intensidade.

• Experimento da dupla fenda (Young, 1801):

O que acontece quando diminuímos a intensidade do feixe?

Regime Quântico

• Diminuir a intensidade do feixe de luz e aumentar a sensibilidade do detector.

• O que acontecerá com as franjas se a intensidade do feixe cair para ½ ?

• Esperamos uma diminuição uniforme das franjas...

Regime Quântico

• Diminuir a intensidade do feixe de luz e aumentar a sensibilidade do detector.

• O que acontecerá com as franjas se a intensidade do feixe cair para ½ ?

• Esperamos uma diminuição uniforme das franjas...

Regime Quântico

• Diminuir a intensidade do feixe de luz e aumentar a sensibilidade do detector.

• O que acontecerá com as franjas se a intensidade do feixe cair para ½ ?

• Esperamos uma diminuição uniforme das franjas...

Regime Quântico

• Diminuir a intensidade do feixe de luz e aumentar a sensibilidade do detector.

• O que acontecerá com as franjas se a intensidade do feixe cair para ½ ?

• Esperamos uma diminuição uniforme das franjas...

Mas se continuarmospor mais 20 x, não é isso

que acontece!

Vamos dar um olhada na Física Quântica

• A física dos átomos e da radiação de baixa intensidade

• A física dos átomos e da radiação de baixa intensidade.

• Experimento da dupla fenda quântico:

Um fóton!

Vamos dar um olhada na Física Quântica

• A física dos átomos e da radiação de baixa intensidade

• A física dos átomos e da radiação de baixa intensidade.

• Experimento da dupla fenda quântico:

Vamos dar um olhada na Física Quântica

• A física dos átomos e da radiação de baixa intensidade

• A física dos átomos e da radiação de baixa intensidade.

• Experimento da dupla fenda quântico:

Vamos dar um olhada na Física Quântica

• A física dos átomos e da radiação de baixa intensidade

• A física dos átomos e da radiação de baixa intensidade.

• Experimento da dupla fenda quântico:

• A MQ calcula a probabilidade de o fóton cair em cada região da tela. Isso é objetivo. Todos concordam!

• Mas o que acontece antes de o fóton aparecer? Isso é hipotético (interpretação)

Um fóton!

O que acontece antes da detecção?Primeira proposta:

• Realismo ondulatório: Só existem ondas. O que parecem partículas seriam “pacotes de onda” (Schrödinger, 1926).

O que acontece antes da detecção?Primeira proposta:

• Realismo ondulatório: Só existem ondas. O que parecem partículas seriam “pacotes de onda” (Schrödinger, 1926).

ψ(r)

• Instrumentalismo: Nada podemos dizer! Na ciência, só devemos falar sobre aquilo que observamos (Heisenberg, 1925) .

O que acontece antes da detecção?Segundo proposta:

• Realismo dualista: Existem ondas e partículas, juntas (L. de Broglie, 1926).

O que acontece antes da detecção?Terceira proposta:

• Realismo dualista: Existem ondas e partículas, juntas (L. de Broglie, 1926).

O que acontece antes da detecção?Terceira proposta:

Trajetória surrealista

Quarta proposta:

• Int. da complementaridade (Bohr)- A linguagem da física só consegue

construir uma representação da realidade que seja “clássica”.

- Ou aplicamos um quadro ondulatório para descrever um experimento, ou um quadro corpuscular, nunca ambos ao mesmo tempo

- Antes do final do experimento, devemos nos calar! Depois podemos projetar um quadro mental (Construtivismo)

• Se o conteúdo de uma ciência natural busca retratar uma realidade que independe da cultura humana (objetividade),

• como é que o conteúdo da ciência pode ser influenciado pela cultura de um momento histórico particular (relativismo)?

RETORNEMOS À QUESTÃO:

Objetividade x relativismo

• A teoria quântica possui uma parte objetiva, expressa pelo seu “formalismo mínimo”, que fornece as previsões experimentais da teoria.

• Qualquer cultura que tenha uma ciência que progrida de maneira “saudável” descobrirá o fato de que a luz é detectada como fótons.

RETORNEMOS À QUESTÃO:

Objetividade x relativismo

• Mas a MQ possui também uma parte interpretativa, que envolve afirmações a respeito da realidade de processos não diretamente observáveis da realidade (interpretações realistas), ou teses justificando porque não se deve ir para além dos fatos observáveis (interpretações antirrealistas).

RETORNEMOS À QUESTÃO:

Objetividade x relativismo

• Há dezenas de interpretações da teoria quântica. Como a escolha da interpretação não é determinada pelos dados empíricos, ela pode sofrer considerável influência da cultura reinante em uma comunidade científica

• Um relativismo relativo...

RETORNEMOS À QUESTÃO:

Objetividade x relativismo

• Assim, a tese de Forman pode ser assimilada, considerando que a discussão sobre a causalidade faz parte do lado interpretativo da Teoria Quântica.

• O lado objetivo da TQ desenvolve-se de maneira independente da cultura, pressupondo apenas que haja uma valorização cultural da ciência (para que exista uma “ciência madura”).

RETORNEMOS À QUESTÃO:

Objetividade x relativismo

Relatividade das interpretações

• Ilustraremos a seguir vários exemplos de influência da cultura sobre as interpretações da MQ.

• Sugeriremos também outros mecanismos para explicar porque certas interpretações são preferidas em certos lugares.

• COMECEMOS COM A “TESE DE CUSHING”:

Tese de Cushing

• A dominação da interpretação de Copehnague foi uma “contingência histórica”: em outra situação, a interpretação de deBroglie-Bohm poderia ter sido hegemônica.

James T. Cushing(1937-2002):

Historical contingency

and the Copenhagen

Hegemony (1994)

Tese de Cushing• As teses de Forman e Cushing se

encaixam bem.• De fato, num cenário que favorecesse uma

abordagem realista, é bem plausível que a interpretação de L. de Broglie fosse aceita como fundamento teórico.

• Porém, essa interpretação não faz previsões diferentes da instrumentalista, então talvez esta acabasse prevalecendo por ser mais econômica...

Interpretação dos coletivos• Em que ambiente cultural teria uma

interpretação realista se desenvolvido?• Nos E.U.A. e também na União Soviética, a

interpretação que foi favorecida foi a dos coletivos estatísticos (ensemble interpretation), que pode assumir um aspecto mais realista ou um mais próximo do instrumentalismo.

Interpretação dos coletivos

• Estados Unidos: Slater (1926), Kemble(1936), Margenau (1946), Hund (1950)...

• União Soviética: Blokhintsev (1949), Terletski...

• Posteriormente: Popper, Ballentine(invocando Einstein).

Blokhinstev

Interpretação antirrealista• É de certa forma surpreendente que uma

interpretação tão sofisticada filosoficamente com a de Bohr tenha se tornado a visão “oficial”.

• Em cenários contrafactuais, seria de se esperar um instrumentalismo mais simples, como o que hoje é tão forte entre físicos (ao se referirem à TQ).

Interpretação subjetivista• A tese de Forman também explica muito

bem o surgimento das interpretações realistas ondulatórias em que o sujeito teria a capacidade de causar um colapso da onda quântica.

• Pois o romantismo do entre guerras alemão também favorecia concepções mais espiritualistas, contrárias a um materialismo mais “iluminista”.

1a tese geral do misticismo quântico:

Fritz London

A consciência humana é responsável pelo “colapso” da onda quântica (London & Bauer, 1939).

* Tal interpretação, que podemos chamar de “subjetivista”, é uma visão realista ondulatória, com a noção de colapso.

Espiritualidade quântica:

A visão de que a espiritualidade humana está relacionada de maneira essencial com a física quântica.

Surge na década de 1930, a partir do peculiar papel do observador na teoria quântica.

A consciência seria causa necessária para o colapso!

Interpretação subjetivista da MQ

Misticismo Quântico se consolida na era hippie, c. 1975, no norte da Califórnia

• Em Londres, David Bohm: ordem implicada, holomovimento, e diálogos com Krishnamurti.

• Grupo de Física Fundamental em Berkeley, depois transferido para o spa em Esalen: H. Stapp, F. Capra, N. Herbert, F.A. Wolf, J. Clauser, etc.: Estudos pioneiros do teorema de Bell e possibilidade de fundar a telepatia.

• Sarfatti recebe financiamento de W. Erhard, do EST.

• Vários livros divulgam o novo espírito da física mística:

• O Tao da Física, F. Capra – prefácio de M. Schenberg

• The Dancing Wu Li Masters, Gary Zukav

• Espaço-Tempo e Além, F.A. Wolf & B. Toben.

• A Realidade Quântica, Nick Herbert • Mind, Matter and QM, H. Stapp

Os Ghostbusters

J. Sarfatti

S.P. Sirag

N. Herbert

F.A. Wolf

• Pensamento positivo ligado ao misticismo quântico (“O Segredo”) incentivou a tomada excessiva de risco na economia, levando ao colapso financeiro.

Barbara Ehrenreich (NYT, Sep. 24, 2008):

Interpretação dos muitos mundos Everett (1957), DeWitt (1970)

Everett

Interpretação dos muitos mundos Everett (1957), DeWitt (1970)

• Neste caso, o surgimento da interpretação e seu sucesso mais recente se liga ao ambiente acadêmico de pesquisa em cosmologia (e não cultural em geral).

• Curiosamente, há uma concentração de pesquisadores que defendem a interpretação everettiana em Oxford. Em parte seria um efeito do ambiente acadêmico de valorização da cosmologia e da física matemática.

Efeito fundador

• Além do efeito da cultura e do ambiente acadêmico, há também um análogo ao “efeito fundador” em biologia evolutiva.

• Por exemplo, havia um pesquisador destacado em Rutgers (no Inst. de Matemática!), Sheldon Goldstein, que defendia a mecânica bohmiana, uma versão corpuscularista da interpretação de Bohm.

• Ele atraiu vários pesquisa-dores na Matemática e na Filosofia, inclusive da interpretação realista das “localizações espontâneas”.

Batalhas quânticas e ideologia política

• Entre 1950 e 1980, com a Guerra Fria, muitos cientistas associaram sua visão ideológica de esquerda a interpretações realistas, acusando a interpretação da complementaridade de ser “idealista” e burguesa.

• Este ponto é explorado por Olival Freire Jr., mas no final das contas há todo tipo de combinação entre ideologia e interpretação.

Origens do Teorema de Bell (1964)

• Na TVO de Bohm (1952),as trajetórias das partículasexibem “em geral umcaráter flagrantemente não-local”.

• Será que esta propriedade é geral paratodas as TVOs? Haveria uma prova deimpossibilidade de TVOs locais?

SIM!

Desigualdade de Bell

• Quaisquer teorias de variáveis ocultas(realistas) que sejam locais são limitadas pordesigualdades do seguinte tipo:

c(a,b) + c(a,b’) + c(a’,b) – c(a’,b’) ≤ 2

• A Física Quântica prevê que se possa violar esta desigualdade!

J.S. Bell, Physics 1

(1964) 195-200.

O Teorema de Bell é um resultado obtido para pares de partículas correlacionadas

• Elas podem exibir a propriedade de anti-correlação perfeita.

• Surpreendente: isso ocorre para qualquer ângulo a.

Quais são as conseqüências filosóficas?

Resposta inicial: O teorema de Bell nos força a

abandonar pelo menos uma de três teses fundamentais aceitas na Física Clássica (c. 1920):

•Realismo•Localidade•Indução

B. d’Espagnat, Sc. Amer. 241

(nov. 1979) 128-40.

Abandono do realismo• Uma associação notável entre cultura e interpretação

ocorre na França, em que há um forte peso do pós-modernismo, uma visão relativista.

• Após algumas versões do teorema de Bell (como a desigualdade de Leggett), vários filósofos da física franceses passaram a defender que a própria noção de realidade teria que ser abandonada..

• Isso é expresso no kantismo instrumentalista de Michel Bitbol e seus alunos, como Patrícia Kauark (UFMG) e Stefano Osnaghi.