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Cristão novos do Algarve

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  • Eu no sou eu nem o outroCristos-novos no Algarve. A construo de uma identidade?Carla da Costa Vieira, n. 26024Doutoranda em Histria Moderna (FCSH/UNL)[email protected]

    Conheamos Guiomar Lopes. Crist-nova dos quatro costados, ficou rf de pai eme quando tinha cerca de 4 anos de idade. A peste que grassou no Algarve em 1580vitimou Francisco Lopes e Leonor Guiteria. Mas antes, no leito da morte, os dois aindapuderam transmitir aos filhos a f recebida dos antepassados e guardada em segredo.Assim afirmaram os irmos de Guiomar na mesa da Inquisio de vora. Foram todospresos no final da dcada de 80 e Guiomar, ento com apenas 11 anos, tambm noescapou ao crcere1. Quem conseguiu escapar a essa sorte foi a sua irm mais velha,Ana Lopes, que data da morte dos pais era j casada com Martim dAres, cristo-velho. Nenhum dos irmos denunciou-a. Confiando nos seus testemunhos, ela nuncafora iniciada pelos pais na crena da Lei de Moiss. E os inquisidores tambm noinsistiram nesse ponto.A perseguio inquisitorial no era propriamente uma novidade na famlia deGuiomar. Mestre Lopo e Duarte Dias, primos da sua me, haviam sido presos no finalda dcada de 50, durante a primeira entrada da Inquisio no Algarve2. Nos anos 70,dois tios maternos de Guiomar povoavam os crceres de vora Joo e Diogo Martins,ambos mercadores de panos em Beja3. Mercadores eram tambm o pai e o av materno,tal como o tio Gonalo Martins de Leo, que acabaria relaxado justia secular no auto-de-f celebrado em vora a 10 de Julho de 1588.Foi igualmente na mercancia que a famlia conseguiu colher o seu sustento quando apeste decapitou o lar. Pedro Lopes, o primognito, partiu ento para Sevilha em buscade melhores negcios. Mas em 1585, ano da visitao do inquisidor Manuel lvaresTavares ao Algarve, ele j se encontrava novamente em Faro. Pedro Lopes foi oprimeiro a entrar nos calabouos. Ao confessar as alegadas culpas de judasmo, as1 Cf. Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisio de vora (IE), procs. 5226 (PedroLopes), 6969 (Beatriz Gonalves), 8057 (Branca Rodrigues), 3562 (Guiomar Lopes), 2770 (LeonorQuitria) e 4504 (Violante Lopes). A irm Maria Quitria tambm foi presa pela Inquisio de vora namesma altura das irms, porm, no foi possvel encontrar o seu processo.2 Cf. ANTT, Inquisio de Lisboa (IL), procs. 2180 e 12751.3 Cf. ANTT, IE, procs. 191 e 11221.

  • suas e as da sua famlia, arrastou consigo as irms4. Depois de reconciliado pelaInquisio e recentemente casado com Catarina Galega, crist-nova de Lagos tambmpenitenciada, Pedro embarcou num navio carregado de figos em direco ao Brasil. Odestino acabou por ser outro Cuzco. Nas ndias Castelhanas, ele voltou a ser alvo daperseguio inquisitorial e, no ano de 1596, foi preso em Los Reyes. Pedro revelou,ento, todo o seu percurso durante os ltimos sete anos, circulando por Cartagena dasndias, Panam, Costa Rica e Guayalquil, sempre a mercadejar5.Devido sua pouca idade e pouca capacidade, Guiomar Lopes saiu reconciliadaem Agosto de 15886. Foi confiada a um casal cristo-velho, Rui Mendes de Vasconcelose D. Ana, com quem viveu durante dez anos, ao fim dos quais o cunhado Martim dAres aacolheu na sua casa. Guiomar, que adoptou o sobrenome Pereira, viria a casar-se trsvezes, sempre com lavradores cristos-velhos. Regressou aos crceres inquisitoriais em1636, j com cerca de 50 anos de idade7. Aps o terceiro casamento, Guiomar mudara-separa Alcaria Cova, no termo de Faro, depois de vrios anos a residir em Moncarapacho.Tinha duas filhas: uma ainda solteira, outra casada com um lavrador cristo-velho. Assuas irms haviam-se casado com mercadores cristos-novos (alis, Beatriz Gonalves eraj casada quando foi presa em 1587), mas trs das suas sobrinhas Leonor Quitria,Isabel Quitria e Maria de Tovar conseguiram ingressar na pequena nobreza atravs domatrimnio.A histria de Guiomar Lopes marcada pela mudana. Filha de mercadorescristos-novos, casa com lavradores cristos-velhos. Nascida e criada na cidade, acaba aresidir numa aldeia. Apesar da permanente sombra da represso inquisitorial, a suafamlia consegue enlaar-se a proles da nobreza local, mesmo que tal no tenhasignificado o fim dessa perseguio. Contudo, Guiomar apenas um exemplo, um casoentre vrios. Tantos que necessrio recorrer aos nmeros para melhor o demonstrar.Mas antes faamos uma breve resenha sobre as origens desses nmeros. Para tal,precisamos de percorrer rapidamente cem anos de represso inquisitorial na regio. Aprimeira grande entrada da Inquisio no Algarve iniciou-se no final da dcada de 50 dosculo XVI, prolongando-se pela primeira metade do decnio seguinte. Foram vrios oscristos-novos processados residentes em Vila Nova de Portimo (43) e Lagos (57), mas4 Cf. ANTT, IE, proc. 5226.5 Cf. ANTT, IE, liv. 213, fls. 111-116v. Vide tambm Antnio Borges Coelho, O Algarve nos sculosXVI e XVII, Cristos-Novos, Judeus e os Novos Argonautas, Lisboa, Caminho, 1998, pp. 47-48.6 Cf. ANTT, IE, proc. 3562.7 Cf. ANTT, IE, proc. 3561.

  • Tavira revelou-se o principal alvo, registando um total de 90 processos em 4 anos(1563-1566). Em 1585, o Algarve recebia o visitador Manuel lvares Tavares. Durante5 meses, o inquisidor percorreu a regio e, nos anos seguintes, sentiram-se osresultados, sobretudo em Vila Nova de Portimo, onde foram presos mais de 120cristos-novos at ao final do sculo. O incio da centria seguinte marcado por umaquase ausncia de actividade inquisitorial no Algarve, uma ausncia sucedida pelamaior vaga de prises alguma vez registada na regio. Tudo comeou com a confissode uma crist-nova de Faro, em 1631, e o resultado final foi 226 prises na cidade numperodo de 8 anos (1632-1639). Mas as consequncias dessa entrada tambm se fizeramsentir em Loul e Albufeira. Por toda a regio, entre 1632 e 1650, foram processadosperto de 400 cristos-novos.Todo este conjunto de processos inquisitoriais fornecem-nos no s slidasinformaes sobre a presena da Inquisio no Algarve, mas tambm um retrato doscristos-novos residentes na regio e, sobretudo, das mudanas sofridas ao longo desteperodo.1. Espaos de residnciaOs ncleos urbanos, em particular os litorneos ou com fcil comunicao com acosta, constituam os espaos de eleio dos cristos-novos para a fixao da suaresidncia. J assim fora no caso das comunidades judaicas8. Mesmo no interior dascidades, havia espaos imediatamente identificados com a gente de nao. Em Faro,dizia-se que na Rua de Santo Antnio eram raros os cristos-velhos9. A Rua do Rego,a Rua Direita ou o Poo dos Cntaros tambm aparecem constantemente referidas nosprocessos dos cristos-novos residentes na cidade. Eram espaos situados fora dasmuralhas e, por conseguinte, no coincidentes com a rea da antiga judiaria, vila-dentro,nas imediaes donde foi posteriormente construdo o convento de Nossa Senhora daAssuno10. Porm, a Rua de Santo Antnio e as artrias limtrofes no eram um espaoestranho aos judeus de Faro. A rua terminava nas alcaarias e atravessava a antigamouraria. Portanto, era uma rea comercial, decerto frequentada pelos mercadores emesteirais hebreus.

    8 Cf. Maria Jos Ferro Tavares, Os Judeus em Portugal no Sculo XIV, Lisboa, Guimares Editores, 1979,p. 21; Idem, Os Judeus em Portugal no Sculo XV, tomo I, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1982,p. 75.9 Cf. ANTT, IE, proc. 5895, fl. 5.10 Cf. ANTT, Corpo Cronolgico, m. 98, doc. 112.

  • O caso de Faro idntico ao de Tavira. Segundo os processos resultantes daprimeira vaga de prises no Algarve, na qual, como vimos, Tavira foi o grande alvo, aRua Nova e a Praa da Ribeira surgem como reas onde muitos cristos-novos tinhamfixado a sua residncia. Por outro lado, a antiga judiaria situava-se intra-muros, aqumda Porta da Afeio11. Em meados do sculo XVI, os cristos-novos j haviamabandonado o local que servira de morada aos seus antepassados, aproximando-se dorio, ponto de chegada e partida de mercadorias e mercadores.O crescimento das cidades para l das muralhas medievais e a emergncia doutroscentros nevrlgicos de actividade econmica, aliado ao fim das limitaes residnciaaps a converso ao Cristianismo, fez com que a rea das antigas judiarias fossepreterida a outros espaos mais interessantes para quem vivia do comrcio e dosmesteres. Mas nem sempre. Casos h em que possvel identificar uma certacontinuidade, como em Lagos, onde encontramos muitos cristos-novos a residir na RuaDireita e artrias adjacentes, perto donde, no passado, se teria fixado a comunidadejudaica12.Continuidade ou descontinuidade, h um elemento comum a tendncia para aconcentrao em determinadas reas. claro que estas concluses sustentam-se,fundamentalmente, no contedo dos processos inquisitoriais e, sobretudo, naidentificao da morada de rus, denunciantes e denunciados, deixando de fora oscristos-novos que conseguiram escapar ao jugo inquisitorial e cujo rasto se perdeu.Porm, quando temos um exemplo como o da Rua de Santo Antnio, em Faro,popularmente associada gente de nao, tambm no possvel negar essaevidncia e a possibilidade de uma concentrao espacial dos cristos-novos em certosespaos urbanos. Uma concentrao mas no uma segregao rgida. Durante a visitainquisitorial de 1585, muitas das testemunhas que se apresentaram perante Manuellvares Tavares eram cristos-velhos, os quais denunciaram os vizinhos e/ou os patrescristos-novos. Partilhavam com eles a mesma rua e at a mesma casa. Alguns desses11 O Convento da Graa seria erigido no espao da antiga judiaria. (Cf. Maria Jos Pimenta FerroTavares, op. cit., p. 72; Arnaldo Casimiro Anica, Tavira e o seu termo. Memorando Histrico, vol. II,Tavira, Cmara Municipal de Tavira, 2001, p. 86.12 No sculo XV, com o aumento da populao judaica em Lagos, a pequena rua onde se encontravaconfinada a judiaria deixou de ser suficiente para albergar todos os judeus que chegavam cidade. Parasolucionar este problema, o Infante D. Henrique deu licena para os judeus de Lagos poderem residir forada judiaria. Assim, muitos acabaram por se estabelecer numa das principais artrias da vila [...] acerca dadita judiaria e em ela muitos judeus tinham as casas de seu servio [...] (ANTT, Chancelaria D. AfonsoV, liv. 9, fl. 68). Esta rua seria, possivelmente, a Rua Direita. Sobre a expanso da judiaria de Lagos, videAlberto Iria, O Infante D. Henrique e os judeus de Lagos (Subsdios para a sua histria), Anais.Academia Portuguesa de Histria, II srie, vol. 23, tomo II, 1976, pp. 304-312.

  • cristos-velhos eram mesteirais e at mercadores, ou, mais frequentemente, serviaisdomsticos. A actividade profissional condicionava a escolha do espao de residncia.Era assim para cristos-velhos e para cristos-novos. Afinal, a concentrao residencialpode significar, sobretudo, uma homogeneidade scio-profissional.2. Situao scio-profissionalEntre as ocupaes scio-profissionais dos cristos-novos processados durante astrs entradas da Inquisio no Algarve, as actividades comercial e artesanal dominam.

    1558-1570

    Comrcio48%Mesteres38%

    Administrao1%Agricultura1%Sade e Direito12%

    1585-1600Comrcio26%

    Mesteres60%

    Administrao3%Outros11%

    1630-1650Comrcio26%

    Mesteres39%Agricultura11%

    Administrao4%

    Outros13%Sade e Direito7%

    Grf. 1-3: reas de actividade dos processados.

  • Na primeira entrada, o comrcio supera os mesteres enquanto principal rea deactividade. A tendncia inverte-se nas duas vagas seguintes, sobretudo no perodo de1585-1600. Se, nas duas primeiras vagas de prises, eram muito raros, ou mesmonenhuns, os rus apresentados como lavradores, o cenrio muda nas dcadas de 30 e 40do sculo XVII. Ora, para tal foi determinante a entrada da Inquisio nas vilas deLoul e de Albufeira, dois importantes centros agrcolas da regio.O comrcio e os mesteres eram reas tradicionalmente associadas s comunidadesjudaicas. Aps a converso geral, continuaram a ter protagonismo nas actividadesdesempenhadas pelos cristos-novos. Mas olhemos essa realidade mais de perto,comparando os dados de uma amostragem profissional dos judeus de Faro, no sculoXV, apresentada por Maria Jos Ferro Tavares13, com os dados recolhidos nadocumentao sobre os cristos-novos residentes na cidade durante o perodo de 1550 a165014:Judeus, sc. XV Cristos-novos, 1550-1650

    1. Sapateiros2. Alfaiates3. Administrativos4. Ourives5. Mercadores6. Rendeiros7. Teceles

    1. Mercadores2. Sapateiros3. Alfaiates4. Religiosos5. Sirgueiros6. Cirurgies7. AdvogadosO comrcio tornou-se na principal actividade, possivelmente tambm consequnciado desenvolvimento mercantil da cidade. Mesmo assim, ofcios como a sapataria e aalfaiataria continuaram a ter grande importncia no contexto scio-profissional doscristos-novos de Faro. Por outro lado, este quadro revela igualmente algumastransformaes. A converso abriu aos cristos-novos o acesso carreira eclesistica.Em Faro, sede episcopal do Algarve desde 1577, os ofcios religiosos ocupavam aquarta posio na escala das actividades exercidas. Encontramos cristos-novos at nocabido de Faro. Afinal, no obstante a proibio de Sisto V ao acesso dos cristos-novosa benefcios reservados S apostlica e a confirmao desse decreto pelo sucessorClemente VII, acrescentando que nenhum descendente de judeus at stima gerao

    13 Cf. Maria Jos Ferro Tavares, op. cit., p. 305.14 A documentao aqui referida , sobretudo, de origem inquisitorial, no s os processos de Inquisio,como tambm outros documentos oriundos do fundo do Tribunal do Santo Ofcio (cadernos do promotor,livros e maos da Inquisio de vora e de Lisboa, documentao do Conselho Geral do Santo Ofcio,etc.). medida que consultei esses documentos, registei numa base de dados todos os cristos-novosresidentes no Algarve referidos e as respectivas informaes identitrias. Foi a partir dessa base queobtive os dados que aqui apresento.

  • poderia receber canonicatos, prebendas e dignidades nas catedrais15, a aplicao dessasrestries tardou na S de Faro e, s em 1641, D. Francisco Barreto incluiu a exignciade limpeza de sangue nos estatutos do cabido16.Os nmeros acima ocultam uma outra realidade. O cristo-novo referido enquantomercador, ou sapateiro, ou mesmo mdico, raramente se dedicava a essa actividade deforma exclusiva. De facto, h quem aparea mencionado como sendo alfaiate erendeiro, mercador e cirurgio, ou mesmo tosador e confeiteiro, por exemplo. Fora essescasos, a documentao indicia tambm que, independentemente do ofcio exercido, boaparte dos cristos-novos teria o seu quinho de terra no termo dos ncleos urbanos. Omovimento entre o campo e a cidade fazia parte do seu quotidiano e era particularmenteintenso nos meses de Agosto e Setembro, tempos do alacil e da vindima. O final doVero e o incio do Outono constituam tambm momentos importantes para os quecontinuavam a guardar em segredo a f e a ritualidade dos ancestrais judeus. Perante osinquisidores, muitos confessavam a observncia do jejum do Quipur no tempo dasuvas ou no tempo em que recheiam os figos17. Os ritmos da terra identificavam ostempos da f.O facto de no Algarve, medida que se avana no sculo XVII, serem mais comunsos cristos-novos que tinham na agricultura a sua principal actividade relaciona-se comum outro elemento: grande parte dos que aparecem mencionados enquanto lavradoreseram filhos de unies mistas, sobretudo de me crist-nova e pai cristo-velho.3. Endogamia e exogamiaComemos esta comunicao com o exemplo de Guiomar Lopes que, crist-novados quatro costados, casara por trs vezes, sempre com cristos-velhos, e ganhou umgenro sem nesga de sangue hebreu. Este parece ser um caso de limpeza gradual dosangue. E est longe de ser o nico.Se, no Algarve dos anos 50 e 60 do sculo XVI, apenas uma minoria dos cristos-novos ento processados eram casados com cristos-velhos, com o avanar dos anos, oscasamentos mistos perderam o seu carcter excepcional. Na segunda vaga de prises,

    15 Cf. Fortunato de Almeida, Histria da Igreja em Portugal, vol. II, Porto, Livraria Civilizao, 1968, p.59.16 Cf. Joaquim Romero Magalhes, O Algarve Econmico 1600-1773, Lisboa, Estampa, 1993, pp. 355-356.17 Cf. ANTT, IL, proc. 10041, fl. 17; proc. 12483, fl. 27.

  • entre os rus cristos-novos casados, mais de 20% eram-no com cristos-velhos. J nasdcadas de 30 e 40 do sculo XVII, essa percentagem rondava os 50 %.1558-1570

    Cnjuge xv5%

    Cnjuge xn88%

    Dvidas7%

    1585-1600Cnjuge xv23%

    Cnjuge xn71%

    Dvidas6%

    1630-1650Dvidas8%

    Cnjuge xn44%

    Cnjuge xv48%

    Grfs. 4-6: Qualidade de sangue dos cnjuges dos processadosO casamento com um cristo-velho podia constituir um veculo de ascenso social.Por outro lado, a fortuna associada a determinadas famlias crists-novas era bastanteatraente. Apesar das medidas tomadas com vista a desencorajar os enlaces entre nobrese cristos-novos18, ao longo do sculo XVII assistimos, no Algarve, a uma progressiva

    18 Em 1614 e 1642, foram publicados decretos proibindo o casamento de cristos-novos com nobres. (Cf.Francisco Bethencourt, Cronologia da Inquisio, A Inquisio em Portugal (1536-1821). Catlogo da

  • aproximao da gente de nao endinheirada nobreza local vinculada terra e aopoder concelhio19.Estas unies quebravam o esteretipo da endogamia permanentemente associadoaos cristos-novos. Em caso de processo inquisitorial, a aproximao a famlias crists-velhas atravs de vnculos matrimoniais poderia mesmo servir de prova do quanto o ruse apartara do convvio com a gente de nao e dos seus vcios. Este um argumentoque encontramos permanentemente citado nos artigos de defesa. Por outro lado, ocasamento com um cristo-velho poderia igualmente constituir um risco, sobretudo paraquem mantinha em segredo a crena na Lei de Moiss. Ento, o lar deixava de ser umrefgio para a vivncia clandestina da f interdita. Havia que esconder, havia quedissimular, mesmo entre quatro paredes. Contudo, entre os processos e demaisdocumentao, at meados do sculo XVII, no encontrei nenhum caso de um cristo-velho denunciado Inquisio pelo seu cnjuge cristo-novo, no obstante a profusode casamentos mistos.4. O sangueA consequncia imediata da progressiva vulgarizao de casamentos entre cristos-novos e cristos-velhos no Algarve evidente nos seguintes nmeros, referentes qualidade do sangue dos processados:

    1558-1570

    xn98%

    1/2 xn2%

    exposio organizada por ocasio do 1 Congresso Luso-Brasileiro sobre a Inquisio, Lisboa,Biblioteca Nacional, 1987, pp. 25, 27). Em 1629, a Junta de Tomar aprovou outras duas medidas quevisavam impedir essas unies, determinando que o dote da noiva crist-nova no poderia exceder os dois milcruzados e que, caso o casamento se realizasse, o noivo perderia o foro de fidalgo, honras, privilgios ecargos que detivesse (Cf. Joo de Figueira-Rgo, A honra alheia por um fio. Os estatutos de limpezade sangue nos espaos de expresso ibrica (scs. XVI-XVIII), Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian /Fundao para a Cincia e Tecnologia, 2011, pp. 452-453).19 Cf. Joaquim Romero Magalhes, op. cit., pp. 348-349.

  • 1585-1600

    xn84%

    3/4 xn4%1/2 xn9% parte xn3%

    1633-1650

    3/4 xn6%1/2 xn25%

    1/4 xn16%

    1/8 xn4%parte xn14% xn35%

    Grfs. 7-9: Qualidade de sangue dos processados.Na primeira vaga de prises, os cristos-novos inteiros constituram umaesmagadora maioria entre os processados, uma proporo que tendeu a diminuir nasentradas seguintes. Nos anos 30 e 40 de Seiscentos, a percentagem de cristos-novosdos quatro costados tornou-se minoritria entre os que ento foram presos pelaInquisio. Entre, pelo menos, 20% dos processados, a parte crist-velha era jdominante. Porm, por mais nfima que fosse a poro de sangue infecto, era osuficiente para justificar a suspeita e a excluso.Com a converso geral, a religio deixou de ser um elemento distintivo. Pelo menospublicamente, todos eram cristos. O sangue foi o critrio encontrado para justificar asegregao social de um grupo que conquistava um crescente poder e que concorriacom a maioria crist-velha no acesso aos lugares mais cimeiros da hierarquia social20. Aexigncia de limpeza de sangue tornou-se num elemento de controlo das aspiraessociais e polticas dos cristos-novos e, por outro lado, converteu-se num privilgio doscristos-velhos, numa forma de distino e de reconhecimento social da sua condio de

    20 Cf. Yosef Hayim Yerushalmi, Propos de Spinoza sur la survivance du peuple juif, Sefardica. Essaissur lhistoire des Juifs, des marranes & des nouveaux-chrtiens dorigine hispano-portugaise, Paris,ditions Chandeigne, 1998, pp. 195-196.

  • verdadeiros cristos, em oposio queles cujo sangue inclinava mesma conduta dosantepassados judeus21.A noo dessa diferena, materializada nos estatutos de limpeza de sangue, acabariapor ser interiorizada pelos prprios cristos-novos22. Havia quem manifestasse orgulhono sangue que os outros chamavam de infecto. Vejamos o caso de Jorge Lopes deCastro, beneficiado da igreja de S. Clemente, em Loul. Ele dizia-se cristo-novo e que[...] por qualquer gota de sangue outro que tivera, me fora enforcar [...]. Afinal, comoele prprio afirmava, era essa a melhor posta que tinha23. Jorge Lopes um exemplode como o cristo-novo, independentemente da sua maior ou menor integrao entre amaioria crist-velha, e neste caso especfico estamos perante um clrigo, no deixava deser o Outro. E esse era um estigma que tendia a aproximar quem o suportava desde obero, independentemente do quanto a herana dos antepassados judeus se encontravaviva no seu quotidiano ou nas suas crenas.5. A f

    Algo mudou nas prticas judaizantes confessadas pelos cristos-novos presosdurante as trs entradas da Inquisio no Algarve at meados do sculo XVII.Traduzamo-lo em nmeros.1558-1570

    28%

    19%26%

    9% 6% 2%2%7%1%

    Guardar os sbadosJejuns pequenosJejum quipurJejum Rainha EsterOutros jejunsPreceitos alimentaresOraes e livrosPscoa do Po zimoOutras prticas

    21 Cf. Juan Hernndez Franco, El pecado de los padres. Construccin de la identidad conversa en Castillaa partir de los discursos sobre limpieza de sangre, Hispania, vol. LXIV, n. 217, 2004, pp. 515-542.22 Cf. Jaime Contreras, Family and patronage. The judeo-converso minority in Spain, Culturalencounters. The impact of the Inquisition in Spain and the New World. Org. Mary Elizabeth Perry e AnneJ. Cruz, Los Angeles, University of California Press, 1991, pp. 131-133.23 Cf. ANTT, IE, liv. 212, fls. 435-436.

  • 1585-1600

    32%

    27%4%6%15% 2%

    7% 3%

    2%

    2%

    Guardar os sbadosJejuns pequenosJejum QuipurJejum Rainha EsterOutros jejunsPreceitos alimentaresOraes e livrosPai-Nosso a MoissRitos fnebres judaizantesOutras prticas1633-1650

    25%

    33%

    15%9% 2% 5%

    1% 1%5%1% 2% 1%

    Guardar os sbadosJejuns pequenosJejum do quipurJejum Rainha EsterOutros jejunsPreceitos alimentaresOraesPscoa do Po zimoPai-Nosso a MoissVarrer casa s avessasRitos FnebresOutras prticasGrfs. 10-12: Praticas judaizantes confessadas pelos rus.

    O descanso sabtico, acompanhado pelo cerimonial de sexta-feira noite (apreparao das refeies para sbado, a troca da roupa da cama, as torcidas novas e oazeite limpo nas candeias, deixadas acesas noite adentro) integram, constantemente, orol das prticas mais correntemente confessadas pelos rus. certo que muitosalegavam s guardar os sbados no corao e no na obra, temendo a devassa decriados, vizinhos e at dos prprios familiares.Com o avanar dos anos de represso inquisitorial, uma outra prtica torna-se cadavez mais presente nas confisses as restries dietticas, ou seja, a abstinncia doconsumo de carne de porco, coelho, lebre ou peixe sem escama, a limpeza da carne detodo o sangue e gordura e a sua confeco em azeite e cebola. Inversa a frequnciacom que os rus alegam a guarda dos jejuns judaicos. De facto, nos processosresultantes da primeira entrada da Inquisio no Algarve, o jejum que vinha pelo msde Setembro, isto , o Quipur, aparece regularmente mencionado. Contudo, aobservao deste jejum deparava-se com um obstculo. Embora fosse senso comum quecaa no ms de Setembro, poucos eram os que sabiam os dias exactos para a sua

  • celebrao. Por isso, o observante menos versado era obrigado a procurar essa datajunto de outrem. Por vezes, a busca dessa informao traa-o e conduzia denncia.Ora, a mesma situao tambm se aplicava relativamente ao jejum da Rainha Ester,embora neste caso, por influncia do Cristianismo envolvente e relativa coincidncia docalendrio, os cristos-novos tendessem a celebr-lo durante a Quaresma. O facto desteser, por norma, um perodo de abstinncia e jejum para os cristos facilitava a suaobservncia sem o levantamento de suspeitas24.Nos grficos acima, constatamos que, na vaga de prises em finais do sculo XVI,uma das prticas mais confessadas pelos rus foi a guarda dos chamados jejunspequenos (os thanis), celebrados s segundas e quintas-feiras. Apesar do seu papelmeramente secundrio no Judasmo normativo, em tempos de perseguio, estes jejunsseriam os mais simples de cumprir dada a sua periodicidade regular. Assim, a suaprtica chegou a tornar-se mais comum do que a dos jejuns considerados obrigatriospela Lei Velha25. Nas dcadas de 30 e 40 do sculo XVII, o jejum da Rainha Ester eos thanis ainda ocupavam um lugar relevante entre as prticas criptojudaicas maisconfessadas pelos rus algarvios, mas os testemunhos da observncia de jejuns doQuipur tinham-se tornado meramente residuais.Ainda mais raras foram as referncias celebrao da Pscoa do Po zimo, aqual, a confiar nos testemunhos dos rus, em meados do sculo XVI ainda eraparcialmente celebrada (sobretudo o consumo dos pes asmos) em vrios larescristos-novos no Algarve. Por outro lado, outros rituais surgiram, alguns sem paralelono Judasmo normativo, como o costume de varrer a casa s avessas ou a oferta daorao do Pai-Nosso a Moiss, ambos muito comuns nos processos resultantes daltima entrada da Inquisio no Algarve, mas quase sem expresso nas vagas anteriores.As fontes indiciam que o Pai-Nosso oferecido a Moiss (ou ao Santo Moiss,como tambm aparece na documentao) substituiu gradualmente a recitao de oraesjudaicas, como o Sema Israel, ainda conhecido por alguns dos processados em meadosdo sculo XVI. Afinal, a vigilncia inquisitorial obrigara os judaizantes dissimulaoe at apropriao de elementos do Cristianismo, de modo a afastar suspeitas. A orao

    24 Cf. Elias Lipiner, Santa Inquisio: terror e linguagem, Rio de Janeiro, Documentrio, 1977, p. 84.25 Cf. Idem, Os baptizados em p. Estudos acerca da origem e da luta dos Cristos-Novos em Portugal,Lisboa, Vega, 1998, p. 397.

  • do Pai-Nosso at se oferecia a tal apropriao, dada a sua origem e o facto de invocarsomente o Deus dos Cus26.A dualidade que caracterizava a vivncia religiosa do judaizante, determinada peladiviso entre as esferas pblica e privada cristos pblicos e judeus secretos acabaria, assim, por ultrapassar essas fronteiras. Na privacidade do seu lar, ondearriscava a observncia da f interdita, ele tambm j deixara entrar, a pouco e pouco, oCristianismo. E recitava o Pai-Nosso, desfiava o rosrio enquanto orava, jejuava naQuaresma em memria da Santa Rainha Ester.6. Identidade?O panorama que os processos inquisitoriais deixam transparecer o da construode uma religiosidade progressivamente hbrida. Se, por um lado, tal reflecte um esforogradual do judaizante em adaptar a vivncia religiosa represso, simplificando aritualidade e adoptando prticas identificveis com o cerimonial catlico, por outro,tambm indicia uma progressiva perda da memria do que era e de como se vivia oJudasmo professado pelos seus antepassados. Mas esta uma questo que deve seravaliada ainda por um outro prisma. Com o recrudescer da perseguio inquisitorial,depois de centenas de prises e interrogatrios, depois de tantos ditos e sermes deautos-de-f escutados, os cristos-novos j conheceriam bem quais os delitos que aInquisio indagava e, sobretudo, os que os inquisidores esperavam ouvir. Tal visvelno contedo das suas confisses, cada vez mais padronizado e cacofnico.Sobre o que residia na vontade ou no corao dos alegados judaizantes apenaspodemos tecer hipteses. Certa, porm, seria a diversidade de sentimentos e decomportamentos religiosos. Entre o Catolicismo mais ortodoxo e o Judasmo normativomultiplicavam-se as matizes, [...] um largo leque que se abre entre os dois plos dosjudaizantes fervorosos e dos cristos sinceros, passando por toda uma srie de casosintermdios e de combinaes sincrticas [...], nas palavras de Nathan Wachtel27.Porm, apenas o facto de algum ser cristo-novo, de transportar consigo a mcula dosangue hebreu, tornava-o imediatamente suspeito aos olhos da maioria crist-velha.Wachtel afirma que a construo de uma identidade criptojudaica assentaria, desta

    26 David Gitlitz sublinha que o Pai-Nosso constitui, em si, uma amlgama de certas oraes judaicas,facto que ter facilitado tal assimilao (Cf. David Gitlitz, Secrecy and Deceit. The Religion of theCrypto-Jews, Albuquerque, University of New Mexico Press, 2002, p. 468).27 Cf. Nathan Wachtel, A f da lembrana. Labirintos marranos, Lisboa, Caminho, 2003, p. 15.

  • forma, em dois pilares: a demarcao relativamente a uma maioria que a marginalizavae a aproximao entre quem sustentava na memria uma ancestralidade comum, a fda lembrana28.Essa aproximao no seria algo comum a todos. Vemo-lo no diverso tipo dereaces e de estratgias adoptadas perante a represso inquisitorial. Se, para alguns, fezemergir a conscincia de uma herana comum, para outros, motivou a tentativa deintegrao entre a maioria crist-velha, expressa no crescente nmero de unies mistas e deindivduos com apenas parte de cristos-novos, que viviam de lavrar a terra e no demercadejar de feira em feira ou de porto em porto, que pregavam nos plpitos das igrejas eque conseguiam penetrar em cargos teoricamente vedados pelos estatutos de limpeza desangue. Contudo, como vimos, quando surgia a denncia, era sempre o sangue hebreuque falava mais alto, independentemente do quanto j se encontrava mesclado com sanguelimpo. Afinal, essa era uma limpeza que s se completava ao fim de cinco geraes.Talvez a proximidade entre cristos-novos e mesmo a construo de uma identidadeprpria tenha expresso em aspectos como a concentrao da residncia em determinadosespaos urbanos ou a vocao comercial e mesteiral. Vimos como estes dois elementos seinter-relacionam a actividade scio-profissional seria um elemento determinante naescolha do espao de residncia. Mas os cristos-novos no detinham o monoplio dasactividades mercantil e transformadora, alm de que, por outro lado, no estavamcompletamente desvinculados da explorao dos frutos da terra. Quanto ao acesso adeterminados cargos administrativos e religiosos, mesmo quando os estatutos de limpeza desangue os vedavam gente de nao, na prtica, estes raramente eram impenetrveis. Oscristos-novos, sobretudo os detentores de maior influncia econmica e social, sabiam bemcomo explorar todas as brechas.Um outro elemento que poderia indiciar uma bipartio social entre cristos-novos ecristos-velhos seria a ausncia de casamentos mistos. Ora, vimos como tal no verdadeno Algarve, sobretudo quando avanamos pelo sculo XVII adentro e constatamos que amaior parte dos que foram presos na vaga dos anos 30 e 40 no eram cristos-novosinteiros. Alguns at viviam fora das cidades, outros tantos eram ou estavam casados comlavradores, muitos j no detinham uma memria slida dos rituais e crenas da Lei deMoiss. Os elementos que, no passado, distinguiam claramente o cristo-novo do cristo-velho comeavam a desvanecer-se.28 Cf. Idem, Ibidem, pp. 30-32.

  • No podemos, porm, generalizar. Toda a generalizao ilusria quando tentamosencontrar uma resposta para o problema da construo de uma identidade crist-nova, mastambm para uma outra questo: o papel da Inquisio na criao de (ou simples instigaoa) uma clivagem entre cristos-novos e cristos-velhos.A Inquisio ter contribudo para o agravamento das fracturas sociais. O semear dassuspeitas e a coaco denncia contribuiu para tal. Porm, essas fracturas no seregistavam apenas em relao maioria crist-velha, mas tambm dentro do prprio grupo.A primeira e a terceira vaga de prises no Algarve iniciaram-se com as confisses de duascrists-novas. A segunda entrada sucedeu a uma visita inquisitorial, na qual as testemunhasque se apresentaram perante o visitador para delatar culpas de judasmo no se resumiram(bem longe disso!) a cristos-velhos. Havia quem tentasse salvar a prpria pele, atrado pelamisericrdia prometida pelos ditos de f. Outros, porm, usaram a Inquisio para o seuprprio interesse, em prol de vindictas pessoais. Nas trs entradas, a multiplicao dasprises processou-se margem dos cristos-velhos. Em suma, para o cristo-novo, eramaior a ameaa que vinha de dentro do que a surgida de fora.Guiomar Lopes conhecia bem quem lhe abriu as portas do crcere inquisitorial: oirmo Pedro Lopes, quando tinha 11 anos de idade; a sobrinha Maria de Tovar, quasequatro dcadas depois. No segundo processo, examinada sobre o contedo da sua f,disse que se tinha apartado da f crist havia ento sete anos, ensinada pela sobrinhaJoana da Trindade, casada com um escudeiro cristo-velho. Passou a no crer que JesusCristo era o Messias, nem na Trindade ou nos sacramentos da Igreja, e fazia as obras decrist por amor da gente a ter em conta de crist, enfim, um discurso familiar paraqualquer indivduo que deite os olhos em meia dzia de processos inquisitoriais coevos.Uma chavo, mas um chavo eficaz, a confisso valeu a Guiomar a sada em auto-de-fmenos de um ano aps ter entrado nos crceres, reconciliada com a penitncia decrcere e hbito penitencial perptuos. Para uma reincidente no crime de judasmono era nada mau.Mas como se sentiria Guiomar no seu interior, para l do rosrio de culpas que sabiater de confessar para no morrer no mesmo fogo que dizimara o tio Gonalo? Judia?Crist? Usurpando o verso de Mrio de S Carneiro, podemos imaginar uma Guiomarque no seria o Eu o Eu cristo-novo, herdado dos pais, motivo para todas as suspeitas nem o Outro o Outro cristo-velho, o qual, pela educao e pelo casamento, lheserviu de lar desde a juventude at, possivelmente, ao final dos seus dias. Talvez fosse,to e s, qualquer coisa de intermdio.