a poesia agreste de zila mamede do cd rom

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    A POESIA AGRESTE DE ZILA MAMEDE

    PINHEIRO, Andr (UFRN)

    Zila Mamede (1928 1985) um dos nomes mais representativos da literatura do Rio Grande do Norte. Dentre os temas que compem a sua obra, destacamos a representao de alguns aspectos da sociedade potiguar. A cultura sertaneja, as lembranas de uma infncia vivida em terras do agreste e o desenvolvimento da capital norte-rio-grandense so temticas que a poetisa aborda com uma dosagem considervel de humanidade. Ressalta-se, contudo, a grande coerncia formal com que Zila Mamede organiza a sua poesia, revelando, portanto, um trabalho quase artesanal com o signo potico. Neste trabalho, pretendemos primeiro apresentar um panorama geral da obra de Zila Mamede, mas j voltando o foco da anlise para a representao de eventos localistas. Por fim, orientados pelos princpios da literatura comparada, pretendemos desenvolver questes sobre o modo como a relao da literatura com a sociedade pode ser explorada em sala de aula. Interessa-nos especificamente indicar os benefcios e os cuidados que o professor precisa ter ao trabalhar com uma obra que importa dados da realidade local. Com efeito, a representao de um ambiente conhecido ajuda no processo de aproximao do leitor com a poesia; mas o analista nunca deve esquecer que essa ambientao uma realidade ficcional com leis estruturais prprias. PALAVRAS-CHAVE: Poesia. Mulher. Zila Mamede.

    1. Retrato de menina

    Zila da Costa Mamede nasceu em setembro de 1928 em Nova Palmeira, pequena

    cidade localizada no interior da Paraba37. Na infncia, costumava passar as frias no

    stio do av, de modo que a ambientao rural teve um papel decisivo para a formao

    cultural da autora. Ainda criana, mudou-se com a famlia para Currais Novos (RN),

    cidade onde o pai iria trabalhar como mecnico de equipamentos agrcolas. Com o

    intuito de alcanar melhores condies de vida, a famlia Mamede mudou-se para a

    capital do estado. Depois de se instalar definitivamente em Natal, a agitada ambientao

    urbana acabou se convertendo em um dos objetos poticos mais densos da obra de Zila

    Mamede.

    Em 1953 a autora publicou Rosa de pedra, seu primeiro volume de poesias.

    Nele, o sujeito e o mundo aparecem em constante desintegrao. Com efeito, as

    37 As informaes biogrficas elencadas neste artigo esto baseadas nos argumentos da biografia escrita por Cludio Galvo (conferir referncias) e da entrevista concebida por Zila Mamede ao programa Memria viva (1999), da TV Universitria da UFRN.

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    imagens abstratas e evasivas compem o panorama de uma realidade quase

    impressionista, marcada pela efemeridade e pela vertigem. De certo modo, esses

    recursos temticos acabam por representar o etos do fragmentado homem moderno.

    O livro guiado por alguns princpios da gerao de 45, sobretudo no que diz

    respeito ao uso de imagens concretas para retratar temas intimistas. Por outro lado, o

    soneto figura como a forma majoritria de composio. Esses dados justificam o carter

    ambguo da obra, que parece ter uma base fincada na tradio (a forma fixa) e outra na

    modernidade (o tema catico e desconexo). Apesar de o tom retrico ter prejudicado o

    estilo de alguns poemas, a engenhosa criao imagtica atesta a excelente qualidade da

    obra - tanto que Manuel Bandeira chegou a consider-la como um dos dez melhores

    volumes de poesia publicados no pas.

    desfeita luz na face transitria

    do tempo, voz perdida na memria

    em traos, mudas formas de beleza.

    Sob folhas de mangue acobertada,

    extinta flor azul entorpecida

    numa corola resta v, sem vida,

    (Mamede, 2003: 196)

    A partir de ento, Zila Mamede comeou a conciliar a carreira literria com

    atividades desenvolvidas em outras reas. Primeiro matriculou-se no curso de

    Biblioteconomia do Instituto de Educao; depois, foi aprovada no curso de Direito,

    mas abriu mo a favor de uma formao como bibliotecria. Em 1957, foi para o Rio de

    Janeiro fazer o Curso Superior de Biblioteconomia da Biblioteca Nacional. Nessa

    ocasio, foi enviada Europa pelo jornal O globo para cobrir um evento religioso.

    Em 1958 Zila Mamede publicou seu segundo livro de poesias. Em Salinas ainda

    persiste o tom de um discurso intimista, muito embora nele j se note certo afastamento

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    das imagens dispersivas e do catico universo interior que marcaram o volume

    antecedente. A fortuna crtica costuma v-lo como uma obra de transio. O termo

    perigoso, impreciso e um tanto equivocado: primeiro porque muitas mudanas operadas

    neste livro no tiveram continuidade no volume seguinte; depois, a posio transitria

    tende a minimizar o valor da obra e, na verdade, ela um dos trabalhos mais graciosos

    de Zila Mamede.

    Salinas est marcado por um ntido processo de refinamento lingstico. O

    discurso passou a ser mais objetivo sem, com isso, perder a graa e o lirismo que

    fundamentaram a criao de Rosa de pedra. A representao de cenas familiares

    diretamente vinculadas a aspectos da realidade social constitui outra importante

    mudana. De certo modo, ao direcionar o foco do eu-lrico para o mundo exterior, Zila

    fez com que sua obra adquirisse um semblante mais consistente.

    escavando o cho agreste,

    me lembrava do menino

    carregando melancias.

    Em que terras desembocam

    esses talos de crianas

    mais finos que as maravalhas,

    (Mamede, 2003: 180)

    Em 1959 Zila Mamede publicou O arado, obra fundamentalmente amparada em

    temas da tradio rural. Diga-se de passagem, o acervo de cenas sertanejas figura como

    um dos fatores responsveis pela enorme popularidade do livro. Deve ser destacado, no

    entanto, o fato de que a autora extraiu da prpria experincia de vida o mote para a

    composio desses poemas aspecto que, de certa forma, justifica o carter vivo e

    coerente das imagens. O discurso retrico que marcou o primeiro livro pode ser sentido

    em uma pea ou outra, muito embora ele no seja capaz de prejudicar o estilo da obra.

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    Apesar da representao idlica da realidade, h um tom de crtica social

    implcito em grande parte das imagens que compem o livro. Logo se percebe que a

    poetisa busca destacar uma srie de eventos que so cada vez menos valorizados pela

    populao. Por isso mesmo, ao se voltar com tamanha nfase para a cultura e para a

    tradio sertaneja, O arado acaba se tornando um grito de resistncia contra as

    atrocidades caractersticas da sociedade moderna.

    de ver que o cho em pasto no rebenta.

    Do sono que lhes vem o encantamento

    p

    (Mamede, 2003: 146)

    Depois de O arado, Zila preferiu se dedicar carreira profissional de

    bibliotecria. Em 1961 foi para os Estados Unidos (Syracuse University) fazer um

    estgio nessa rea do conhecimento; em 1964 fez ps-graduao na Universidade de

    Braslia. Nessa ocasio, comeou um trabalho bibliogrfico sobre Camara Cascudo, que

    durou cerca de cinco anos para ser concludo. O resultado de tanto esforo veio luz no

    ano de 1969: trata-se do livro Luis da Camara Cascudo: 50 anos de vida intelectual

    (editado em dois volumes).

    A prxima obra literria seria publicada apenas em 1975. preciso admitir,

    contudo, que o tempo dedicado aos trabalhos bibliogrficos acabou por imprimir um

    vis mais analtico e ordenado poesia de Zila Mamede. Escrito lentamente ao longo de

    alguns anos (pois h manuscritos datados de 1962), Exerccio da palavra , sem dvida

    alguma, o seu livro mais bem elaborado e denuncia a presena de uma escritora com

    pleno domnio da linguagem potica.

    Dialogando com algumas idias do concretismo, o volume retrata o processo de

    modernizao por que passava a capital potiguar na poca; a solidez das imagens foi,

    portanto, a forma encontrada para representar o crescimento vertical da cidade. O

    discurso claro, objetivo e espontneo, resultando em um texto imune ao

    sentimentalismo piegas, muito embora ainda guarde o tom gracioso dos demais livros.

  • 210

    Trata-se de uma obra eminentemente metalingstica, j que (mesmo quando no fala

    abertamente em poesia) notrio o interesse da autora em conseguir um impecvel

    acabamento formal para seus poemas.

    Salto esculpido

    sobre o vo

    do espao

    em cho

    de pedra e de ao

    onde no

    permaneo

    p a s s o.

    (Mamede, 2003: 69)

    Embora parea ser guiado pelo mesmo princpio esttico do livro precedente,

    Corpo a corpo (1978) uma smula dos principais temas abordados pela a autora ao

    longo de sua carreira como escritora. Nele aparecem tanto as imagens da nova realidade

    social, quanto as cenas familiares, ruralistas e cotidianas que marcaram suas primeiras

    obras. uma espcie de testamento potico. No de se estranhar, portanto, o fato de o

    livro ter sido publicado como acrscimo ao volume de suas poesias completas. Apesar

    de no ter o alento potico dos demais volumes, a obra transmite um agradvel efeito de

    ordenao e sntese.

    em que a noite corre

    no fico: me ausento

    como quem morre

    Entre lousa e livro

    nico disfarce

    que concedo ao tempo

  • 211

    mudo-

    (Mamede, 2003: 47)

    Se Corpo a corpo pode ser considerado um testamento potico, ento A herana

    (1984 derradeiro volume de poesias publicado em vida) um testamento particular.

    Marcada pelo tom de um discurso confessional, a obra apresenta um acerto de contas

    entre o sujeito lrico e os seus entes mais prximos. A expressividade das imagens j

    no to notria, mas o livro ainda oferece momentos de sofisticada realizao esttica.

    Trata-se de uma obra que requer uma leitura sem pausas; caso contrrio, o leitor

    pode perder a matiz intimista que amarra todo o discurso potico e lhe confere um

    agudo carter de unidade. Em ltima instncia, destaca-se a atitude humanizadora com

    que a poetisa desenvolve os seus temas, sempre preocupada em revelar a densidade e os

    conflitos da alma humana.

    menina urbana,

    cabe no espao

    de outro ningum

    tudo algum

    da mesma fonte,

    da mesma dor,

    mesma ramagem,

    da mesma garra,

    (Mamede, 2003: 253)

    -Rio-

    (UFRN) lanou o volume pstumo Exerccios de poesia, reunio de textos que tinham

    sido publicados no jornal Tribuna do norte (Natal-RN) entre os anos de 1951 e 1952.

    Trata-se, portanto, do material que a autora (j com uma aguada viso crtica) resolveu

  • 212

    no incluir na composio de Rosa de pedra. Por isso mesmo, o livro tem, do ponto de

    vista esttico, um carter fraco e previsvel: a maioria dos temas no supera o senso

    comum, a linguagem no to bem elaborada e a estrutura potica ainda muito

    vacilante.

    Em alguns momentos, possvel sentir um deslumbrado apelo religioso, mas a

    atitude no chega a prejudicar a economia do livro. Na verdade, todos esses poemas

    representam a experincia estabelecida entre uma jovem escritora e a recepo de um

    pblico. O livro importa, pois, mais como registro histrico e como contribuio para a

    crtica gentica do que como matria esttica propriamente dita. Apesar dos deslizes de

    composio, a obra ainda revela algumas agradveis surpresas.

    a,

    Falando at de idia no pensada

    Embora que se saiba qual seria.

    Papel com magras letras indecisas.

    Conjunto de palavras evasivas

    (Mamede, 2009: 36)

    Zila Mamede morreu em dezembro de 1985, vtima de afogamento na Praia do

    Forte; ao que tudo indica, a autora sofreu uma vertigem enquanto nadava e,

    inconsciente, fora arrastada pelas ondas martimas. O mar tema constante na lrica

    mamediana, mas curioso observar que algumas passagens de sua obra focalizam a

    trgica experincia das pessoas que morrem afogadas. No se deve, evidentemente,

    fazer o julgamento crtico da obra baseado em explanaes msticas; preciso admitir,

    no entanto, que essa coincidncia acabou despertando a curiosidade do pblico e,

    conseqentemente, alimentando o imaginrio potico da autora.

    levai-me desses desertos,

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    deitai-me nas ondas mansas,

    (Mamede, 2003: 156)

    lavados de espumas

    caminha o afogado

    que o mar conquisto

    (Mamede, 2003: 164)

    Pouco tempo depois de sua morte saiu o livro Civil geometria, uma anotao

    bibliogrfica sobre a obra e a fortuna crtica de Joo Cabral de Melo Neto projeto que

    vinha sendo realizado desde 1976 e que monopolizou a ateno da autora durante os

    seus derradeiros anos de vida. A importncia e a dimenso desse trabalho fizeram de

    Zila Mamede um dos nomes mais significativos do cenrio intelectual norte-rio-

    grandense. O maior reconhecimento de mrito foi manifestado pelo prprio Joo

    Cabral, que dedicou a parte inicial do livro Agrestes (que trata de temas nordestinos)

    para a autora potiguar.

    Apesar de o prestgio no ser to notrio alm das fronteiras do estado38, Zila

    Mamede um dos nomes mais expressivos das letras potiguares. A sua poesia

    anotao obrigatria para qualquer antologia ou manual historiogrfico que se debruce

    sobre o assunto. Depois, a autora inspirou jovens poetas natalenses e manteve viva a

    tradio da literatura local uma literatura que colhe da realidade sertaneja o mote mais

    significativo para a composio dos seus versos. Longe de reproduzir um tipo de

    regionalismo piegas, Zila transformou a experincia cotidiana em um objeto de encanto,

    constantemente reabilitado pela memria e pelo corao do leitor.

    38 Apesar do recente esquecimento no cenrio nacional, a poetisa alcanou uma boa projeo fora do estado do Rio Grande do Norte na poca em que publicou seus livros. Basta mencionar que teve obras editadas na regio sudeste, alm de uma srie de publicaes em jornais de Pernambuco e do Rio de Janeiro. A amizade travada com importantes escritores brasileiros (como Drummond, Bandeira, Cascudo e Cabral) certamente contribuiu para a divulgao de sua obra.

  • 214

    2. Poesia e realidade social em sala de aula

    A obra potica de Zila Mamede contm muitas referncias a ambientes e eventos

    vinculados realidade norte-rio-grandense. Rica fonte de documentao histrica, ela

    revela dados precisos sobre os aspectos culturais e polticos da sociedade, alm de

    oferecer uma primorosa descrio arquitetnica da capital potiguar. Marcada por um

    carter extremamente dialtico, a lrica mamediana o reflexo das transformaes por

    que passava a cidade de Natal na segunda metade do sculo XX. Alm do componente

    temtico, a prpria forma dos poemas parece acompanhar a modernizao da sociedade,

    j que a estrutura tradicionalista das obras iniciais cede espao para o arrojo e o

    experimentalismo das derradeiras coletneas.

    Em alguns momentos, a autora faz menes explcitas a lugares conhecidos e

    vivenciados pelo povo potiguar, como a Rua Trairi, a igreja do Galo e o Alto

    (propriedade rural onde residiam seus avs). Dessa forma, a poesia de Zila Mamede

    parece se aproximar daquele modelo de narrador que extrai da experincia pessoal o

    argumento basilar para a composio de sua obra. Esse tipo de estratgia permite uma

    interao muito aguda entre o emissor e o receptor, segundo aponta o estudo de Walter

    Benjamin sobre o assunto:

    O narrador retira da experincia o que ele conta: sua prpria experincia ou a

    relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas s experincias dos seus

    ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance o indivduo isolado,

    que no pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupaes mais

    importantes e que no recebe conselhos nem sabe d-los (Benjamin, 2008: 201).

    Apesar de no se tratar de um gnero em prosa, a lrica mamediana est

    delineada pelos mesmos procedimentos elencados pelo pensador germnico. De modo

    geral, a autora evita reproduzir a sensao de isolamento tpica da sociedade capitalista

    e se volta mais detidamente para as questes sociais e para os elementos culturais de sua

    terra. Nesse sentido, mais do que promover um intercmbio de experincias, Zila

  • 215

    proporciona ao leitor potiguar a emoo de ter uma vivncia compartilhada, uma vez

    que ele se reconhece no universo descrito.

    Trabalhar com esse tipo de obra em sala de aula constitui uma tarefa bastante

    desafiadora, pois (apesar de algumas vantagens) o uso indevido desse material pode

    acarretar danos na formao do futuro crtico literrio. O estmulo leitura , sem

    dvida alguma, o benefcio imediato que os textos dessa natureza podem oferecer ao

    aluno; com efeito, a turma tende a prestar mais ateno a questes com as quais ela

    mantm uma relao de familiaridade. No seria exagero afirmar que, ao ler um poema

    que fala sobre a sua prpria terra, o aluno acaba se convertendo em parte constitutiva do

    objeto potico, pois, de certa forma, ele tambm a substncia do que est sendo

    relatado.

    Depois, preciso ressaltar que essas obras cumprem a importante funo de

    conservar a tradio e a memria cultural de um determinado ambiente. Nesse sentido,

    ao utilizar textos de escritores locais em sala de aula, o professor est contribuindo para

    que o aluno reconhea a importncia de suas tradies para o contexto da cultura

    nacional. Portanto, mais do que assimilar informaes sobre as especialidades de um

    sistema literrio, essa atividade didtica pode despertar o interesse do aluno para pontos

    ligados ao prprio desenvolvimento regional.

    Por fim, destaca-se que, atravs desses escritos, o leitor tem acesso a uma parte

    significativa da histria de sua terra. No se trata, evidentemente, de usar a literatura

    como pretexto para a aquisio de conhecimentos histricos, mas sim de consolidar a

    prpria histria por meio do texto literrio. Pode-se concluir, portanto, que o emprego

    da literatura local em sala de aula traz algumas vantagens, como a formao de um

    leitor que conhece, preza pelo bem de sua cultura e capaz de transmiti-la a outros

    povos. Os textos dessa natureza deveriam aparecer com maior freqncia em sala de

    aula, mas infelizmente essa prtica didtica ainda no um ato rotineiro.

    Apesar dos benefcios apresentados acima, preciso ter um cuidado especial

    para que o aluno no caia em algumas armadilhas. Primeiramente, no se deve

    confundir o condicionamento social da obra com a realidade recriada esteticamente,

    pois a literatura tem leis estruturais prprias que a distanciam das leis naturais. muito

    comum a prtica de analisar textos baseado no modo como a temtica se organiza na

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    consideraes sobre um espao que integra a cidade de Natal. Observa-se, contudo, que

    a experincia representada transcende a localizao imediata e ganha nuances que

    jamais poderiam ser explicadas atravs da mera observao da realidade. Pode-se

    afirmar, portanto, que a sociedade motiva a criao da obra literria, mas nem por isso

    ela deve ser tomada como elemento exclusivo de interpretao.

    Outro aspecto que exige bastante cautela por parte do professor diz respeito

    interferncia da figura do autor no momento da anlise literria. O texto um tecido

    lingstico polissmico e no suporta a tonalidade de uma voz unssona. Os

    fundamentos da significao textual variam de acordo com culturas e pocas diferentes

    sem falar que eles se atualizam no ato particular de cada leitura. Dessa forma,

    preciso desconfiar das explicaes que o autor atribui sua obra, pois a literatura ganha

    vida prpria depois de ser publicada. No caso da literatura local, a possibilidade de um

    impasse aumenta em funo da maior cumplicidade que existe entre o leitor e o autor.

    Os moradores de uma regio certamente sabem mais sobre a vida dos escritores que ali

    vivem do que sobre a vida dos escritores que habitam outras paisagens; tal situao

    pode induzir o crtico a, erroneamente, analisar uma obra com base na personalidade do

    autor conhecido. O fato de Zila Mamede ter habitado ruas descritas em sua obra, por

    exemplo, no quer dizer que o texto esteja preso a essa rede de explicaes factuais.

    Conforme bem orientam os estudos de Roland Barthes, a prtica da anlise literria

    jamais deve se resguardar sob a gide da figura do autor:

    (...) a escritura a destruio de toda voz, de toda origem. A escritura esse

    neutro, esse composto, esse oblquo aonde foge o nosso sujeito, o branco-e-

    preto onde vem se perder toda identidade, a comear pela do corpo que escreve

    (Barthes, 1982: 65).

    Por fim, o uso da literatura regional em sala de aula pode trazer um problema de

    ordem tica. Em funo dos evidentes laos sentimentais que os unem, o leitor pode

    enfrentar dificuldades para promover um distanciamento da obra analisada. Com efeito,

    o desejo de manter viva a tradio literria de sua terra acaba levando o analista a

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    abandonar o julgamento esttico e a se perder em elogios descomedidos. Em tais

    circunstncias, o efeito artstico completamente soterrado por uma imposio de

    ordem ideolgica. preciso ter em mente, portanto, que a escolha de um texto para se

    trabalhar em sala de aula deve ser feita segundo critrios qualitativos e no por obedecer

    premissa de o escritor pertencer determinada regio.

    H algum tempo a legitimidade das literaturas locais vem sendo questionada

    pelos especialistas. Primeiro porque muitas obras dessa natureza no tm um bom

    padro esttico; grosso modo, a baixa qualidade figura como fator que a impede de

    ascender ao cnone nacional. Depois, muitos se perguntam se a representao de

    experincias to localizadas capaz de tocar os leitores que no fazem parte do universo

    narrado. Evidentemente, quando se toma os devidos cuidados, a literatura regional

    uma rica fonte para a prtica pedaggica. Por tratar de uma realidade vivenciada, ela

    capaz de motivar os alunos mais do que qualquer outra literatura. Depois, se o trabalho

    com a linguagem bem realizado, os eventos localistas facilmente adquirem o status da

    universalizao. Se essas obras no conseguiram atingir maior divulgao, isso se deve

    a motivos de to variada ordem, que no cabe discuti-los neste momento.

    Referncias

    ALVES, Alexandre. Silncio, mar a poesia de Zila Mamede nos anos 50. Natal: Sebo

    Vermelho, 2006.

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    Zila Mamede. Natal: A. S. Editores, 2005.

    BARTHES, Roland. A morte do escritor. In.: O rumor da lngua. So Paulo:

    Brasiliense, 1982.

    BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e tcnica, arte e poltica. 7 ed. So

    Paulo: Brasiliense, 2008.

    BRITO, Beteizabete de. Ancoragens textuais de Navegos. Natal: EDUFRN, 1996.

    GALVO, Cludio. Zila Mamede em sonhos navegando. Natal: Moura Ramos, 2005.

    GURGEL, Tarcsio. Informao da literatura potiguar. Natal: Argos, 2001.

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    MAMEDE, Zila. Navegos. A herana. Natal: EDUFRN, 2003.

    __________. Exerccios de poesia textos esparsos. Natal: EDUFRN, 2009.

    PINHEIRO, Andr. O nascimento de uma nova cidade: aspectos da condio urbana na

    poesia de Zila Mamede. In: Revista Odisseia. N 4. Natal: EDUFRN, 2010.

    _____. O espao como resistncia na poesia de Zila Mamede. In: Revista Imburana.

    Vol. 2. Natal: EDUFRN, 2010.