identidades compuestas zila bernd.pdf
TRANSCRIPT
-
IDENTIDADES COMPSITAS: ESCRITURAS HBRIDAS
Zil Bernd - UFRGS
apresentado no Congresso da Anpoll em 12 de junho de 1998
MATRAGA n 12, 1999
Limiares
Por que relanar, s vsperas do terceiro milnio, um debate que parece esgotado de tanto ser
repisado nestes ltimos tempos: o debate identitrio? Efetivamente, se muita tinta j correu
com o objetivo de avaliar as questes das identidades a partir das mais diferentes abordagens,
parece pairar ainda sobre o assunto uma polarizao entre uma concepo desintegrada da
identidade e uma certa crispao que tende ao fechamento e ao isolamento.
Problematizar as relaes entre identidade e escritura presentes em grande parte da produo
ficcional das Amricas, evidenciando o carter heterogneo das iniciativas identitrias
americanas, poder contribuir para desfazer certos fetiches e para promover um melhor
conhecimento destas literaturas que tm em comum o fato de terem nascido em situao
colonial, tendo todas se confrontado com uma contradio primordial: exprimir na lngua do
Outro (europeu) uma natureza e um imaginrio prprios (americanos).
As conquistas no sculo XV e o processo de colonizao, inciado no sculo XVI, favoreceram a
mais extraordinria confrontao de diferentes povos e de diferentes culturas jamais
registrado na Histria da humanidade. Este contato teve como consequncia incontornvel o
fato do literrio ser inseparvel do identitrio nas geografias do Novo Mundo. Vrias obras,
como o clebre Cahier dun retour au pays natal, de Aim Csaire, tematizaro este contato
violento entre os povos, as sequelas da poltica de assimilao, bem como o engendramento
dos discursos identittios.
Esta situao inaugural ser determinante de um percurso necessariamente marcado por
comportamentos que alternam bovarismo coletivo e busca de autonomizao; cristalizaes
identitrias e sua superao; tendncia constituio de identidades exclusivas e perspectivas
identitrias relacionais e crioulizadas.
Tentar traar um certo nmero destes itinerrios sublinhando suas principais estratgias e
seus momentos fortes, o objetivo da presente comunicao que possui tambm a pretenso
de desbravar os caminhos para um comparativismo literrio interamericano. Se esta
verdadeira obsesso do colonizado por se definir em relao ao colonizador, por forjar uma voz
e desencadear um processo de negociao das identidades exprimiu-se atravs de diferentes
gneros, o ensaio foi, sem dvida, o lugar privilegiado de construo/desconstruo do
identitrio americano.
-
Ensaio como espao privilegiado de negociao identitria
Escritura perturbadora ou melhor desmancha-prazeres, como foi considerada por Vigneault 1 ,
o ensaio se constri circularmente em volta de um pensamento. Nas Amricas, se os escritores
apelaram frequentemente para os Manifestos (Antropfago, Pau-brasil, etc.), foi sobretudo o
terreno frtil do gnero ensaio que serviu de espao privilegiado de negociao de suas
urgncias identitrias. O ensaio teve um papel importante no esforo de legitimao e de
sacralizao das literaturas das trs Amricas que surgiram como extenso das culturas dos
pases dominantes. Foi por intermdio deste gnero hbrido por excelncia que o ensaio que
compreendemos que a dependncia cultural no existe e que mais importante do que enunciar
discursos ressentidos, era necessrio aceitar o carter inevitvel no apenas do contato como
dos emprtimos que dele decorreram desde os primeiros tempos no espao das colnias.
A compreenso e o exorcismo do que significa "crire en pays domin", ou escrever na lngua
do outro, nos dada pelo exerccio ininterrupto do ensaio. Quase todos os grandes
romancistas e poetas das trs Amricas so tambm notveis ensastas. Hoje, as fronteiras
entre os gneros vm sendo implodidas, assim a fico contm o ensaio e o ensaio deixa lugar
ao ficcional, na obra dos melhores escritores contemporneos. , portanto, atravs do ensaio
ou de fragmentos ensasticos inscritos nos contos, romances e novelas contemporneos que se
produziram as tentativas mais bem sucedidas de recuperao da trace, ou seja, dos vestgios
da memria popular que polticas assimilacionistas trataram de elidir.
Antropofagias
Walter Moser em pelo menos dois de seus artigos pretende que o conceito de Antropofagia
cultural brasileira poderia esclarecer os debates identitrios, ajudar a superar suas
polarizaes e talvez a oferecer uma alternativa ao impasse que tende a imobiliz-lo. Sua
proposio reverte de algum modo uma tradio segundo a qual sempre (ou quase) o sul
que toma emprestado os esquemas interpretativos do norte. Segundo Moser, tratar-se-ia, ao
contrrio, para os norte-americanos de importar do sul a proposta oswaldiana de 1928. As
provocaes modernistas poderiam contribuir para a superao de uma viso redutora que
aspira, ainda hoje, a uma literatura nacional imune s contaminaes vindas de fora.
levada a srio, a figura antropofgica comporta um ensinamento de base que teramos
vantagem em aceitar: no existem substncias identitrias pr-determinadas. O fundamento
da questo identitria um processo de interaes muito complexo, jamais um ser
homogneo nem uma propriedade metafsica, e ainda menos uma determinao biolgica.2
Apesar da importncia que Moser concede ao Manifesto Antropfago, considerando-o capaz de
fertilizar a reflexo identitria do norte, ele destaca, em sua argumentao, o carter
destrutivo da alteridade contido na proposta de base da antropofagia: devorar o outro,
apropriar-se de elementos da cultura do outro, passa necessariamente pela morte e
consequente desaparecimento desta cultura. Por outro lado, a astcia da razo tupiniquim
reside na utilizao constante da ironia e da pardia que desencadeiam um processo de
-
desestabilizao da instituio literria brasileira que comeava a levar-se demasiadamente a
srio. O processo de dessacralizao que ela instaura questiona profundamente as certezas do
"carter nacional" brasileiro na medida em que a Antropofagia, como salienta Moser, "nos
impede de esquecer as alteridades devoradas e incorporadas, a pluralidade heterognea de
que nos nutrimos, o confluente de heterogeneidades que ns somos".3
A lio antropofgica permanece de uma incrvel atualidade e converge de maneira
surpreendente com as propostas mais recentes que circulam nas Amricas como as de Garcia
Canclini, Patrick Chamoiseau, douard Glissant, Rgine Robin, Jocelyn Ltourneau entre
outros, pois essa lio continha, nos anos 20, os princpios de base que ancoram o
pensamento deste ensastas contemporneos:
a. a impossibilidade de se reconhecer em uma pureza primordial;
b. a tendncia a acolher o popular mtico, permanecendo capazes de relativiz-lo, sem
fazer do maravilhoso uma substncia estvel;
c. a abertura ao outro no Diverso.
O que talvez fosse itil lembrar que no mesmo ano de lanamento dos Manifestos
Antropfago e Pau Brasil foi publicada no Haiti a Revue Indigne. Interessa salientar como os
intelectuais brasileiros e haitianos, que certamente no tomaram conhecimento das obras uns
dos outros, puderam apresentar teses to similares, baseadas na:
compreenso de que preciso voltar a um tempo primordial, antes da chegada dos
colonizadores. Para os brasileiros tratava-se de compreender o sentido do ritual antropfago
praticados pelos tupinambs, para dele tirar a lio da devorao regeneradora, enquanto para
os hatianos era urgente "reencontrar o tempo em que os haitianos se amavam e onde viver
era em nossa terra uma coisa amena" 4;
aceitao do fato de que a cpia parte integrante de nossa formao cultural e que ns
no nos tornaremos "nacionais por subtrao", mas que preciso, a partir do emprstimo,
"construir uma doutrina original" 5;
importncia de falar de um ponto de vista autctone (indigne), sem contudo criar
fronteiras ou excluses: "Vida intelectual e artstica, vida econmica e comercial. O ponto de
vista haitiano das questes, a maneira pela qual vislumbramos as coisas e como fazem da
palavra "indigne" um insulto, ns a reivindicamos como um ttulo, o ponto de vista indgena
(indigne)". 6
No Quebec, encontramos igualmente a urgncia de convocar a comunidade a construir por
inteiro uma literatura nacional. Em 1913, o abade camille Roy, em Ensaios sobre a literatura
canadense (Essais sur la littrature canadienne), argumenta em favor do que ele prprio
chama de "nacionalizao da literatura canadense". importante destacar que, como os
escritores brasileiros e haitianos mencionados anteriormente, a identidade de que fala Camille
Roy no exclusiva; ele no cai na armadilha da iluso de construir uma literatura nacional a
-
partir de zero. Ele tem conscincia de que esse grau zero no existe e que o conceito de
nacional no pode ser confundido com o de gueto:
" Assim como no se pode exigir de nossos escritores que eles cantonem em um repertrio de
assuntos que sejam exclusivamente canadenses, no devemos critic-los de submeterem por
vezes seus espritos, seu gosto, seus hbitos de pensar, sua arte, e, por assim dizer, sua
conscincia literria s influncias que vm do esterior. Deixemo-los pedir aos escritores
franceses alguns conselhos sobre a arte de escrever e de compor um livro; e para enunciar
aqui um princpio mais geral, deixemo-los assimilar nas obras estrangeiras a nosso pas, que
se trate de questes de fundo ou de forma, tudo o que puder ser til arte canadense". 7
Esta reflexo vai exatamente na mesma direo da que Machado de Assis desenvolveu em
"Literatura brasileira: instinto de nacionalidade", de 1873. Neste ensaio, o autor chama a
ateno dos intelectuais da jovem nao brasileira que acabava de nascer que no era preciso
exagerar na utilizao da cor local sob pena de restringir a recepo das obras aos membros
de uma nica tribo. "O que se deve esperar do escritor um certo setimento ntimo que o faa
tornar-se um homem de seu tempo e de seu pas" 8.
Tratava-se de um alerta: embora reconhecendo a legitimidade de um certo "instinto de
nacionalidade", o autor ressalta os perigos de associar "identidade nacional" homogeneizao
dos traos culturais, como j estavam propondo alguns escritores com ntida tendncia
essencialista. Podemos, pois constatar pelos exemplos evocados que uma concepo
identitria rizomtica, heterognea e conflitual j existia no incio deste sculo no contexto das
trs Amricas.
Crioulizaes
Se Moser tinha razo em lembrar a atualidade das lies antropofgicas, considero igualmente
frtil a possibilidade de pensar a contribuio que podem trazer a esse debate os escritores do
Caribe tais como douard Glissant e Patrick Chamoiseau que, entre outros, vm dedicando-se
em seus ensaios a refletir sobre as questes identitrias a partir da fecundante proposta de
Deleuze e Guattari de substituir a idia de raiz nica pela de rizoma, com suas razes mltiplas
e abrangentes. Em suas publicaes mais recentes como crire en pays domin (Chamoiseau,
1997) e Trait du tout-monde (Glissant, 1997), tratam acima de tudo de combater os
fundamentalismos e os integrismos de toda espcie que se constituiram a pretexto de
afirmao identitria. Ao proporem o conceito de crioulizao, com seu valor acrescido de
imprevisibilidade, estes autores relativizam a questo das identidades, afastando-se ao mesmo
tempo do enraizamento, que nega o outro ao afirmar-se, e da alienao que acarretaria a
perda total da memria coletiva.
Para Glissant, a crioulizao "o encontro, a interferncia, o choque, as harmonias e as
disarmonias entre as culturas na totalidade realizada do mundo-terra".9 Aceitar a crioulizao
renunciar a qualquer ideal de pureza e mesmo de mestiagem controlada e previsvel das
etnias e das culturas. s culturas atvicas que preservam a memria da Gnese, vm opor-se
-
as culturas compsitas, produto de um processo contnuo de crioulizao, que no pretendem
ser fiadoras de uma Gnese, mas do que o autor chama de Dignese.
Patrick Chamoiseau foi co-autor nos anos 90 de Lloge de la crolit, ensaio que se tornou
antolgico e que muitas vezes citado quando se trata de falar de identidade e literatura. Em
seu ltimo livro, crire en pays domin, ele retrabalha este conceito e o amplia ainda mais.
Refora a idia j expressa no primeiro livro que, no contexto do Caribe, - e seria possvel
aplic-lo ao conjunto das Amricas a sntese torna-se impossvel e que a identidade s pode
ser percebida como "mosaico incerto, sempre conflitual e catico" 10.
Para reforar a idia de abertura e de processo, Chamoiseau utilisar preferentemente a
expresso "crioulizao", da qual ele evacua qualquer associao com imobilidade. O autor,
diante da impossibilidade para os caribenhos de se reconhecerem na unicidade de uma raiz
nica, v na crioulizao a nica maneira de abordar a questo identitria:
"Amrindiens, bks, Indiens, Ngres, Chinois, multres, Madriens, Syro-Libanais Nous
voulmes prserver doriginelles purets mais nous nous vmes traverss les uns par les
autres. LAutre me change et je le change. Son contact manime et je lanime. Et ces
dbotements nous offrent des angles de survie, et nous descellent et nous amplifient. Chaque
autre devient une composante de moi tout en restant distinct. Je deviens ce que je suis dans
mon appui ouvert sur lAutre. Et ette relation lAutre mouvre en cascades dinfinies relations
tous les Autres, une multiplication qui fonde l unit et la force de chaque individu:
Crolisation! Crolit! 11
Esta viso do identitrio como lugar de confluncia do mltiplo, determina toda uma concepo
da escritura como um lugar de desestabilizao e do escritor como imperativamente aberto ao
multilinguismo, mesmo que ele escreva sempre na mesma lngua. Esta lngua ser
atravessada por diferentes linguagens, mestia e impura, aceitando como queriam os
modernistas brasileiros "a contribuio milagrosa de todos os erros". As identidades definidas,
pois como crioulizadas engendram estticas compsitas com seus "textos ondulantes sobre mil
estratos de discursos, caminhando para um fim que convoca o comeo". 12
Estas teses de Chamoiseau convergem com as sustentadas por Rgine Robin, sobretudo no
Roman mmoriel (1989) e em Le deuil de lorigine (1993) onde ela fala dos caminhos
transversais da escritura, do entrecruzamento dos discursos que daro origem lngua
literria que se torna sempre outra : nem lngua materna, nem lngua do pas de adoo, nem
da comunidade de origem, mas o resultado hbrido de todas estas variantes.
Garcia Canclini em Culturas hibridas: estrategias para entrar y salir de la modernidad (1989),
diz que a hibridao uma das noes-chave para compreender a histria latino-americana.
Em um artigo mais recente13, retoma sua tese da hibridao: "A modernidade europia no
eliminou as tradies autctones; ela deu lugar a formas sincrticas onde as matrizes
indgenas, espanholas e portuguesas foram reelaboradas para constituir uma mistura"14. Como
Oswald de Andrade em 1927, ou Patrick Chamoiseau, em 1997, Canclini no acredita que esta
-
heterogeneidade multitemporal e multicultural seja algo que precise ser eliminado ou que
constitua um problema a resolver. Ao contrrio, seria antes um elemento fundamental para
apreender o complexo processo de formao cultural americana.
Joo Ubaldo Ribeiro traz tona em seus romances a extraordinria multiplicidade de etnias,
culturas, registros de lngua e modos de estar no mundo que coexistem no Brasil. Em O feitio
da ilha do pavo (1997), sua mais recente publicao, elementos sados da cultura popular,
massiva e culta se entrelaam e interagem sem que o autor intervenha para hierarquiz-los.
No Quebec, as literaturas migrantes, que eram chamada de neo-quebequenses pelos
escritores que se consideravam "pure laine", isto , pertencendo a famlias radicadas no
Quebec desde a sua fundao, crioulizam em geral os aportes da cultura de origem com os do
pas de acolhida, o Quebec e/ou o Canad. O resultado, como o atestam os ltimos romances
de Dany Laferrire, Grard Etienne, Nancy Huston, Serge Kokis, Rgine Robin, Ying Chen,
Bernard Andrs, Fulvio Caccia entre outros, constituem o que de mais vigoroso se publica
atualmente na Amrica do Norte. O que fascina antes de tudo nesta escritura que ela obriga
os leitores e a crtica a reavaliar seus critrios de classificao, pois ela fala de vrios contextos
geogrficos, o que compromete a noo de literatura nacional, deixa-se atravessar por vrias
lnguas e linguagens e inscreve segmentos culturais sados de diferentes estratificaes com
um alto grau de imprevisibilidade, o que a torna refratria aos critrios tradicionais de
classificao lingustica ou regional.
As literaturas migrantes, que constituem conjuntos plurais por excelncia, interessam na
medida em que elas desestabilizam as certezas e as obsesses da crtica de tudo querer
classificar, organizar e imobilizar em categorias definitivas. O gesto tradicional de associar um
autor a um nico quadro de referncias como a etnia, a nao, o gnero ou mesmo a lngua
torna-se insuficiente para dar conta do entrelaamento de fatores postos em cena.
Estou convencida de que a circulao destas idias no contexto brasileiro, quebequense e
latino-americano em geral deveria engendrar as bases de um futuro tratado de livre
intercmbio cultural entre as diferentes geografias do continente americano que padecem
ainda cruelmente de conhecimento e, principalmente, de reconhecimento mtuo. Fala-se no
Quebec de duas solides em relao ao isolamento existente entre a cultura francfona e a
cultura anglfona. Poder-se-ia dizer o mesmo relativamente ao Brasil e ou Amrica hispnica
que, at bem recentemente, se ignoravam solenemente. Falta-nos um certo nmero de
instrumentos para que a relao entre as diferentes culturas americanas possa enfim realizar-
se, com trocas fertilizadoras, pois ainda pela frequentao da cultura do outro que melhor
entendemos os segredos e as sutilezas da nossa cultura de origem. Tais instrumentos esto
contidos na prpria produo cultural contempornea, pois artistas, escritores, pintores,
compositores e demais agentes culturais j compreenderam que processos de hierarquizao
entre cultura erudita, popular mtica e popular massiva j no podem subsistir. Se as
identidades so mltiplas e compsitas, a arte e as escrituras que delas se originam sero
-
consequentemente hbridas, "dcteis e maleveis", como afirma Nstor Garcia Canclini, um
dos primeiros a valer-se do termo "hbrido" para caracterizar a cultura das Amricas.
Perspectivas
Parece-me que poderamos assinalar, a grosso modo, a existncia de duas perspectivas a
partir das quais poderamos vislumbrar a questo identitria num contexto americano
compsito:
A perspectiva da modernidade onde se tratava de aceitar a mestiagem com seu
fundamento de previsibilidade. A ideologia da mestiagem determinou no contexto da Amrica
Latina a ideologia de homogeneizao que aceitavam a idia de mistura desde que a sociedade
se tornasse cada vez mais branca tnica e culturalmente (cf. teorias do branqueamento,
contemporneas das grandes vagas migratrias). Perodo de elaborao de identidade de raiz
nica, de valorizao do ser, de demarcao de territrios polticos e culturais, de construo
do conceito de americanidade, a partir de uma iluso de homogeneidade (cf. Nossa Amrica,
de Jose Mart).
A perspectiva da ps-modernidade onde a crioulizao com seu valor acrescido de
imprevisibilidade e de intervalorizao das culturas veio alargar o conceito de mestiagem. As
identificaes, ou seja, as construes identitrias abertas relao e ao Diverso, que contm
a idia de movimento, substituem os conceitos cristalizados de identidade de raiz nica,
aniquiladora das demais. Trata-se aqui antes de americanizao, do que de americanidade, de
crioulizao do que de crioulidade, de terra do que de territrio, que prev limites e
demarcaes de fronteiras. Na terminologia glissantiana, a sntese seria dada pela equao na
qual o reinado do SER, estaria sendo substitudo pelo do SENDO. A abertura ao outro na
Relao, substitui os sentimentos de ensimesmamento, de fechamento na prpria comunidade
de origem, tendendo a apagar ou a minimizar o ressentimento. A um pensamento de sistema,
dirigido para o Absoluto, se oporia um pensamento de "arquiplago", impreciso, ambguo e
relativo, pois o arquiplago ao mesmo tempo uno e mltiplo uma vez que cada uma de suas
ilhas pode guardar a sua especificidade.
Utpico? Estaremos com tais afirmaes criando mais uma utopia, a utopia do terceiro
milnio? Talvez na medida em que o produto das crioulizaes, as culturas compsitas,
tendem justamente a imobilizar-se, a tornarem-se por sua vez atvicas e permanentes; na
medida em que a mistura de todos os heterogneos, que constituem o que Canclini chama de
culturas hbridas, ter igualmente tendncia a tornar-se hegemnico e totalizante.
Se os fantasmas da unicidade, de uma nica raiz identitria podem sempre ser reconvocados a
integrar a trama narrativa, tambm verdade que as identidades compsitas, que se
desenharam no contexto das Amricas, geraram escrituras hbridas abertas multiplicidade de
origens culturais que as integram.
-
NOTAS
1. VIGNAULT, R. Lcriture de lessai. Montreal : Hexagone, 1974.
2. MOSER, W. Lantropophagie du sud au nord. In PETERSON, M. & BERND, Z., orgs.
Confluences littraires: Brsil/Qubec, les bases dune comparaison. Montral :
Balzac, 1992. P. 151.
3. Ibidem, p.150.
4. SYLVAIN, N. G. Programme. La Revue Indigne. Port au Prince, juillet, 1927, n. 1.
P.4.
5. Revue Indigne, op.cit. p.5
6. Ibidem, p.9.
7. ROY, C. La nationalisation de la littrature canadienne. In : Essais sur la littrature
canadienne. Montral, Beauchemin, 1913. P. 218.
8. Observao : neste contexto o adjetivo " canadense " queria dizer preferentemente
" quebequense "no sentido como o utilizamos atualmente.
9. MACHADO DE ASSIS. J. M. literatura brasileira : instinto de nacionalidade. In Critica
literria. Rio de Janeiro : Jackson, 1955. P.129-136.
10. GLISSANT, E. Trait du tout-monde. Paris : Gallimard, 1997. P. 194.
11. CHAMOISEAU, P. crire en pays domin. Paris : Gallimard, 1997. P.200.
12. Ibidem, p.202.
13. Ibidem, p.309.
14. CANCLINI, N.G. Stratgies de recyclage, arts cultes et populaires en A. latine. In
MOSER et alii, ds. Recyclages conomies de lappropriation culturelle. Montral :
Balzac, 1997. P.282-291.