identidade inacabada

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  • Quem o brasileiro neste incio de s-culo? Estamos acostumados a nos referir aos portugueses, africanos e indgenas como a base de nossa tradicional matriz tnico-cultural. Ser isso suficiente para compreendermo-nos atualmente? O scu-lo XX foi marcado por profundas transfor-maes sociais, econmicas, polticas, cul-turais e tecnolgicas, entre as quais destaca-se o intenso f luxo migratr io . Nesse perodo, o Brasil foi terreno frtil e representativo do conjunto dessas mudan-as. No que diz respeito migrao, gran-des levas de alemes, italianos, espanhis, japoneses, srio-libaneses, alm de portu-gueses, chegaram ao Brasil para trabalhar e viver. E quais seriam as mudanas cul-turais, de identidade, nos modos de viver, de se relacionar e de ver o mundo que esses imigrantes provocaram no brasilei-ro, ao se tornarem, a seu modo, eles mes-mos, brasileiros?

    Este livro, fruto de uma tese de douto-rado, por meio do estudo da cidade de Pereira Barreto, interior do Estado de So Paulo, procura lanar luzes sobre essa questo analisando como nipo-brasileiros e no-nipo-brasileiros vivenciaram e con-triburam com esse processo de criao e recriao da identidade do brasileiro. Para sua realizao, o autor visitou inmeras vezes Pereira Barreto, registrando o coti-diano da cidade, participando de festas e cerimnias, como o caso do Bon-Odori (festa tradicional japonesa em que se ho-menageiam os mortos), quando presen-

  • A CONSTRUO DE UMA IDENTIDADE INACABADA

  • FUNDAO EDITORA DA UNESP

    Presidente do Conselho Curador Jos Carlos Souza Trindade

    Diretor-Presidente Jos Castilho Marques Neto

    Assessor Editorial Jzio Hernani Bomfim Gutierre

    Conselho Editorial Acadmico Antonio Celso Wagner Zanin

    Antonio de Pdua Pithon Cyrino Benedito Antunes

    Carlos Erivany Fantinati Isabel Maria F. R. Loureiro Lgia M. Vettorato Trevisan

    Maria Sueli Parreira de Arruda Raul Borges Guimares

    Roberto Kraenkel Rosa Maria Feiteiro Cavalari

    Editora Executiva Christine Rhrig

  • A CONSTRUO DE UMA IDENTIDADE INACABADA

    NIPO-BRASILEIROS NO INTERIOR DO ESTADO DE SO PAULO

    MARCELO ALARIO ENNES

  • 2000 Editora UNESP Direitos de publicao reservados : Fundao Editora da UNESP (FEU)

    Praa da S, 108 01001-900-So Paulo-SP

    Tel.: (Oxxll) 232-7171 Fax: (Oxxll) 232-7172

    Home page: www.editora.unesp.br E-mail: [email protected]

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Ennes, Marcelo Alario A construo de uma identidade inacabada: nipo-brasileiros no

    interior do Estado de So Paulo / Marcelo Alario Ennes. - So Paulo: Editora UNESP, 2001.

    Bibliografia. ISBN 85-7139-360-5

    1. Japoneses - So Paulo (Estado) 2. Nipo-brasileiros - So Paulo (Estado) - Identidade tnica 3. Pereira Barreto (SP) - Histria 4. Relaes tnicas I. Ttulo.

    01-2685 CDD-305.8956098161

    ndices para catlogo sistemtico: 1. Japoneses e brasileiros: Relaes intertnicas: So Paulo: Estado:

    Sociologia 305.8956098161 2. So Paulo: Estado: Japoneses e brasileiros: Relaes intertnicas:

    Sociologia 305.8956098161

    Este livro publicado pelo Projeto Edio de Textos de Docentes e Ps-Graduados da UNESP -

    Pr-Reitoria de Ps-Graduao e Pesquisa da UNESP (PROPP)/ Fundao Editora da UNESP (FEU)

    Editora afiliada:

  • Ao meu av, Nelson Ennes, carroceiro e operrio na cidade de Ribeiro Preto/SP.

    Ao meu pai, Geraldo, por ter dado continuidade aos seus estudos e por ter se formado professor,

    contrariando as ordens de meu av. Aos meus filhos, Isabela e Arthur,

    pelas novas oportunidades de me reencontrar e de me alegrar diante da vida. A minha companheira, Sandra,

    pela difcil convivncia com a diferena. A todos dedico este trabalho com amor.

  • AGRADECIMENTOS

    Um trabalho cientfico sempre muito solitrio: as leituras, os fichamentos, as viagens a campo, as transcries de entrevistas, o esforo de redao etc. No entanto, nada disso feito isoladamen-te, pois sempre h pessoas prximas ou no, fisicamente ou pelas idias, dicas, pistas, crticas, ou mesmo pelas saudades. A essas pes-soas, muitas e inominveis, agradeo por terem participado e com-partilhado da minha formao como pessoa e pesquisador.

    Agradeo, em particular, ao Sr. Paulo Yuzuru Ono, Sr. Jitsunobo Igi, Sra. Maria Antonia da Silva, Sr. Lo Liedtke, Sr. Jorge Wako, Cristina Ono, Nilton Cesar Nascimento, Sr. Arnaldo Enomoto e Suzana de Castro Neves, pela pacincia e tolerncia ao concede-rem os depoimentos que forneceram as informaes necessrias para a redao deste trabalho.

    Agradeo ao CNPq, pela ajuda financeira; aos coordenadores e funcionrios do Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Fa-culdade de Cincias e Letras da Universidade Estadual Paulista, Campus de Araraquara, e, especialmente, minha amiga Vera Botta, que h mais dez anos vem me ensinando a superar obstculos com alegria e coragem.

  • Livrai-vos dos ces de guarda metodolgicos.

    (Pierre Bourdieu)

  • SUMARIO

    Prefcio 13

    Apresentao 15

    Parte I

    Aspectos histricos 39

    1 O retrato de hoje 41

    2 Os primrdios 43

    3 A insero da regio no circuito das relaes mercantis 45 O loteamento 46

    4 A presena japonesa 49 A trajetria dos imigrantes japoneses no Brasil 49

    A presena japonesa na regio e a trajetria de Pereira Barreto 65

    Trajetria poltica dos nipo-brasileiros em Pereira Barreto 81

  • Parte II

    Relaes Intertnicas 91

    5 O reenraizamento 93

    6 Aproximaes e distanciamentos 95 7 Aspectos das relaes econmicas e 101

    polticas em Pereira Barreto

    8 Japoneses e brasileiros mediados pela tica do trabalho 111

    9 Mudana, ruptura e continuidade 115 Tempos difceis e o esvaziamento da colnia I I 5

    A cooperativa e a reafirmao da colnia I 19 Dekassegui: novas oportunidades para

    nipo-brasileiros e brasileiros 120

    10 O reposicionamento da colnia no campo poltico 123 O circuito das mudanas 127

    Conflito e negociao 129

    11 Nipo-brasileiros/brasileiros-nipo: expresses de uma dualidade 135

    Expresses do habitus nas relaes de amizade I 36 Relaes intertnicas como objeto de representao I 38

    Famlia como campo de relaes intertnicas 140 O mojim 148

    O esporte: trocas simblicas e aquisio de disposies prticas I 51

    A Igreja Anglicana: interseo intertnica I 52 Bon-odori: recriao de prticas simblicas I 54

    Relaes intertnicas como campo de construo de auto-representaes I 56

    Concluso 159

    Referncias bibliogrficas 163

  • PREFCIO

    Marcelo Alario Ennes, autor deste livro, foi meu primeiro orien-tando a doutorar-se. E o fez com brilhantismo. Alis, abrir cami-nhos, enfrentar com olhar arguto os dilemas terico-metodolgicos vem sendo sua caracterstica desde os tempos da iniciao cientfi-ca. Acompanho a formao desse jovem pesquisador h mais de dez anos.

    Em seus passos decididos e em seus vos ousados, nos frteis di-logos que tivemos, nas incontveis demonstraes de sua maturidade intelectual, Marcelo s me deu alegrias. Expresso do sentimento ex-tremamente gratificante de poder colher bons frutos. Certamente, Marcelo contribui em muito para alimentar meus sonhos e espe-ranas de no ver o conhecimento fossilizar-se e a universidade se perder no emaranhado estril da burocratizao.

    Em sua tese de doutoramento, Nikkeis e brasileiros: o caso de Pereira Barreto, reencontra-se com sua infncia e adolescncia. Re-toma inquietaes que sentia desde menino e que no deixou enga-vetadas. Cruza marcas de sua identidade com a anlise primorosa da construo de uma identidade intertnica. Identidade que no aparece em seu livro como algo pronto ou obtido naturalmente por um processo de assimilao cultural.

  • Sua abordagem, relacionai e mltipla, da questo intertnica inovadora. Combina, de maneira rica e competente, histria oral, pesquisa documental e observao participante. Ouvindo os sujei-tos dessa histria, revisitou sua prpria trajetria. Teve a coragem de repensar elos de sua identidade guardados em suas lembranas como preciosidades familiares e socialmente compartilhadas. o envolvimento profundo com a histria da cidade que o faz garim-par pacientemente fontes de pesquisa e a observar cuidadosamente prticas culturais e cdigos de reconhecimento social que ora apro-ximam ora distanciam nipo-brasileiros e brasileiros. Sua anlise aponta para o movimento pendular de construo, desconstruo e reconstruo de identidades.

    Devo advertir que a decantada oposio entre objetividade e subjetividade, entendida como escolha em que se deve tomar par-tido de um lado, desmontada como uma falsa questo na anlise de Marcelo. Confere importncia particular aos sentidos e signifi-cados vividos pelos sujeitos da histria de Pereira Barreto, condu-zindo o leitor compreenso de que as relaes intertnicas no podem ser deduzidas de antemo.

    A ligao intensa com o objeto de estudo no o impede de man-ter um invejvel equilbrio entre participao e distanciamento. A reconstruo muito bem-feita das similitudes e diferenas encon-tradas nas relaes intertnicas s poderia partir de um pesquisa-dor nato como Marcelo. Sua obra, importante como referncia para a compreenso da questo intertnica e da presena japonesa na histria brasileira, igualmente um testemunho de como so valiosos os estudos voltados inteligibilidade da histria regional.

    Quanto a mim, cabe-me dizer que encontro estmulo para viver a inquietante aventura sociolgica quando vejo explicitada, numa obra como o livro de Marcelo, a capacidade de alunos que passa-ram pela minha orientao.

    Vera Lcia Botta Ferrante

  • APRESENTAO

    POR QUE ESTUDAR PEREIRA BARRETO

    A cidade de Pereira Barreto conta hoje com uma populao em torno de 27 mil habitantes. Destes, 1.622 so de origem japonesa, aproximadamente 6% da populao total. No entanto, a presena japonesa na cidade no pode ser medida apenas por essa dimenso quantitativa. As origens e a trajetria da cidade apontam para a importncia fundamental da colnia japonesa como elemento constituidor de sua histria. Essa importncia fundamenta-se nas especifcidades tnicas do grupo japons.

    A questo central da presente obra gira em torno da compreen-so da presena japonesa pensada a partir de suas relaes sociais com os no-japoneses, relaes sociais que marcaram e marcam a formao histrica da cidade de Pereira Barreto e o habitus de seus moradores. A dinmica vivenciada ser analisada considerando-se a dimenso social e histrica, objetivada como campo1 de foras

    1 O "campo" um recurso metodolgico que permite ordenar o real e visualizar a estrutura das relaes sociais. Refere-se tambm dimenso prtica da pes-quisa, ou seja, de como encaminhar o processo que envolve a construo e a

  • reproduzido e/ou transformado a partir do habitus e do capital dos agentes sociais.

    No se trata de um estudo sobre assimilao porque parte de um pressuposto diverso. De modo geral, essa abordagem pressu-pe uma lgica dicotmica contida nas idias de nacionalidade e homogeneidade cultural. A idia de "identidade inacabada" est aqui sendo utilizada como uma tentativa de repensar a condio do brasileiro, em geral, e, em particular, dos imigrantes e seus des-cendentes como um processo dinmico e ininterrupto de constru-o e desconstruo de identidades tnico-culturais.

    Do ponto de vista histrico, os conceitos de assimilao e homo-geneidade cultural expressam uma viso de mundo, hegemnica nos anos 30, centrada na afirmao do sentimento de nacionalida-de. Suas expresses pelo mundo so bem conhecidas: nazismo na Alemanha, fascismo na Itlia, getulismo no Brasil e outras varia-es expressas nos regimes autoritrios em todo o mundo: Espanha, Portugal, Polnia e Japo, entre outros.

    Parece que as anlises sociolgicas desse perodo e dos que o sucederam mais imediatamente foram imbudas de uma preocupa-o semelhante, da a emergncia de temas como assimilao e homogeneidade cultural.

    Nas trs primeiras dcadas do sculo XX, a discusso voltou-se, assim, para as facilidades e as dificuldades sobre a assimilao de imigrantes no Brasil. Os japoneses, nesse sentido, apareciam como o grupo que oferecia maiores dificuldades e resistncia ante esse processo.

    Minha tese que a comunidade nipo-brasileira, em sua trajet-ria em Pereira Barreto, incorpora, em suas prticas e representa-es sociais, elementos originariamente estranhos ao seu ethos. Mas esse processo implica que os sujeitos histricos criam e transfor-mam o meio em que vivem, instituindo uma rea de interseo

    compreenso do objeto de pesquisa. O campo , por assim dizer, uma forma de pensar o espao da ao dos agentes em suas relaes histrico-sociais sem a pretenso de se apreender a totalidade absoluta do real e, por outro lado, sem cair no particularismo. Os limites do campo so definidos pelos efeitos exerci-dos sobre os agentes. O campo deve, assim, ser pensado como espao de luta, de transformao e mudana (Bourdieu, 1989).

  • entre os grupos, o que nos permite inferir que as relaes sociais na cidade de Pereira Barreto no so uma via de mo nica. Ao con-trrio, configuram-se como uma rede de trocas simblicas, ainda que essas relaes sejam representadas e/ou praticadas de modo conflituoso e assimtrico.

    A escolha da cidade de Pereira Barreto como palco das rela-es sociais de japoneses e brasileiros, eixo central da pesquisa, passa por minha trajetria de vida e tambm por minha trajetria acadmica. No primeiro caso, parte do interesse em estudar a regio na qual cresci, trazendo para o plano do discurso formal, da racionalidade, uma dimenso vivida de modo fragmentrio e parcial. Retomar a cidade de Pereira Barreto agora, por meio de certo distanciamento e estranhamento, via discurso acadmico, no deixa de ser uma tentativa de resgatar sua importncia para minha vida.

    Do ponto de vista da trajetria acadmica, desde a graduao desenvolvo pesquisa relacionada regio. Meu interesse por inves-tigar a regio comeou em 1987, quando freqentava o terceiro ano do curso de Cincias Sociais no ento Instituto de Letras, Cin-cias Sociais e Economia (ILCSE) da Universidade Estadual Paulista (UNESP), em Araraquara. Naquela ocasio, iniciei, j sob a orienta-o da Profa. Dra. Vera Lcia Botta Ferrante, a elaborao de um projeto de pesquisa, cuja temtica girava em torno do acampamento de trabalhadores rurais sem-terra de Trs Irmos. A realizao da pesquisa foi apresentada como monografia de concluso de curso em 1989.

    No ano seguinte, ingressei no Programa de Ps-Graduao na mesma instituio. Aproveitei o trabalho iniciado na graduao e o desenvolvi buscando, sobretudo, uma fundamentao terica para a anlise da luta pela terra a partir do referencial terico proposto pelos estudiosos dos movimentos sociais. Como se pode ver, man-tive minhas atenes sobre a regio noroeste paulista.

    Tomar a cidade de Pereira Barreto como cenrio para a com-preenso das relaes intertnicas entre nipo-brasileiros e no-nipo-brasileiros revela, entre outros aspectos, a inteno de continuar estudando e investigando a mesma regio. Trata-se, assim, de um projeto a longo prazo, talvez de vida, que ainda pretendo desen-

  • volver. H muitos outros aspectos que merecem estudos mais aprofundados: o dos barrageiros, como so chamados os trabalha-dores em usinas hidreltricas; o resgate da memria de seus morado-res mais velhos, a cidade de Ilha Solteira, pensada em um primeiro momento como acampamento de trabalhadores para a construo da usina hidreltrica e sua complexa estrutura de relaes sociais, entre outros temas e subtemas. O trabalho que apresento agora , portanto, apenas uma parte, um momento desse projeto de maior amplitude.

    A aproximao com o universo de pesquisa iniciou-se, em 1991, durante a pesquisa realizada para o mestrado, quando estabeleci contato com o presidente da cooperativa agrcola local. Nesse ano, foi elaborado um pequeno projeto de pesquisa sobre o levantamen-to histrico da cidade, motivado, principalmente, pelos questiona-mentos em torno da presena japonesa naquele local. Embora no tenha encontrado ningum que se interessasse em financi-lo, fui apresentado, por meio de meu currculo, diretoria da Associao Cultural e Esportiva de Pereira Barreto, entidade que centraliza a es-trutura de poder da colnia, que permitiu a realizao da pesquisa.

    Entre 1991 e 1995, realizei vrias visitas espordicas cidade. No entanto, o desenvolvimento do trabalho de mestrado e a falta de financiamento especfico para o projeto faziam das visitas en-contros informais. Mas se no sistematizava as informaes, ga-nhava terreno no campo das relaes de amizade e de confiabilidade.

    Assim, no final de 1993, defendi a minha dissertao de mestrado e, em fevereiro de 1994, ingressei no doutorado com um projeto de pesquisa centrado na problemtica da presena japonesa na ci-dade de Pereira Barreto. A definio do objeto de pesquisa passou por um processo que perdurou ao longo dos anos de 1994 e 1995, anos em que cumpri os crditos exigidos para o curso. Nesse pe-rodo, devo destacar a importncia, ainda que de modo diferencia-do, da disciplina ministrada pela Profa. Dra. Neusa Gusmo, por meio da qual tive acesso a uma bibliografia sobre representaes sociais bastante importante para o desenvolvimento de meu traba-lho, e do curso ministrado pelo Prof. Dr. Edgar Assis Carvalho, que abriu as portas para a discusso sobre o pensamento oriental. Os seminrios de pesquisa, coordenados pela Profa. Dra. Vera L-

  • cia Botta Ferrante, amiga e orientadora, assumiram uma dimenso de desafio. O meu projeto e o encaminhamento da pesquisa foram criticados por seu ecletismo. Mas foi isso que me levou a estabele-cer parmetros tericos mais claros, os quais tiveram um momento importante de definio no curso de extenso sobre a sociologia de Pierre Bourdieu, ministrado pela Profa. Dra. Maria Helena Antuniassi.

    Em 1995, comecei uma nova fase de visitas cidade, nas quais passei a sistematizar melhor as informaes obtidas. Iniciei tam-bm a srie de entrevistas nas quais obtive informaes valiosas, e o trabalho foi concludo em meados de 1996.

    Os caminhos que me levaram e que me deram acesso aos entre-vistados foram construdos por meio de uma rede de relaes sociais e de parentesco entre os informantes. Algumas entrevistas permiti-ram-me pensar a questo da cooperativa; outras, a do casamento; outras, ainda, a das geraes, das relaes polticas, das disposies do ethos japons. Todas falaram sobre prticas e representaes so-ciais constitudas e constituidoras das relaes sociais analisadas.

    A estrutura da obra est alicerada em duas partes em que se analisam diferentes dimenses do problema investigado. A primei-ra busca explicitar os marcos cronolgicos mais significativos para a histria do municpio de Pereira Barreto. Para tanto, foram utili-zadas fontes escritas e orais, que possibilitaram focalizar as dimen-ses objetivas de sua trajetria e tambm aquelas que dizem respei-to ao cotidiano e s marcas expressas nas representaes construdas por seus moradores. Nesse sentido, ainda na introduo, so apre-sentados os nossos informantes por julgar ser significativo o pro-cesso de escolha e aproximao que levou s entrevistas.

    Em seguida, h uma descrio de como se deu a insero da regio do atual municpio no circuito das relaes mercantis, para, a partir desse processo, visualizar as origens da presena japonesa na regio, captulo precedido por outro, no qual se pontuam al-guns aspectos importantes da presena japonesa no Brasil, neces-srios para subsidiar reflexes posteriores.

    Na segunda parte do livro, sero analisadas as relaes sociais no municpio. o momento em que se privilegia o processo de posicionamento e reposicionamento de nipo-brasileiros em sua

  • estrutura social, bem como o processo de trocas simblicas e prti-cas sociais que apontam para a constituio de uma identidade dual e inacabada.

    importante alertar que algumas passagens histricas do mu-nicpio so retomadas nas duas partes do livro. No entanto, antes de representar a repetio de informaes e dados, esta opo se justifica ante a necessidade de compreend-las em duas perspecti-vas distintas, uma diacrnica e outra sincrnica, obedecendo, as-sim, estrutura bsica deste trabalho.

    Por fim, para evitar uma discusso longa e montona, foram inseridos em notas de rodap alguns esclarecimentos conceituais e algumas informaes adicionais para que orientem o leitor na com-preenso sobre a opo metodolgica e aspectos significativos da realidade investigada.

    As fontes de pesquisa

    A definio das relaes intertnicas entre nipo-brasileiros e brasileiros, somada opo pelo referencial metodolgico da socio-logia reflexiva (Bourdieu, 1989), conduziu-me, por sua vez, a op-tar por diferentes fontes de pesquisa.

    Para a realizao da pesquisa foram consultadas fontes orais e fontes escritas. Alm da pesquisa bibliogrfica, foi necessrio fazer um levantamento de documentos e outros registros escritos que apre-sentassem pistas sobre a cidade e sobre as relaes sociais nela trava-das. Na verdade, j tinha algum material coletado em outros momen-tos da minha trajetria de pesquisador. Complementei esse material com visitas que fiz biblioteca da cidade, Cmara Municipal, prefeitura e, sobretudo, com as doaes - principalmente recortes de artigo jornais da cidade de um dos meus informantes.

    Alm de serem Complementares, fontes escritas e orais podem dar visibilidade a dimenses diferentes do mesmo processo histri-co-social. O material escrito, muitas vezes, traz a marca do oficial, do passado. O relato oral, por sua vez, traz a dimenso do vivido e do revivido medida que expresso. O relato oral traz vida, emo-o, a marca pessoal de um processo social e histrico.

  • No era minha pretenso tomar os depoentes como tpicos de segmentos ou classes sociais e, portanto, nenhuma generalizao pode ser feita, a no ser de modo arbitrrio. O objetivo era captar, por meio dos relatos orais, as trajetrias, as prticas e as represen-taes sociais e resgatar como historicamente se deram as relaes entre aqueles que so de origem japonesa e seus descendentes, bra-sileiros de muitas origens - nordestinos, mineiros, paulistas - e imigrantes de outras nacionalidades.

    Apresentao dos informantes

    Privilegiar as disposies do habitus2 dos moradores de Pereira Barreto levou-me a recorrer s fontes orais. Nesse sentido, foram coletadas informaes por meio de relatos, depoimentos e hist-rias de vida que apontaram o movimento de construo, desenrai-zamento e reenraizamento do ethos japons.

    Buscou-se contemplar diferentes geraes, classes, grupos tni-cos, sem, contudo, pretender tomar os depoentes como tpicos do universo de pesquisa. A inteno perceber suas prticas e suas representaes sociais na e pela estrutura das relaes sociais reconstrudas como objeto desta pesquisa.

    Para chegar aos depoentes foi percorrido um longo percurso, desde minha apresentao diretoria da Associao Cultural e Es-portiva de Pereira Barreto, como j foi mencionado, at a localiza-o e entrevista dos depoentes.

    2 "O habitus, como social no corpo, no indivduo biolgico, permite produzir a infinidade de atos de jogo que esto inscritos no jogo em estado de possibilida-des e de exigncias objetivas; as coaes e as exigncias do jogo, ainda que no estejam reunidas num cdigo de regras, impem-se queles e somente queles que, por terem o sentido do jogo, isto , o senso da necessidade imanente do jogo, esto preparados para receb-las e realiz-las" (Bourdieu, 1990, p.82). "A prpria lgica de sua gnese faz do habitus uma srie cronologicamente orde-nada de estruturas: uma estrutura de posio determinada especificando as estruturas de posio inferior (portanto, geneticamente anteriores) e estru-turando as de posio superior, por intermdio da ao estruturante que ela exerce sobre experincias estrututuradas geradoras dessas estruturas" (Ortiz, 1983, p.80).

  • Foram basicamente dois caminhos percorridos: um por interm-dio do presidente da Cooperativa Agrcola Fazenda Tiet e outro, pela Cmara Municipal e Prefeitura. No entanto, no ficou estabe-lecido nenhum crivo tnico: o presidente da Cooperativa Agrcola sugeriu-me tanto nipo-brasileiros quanto brasileiros. Representan-tes do legislativo e executivo da cidade indicaram-me tanto brasilei-ros quanto nipo-brasileiros. Algumas indicaes foram unnimes, como foi o caso de Lo Liedtke e Maria Antonia; outras no, como o caso de Osrio Barbosa, indicado apenas por brasileiros.

    Essa trajetria indicativa de dois aspectos significativos de nos-sa pesquisa, a saber: o ato de indicar os informantes traz implcito um conjunto de valores e disposies. Isto , expressa representa-es construdas socialmente sobre os indivduos legtimos para nar-rar a histria da cidade. Em segundo lugar, indica a posio dos informantes na estrutura das relaes sociais, posio essa indicativa do capital (social, cultural e/ou econmico) do informante.

    Maria Antonia

    O nome de Maria Antonia foi sugerido por diversas pessoas, tanto entre nipo-brasileiros quanto entre brasileiros. Isso j indica-va certo prestgio diante da comunidade local. De fato, hoje ela diretora da escola pblica de segundo grau da cidade. H outra particularidade: Maria Antonia uma das poucas moradoras do nico prdio de apartamentos da cidade, o que tambm denota prestgio social.

    De incio, o interesse em colher o seu relato de vida passava pelo fato de viver na cidade desde o incio da dcada de 1940, o que a faz uma testemunha e um sujeito do processo histrico to-mado, por ns, como objeto de estudo.

    Depois de algumas tentativas e de alguma resistncia consegui marcar a entrevista. Recebeu-me na sala da diretoria da escola em que trabalha, onde conversaramos grande parte de uma tarde. A partir de ento teria grandes surpresas. A primeira delas foi o fato de ter sido adotada por uma famlia japonesa. Isso j seria algo de gran-de interesse para a pesquisa em razo do universo das relaes fami-

  • liares e sociais que vivenciou. Mas, como se no bastasse, Maria Antonia negra. A grande surpresa ficou por conta da adoo mas tambm, e principalmente, pelas caractersticas das relaes trava-das no interior do campo social.

    A trajetria de Maria Antonia em Pereira Barreto tem incio quan-do sua famlia consangnea mudou-se para a cidade. Nascida em Olmpia, interior de So Paulo, mudaria ainda para Auriflama e de l para Pereira Barreto. Seu pai era aougueiro e logo percebeu que os seus negcios no prosperavam na cidade; resolveu ento mudar-se mais uma vez. A me de Maria Antonia recusou-se a acompanh-lo. Ocorreu ento a separao dos pais. Maria Antonia, seus irmos e sua me permaneceram em Pereira Barreto. Hoje, Maria Antonia est com cerca de 60 anos e casada com "brasileiro".

    Paulo Ono

    Conheci Paulo Ono em 1991. Foi-me indicado como a pessoa da colnia mais apropriada para quem apresentar, de incio, o meu pro-jeto. At 1994 visitava-o durante as frias escolares e conversvamos muito informalmente. Levou-me para conhecer sua famlia e eu per-cebia que, aos poucos, se entusiasmava com a idia da pesquisa.

    Durante as comemoraes do aniversrio de Pereira Barreto, em 1994, ocasio em que a colnia organiza atividades dentro da progra-mao oficial da cidade, exps, ao lado de uma mostra de fotos hist-ricas, uma reportagem em que eu aparecia falando sobre a pesquisa. No compareci exposio, perdi a grande oportunidade de ver as fotos que hoje no encontro mais e a oportunidade de conhecer e de me fazer conhecer por pessoas significativas para minha pesquisa.

    Recebia-me na cooperativa, onde presidente, e conversvamos horas a fio. Nem sempre nossas conversas eram sistemticas; alm disso, no eram gravadas e poucas vezes fiz anotaes em meu ca-derno de campo. Muitas dessas conversas foram, na verdade, bastante informais. Talvez tenha perdido algumas informaes relevantes para o trabalho, mas em compensao ganhava terreno no que diz respei-to ao universo social e cultural ao qual Paulo Ono pertencia. Estru-turava-se, tambm, uma relao de confiabilidade e de amizade.

  • Por vrias vezes, quando eu visitava Pereira Barreto, Paulo Ono levava-me para almoar. Sempre tomava uma caipirinha de aperi-tivo e, dependendo do lugar onde estvamos, servia-se de feijoada. Certa vez, disse-me que fazia essas extravagncias longe de sua esposa e que eram espordicas. Disse-me que no era alimento para todos os dias. O seu organismo exigia comida sem gordura, com pouco tempero, moda japonesa. Disse-me, ainda, que esta era uma das dificuldades do casamento intertnico. "... chega uma hora que o cara vai sentir falta de sua alimentao ...". Ora, isso revela que muitos dos traos da cultura acabam por se fundir ao prprio fsico do indivduo. O alimento, devidamente preparado, , ao mesmo tempo, uma necessidade cultural e fisiolgica.

    Seu pai teria vindo para o Brasil em 1913, portanto nas pri-meiras levas de imigrantes. Voltaria para o Japo para estudar no seminrio e tornar-se pastor anglicano. Casou-se ainda no Japo e voltou ao Brasil. Como pastor, assumiu a parquia de Guaimb, uma pequena cidade no interior do Estado de So Paulo, entre Marlia e Lins. L teria iniciado um movimento para criar a Igreja Anglicana do Brasil, emancipando-a do controle exercido por sua congnere norte-americana. Tambm fundaria uma comunidade agrcola com grande infra-estrutura.

    Quando o reverendo Ono mudou-se de Guaimb para Pereira Barreto, seu filho mais velho, Paulo Ono, morava e estudava na cidade de So Paulo. Fase to importante quanto crtica da vida do ento jovem Paulo Ono, quando vivenciou uma profunda crise de identidade.

    Da a quarta srie do ginsio foi sopa. Mas a comeou minhas dvidas e ento no primeiro clssico eu fui mal. Eu acho que se eu continuasse, eu seria expulso.

    todo um conjunto, tradio e ao mesmo tempo eu acho que estava tendo um problema de identidade, sabe? Constitucionalmente quem nasceu no Brasil brasileiro, n? A gente v, o tal da tica,' os costumes so diferentes, a maneira de comportamento diferente... Ento tudo isso, acho que na hora que meu pai faleceu, puxa! ser

    3 Paulo Ono tinha conhecimento do desenvolvimento de meu trabalho com base nas disposies culturais japonesas.

  • que isso que eu quero? ficar vendendo rebolo para o resto de minha vida? , e ... tambm tive problema de decepo amorosa, e tal, n? Exatamente e justamente por causa, talvez, deste meu com-portamento eu no aceitava certas coisas da namorada (risos). Era brasileira. E tudo isso acho que ... acho que era hora de tirar meu time de campo. E tambm a questo tradicional. Como? Algum tem que ficar l com a famlia. Tanto verdade, que a minha famlia morava na casa paroquial. E tinha que ceder para o outro pastor que veio. Ento ficamos morando fora e da eu fiquei e me casei aqui.

    Percebe-se, no relato acima, que alm de assumir seu papel de filho primognito acaba por casar-se com uma nissei.

    Nesse mesmo momento, foi convidado a ser presidente da Coo-perativa Agrcola da Fazenda Tiet, o que o reposicionou na estru-tura das relaes sociais no interior da colnia e da cidade como um todo.

    Por causa da trajetria de seu pai, a religio aparece como um componente fundamental de seu capital social e, tambm, de suas prticas e das representaes bem como de sua famlia.

    A importncia da religio expressa no prestgio subjacente ao convite para ingressar na cooperativa e depois se tornar o seu pre-sidente, mas tambm nas trajetrias de seus irmos (mdicos em um hospital anglicano em Curitiba), de sua esposa e sua irm, liga-das escola infantil mantida pela parquia anglicana local e, ain-da, por sua filha, que recebeu uma bolsa de estudo de uma univer-sidade anglicana japonesa.

    Ter sido filho de um pastor anglicano repercutiu, ainda de uma outra maneira, sobre a trajetria, pois, ao longo das trs ltimas dcadas, tornou-se uns dos principais, seno o principal "relaes-pblicas" da colnia. A facilidade de comunicao e de relacio-namento pode ser creditada s disposies adquiridas em sua in-fncia. Por ser filho de pastor, sua casa era muito visitada por nipo-brasileiros e por brasileiros. Os papis desempenhados pelo reverendo Ono foram alm do sacerdcio. Paulo Ono narra que seu pai era amansador de burros, o que indica que era requisitado para resolver problemas prticos e cotidianos de sua parquia.

    Em conseqncia de ter adquirido essas disposies e de seu capital social, Paulo Ono tornou-se o principal interlocutor das

  • vtimas da inundao provocada pela formao da represa da usina hidreltrica de Trs Irmos com a Cesp. Denunciou por meio da imprensa escrita os desdobramentos da obra e reivindicou aquilo que julgava ser de direito dos cooperados atingidos pela inunda-o.

    Outro dado de sua personalidade singular sua preocupao com grandes questes nacionais e internacionais. Paulo Ono um homem que gosta de pensar sobre questes de grande ampli-tude. Expunha-me sempre suas opinies sobre a economia mun-dial, sobre a queda do muro de Berlim, sobre a importncia do Japo no cenrio mundial, sobre o Mercosul, e nunca deixava de falar dos EUA. Tornou-se um colaborador assduo do jornal da cidade. Esses traos de sua personalidade so autojustificados do modo a seguir:

    Isso, sabe, em funo de ter acompanhado, a minha vida foi assim, sem querer. Voc est num grupo escolar, rebenta a guerra e meu pai foi preso. Por qu? Passei a vida inteira pensando o porqu das coisas. Por que certos lderes foram presos? Ou por que das coi-sas? ... Eu comeo a escrever as coisas. Por que a guerra do Iraque? Por que esse negcio de Coria do Sul, Coria do Norte? Por que a China? Ento eu desenvolvi, no sei se estou certo, mas desenvolvi esse senso de interpretar. o que acontece nesse mundo conturbado. Por que isso? Porque eu senti na carne. Por que meu pai foi preso?

    evidente que muitos outros imigrantes tambm vivenciaram esses mesmos marcos histricos, mas poucos adquiriram prticas e representaes de mundo semelhantes.

    No que diz respeito a sua auto-representao, perguntei a Pau-lo Ono como ele se sentia, como ele se compreendia e como ele atribua sua identidade. A resposta, mais uma vez, significativa: "Eu me considero um brasileiro, porque eu sei que indo para o Japo eles no me consideram japons [risos]".

    Fica claro que permanece a grande lacuna de identidade do tempo em que viveu em So Paulo. Na verdade, ser brasileiro re-sulta do no-reconhecimento por parte dos "verdadeiros japone-ses" - os que vivem no Japo e os isseis em Pereira Barreto. Mas no como se sente. O pai de Paulo Ono foi defensor da utilizao

  • do alfabeto latino para o japons. Da tica da tradio, essa propos-ta representava um desvio do "esprito japons". De fato, expres-ses do individualismo no fazem parte do coletivismo tipicamente japons. Paulo Ono tambm reivindicaria o direito de ser um japo-ns diferente, aceito pela colnia, at mesmo por sua importncia para o grupo, mas aos olhos dos mais velhos ele no era um verda-deiro japons.

    Cristina Ono

    Cristina filha de Paulo e neta do reverendo Ono. Pareceu-me importante entrevist-la, por vrios motivos: por ser sansei, por ser jovem e por ter tido a experincia de morar no Japo a convite de uma universidade anglicana.

    A entrevista foi sugerida por seu pai, que me levou escola de idiomas, de propriedade de Cristina, onde nos apresentou. De in-cio, Cristina relutou um pouco, mas logo se interessou. Marcamos um encontro para o dia seguinte. Atendeu-me em seu escritrio. Nossa entrevista foi bastante descontrada e durou aproximada-mente uma hora.

    Durante sua infncia, Cristina no aprendeu o idioma japons, a no ser os substantivos mais importantes e as formas de cumpri-mento e reverncia. Seus pais sempre lhe diziam que por ter traos fsicos japoneses, a sociedade iria cobr-la. Tambm tornava-se necessrio o domnio do idioma ante a ascenso do Japo no cen-rio mundial. Sua me a matriculou em um curso de idioma japo-ns, assim como a seus irmos. Mas o curso foi logo abandonado por no se adequar ao sistema de ensino.

    Interessa notar que a escola de idiomas vai, na verdade, alm da simples aprendizagem da lngua. Exige do aluno a adaptao a uma dinmica e a uma disciplina fortemente influenciada pelo ethos japons. Aprende-se o idioma, aprendendo a ser japons. esse aspecto que far que Cristina desista do curso:

    eu desisti de estudar japons, quando eu estava na quinta srie. muito pouco motivante, precisava de muita, muita disciplina, n? E, voc fa-zia as coisas sem gostar, ento...

  • A fala de Cristina revela um aspecto que no faz parte da preo-cupao da escola japonesa: motivao. Na verdade, a escola exi-gia a disciplina, disposio do ethos, no incorporada por Cristina, pelo menos no que diz respeito aprendizagem do idioma. O seu distanciamento do ethos afastou-a da escola, processo inscrito no habitus de Cristina.

    Completou o primeiro e segundo graus e formou-se em Letras. Lecionava ingls quando resolveu morar e trabalhar com sua tia na cidade de Curitiba no Estado do Paran. Sua tia era proprietria de uma loja de decorao. L desempenhava papel polivalente. Suas funes iam desde o cuidado com seus primos at a realizao de oramentos para clientes. Com 24 anos, resolveu prestar vestibu-lar para o curso de desenho industrial na Universidade Federal do Paran. Aprovada, no chega a completar o primeiro ano, em ra-zo das greves de professores e funcionrios. Sentia-se tambm deslocada, pois j estava com 24 anos.

    Cristina nunca namorou um nipo-brasileiro: "Mas pra dizer a verdade... eu nunca paquerei mesmo um japons... A impresso que voc tem que se t paquerando teu irmo".

    O que era uma tradio entre os isseis e os nisseis mais velhos aparece como uma opo e pouco interessante. Talvez o que mais atrai Cristina sejam traos fsicos, afetivos e simblicos que no fazem parte do universo cultural dos nipo-brasileiros. Seu primei-ro namorado foi um descendente de alemo. curioso notar que mesmo no namorando um nipo-brasileiro, subjacente a sua op-o esto disposies - simblicas e morais - herdadas de seus ancestrais e adquiridas em sua trajetria de vida. Isto , embora no esgote as motivaes que a levem escolha, percebe-se que as heranas culturais podem estar presentes em sua deciso. O modo como relata sugere a importncia que a origem tnica de seu na-morado teve para sua escolha.4

    Sua infncia bastante ilustrativa das possibilidades de relaes sociais que uma sansei poderia vivenciar na cidade.

    4 Outra possibilidade de interpretao consiste na idia de que a origem do na-morado se torna importante quando relata sua vida de um ponto de vista retrospectivo.

  • preciso considerar sua descendncia, neta do pastor Ono, e, embora no tenha conhecido o av, acabou por sentir sua influn-cia marcante. A casa de seu pai continuava muito freqentada tan-to por membros da colnia quanto por pessoas de fora, fato que pesar em sua sociabilidade.

    Essas disposies da famlia Ono funcionaram como poderosos referenciais para a vida prtica de seus membros. Foram vivenciados, aparentemente, sem traumas por Cristina, mas foram impostos quando necessrio, funcionando como sanes que autorizavam ou no as escolhas dos filhos. Um dos irmos de Cristina, odontlogo e oficial do exrcito brasileiro na Amaznia, teria se interessado por uma moa de origem indgena. O romance foi "desmotivado" pelas opinies de seu pai.

    A religio reaparece em Cristina como componente de seu ca-pital social dentro e fora da cidade. O fato de ser neta do reveren-do Ono, mas, principalmente, de ser membro da Igreja Anglicana, abriu-lhe as portas para estudar no Japo.

    As experincias vivenciadas no Japo foram mediadas por suas disposies culturais e tnicas. Cristina relata que mesmo possuindo traos japoneses era facilmente identificada como "no japonesa". Isso teria ocorrido, entre outros motivos, em razo das roupas e dos aces-srios que usava, do jeito de comportar-se. A sua condio de nipo-brasileira reaparecia em suas relaes com as colegas da universidade:

    as coisas que no me interessavam entender muito, tipo esse negcio de hierarquia, sabe, esse negcio ... eu achava ridculo aquilo. Imagi-na, a outra l tem um ano mais de escola que eu e por causa disso ela pode dizer: "Olha, vai l e limpa o cho, vai l e faa isso. Voc tem que carregar as raquetes, voc faz isso, voc faz aquilo". Eu achava aquilo l meio ...

    Sua fala revela que no teve tantos problemas. Valia-se do fato de "no ser japonesa" para se desobrigar das formalidades e das tradies. Fato totalmente previsto pela etiqueta japonesa em rela-o aos estrangeiros.5

    5 Para uma descrio sobre as inmeras regras de conduta no Japo de hoje, ver Lafayete de Mente (1992).

  • Mas tambm foi um momento de vivenciar suas diferenas quanto s tradies, costumes, prticas e valores do pas de origem de seus avs. Um aspecto que lhe causou preocupao foi a condio das crianas no Japo. Relata que um dos filhos da famlia que a hospe-dou ficou doente aps a mudana de escola. O motivo teriam sido as dificuldades de adaptao a um novo ambiente, pois como novato acabava por ser submetido, hierarquicamente, s vontades dos mais velhos. Destaca tambm o problema do suicdio infantil decorrente de humilhaes sofridas por um eventual fracasso na sua vida esco-lar.

    Cristina relatou-me que, no obstante ter vivido nas condies de estudante e estrangeira, o que lhe tornou as coisas mais fceis, no teria encontrado seu lugar no Japo.

    Com 28 anos, Cristina retorna para o Brasil e para Pereira Barreto, onde se torna proprietria de uma escola de idiomas.

    No final da entrevista, Cristina acaba por se auto-representar como brasileira. como se enxerga e como se sente. Deve-se con-siderar a sua experincia no Japo, perodo em que evidenciaram, de modo claro, suas divergncias em relao ao que "ser japo-ns". Essa auto-representao, no entanto, vem acompanhada do conflito tpico entre os nipo-brasileiros, principalmente entre os de geraes mais novas: "Eu sou brasileira, quer dizer... Meu pro-blema que meu pai falou 'voc tem cara de japons!'. Ento os outros talvez no me enxerguem como brasileira, entendeu?".

    A fala de Cristina, sua auto-representao, aponta para uma identidade brasileira. Mas as relaes que estabelece em seu cotidia-no indicam a complexidade e a dualidade de sua condio. Seus traos fsicos, por exemplo, posicionam-na em uma situao de alteridade perante o no-nipo-brasileiro.

    Osrio Barbosa

    Em uma das minhas visitas a Pereira Barreto conversei com o presidente da Cmara Municipal em seu gabinete. Na verdade, acabei por participar de uma conversa envolvendo assessores e al-guns visitantes. A conversa foi significativa de como pessoas liga-

  • das ao poder institucional mantm certa distncia da colnia e at como essas relaes ainda passam por um sentimento de alteridade.

    Nessa ocasio, foi-me sugerido entrevistar Osrio Barbosa. Fi-quei muito impressionado com a sua idade: 103 anos! Osrio Bar-bosa, segundo seu depoimento, chegou regio da alta noroeste, mais precisamente, s imediaes do atual municpio de Nova In-dependncia, por volta de 1925. Ele conta que veio a p da Bahia, do municpio de Olho d'gua, seguindo a mesma trajetria do contingente de migrantes na direo do Sul. Depois de passar por Mogi das Cruzes, veio para o interior em busca de trabalho e de uma nova vida.

    Osrio Barbosa chegou regio da atual cidade de Pereira Barreto no comeo da dcada de 1930, momento em que a Bratac comeou a instalar a infra-estrutura da colnia. Trabalhou at o final dessa dcada para a empresa e o trabalho mais destacado foi o da construo da Ponte de Novo Oriente; alm disso construiu estradas, aterros e fez servios de entrega para a empresa japonesa.

    Jitsunobo Ig

    Jitsunobo Igi issei, tem mais de 70 anos. Na cidade, conside-rado, por nipo-brasileiros e brasileiros, como a pessoa mais autori-zada para falar sobre a histria local.

    A minha aproximao com Jitsunobo Igi foi muito lenta e me-diada por Paulo Ono. Preocupei-me em no criar nenhuma situa-o de constrangimento; no queria que ele tivesse a impresso de que o meu trabalho pudesse "diminuir" o que Igi j tinha realiza-do. Por telefone ou pessoalmente, sempre ressaltava que o carter de meu trabalho era de complementaridade.

    Jitsunobo Igi imigrou para o Brasil em 1930. Seus pais vieram para c, segundo seu relato, por dois motivos: a doena de sua me e a crise econmica na qual o Japo vivia:

    Em primeiro lugar minha me estava bem fraca de sade. E na terra onde eu nasci era clima temperado. Ento fazia muito frio no inver-no. O clima no era adequado para uma pessoa muito doente sobre-viver. Minha me tinha que se tratar. E outro motivo para que eles

  • viessem para c que em 1930 o Japo estava em crise. Tinha muito desemprego, tinha dificuldade de sobreviver. Ento meu pai achou para o bem da famlia vir para pas tropical.

    A ida para Pereira Barreto comeou com uma viagem de navio de 50 dias. Foi de trem para a regio de Pereira Barreto, para onde mudou aps um curto perodo vivido nas "Alianas", a rea de colonizao japonesa mais antiga na regio.

    Sua famlia adquiriu um lote de terras no qual passaram a viver e a trabalhar. Embora seus pais soubessem da existncia das terras em Pereira Barreto, no saram do Japo com contrato es-tabelecido. Ainda jovem, Jitsunobo Igi comeou a trabalhar no comrcio e, ao mesmo tempo, cursava as primeiras sries escola-res. Impedido, por motivos financeiros, de dar continuidade a seus estudos fora da cidade, trabalhou at conseguir abrir seu estabelecimento comercial. Hoje, aposentado, mantm sua pro-priedade rural.

    Aos 60 anos, realizou um de seus sonhos: formou-se em Direi-to. O atletismo outra atividade a que se refere com orgulho. Jitsunobo Igi representa a cidade em campeonatos regionais e esta-duais e integra, ainda, a seleo paulista, em competies nacio-nais, e a seleo brasileira, em competies internacionais. Con-tou-me que acorda diariamente s 5 horas da manh para treinar pelas ruas da cidade. Em certa altura da entrevista, levou-me para conhecer suas medalhas e trofus. Eram muitas. Fiquei muito im-pressionado.

    Jorge Wako

    Jorge um dos filhos de Shingoru Wako, personalidade muito importante na histria da imigrao japonesa no Brasil. Jornalista, imigrou inicialmente para o Hava. De acordo com o relato de Jorge Wako, a discriminao racial naquele pas fez que seu pai voltasse ao Japo, para depois reimigrar para o Brasil.

    No Brasil, Shingoru Wako resolve abrir um jornal em idioma japons. Seu nome aparece por diversas vezes em Uma epopia

  • moderna e esteve presente em diversas colnias no interior do Es-tado de So Paulo. Foi tambm um dos negociadores que intermediaram a compra das terras do coronel Jonas Alves de Melo pela Bratac, terras nas quais Pereira Barreto surgiria anos mais tarde.

    Mudou-se posteriormente para as Alianas e de l para Novo Oriente (Pereira Barreto). Chegou a realizar uma nova experincia de colonizao. Ao lado do reverendo Ono, criou uma colnia no norte do Paran de carter religioso. A rea no era propcia ao plantio do caf e a tentativa no se concretizou.

    Outra realizao importante de Wako foi a criao do "Har-monia" em So Bernardo do Campo. Essa instituio tinha, e tem at os dias de hoje, o objetivo de receber jovens nipo-brasileiros do interior para que possam fazer seus estudos na capital ou na regio metropolitana.

    Tive a oportunidade de presenciar um culto anglicano em ho-menagem memria de Wako, no qual compareceram nipo-brasi-leiros de muitas regies do Estado de So Paulo.

    Jorge Wako nissei e tem mais de 65 anos. A entrevista foi reali-zada na sala de Paulo Ono na cooperativa, o que acabou por propi-ciar novas intervenes de meu anfitrio. Mas se sua presena che-gou em alguns momentos a desviar a ateno de meu informante, possibilitou-me perceber a admirao que nutria por Wako. Este, por sua vez, teve dificuldade de falar em portugus. Falava pausada-mente procurando as palavras corretas, ditas com forte sotaque.

    Jorge Wako nasceu em Sete Barras, no municpio de Eldorado, no Vale do Ribeira. Mudou-se com seu pai e sua famlia para uma das trs Alianas e, posteriormente, com onze anos, para Novo Oriente. Embora seu pai no fosse um "homem do campo", insta-laram-se em um lote de terras onde passaram a trabalhar, produzir e viver. Jorge Wako e seus irmos trabalharam muito duro.

    Na dcada de 1960, ele e seus irmos tornaram-se comercian-tes e instalaram em Pereira Barreto uma loja de implementos agr-colas, atividade que exercem at hoje.

    6 Comisso de Elaborao da Histria dos 80 anos da Imigrao Japonesa no Brasil. Uma epopia moderna: 80 anos da imigrao japonesa no Brasil. A partir daqui, essa fonte ser indicada apenas como Comisso de Elaborao.

  • Lo Liedtke

    O nome de Lo Liedtke foi-me sugerido por vrias pessoas, nipo-brasileiros ou no. Como ser observado mais adiante, alm de ter morado durante muitos anos em Pereira Barreto, foi prefei-to do municpio por dois mandatos.

    Recebeu-me em seu apartamento no centro da cidade de So Jos do Rio Preto, onde mora com sua esposa. Conversamos du-rante duas horas. Com grande facilidade de articulao das idias e da expresso, falou muito sobre sua experincia como prefeito, a ponto de ter que retomar o eixo central da entrevista.

    Nutre grande admirao pelos japoneses, a quem se referia sem-pre com muito respeito.

    Eles eram muito animados, muito cheios de vida, muito cheios de festividades dentro da colnia deles. Aquelas festas de aniversrio ... E quando era sete de setembro? No meu tempo tinha aquelas festas muito bonitas dos grupos escolares. A gente aprendeu muito com eles este trabalho, essa... essa fora para o trabalho, de economia, de no esbanja-mento. s vezes eles moram ... at hoje em Pereira Barreto tem casas de fundos de tabuinhas simples, mas voc entra tem a biblioteca, quando chega naquelas festas japonesas, aquele japons que voc acha que era ignorante, chega e faz discurso. E os filhos? Um engenheiro, o outro do ITA, outro no sei que l no Hospital das Clnicas e todos formados!

    Lo Liedtke mudou-se para Pereira Barreto em 1933, quando tinha 5 anos. Seu pai, imigrante alemo, segundo o depoimento, foi convidado pela Bratac para instalar um frigorfico na cidade. O negcio no prosperou e seu pai resolveu abrir uma padaria, neg-cio que levaria a famlia Souza a uma posio econmica social e poltica privilegiada na cidade.

    Durante a infncia, ele freqentou escolas da cidade, conviveu com crianas de origem japonesa, estudou japons e praticou mui-to esporte com os jovens da colnia.

    Durante o perodo da Segunda Guerra Mundial, presenciou as arbitrariedades das autoridades contra a colnia e viveu, ele pr-prio, sua parcela de medo. Seu pai, por ser alemo, sofreu, embora em propores menores, restries dessas mesmas autoridades.

  • No final da dcada de 1950, comprou o nico cinema da cida-de, at ento de propriedade de Cozo Tagushi, personalidade de grande importncia para a colnia. Foi a fase de maior prosperida-de econmica que viveu, ganhou muito dinheiro e comprou fazen-das. Na dcada seguinte, foi eleito prefeito.

    Se o cinema deu-lhe dinheiro, o cargo de prefeito proporcio-nou-lhe importncia e reconhecimento social. Administrou a cida-de em uma fase crtica que correspondeu ao perodo da construo da usina hidreltrica de Ilha Solteira. Muitos o acusam de ter im-pedido a Cesp de construir a cidade destinada a abrigar os traba-lhadores, tcnicos, administradores e todos aqueles que, direta ou indiretamente, estavam ligados obra (mdicos, professores, den-tistas, engenheiros). A cidade estaria, ainda, sofrendo as conseqn-cias da ausncia dos investimentos que a Cesp poderia ter feito na cidade. Lo Liedtke defende-se dizendo que, mesmo se quisesse, havia um obstculo tcnico: a distncia, j que a obra ficava a 45 km de distncia de Pereira Barreto.

    Alguns anos depois de cumprir o segundo mandato, mudou-se para So Jos do Rio Preto, primeiro pela desiluso poltica vivida em relao aos correligionrios e, segundo, por vontade de sua esposa. No obstante, mantm uma casa em Pereira Barreto onde se hospeda freqentemente quando vai cidade.

    Nilton Cesar do Nascimento

    Nilton Cesar do Nascimento um rapaz brasileiro que trabalha na cooperativa agrcola e tem uma trajetria de vida bastante inte-ressante. Em primeiro lugar, funcionrio de uma entidade dirigida por nipo-brasileiros, o que nos coloca questes em torno do imbricamento entre a condio de classe e a condio tnica. Em segundo, casou-se com uma sansei, com quem tem um filho e, terceiro, morou, juntamente com sua esposa, durante um ano no Japo, na condio de dekassegui.

    Nilton tem 22 anos, nasceu em Ilha Solteira. Seu pai pernam-bucano e foi operrio na construo da usina, e sua me de Perei-ra Barreto.

  • Durante a infncia teve vrios amigos japoneses, conviviam na es-cola e fora dela. Foi em uma festa (ns, do interior, chamvamos de "brincadeira danante") que conheceu sua futura esposa.

    O seu relacionamento e posterior casamento foi duramente cri-ticado pelos pais da moa, a tal ponto que tiveram que sair de Pereira Barreto. Foi quando decidiram ir para o Japo trabalhar. Durante um ano viveram em Kokasaki, prximo cidade de Nagoya. Trabalhavam na indstria automobilstica. Nilton se or-gulha em dizer que seu trabalho foi reconhecido pelo supervisor (japons) da fbrica. Eram longas jornadas de trabalho, de 10 a 12 horas dirias.

    Vencido o contrato, retornaram ao Brasil e logo se empregaram em uma empreiteira no centro-oeste na construo da "Ferro-Nor-te". Nessa ocasio, sua mulher engravida. A falta de recursos pro-vocou a interrupo das obras e o casal retornou definitivamente para Pereira Barreto.

    Nilton Cesar do Nascimento se emprega na cooperativa e logo seu filho nasce. o comeo da reaproximao com a famlia de sua mulher. Hoje, ele vive bem com os sogros. Seu filho aprende japons com os avs e ele participa com sua esposa das atividades promovidas pela Acep.

    Suzana de Castro Neves

    A idia de entrevistar Suzana de Castro Neves surgiu com a necessidade de conhecer aspectos das relaes entre jovens brasi-leiros, pertencentes ao segmento social dos pecuaristas, e os japo-neses na cidade.

    Suzana tem 20 anos e estuda Medicina Veterinria em So Jos do Rio Preto, onde a entrevistei.

    Sua famlia tem fazenda na cidade de Pereira Barreto. Seu pai era scio de uma empresa agrcola que possua plantaes de soja em Mato Grosso. Hoje, mantm uma fazenda de criao de gado nelore no municpio de Cuiab, naquele mesmo Estado.

    Em sua infncia estudou na Escola Santo Andr, mantida pela Igreja Anglicana, cujo pastor de origem japonesa.

  • Eles ensinavam a cultura japonesa. Havia brincadeiras. Muita matemtica que eles ensinavam. Tinha a igrejinha, que tinha um pa-dre, tem at hoje. Era assim, eles adaptavam um pouco com a cultura brasileira, como a festa junina. Tudo, tudo que tem no Brasil, eles faziam. Da tinha muitos jogos, tambm.

    Percebe-se que vivenciou um espao de socializao orientado administrativa e culturalmente por pessoas de origem japonesa. As brincadeiras e a sistemtica de ensino eram complementadas com a culinria, doces e bolinhos de arroz. Suzana adorava a escola.

    No entanto, mesmo estudando na escolinha infantil Santo Andr, seu crculo de amizade nas sries seguintes no inclua crianas e adolescentes de origem japonesa. "Eu acho que eles so muito fe-chados. Eles no se misturam, eles s se misturam por interesse. Eles no deixam brasileiro aprender a lngua deles."

    Suzana reproduz o velho preconceito contra os japoneses, de que so interesseiros. Apesar disso, nutre uma certa admirao por eles, principalmente no que diz respeito preocupao com a pre-servao da cultura. Alm da admirao, diz que aprendeu a ser mais disciplinada e determinada com os japoneses.

    Arnaldo Enomoto

    Arnaldo Enomoto um prspero empresrio nissei. Herdou de seu pai, Nakamura, o dinheiro e a competncia nos negcios. Seu pai imigrou para o Brasil no comeo dos anos 30 e, depois de viver durante um curto perodo da agricultura, parte para o ramo do comrcio. Abre um posto de gasolina e comea a trabalhar com compra e venda de terras. o negcio que o enriquecer e lhe dar prestgio social. Elege-se vereador inmeras vezes. Morre prema-turamente, no incio dos anos 70, em acidente de avio. Seu ltimo grande negcio foi trazer uma multinacional japonesa do setor agropecurio para Pereira Barreto.

    Naquele momento, Arnaldo Enomoto vivia e estudava na cida-de de So Paulo. Volta, ainda muito jovem, para assumir os negci-os do pai. Embora sempre enfatize, em sua entrevista, que no teria herdado o mesmo "dom" para os negcios do pai, o fato

  • que se tomou dono de uma concessionria de automveis e scio de uma usina de cana-de-acar em um municpio vizinho.

    Alm disso, embora no se d conta, possui a mesma viso empreendedora e vanguardista do pai. Entre todas as pessoas com que conversei, formal ou informalmente, foi a nica que formulou uma alternativa econmica clara no s para o municpio mas para toda a regio: o turismo. Sua viabilizao, no entanto, passaria por uma profunda mudana de mentalidade da populao da cidade e em especial da colnia:

    ficaram aqui trabalhando, trabalhando, trabalhando e fica o botequinho aberto, o filho mdico, engenheiro, dentista. O filho formado l em escola superior, mas ele est l, naquela portinha ali. Pinta? No pinta, no renova, no muda a pintura. No inova nada, entendeu? Hoje o mundo isso, quer dizer ele tirou o sustento dali, mas ganhou muito dinheiro ... Ento chega um cara, faz um negcio bonito e tal: vai pintar, pe um ar-condicionado dentro da sala, vai abafar. E pes-soal antigo vai ficando pra trs, esse pessoal meio retrgrado de anti-gamente, no vai nem fazer um curso de aperfeioamento e tal. Mdi-co aqui da cidade deve fazer vinte anos que no faz um curso, enten-deu? A chega um rapaz novo a, recm-formado, chega aqui com a bola toda, a vai curso todo ms, todo ano, sei l, vai faz, faz aperfei-oa, vai comea e arrebenta a boca do balo.

  • PARTE I

    ASPECTOS HISTRICOS

  • I O RETRATO DE HOJE

    No dia 3 de outubro de 1996, em todo o pas, elegeram-se novos prefeitos municipais. Para Pereira Barreto foi uma eleio histrica pois, pela primeira vez, conduziu-se ao cargo de prefeito um nipo-brasileiro. Isso ocorreu depois de meio sculo desde a primeira eleio para prefeito na cidade. Fato curioso, j que a origem da cidade um empreendimento de colonizao japonesa. A vida poltica da cidade segue uma trajetria prpria que a dife-rencia de cidades de mesma origem, as quais, por inmeras vezes, elegeram prefeitos nipo-brasileiros.

    O censo demogrfico de 1991 demonstra que esse grupo re-presenta uma pequena parcela da populao total da cidade. No obstante, a cidade traz marcas da presena japonesa em muitos aspectos: na arquitetura, como o pagode na praa central, o rel-gio da cidade, a Ponte Novo Oriente; nas atividades econmicas, como a Cooperativa Agrcola Tiet, a Brajusco (agropecuria); na vida cultural e religiosa, expressa em seu templo budista, igreja Santo Andr (anglicana), festa do Bort-Odori. Alm disso, como ser apontado adiante, a presena japonesa na cidade no est inscrita apenas nesses marcos objetivados, mas tambm nas prti-cas e nas representaes sociais de seus moradores.

  • A cidade est localizada a 630 km da capital paulista, no extre-mo noroeste do Estado. Ocupa um lugar de destaque na hidrovia Paran-Tiet, j que compreende o canal de Pereira Barreto que interliga os dois rios.

    O perfil econmico da cidade caracteriza-se pelo predomnio das atividades agropecurias. O comrcio atende apenas, e ainda parcialmente, s demandas locais e a indstria no vai alm de atividades de pequena escala: cermica, olaria, serralherias e arte-fatos de cimento, entre outros.

    A agropecuria, por sua vez, caracteriza-se pela pecuria de extenso e de corte. Destaca-se tambm a avicultura de corte e de produo de ovos. A primeira atividade no tradicionalmente praticada por nipo-brasileiros (embora haja algumas excees sig-nificativas). J a produo de ovos tem-se afirmado como ativida-de praticada predominantemente por nipo-brasileiros.

    O municpio vive hoje um impasse econmico provocado por dois acontecimentos: primeiro, a construo da usina hidreltrica de Trs Irmos no final da dcada de 1970 e, segundo, a emancipa-o poltica de Ilha Solteira, no incio da dcada de 1990, at ento o mais importante distrito de Pereira Barreto.

  • 2 OS PRIMRDIOS

    Segundo informaes arqueolgicas, os primeiros habitantes da regio foram ndios tupi-guaranis que ali teriam vivido at aproximadamente o sculo X. Durante os perodos colonial e im-perial, a distncia da regio do litoral paulista acabou por deix-la margem da civilizao. No obstante, sempre ocupou um lugar de importncia do ponto de vista geopoltico. Com o crescimento do interesse econmico em torno de metais e pedras preciosas e na mo-de-obra indgena e, conseqentemente, com o surgimento das bandeiras e das mones, a regio passa a ser visitada pelo Rio Tiet, principal meio de acesso ao interior do continente sul-ame-ricano para quem vinha dos planaltos paulistas.

    Os paulistas no cessaram de celebrar o Tiet, rio paulista em todo seu curso e cuja navegao nunca parou completamente. J no eram, porm, suficientes os motivos capazes para lanar-se a empresas to perigosas. Foi o que se viu claramente, em 1857, quando o imperador D. Pedro II tentou uma experincia de colonizao militar, na mar-gem direita do baixo Tiet, em Itapura: a penetrao no partia mais de So Paulo, porm de Mato Grosso e do Tringulo Mineiro.1

    1 A colnia militar de Itapura serviu de entreposto para as tropas brasileiras nas batalhas da Guerra do Paraguai (1864-1870); cf. Monbeig, 1984, p.94.

  • No sculo XVII, essas expedies passaram pela regio em bus-ca de acesso para a parte central da Colnia (Gois e Mato Gros-so), e para a regio Sul (especialmente Guara e Sete Povos das Misses). Ainda nesse sculo, o governador do Paraguai, Dom Lus de Csperes Xria, instalara-se na rea do vilarejo de Lussanvira e na da cidade de Itapura (Taguchi, 1971, p.2). A regio, no entanto, perde gradativamente a importncia como ponto de passagem, medida que outros caminhos comeavam a ser utilizados.

    Um novo "dono" para as terras da regio s apareceria no in-cio do sculo XIX: Flvio Dias da Costa. Este teria se apossado, por volta de 1815, de uma rea correspondente aos atuais munic-pios de Itapura, Pereira Barreto, Santa F do Sul, Jales e Fernan-dpolis.

  • 3 A INSERO DA REGIO NO CIRCUITO DAS RELAES MERCANTIS

    A cidade de Pereira Barreto foi fundada a partir de um empreen-dimento japons de colonizao. Antes disso, a regio era caracteri-zada pela presena de pouqussimos posseiros que viviam de modo muito modesto - plantando roa de milho, criando porcos e viven-do da caa - em suas florestas.

    A implantao da colnia da Fazenda Tite implicou a prtica e a incorporao da regio na franja pioneira. Esse processo de ocupa-o da Alta Noroeste ocorreu de modo singular, no obstante sua efetivao ter ocorrido no interior da dinmica contraditria da expanso do capitalismo mundial. o que fica claro em Monbeig (1984, p.94) sobre o incio de um processo de expanso que atin-giria a regio em estudo a partir da dcada de 1920:

    A marcha ininterrupta da frente de povoamento no passa de um aspecto da explorao do planeta pelos brancos. Tanto em suas ori-gens, como em sua continuidade, ela se prende, por sobre oceanos, s condies tcnicas, econmicas e polticas do mundo. Complexo jogo de circunstncias locais, de ordem natural e social, e de oportunida-des muito mais gerais, que preciso deslindar se se quiser compreen-der por que os paulistas invadiram os planaltos ocidentais, ao findar o sculo XIX, e por que, desde ento, no se deteve essa arrancada.

  • O LOTEAMENTO

    O loteamento1 surge, nesse contexto, como empreendimento comercial privado tendo em vista a especulao fundiria, marca caracterstica do movimento contraditrio de expanso da franja pioneira. Os loteamentos2 funcionaram, tambm, como um meio de o grileiro ou o fazendeiro garantir a posse da terra ou o lucro no caso de venda em uma situao de litgio. No que diz respeito regio, foi a partir de um loteamento que se formou a colnia que deu origem a Novo Oriente e, posteriormente, ao municpio de Pereira Barreto.

    Antes da formao dos loteamentos, as terras da regio conhe-ceram trs formas bsicas de ocupao: a) manuteno das flores-tas como reas de reservas financeiras; b) a explorao econmica das florestas, por meio do extrativismo vegetal, situao na qual se observa a introduo do mateiro, agente social responsvel pela explorao econmica da floresta e sua transformao em pastos; e c) aps o desmatamento, o surgimento dos pastos.

    O loteamento aparece, pois, como principal mecanismo de mercantilizao da terra e de avano da franja pioneira na regio. Seu significado extrapola sua dimenso econmica mais imediata:

    1 As companhias colonizadoras foram bastante ativas na regio e lotearam exten-sas reas. A So Paulo Land and Lumber Co. (inglesa) loteou 30 mil alqueires em Birigui. A Brasil Tokuchoko Kumai - Bratac - (japonesa) loteou 47.500 no municpio de Monte Aprazvel (regio do atual municpio de Pereira Barreto) e 12 mil em Mirandpolis; a famlia Moura Andrade loteou terras na regio do atual municpio de Andradina, cerca de 25 mil alqueires, alm de outras reas menores (Cf. Tartaglia, 1993).

    2 Os loteadores merecem ser citados por sua importncia social e econmica na regio em estudo: os loteadores compem a estrutura social das franjas pionei-ras. Constituem uma classe de mercadores de terras e exercem um papel funda-mental no processo social de transformao da terra em mercadoria. "O enri-quecimento dos especuladores no deixa de ser, pelo menos indiretamente, solidrio com o cultivo do solo. Os loteadores compreenderam rapidamente que partido poderiam tirar desse fato e isso os instiga cada vez mais a organiza-rem cuidadosamente o planejamento rural" (Monbeig, 1984, p.237).

    3 Por outro lado, a expanso da franja pioneira sobre a regio resulta da prpria crise do caf. "Acentuou-se tal penetrao e uma nova zona pioneira assim nasceu, como repercusso da crise e em conseqncia da legislao cafeeira, ao mesmo tempo" (ibidem, p.117).

  • a de transformar a terra em mercadoria. Significou, ainda, o incio do processo de ocupao da regio, que tem como ponto de parti-da os patrimnios:

    Fundar um patrimnio prtica antiga no Brasil. At o final do ltimo sculo era um ato de carter religioso. O fundador "dava" uma parcela de terra a um santo e ali fazia construir uma capela. As pessoas fixavam-se ao redor de pequena igreja, aproveitando-se da gratuidade dos terrenos ou, de qualquer forma, do pagamento medo-cre que o padre lhe viesse pedir. (Monbeig, 1984, p.235-6)

    A partir dos patrimnios, articula-se um conjunto de relaes que otimizava as condies para o desenvolvimento socioeconmico regional. Torna-se referncia para os agricultores da regio para onde iam sempre que necessitavam de ferramentas, consertos, mantimentos e, mesmo, rezar:

    O centro comercial, instalado para atrair os pequenos agriculto-res, vai agir, por sua vez, sobre o mundo rural. O patrimnio deve ser aprovisionado com facilidade e, para essa finalidade, so previstas instalaes nos arredores: hortas, pomares, pequena criao de aves, produo de leite. O plano de colonizao prev, portanto, um mo-desto cinturo para a localizao de chcaras, cuja superfcie oscila entre 1 e 5 alqueires. Quanto mais afastado do patrimnio, mais au-menta o tamanho do lote. (Ibidem, p.236)

    O patrimnio expressa, assim, uma forma peculiar da expan-so do capitalismo no Brasil, onde, de modo esquemtico, o meio rural centraliza as atividades econmicas e as cidades, as atividades polticas e administrativas.

    A presena dos loteamentos representa um modo de ocupao da regio caracterizado por um certo ordenamento: "O investi-mento em ferrovias, a ao das companhias colonizadoras, dos coronis e fazendeiros deram uma relativa orientao no padro agrcola e colonizador do territrio" (Tartaglia, 1993, p.133).

    Alm disso, o loteamento, como empreendimento mercantil, significou a transformao do papel do fazendeiro e resultou na introduo de novos agentes sociais: o loteador, o comerciante, o mateiro e o imigrante.

  • Uma vez visualizado o processo de incorporao da regio no circuito das relaes econmicas mercantis, deve-se entender como se deu a insero dos imigrantes no interior desse processo.

  • 4 A PRESENA JAPONESA

    A TRAJETRIA DOS IMIGRANTES JAPONESES NO BRASIL

    A imigrao japonesa para o Brasil tem como marco inicial a primeira visita oficial de um representante do governo japons em 1884. O deputado Massayo Neguishi viajou pelos Estados de Pernambuco, Minas Gerais e So Paulo. Dessa viagem resultou a escolha do Estado de So Paulo como o lugar mais propcio para os imigrantes por causa da qualidade da terra e de suas caractersticas climticas. Em 1895, foi estabelecido o primeiro tratado comercial martimo entre Brasil e Japo.1 Nessa ocasio, passa a residir no Brasil o primeiro diplomata japons. Logo em seguida, em 1897, estabeleceu-se o contrato entre a Companhia de Imigrao Tyo do Japo e a empresa Prado & Jordo no qual estava estipulada a imi-grao de 1.500 japoneses para os cafezais paulistas. No entanto, o contrato foi rompido pela empresa brasileira, inviabilizando o in-gresso dos primeiros imigrantes japoneses no Brasil. Cerca de sete

    1 Esse tratado se baseava nos seguintes princpios: paz perptua entre Brasil e Ja-po, instalao de representao diplomtica, liberdade econmica e comercial, iseno de tributos sobre importao e liberdade de conscincia, entre outros.

  • anos depois, refeitos dos contratempos causados pelo cancelamento do contrato, volta-se novamente a se cogitar, no Japo, o envio de emigrantes para o Brasil. Jornais japoneses divulgam relatrios oti-mistas sobre as terras e o futuro do Brasil.

    Entre 1906 e 1907, o presidente da Companhia Colonizadora Kkuko, Ry Mizuno, faz visitas ao Brasil. Na primeira viagem fez um reconhecimento das condies ambientais e agrcolas do Esta-do de So Paulo. Na segunda, firma com o governo estadual um contrato no qual se estabeleceu a imigrao de 3.000 pessoas por ano a partir de 1908. No dia 28.4.1908, parte do porto de Kobe o navio "Kasato Maru" com destino ao Brasil. Trazia a bordo 167 famlias, num total 761 pessoas, sendo 601 do sexo masculino e 190 do sexo feminino. O navio atracaria 52 dias aps no porto de Santos, trazendo sonhos e a esperana de "fazer a Amrica" e de-pois voltar para a terra natal.

    O Brasil, por sua vez, vivia a expanso cafeeira e a crescente demanda por mo-de-obra.2 No foi pequena a polmica em tor-no da imigrao japonesa para o Brasil. Em uma poca em que se discutia o "carter" da raa brasileira, havia muitas dvidas sobre o efeito da presena japonesa na constituio de nossa nacionali-dade. Alm disso, o "enquistamento" era a principal preocupao, visto que conheciam os exemplos de imigrao japonesa nos EUA e outros pases.

    Na verdade, j existia um esteretipo em torno do imigrante asitico, que se pautava pela confuso entre as vrias etnias daque-le continente. No era rara a confuso estabelecida entre trabalha-dores japoneses e chineses.3 Vejamos uma citao reveladora de todo o preconceito existente contra orientais:

    se a escria de Europa no nos convm, menos nos convir a da Chi-na e do Japo; a introduo de "elemento tnico inferior" sempre um perigo; ou, em caso de opo "no h dvida que eu preferiria o europeu, porque teramos ... os dois elementos: o colonizador, c por-

    2 Existe uma vasta bibliografia sobre a expanso cafeeira relacionada com a de-manda de mo-de-obra imigrante. Por no ser de interesse especfico desta pesquisa no trataremos desse assunto.

    3 No Brasil, a presena de chineses remonta ao Perodo Joanino (1808-1821).

  • tanto, o povoador do solo, e o trabalhador"; o chim bom, obedien-te, ganha pouco, trabalha muito, apanha quando necessrio, e quan-do tem saudades da ptria enforca-se ou vai embora. (Nogueira apud Comisso de Elaborao, 1992)

    Como dissemos, tratava-se de uma questo fundamental para a constituio do povo brasileiro em uma fase marcada teoricamen-te pelo positivismo que identificava os tipos psicolgicos s raas. A formao da ndole do povo brasileiro passava, pois, pela sele-o racial. Essa questo continuaria em debate at s vsperas da Segunda Guerra Mundial.

    De um modo geral, pode-se dividir a histria da presena japo-nesa em trs momentos (Comisso de Elaborao, 1992): o que corresponde aos primeiros anos de vida no Brasil, caracterizados por uma estratgia de trabalho temporrio de curta durao; o que corresponde a uma fase posterior, marcada pela mudana quanto ao tempo de permanncia no Brasil, conhecida como estratgia de trabalho temporrio de longa durao; e, por fim, o momento cor-respondente fixao permanente no Brasil.

    Como se pode perceber, at esta ltima fase a condio de imi-grantes era provisria (dekassegui). Alguns autores consideram que essa disposio pode ter contribudo para que os japoneses manti-vessem rgido controle sobre suas tradies, o que inviabilizava, por exemplo, os casamentos intertnicos.

    O dekassegui que vinha com o firme propsito de acumular al-gum capital e retornar para o Japo era motivado pela necessidade de alcanar uma posio social mais favorvel em sua terra natal. O que nos parece que o imigrante vinha fortemente imbudo pelas disposies culturais, marcado pela tradio militarista e todo o conjunto de atributos ticos e morais. Alm disso, o Japo tinha vencido, recentemente, duas guerras de grande importncia: con-tra os russos (1904-1905) de quem haviam conquistado as ilhas Kurilas; e contra a China (1894-1895), cuja vitria levou ocupa-o da Manchria. possvel que essas vitrias, que alentaram a crena da superioridade de seu povo, reforando o carter milita-rista do "esprito japons" (Yamato damashii), fossem uma das re-ferncias que orientavam os imigrantes japoneses no Brasil. No que os imigrantes entendessem a imigrao como ocupao mili-

  • tar, tal como ocorreu na Manchria. Sua vitria estaria no retorno ao Japo aps terem atingido seus objetivos.

    Na verdade, o Yamato damashii no se esgota em seu carter militarista. Constituiu-se como um corpo de valores, prticas e re-presentaes que se expressa em toda extenso da vida japonesa e estar presente no cotidiano dos imigrantes no Brasil. Trao do Yamato damashii japons teria sido expresso desde a chegada dos imigrantes no Brasil e rapidamente percebido pelos brasileiros.

    motivo de grande orgulho o modo como foi registrado o desembarque e a triagem dos imigrantes. H um artigo de 1908 de autoria de J. Amndio Sobral, inspetor da Secretaria da Agricultu-ra, publicado no Correio Paulistano, que ilustra com muita clareza o esprito japons, que o tornava admirvel e singular entre os imigrantes. A seguir, alguns trechos dos vrios aspectos do artigo, citado em sua ntegra em Uma epopia moderna.

    Sobre o asseio:

    Pois houve em Santos quem afirmasse que o navio japons apre-sentava na sua 3a classe mais asseio e limpeza que qualquer transatln-tico europeu na l classe. (Comisso de Elaborao, 1992, p.67)

    Depois de estarem uma hora no salo do refeitrio, tiveram de abandon-lo, para saberem quais eram as suas camas e os quartos, surpreendeu a todos o estado de limpeza absoluta em que ficou o salo: nem uma ponta de cigarro, nem um cuspo, perfeito contraste com as cuspinheiras repugnantes e pontas de cigarro esmagadas com os ps dos outros imigrantes. (Ibidem, p.66)

    Sobre suas vestimentas:

    Homens e mulheres trazem calado (botinas, borzeguins e sapatos) barato, com protetores de ferro na sola, e todos usam meias. (Ibidem)

    Sobre o esprito militarista:

    Alguns dos homens foram soldados na ltima guerra (russo-japoneza), e traziam no peito as condecoraes... "Um delles trazia trs medalhas, uma das quais de ouro, por actos de herosmo..." (Ibidem)

    Sobre a cordialidade japonesa:

  • Esta primeira leva de imigrantes japonezes entrou em nossa terra com bandeiras brasileiras de seda, feitas no Japo, e trazidas de pro-psito para nos serem amveis. Delicadeza fina reveladora de uma educao aprecivel.

    Sobre o aspecto fsico:

    Todos os japonezes vindos so geralmente baixos: cabea grande, troncos grandes e reforados, mas pernas curtas ... O que sobretudo attre a nossa atteno a robustez, o reforado dos corpos masculi-nos, de msculos poucos volumosos (admira, mas verdade!) mas fortes e de esqueleto largo, peitos amplos. (Ibidem, p.67)

    Sobre a personalidade:

    penteada com cuidado, perfeitamente em harmonia com a gravata que todos usam sem incompatibilidade com os calos que todos tra-zem nas mos. (Ibidem)

    O conjunto dessas citaes possibilita-nos perceber, pelo relato do inspetor, alguns aspectos culturais singulares entre os japone-ses. Pode-se dizer que as representaes presentes no relato so fruto de uma inteno objetiva por parte dos imigrantes em criar e afirmar uma imagem que produto de sua auto-representao: ordeiros, orgulhosos, fortes, trabalhadores e cordiais.

    Tomoo Handa (1980), em Memrias de um imigrante japons no Brasil, faz um relato das experincias cotidianas das primeiras levas de imigrantes japoneses ao pas. Por meio dele possvel visualizar um conjunto de aspectos bastante significativos da expe-rincia daqueles imigrantes nas dcadas de 1910 e 1920.

    Entre as muitas particularidades que marcaram a vida dessas pessoas que vieram para o Brasil, destaca-se a formao das fam-lias conhecidas como compostas. Essas famlias estruturavam-se a partir das exigncias impostas como condio para emigrao. Os casamentos atendiam, assim, s exigncias feitas aos emigrantes. Em torno do casal, reuniam-se parentes de ambos os lados; o gru-po poderia compreender, em geral, at dez membros. Na verdade, o casamento arranjado, embora tenha criado algumas dificuldades para a famlia imigrante (Handa, 1980, p.43), no era nenhuma

  • novidade entre as tradies japonesas, ainda que o propsito o fos-se. Tomoo Handa atribui a esse tipo de famlia uma das dificulda-des vividas pelos imigrantes.

    Chegando ao Brasil, as primeiras levas de imigrantes eram dis-tribudas pelas fazendas de caf. Iniciariam, ento, uma nova vida marcada pela esperana do enriquecimento rpido e do breve re-torno ao Japo. As dificuldades enfrentadas pelos imigrantes se-riam imensas. A comear pelas refeies - po com mortadela -servidas nos trens que os conduziam at as fazendas. As casas nas colnias das fazendas nada tinham de semelhante com as que mo-ravam no Japo. A alimentao tambm continuava a causar pro-blemas, j que no existiam verduras e legumes e sua dieta restrin-gia-se a arroz, carne bovina ou de peixe salgado e banha de porco. Essas caractersticas, embora paream sem importncia, revelam na verdade conflitos vivenciados em decorrncia de seu ethos ins-crito em seus hbitos alimentares.

    Mas as dificuldades e as frustraes no foram apenas essas. Handa descreve a decepo dos imigrantes ao encontrarem lavou-ras de caf decadentes e em pocas de entressafra. O sonho de retornar rpido para o Japo tornava-se mais distante.

    Enquanto isso, na lavoura do caf, nas roas, nos armazns das fazendas, em seu dia-a-dia, trava-se um conjunto de relaes sociais quase sempre marcadas pelos conflitos.

    Uma primeira dimenso desses conflitos refere-se relao com trabalhadores de outras nacionalidades. Imigrantes italianos, espa-nhis, trabalhadores brasileiros paulistas, nortistas, nordestinos e imigrantes japoneses conviviam na mesma fazenda (relaes que seriam vivenciadas em circunstncias e em uma correlao de for-as diferentes em Pereira Barreto). As diferenas culturais eram profundas, criando barreiras, ainda que no fossem intransponveis em algumas circunstncias, que se cristalizavam em forma de pre-conceitos e esteretipos.

    A vida dos primeiros imigrantes no Brasil foi marcada, ainda, por outro conjunto de conflitos, a comear pelas empresas japone-sas de emigrao e colonizao. Segundo Handa, grande parte das propagandas sobre o Brasil feitas por essas empresas de emigrao no Japo no correspondiam realidade das fazendas e cafezais

  • paulistas. Algumas empresas apropriaram-se de modo indevido do dinheiro que os emigrantes teriam colocado sob a sua guarda. A dramaticidade da revolta dos emigrantes descrita por Tomoo H a n d a ( 1 9 8 0 , p . l 6 ) :

    Preocupado com o agravamento dos acontecimentos, o represen-tante no Brasil Shushi Uetsuka (ento com 33 anos), aps tentar con-vencer aquele porta-voz do grupo de Okinawa com vrias explica-es - o que imagino - por fim estendeu a cabea e pediu-lhe que, no aceitando como satisfatrios os esclarecimentos, o degolasse.

    Uetsuka no foi degolado. O dinheiro dos emigrantes teria sido utilizado para saldar dvidas da empresa. Alm do mais, os custos com a viagem oneravam, ainda mais, as famlias que trabalhavam quase exclusivamente para saldar suas dvidas. Assim, as empresas japonesas tornaram-se focos de conflitos.

    Esses acontecimentos revelam dimenses da emigrao japone-sa para o Brasil em um momento em que estava sob a responsabi-lidade de empresas particulares. H, como se v, evidncias de que se tratava de grupos que buscavam o enriquecimento rpido com o novo negcio: o da emigrao no Japo.

    Aps a distribuio nas fazendas, os imigrantes passaram por novas desiluses: as condies dos cafezais, das casas, da alimenta-o e da baixa remunerao. As atividades e habilidades para tor-nar o trabalho no caf rentvel foram sendo desenvolvidas pouco a pouco, contrastando com o firme propsito e disposio para o trabalho:

    No primeiro dia todos acordaram s 3 horas e formaram um gru-po. E assim, homens carregando escadas, mulheres com bebs amar-rados s costas e crianas transportando marmitas acorreram ao cafe-zal, chutando o sereno das relvas, em marcha herica em que nin-gum queria ficar para trs. (Handa, 1980, p.47)

    Vale a pena nos remetermos descrio de Tomoo Handa (p.46) sobre o trabalho no cafezal:

    Terminando o servio da derria, passam-se para a peneira os fru-tos derrubados sobre o lenol; a seguir, gira-se a peneira para coar a

  • terra e a poeira, e por meio do lanamento do seu contedo para o alto, retiram-se as folhas e demais impurezas.

    Evidentemente, servios como esses no eram particularmente difceis de executar. Mas era preciso tempo para aperfeioar-se. Prin-cipalmente no manejo da peneira, no qual sem destreza, o servio no rendia... Com o avano da habilidade, as cerejas sobem a peneira, em faixa, para o alto do ombro direito, para, depois de expelidos os ciscos ao vento, retornar como que sugadas pela peneira.

    O relato de Tomoo Handa possui uma tonalidade pica, como de resto so marcados registros histricos e biogrficos sobre a imigrao japonesa por autores e escritores nipo-brasileiros. Reve-la, tambm, a incorporao de novas habilidades que so, na ver-dade, expresso de sua condio de imigrante. O desenvolvimento dessas habilidades so novas marcas inscritas em seu habitus ad-quiridas pela experincia de vida e trabalho vivificados no Brasil.

    Distantes dos representantes diplomticos, voltaram-se contra os intrpretes, com quem podiam falar no mesmo idioma. Esses intrpretes, geralmente, eram funcionrios das empresas de colo-nizao que trabalhavam com o fazendeiro que havia contratado imigrantes japoneses.

    As adversidades encontradas na moradia, nas relaes com pa-tres, colegas de outras nacionalidades e intrpretes, as frustraes dos sonhos dos dekasseguis e as dificuldades no trabalho resultaram em um conjunto de reivindicaes que levariam os imigrantes gre-ve, dimenso pblica de um conflito que at ento permanecia la-tente. Embora parea no ter sido uma prtica generalizada, a greve foi utilizada como mecanismo de presso sobre donos, administra-dores da fazenda e, tambm, intrpretes que no "compreendiam" os motivos dos grevistas. Aps dois meses de ingresso na Fazenda So Martinho,4 deflagrou-se um movimento grevista. O motivo era essencialmente salarial, j que havia dois meses que no recebiam. Faziam outras reivindicaes: que os salrios passassem a ser pagos mensalmente, que houvesse adiantamento salarial e pagamento ex-tra por servios de carpintaria. Quase todas as reivindicaes foram recusadas e alguns de seus lderes foram expulsos da fazenda.

    4 Regio de Ribeiro Preto, Estado de So Paulo.

  • Ao contrrio das greves, as fugas das fazendas tornaram-se pr-ticas usuais. Era o meio de livrar-se das dificuldades de saldar as dvidas cada vez maiores com os fazendeiros.5 Muitos imigrantes dirigiam-se para outras fazendas, cuja situao correspondesse melhor a suas expectativas: cafezais mais produtivos e salrios mais compensadores. Outros buscariam empregos nas construes das estradas de ferro Sorocabana e Noroeste.

    At aqui a trajetria dos imigrantes japoneses no Brasil revela sua dimenso conflitiva, o que muito significativo, considerando as disposies do ethos japons. O respeito pela hierarquia, a bus-ca do equilbrio, a hegemonia do coletivo no impediram a emer-gncia de enfrentamentos. O que indica que essas disposies no passam pela resignao ante as situaes consideradas adversas.

    A avaliao sobre a experincia da "primeira leva" de fracas-so. Entre outras, Tomoo Handa (p.74-5) destaca os seguintes mo-tivos: pouca experincia dos imigrantes na lavoura; composio artificial e circunstancial das famlias; extorso praticada pelos fa-zendeiros e donos de "vendas"; baixa produtividade do caf; pro-blemas decorrentes das diferenas culturais. Esses seriam os moti-vos alegados pelos prprios imigrantes. As empresas de coloniza-o fizeram sua prpria avaliao na qual o fraco desempenho dos imigrantes da primeira leva era justificado em razo das circuns-tncias, tanto no Japo, na ocasio da sada, quanto no Brasil no momento de sua chegada. Desconhecia-se a realidade do regime de trabalho nas fazendas paulistas; alm disso, desconheciam-se as adversidades da condio do imigrante em pas de cultura to di-versa. Por ltimo, a morosidade na arregimentao do contingente fez que seu ingresso ocorresse no meio da safra do caf, quando a produtividade do trabalho comeava a decrescer (p.77).

    Ante essas adversidades, o Ministrio das Relaes Exteriores do Japo estabeleceu um conjunto de medidas que visavam viabilizar uma maior rentabilidade do trabalho do imigrante. Essas medidas iam desde os novos critrios de seleo dos imigrantes (ter experin-cia comprovada na agricultura) at criar condies adequadas para a instalao dos imigrantes nas fazendas.

    5 O mecanismo de endividamento mais usual foram os armazns das fazendas.

  • Interessa notar que entre os motivos do chamado fracasso dos imigrantes japoneses no Brasil existia a expectativa de ganhar di-nheiro e voltar para o Japo. Os objetivos so claros e o esprito que move os emigrantes orienta-os para sua conquista. Por isso, a experincia do primeiro grupo de imigrantes no Brasil submetida avaliao e medidas so tomadas para se evitar a recorrncia dos erros. possvel perceber mais uma vez a influncia no plano do imaginrio e tambm no plano prtico que as guerras contra a Rssia e a China podem ter exercido sobre os imigrantes. Movidos igual-mente pela crena do poder e superioridade do esprito japons que moveram seus compatriotas nos campos de batalhas, os imi-grantes no teriam a mesma sorte no Brasil.

    A segunda fase da imigrao japonesa no Brasil comea com a desiluso quanto ao fcil enriquecimento e o rpido retorno para o Japo. Assim, estabelecem uma nova postura: a de permanncia provisria de longa durao.

    A primeira fase foi caracterizada pelo regime de trabalho do colonato. Como j apontado, muitos dos imigrantes permanece-ram nas fazendas at vencer o contrato; outros, porm, partiram para outras experincias de trabalho - como nas ferrovias paulistas -, fugindo da explorao de que eram vtimas e buscando outras alternativas para acumular o capital necessrio para retornarem ao Japo.

    As frustraes vividas na primeira dcada de vida no Brasil obriga-ram os imigrantes gradativamente a reavaliarem seu projeto inicial de permanecer pouco tempo no Brasil. Essa reavaliao implicou uma nova estratgia. Os imigrantes passaram a almejar o trabalho aut-nomo, o que, em um primeiro momento, seria conquistado com a aquisio de terras nas franjas da frente pioneira paulista.

    Almejar a condio de proprietrio ou mesmo de arrendatrio transcendia a dimenso econmica em seu sentido restrito. Signifi-cava, tambm, credenciar-se perante a comunidade de origem, no Japo.

    Chegar condio de proprietrio, no entanto, exigiu por par-te dos imigrantes um esforo que aparece como expresso do esp-rito nipnico motivada pelas condies adversas nas fazendas que ameaavam seus objetivos.

  • Como foi mencionado, com a disposio de passarem da condi-o de colonos para a de proprietrios, os