idos tempos cap1

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Primeiro capítulo de 'Idos Tempos de uma Puta', de Mário Jordão

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Idos tempos de uma puta

Mário Palma Jordão

Capa e apontamentos gráficos:João Alves Ferreira

© Mário Palma Jordão

ISBN: 978-989-691-246-8Depósito Legal: 373469/14

2014

Enfermaria 6

Fyodor BooksCalçada Nova de São Francisco,

n° 6, loja 3, Chiado, 1200-301 Lisboa

[email protected]

www.enfermaria6.com

Mário Palma Jordão

IDOS TEMPOS DE UMA PUTA

«Mulher, porque choras? A quem procuras?»Evangelho Segundo São João, 20:15

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Boa noite. Uma voz brava e de mau augúrio. A porta da rua batia e uma voz respondia Boa noite. Boa noite. Outra vez

Boa noite? pensou, mas calou-se, ouvindo os passos em direcção ao quarto. Quis falar. Não falou. A porta do guarda-fato a bater. Gavetas a estalar. Sentou-se e ao sentar-se sentiu um desfaleci-mento, uma fraqueza de ânimo que lhe maculou os lábios. As suas mãozinhas de dedos de boneca de porcelana abriam os sacos de plástico, sobre a mesa branca da cozinha branca, com comida japonesa. Ouvia movimentos. Eram os movimentos de um corpo. Tão perto e tão distante, sob a acção de duas dimensões, duas velo-cidades sem sincronia, mas condenadas a conviver lado a lado. A imagem do rosto sorumbático e decepcionado. Via-o, pensativa, enquanto ouvia a urina a perfurar a aguadilha na sanita. Levou as mãos aos cabelos que tombaram melancolicamente sobre os ombros. Tinha uns ombros magros. Tudo no seu físico era magro. Braços e pernas finos como espetos. E ele que é tão grande, tão alto e largo e colossal! Remexia nos sacos. Os sacos de plástico faziam um barulho irritante. Ela remexia. Sabia que aquilo o irri-tava. O autoclismo a desencadear uma tempestade. O autoclismo a arfar. Remexia, vasculhando as caixas transparentes, tirando uma caixa que pousou na mesa e abriu e provou um pedaço colorido de sushi. Sushi era uma das suas predilecções. Não, não chegou a levar o rolinho miniatural de peixe e arroz à boca. Colocou-o novamente dentro da caixa. Passos brutos no corre-dor. Cascos de cavalo. Ainda não descalçou os sapatos, pensou. Olhos de fogo esbraseavam as pálpebras negras. As pálpebras eram dois lagos nocturnos e estáticos, frios como a noite, vastos

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como o tempo. Ainda não o via, mas já o via. Tremeu. Um arrepio escorregou-lhe da nuca até às ancas. Apertou-se, enlaçando-se a si própria com os braços, depois esfregou as mãos e fechou o robe até ao queixo. Agasalhada e dubiamente entristecida sen-tiu-se quente. Afinal não vinha para a cozinha. Pensou em dizer outra vez e mais sonoramente Boa noite. Pensou em se levantar e ir enfim ver dele. Onde estará ele? Estamos à beira do fim. Um rosto esquálido, os olhos numa celeuma de desgaste e apatia, com um cigarro a fumegar, pendendo nos lábios arroxeados e sem forças. Ela viu, de repente, erguendo a cabeça que era puxada pela gravidade para o chão, ela viu, assustando-se, aquele rosto, aquele corpo, primeiro o rosto, depois o corpo, despenharem- -se sobre si, como uma montanha, desabando sobre a sua fra-gilidade. Uma tontura. Boa noite, disse, num tom ciciado. Com o dedo indicador dobrado coçou um olho. Aquele corpanzil de calmeirão. Diante de si uma montanha silenciosa que ardia. Uma imobilidade que se começava a deslocar. Pedra que se amolecia. Nem uma palavra, nem um som. Somente ardia. Ela também ardia, uma combustão azul. Era como se tivesse um fósforo aceso na garganta.

‒ Por favor, não podes ir fumar para a varanda? Dói-me a cabeça. Detesto o fumo do tabaco. Empesta tudo.

A montanha não tugiu nem mugiu. Continuava inflamada como uma salamandra. Ela ria por dentro. Um som de fúria guinchava no seu coração. Ria, mas ria com raiva. Mexeu e reme-xeu nos sacos. Ela própria se sentia enervada com o barulho dos sacos. Eram as suas mãos. Não dominava as suas mãos.

‒ Vamos jantar – disse. ‒ Se quiseres comer, come. Se não quiseres, como eu. Sozinha. Tenho fome.

Levantou-se da cadeira. Os joelhos tremiam-lhe. Ao virar-se para abrir o armário onde estavam os pratos os seus olhos peque-ninos e franzidos cruzaram-se com as cinzas que matizavam um olhar que caía do alto, impondo-lhe, exigindo-lhe respeito, com-

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postura, compreensão. Esticava-se para alcançar os pratos. Os joe-lhos tremiam-lhe. Não era medo. É só o nervosismo, um nervo-sismo que me dá energia. Talvez aquele par de olhos pedisse amor. Tacitamente talvez pedisse amor. Os joelhos tremiam-lhe mais. Dois pratos em cada extremidade do pálido rectângulo da mesa. Cruzaram os olhos e o fogo moribundo cruzou-se com o gelo. Afastou depressa os olhos. Aquele corpo-corpanzil cobria toda a entrada da porta, encostado à ombreira. Tilintar de talheres. Não são precisos talheres, lembrou-se. Isto come-se à mão. Temos os pauzinhos. Os pauzinhos vêm na caixa. Remexeu nos sacos. Tirou as restantes caixas com o sushi e duas sobremesas e sorriu e disse Já está. O fumo do cigarro a navegar de cara a cara. Humilha- -me, pede atenção, diz Estou aqui, humilhando-se. Decerto que tem consciência de que se humilha ao tentar humilhar. Os guar-danapos. Faltam os guardanapos. Devem estar também nos sacos. Costumam sempre colocar guardanapos nos sacos. Cabeça a minha! Remexeu nos sacos. Uma chiadeira antipática. Cabeça a minha! Não dizes nada? disse, tirando um molho de guardanapos. Não digo nada, ouviu dizer, tirando os pauzinhos e amarrotando os sacos que guardou a um canto, perto do balde do lixo.

‒ Vou comer. Tenho o estômago colado às costas. Pareço uma etíope.

A cor da sua pele era trigueira todo o ano, como se estivesse sempre exposta a um sol demasiado forte. O seu farto cabelo tinha uma reminiscência de palha-de-aço africana. As pulsei-ras que usava concediam-lhe um exotismo que disfarçava o seu desespero. As roupas, os perfumes, os brincos, os penteados eram o escape preferido. Mascara a sua tristeza. Vive num permanente entrudo, apenas para evitar cair em si. Não sou capaz de mascarar a minha tristeza.

Saiu da cozinha, chupando o diminuto cigarro, mais amarelo do que branco. Passos vagarosos. Cascos de cavalo. Passos passos passos.

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Um disco começou a tocar. Que coisa mais ridícula! Sempre gostou desta música. Desde que nos conhecemos que me faz ouvir esta música. Como é que se chama? Veludo azul. Blue Velvet. Veludo azul. Que coisa mais ridícula! Não lhe oiço os passos. Se calhar atirou-se da varanda abaixo. Que coisa mais ridícula! Não suporto coisas ridículas! Será que não tenho sequer silêncio ao jantar?

Os passos percorriam o corredor. Iam da sala para o quarto e do quarto regressaram à sala e a música deixou de se ouvir mas os passos continuaram a ouvir-se. Cascos de cavalo. Irrita-me. Isto está à beira do fim. Tenho sido muito condescendente. Não viu a sombra. A sombra era agora silenciosa quando andava, cada passo sorrateiro e macio. Ele viu o seu olhar de criança perdido em pensamentos e percebeu que era sobre si que ela pensava. Viu os cotovelos fincados na mesa, as mãozinhas a pegarem delica-damente no sushi, com a ponta do polegar e do indicador. O dedo mindinho arrebitado. Viu a sua lenta respiração de final de dia, a garganta cadavérica, mas sensual. Ensopava o pedaci-nho no molho de soja e mastigava de forma empastada, degus-tando-o com alguma sonolência. Bebia chá frio. Estava visivel-mente cansada. Estava quase a dormir. Não dava por nada à sua volta. Já não pensa. Afastou a bandeja de plástico. Limpou a boca ao guardanapo. Estava com cieiro e por isso os lábios tinham cortes. Tinha vontade de os beijar. Tinha comido pouco. Tens de comer mais, ouviu e acordou, mas não respondeu. Bebeu um gole de chá.

‒ Ouviste o que eu disse? Tens de te alimentar.Olhou-o de relance. Viu-se-lhe nos lábios um trejeito que

significava ouvidos moucos. Cabisbaixa, com os cabelos caídos como uma catarata, notou que ele tinha calçado as pantufas. Eram as pantufas que ela lhe oferecera pelo Natal. Teve von-tade de sorrir, mas guardou o sorriso. Teve vontade de levantar a cabeça e dizer-lhe qualquer coisa que soasse agradável, mas

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permaneceu cabisbaixa e surda-muda. Está tão mal-encarado. Os olhos invulgarmente raiados. Parece que esteve a beber. Ele não é de beber. Só ao fim-de-semana e de quando em quando. Devo ser horrível. Deve ser essa a razão por que tem um ligeiro derrame nos olhos: porque sou horrível.

‒ Não comes? Não te despes? Ficas aí especado? Eu já comi. Come o resto. Comprei uma caixa para ti. Se não comes, guardo isto no frigorífico. Fica para amanhã. Não se estraga.

Um nó desatou-se na sua garganta. Sentia a garganta quei-mada. Rouquejou ao dizer algumas palavras. Contraiu a gar-ganta. Tossiu e as suas narinas geladas e miúdas encolheram-se. Reforçou o tom seco, a sua postiça indiferença. Mãos nos joelhos. Olhar esmaecido. Não vou comer, ouve, sem um gesto. Mãos nas têmporas – não as mãos dela mas as mãos dele. As mãos dele na cintura. Desabotoou o botão do colarinho, folgou a gravata, desabotoou mais dois, três botões, e tirou a gravata. Mãos na cintura. A camisa era branca; a gravata um chicote da cor do sangue. Pendurou a gravata nas costas da cadeira. O seu peito era masculinamente preenchido por uma relva negra e pouco densa que sempre a excitara. Teve vontade de sorrir, mas mordeu os lábios. Molhou os lábios rugosos e de fino gume com a sua língua de cobra. Voltou a trincar os lábios, com mais força. Não vou comer, ouviu, novamente, sem retirar as mãos dos joe-lhos, com as pernas um pouco abertas, expectante e indolente. Isto está à beira do fim. Ele olha-me entre as pernas. Abriu mais as pernas. Parece que estava a adivinhar. Uma pessoa pressente o que vai acontecer. Já antevia problemas. Era o meu corpo que discernia essa possibilidade, mais do que a minha cabeça. A minha cabeça até já nem funciona.

‒ Queres falar? Senta-te.A montanha, a cujo cume parecia faltar oxigénio, sentou-se.

Ele olha-me entre as pernas. Os seus olhos vermelhos fitavam fugidiamente o baixo-ventre, o interior das coxas, que sendo

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magras, ao longo dos anos cada vez mais magras, eram ainda apetitosas. Fechou as pernas, manteve as mãos nos joelhos, man-teve-se calma, estava calma, não era uma calma fingida. Pala-vras ditas e palavras por dizer. Quem é o comandante desta nau? Estamos à deriva, sem voz de comando.

‒ Fala. Diz-me o que tens para dizer. Não sufoques nessa amargura. Fazes-me sufocar de amargura.

E ele falou, ou melhor, tartamudeou, e enrubesceu e torceu as mãos e enrolou os dedos. Depois calou-se. Por um momento calou-se. Depois, aquietando-se, com os braços pendidos, der-rotado, as pálpebras podres, dois poços de aflição, retomou o discurso, falou para dentro mas falou, disse que estava cansado Estou cansado, disse que via tudo a ir por água abaixo, que estava preocupado, que estava cansado Estou cansado, disse que se sentia impotente, frustrantemente incapaz de agir, repetiu novamente que estava cansado, três vezes seguidas, e os seus olhos eram uma salamandra, e os olhos dela miravam aquele lume que fulgia e rugia por detrás do vidro, dentro do corpo, na consciência dele que ela sentia com o seu corpo, sempre com o corpo, muito mais do que com a cabeça. A minha cabeça já não funciona. Estou cansado. A repetição daquela palavra opri-mia-a, maçava-a, mas conteve-se, ainda que a raiva crescesse e fervilhasse à flor da sua pele. Sozinha, sozinha, só sozinha. Três solidões dobraram na sua cabeça. Esticou a ponta dos dedos. A palma da mão sobre o joelho. Uma mão em cada joelho. A sua cabeça era um sino. As fontes latejavam-lhe. Sentia um badalo a golpear. Seria o sangue ou seria a morte? Aquilo dava-lhe tonturas. Uma mão na testa descorada; outra mão pegou no copo com chá, quase vazio. Bebeu o que restava e perguntou Não vais comer? Estamos todos a ficar loucos, ouviu. O vento uivava e a janela estava baça, coberta de humidade. Vejo uma tempestade terrível, ouviu. Oscilava, o seu corpo oscilava, aper-cebendo-se dos seus traços, da fronte à boca, a serem lacera-

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dos. Na sua cabeça retinia um dobre que lhe atiçava tanto a raiva como as vertigens. Era desconhecedora da comiseração, que para ela consistia num sentimento impreciso do qual só ouvia falar mas que jamais experimentara. Não se autorizava a expor a essas pieguices. Detesto coisas ridículas. Tornas-te ridículo. E ele levantou-se e encarou-a com um olhar chame-jante, atordoado, arguto. Sabia que ela o considerava, naquele momento, ridiculamente fracassado. Viu os seus lábios esboça-rem uma frase cáustica, cheia de malvadez. Como teve vontade de os beijar e morder! Passou os olhos pela mesa e a comida provocou-lhe nojo. Aquela mixórdia de franchising – plasticina pronta a comer, sempre igual, todos os dias.

‒ Estou muito cansado.‒ Eu também estou cansada – ripostou ela. ‒ É só o que

sabes dizer? Não tens força para aguentar a vida?Não devia ter dito aquilo. Recriminou-se. Seria um rasgo de

comiseração? Tudo isto é ridículo. Queria erguer-se da cadeira mas parecia que estava colada à cadeira. Afinal quem precisa de ajuda sou eu. Ninguém imagina como tenho sido forte. Como tenho aprendido a dissimular. Como me tornei mestra nisso. Para onde foi a força dos meus joelhos? As pessoas deviam simplesmente calar a boca. São todos uns coitadinhos! Rebento pelas costuras. O vento uivava e ela chegou mesmo a ver uma alcateia. Lobos com o focinho virado para o céu onde corria o temporal. As janelas a abanar, a abanar, a abanar. Ele fazia desenhos no vidro da janela. Levanto-me e abraço-o. Sinto-me num avião a despenhar-se, ouviu, e deteve-se, sentada, numa imobilidade mortal, tonta e lúcida, eivada de contradição.

‒ Nascemos num tempo difícil.‒ É sempre difícil – respondeu ela.‒ Sim, é sempre difícil. Foi sempre difícil. Tens razão. Tenho razão. Convenceu-se que tinha razão. Ao mesmo

tempo sabia que isso era uma treta. A razão é uma treta. Não

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tenho razão. Ninguém tem razão. Mas não podemos pensar muito nisso. Perdemos a razão. Ficamos endoidecidos.

E se me levantasse e lhe desse a mão e a apertasse com toda a força que tenho, com todo o amor que ainda me resta? Porque me esforço para ser fria? Estamos condenados ao ombro um do outro. Não há outro remédio; não há outro destino.

‒ Sinto as pessoas perturbadas.‒ A nossa casa é o nosso refúgio – ocorreu a ela dizer, num

tom amigável, um tom tão professoral, que a divertiu por ter saído assim professoral.

‒ O tempo está incerto. Está doentio. As pessoas não se entendem.

‒ É preciso aguentar – disse ela, ao virar-se, cruzando as pernas, entristecida, olhando a montanha definhada com quem dormia todas as noites.

Continuava a fazer desenhos no vidro embaciado. Os seus ombros largos não quadravam com o seu desalento, desmotiva-ção, podia-se mesmo dizer degradação. Os seus ombros largos apenas tornavam tudo isso ainda mais confrangedor. O seu dedo escorregava no vidro e zumbia. As pessoas não se entendem. É assim. As pessoas não se entendem, dizia, com a sua bela dicção (agora já não falava para dentro), e à medida que falava aproxi-mava mais a boca e o nariz do vidro da janela, encostava o nariz ao vidro, e deixava sair um bafo quente e pulmonar da boca, uma e outra vez, e depois fazia desenhos com o dedo, e dizia, com a sua voz cada vez mais viva, cada vez mais firme e autoritária, fazendo ricochete no vidro, Sinto-me um homem das cavernas. Já viste o meu cabelo? Começo a ficar com o cabelo grisalho, dizia, de costas viradas para ela, falando lentamente, com um acento seco e implacável. Gostava de ser mais terno e gentil con-tigo, mas sinto-me tão cansado. O tom, subitamente, era agora mais dúctil. A janela era uma parede fosca contra a qual a espe-rança esbarrava. Rabanadas de vento, escuridão, luzes esborra-

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tadas, e os lobos a uivar sem fim, sem uma intermitência. Não suporto mais isto (era ela a pensar). E ele via-a, como se tivesse olhos na nuca. Via a desilusão nos seus olhos, a apatia no seu corpo, via que ela já quase não ouvia o que ele dizia, as palavras entravam-lhe por um ouvido e logo lhe saíam pelo outro. E ele disse O tempo está incerto, as pessoas perturbadas. Repito-me. Repito-me. Fazia desenhos. Encostava a boca ao vidro e voltava a fazer desenhos. Que coisa mais ridícula! E ela fechou os olhos. E ele encostava a boca ao vidro e fazia desenhos. E ela ouvia lobos e estremecia. E pensou: Porque é que ele não se atira da varanda? E ele pensou, mas nada disse: Estamos sozinhos.

‒ Que coisa mais ridícula!