iconografia e identidades: o discurso da imagem na ... · floresta. À direita, uma praia...

10
Iconografia e identidades: o discurso da imagem na construção do sujeito indígena. Raimundo de Araújo Tocantins 1 Resumo: Em diálogo com o conceito de Foucault (2008) de que tudo fala em uma cultura e considerando que além da materialidade verbal a outra maneira de investigar o discurso em relação aos indígenas está na materialidade visual das imagens. Esta trabalho tem como objetivo retomar o tema do olhar do não-indígena sobre os indígenas em um primeiro momento e em seguida, na atualidade, mostrar como os indígenas, ao apropriarem-se da tecnologia, constroem a partir dos enunciados imagéticos uma nova memória para suas identidades. Pois, considera esta linguagem também portadora de discursos. Na esteira da análise minuciosa de Thekla Hartmann (1975) sobre este assunto, somos conscientizados de que estas representações foram construídas sob situações como por exemplo, olhares estéticos de determinadas correntes artísticas. Neste sentido, a representação sobre os indígenas, revela-se como um documento visual que retrata temporalidades. Ao submetermos este material visual, à lupa teórica da intericonicidade de Jean-Jacques Courtine (2011), teoria analítica que se compromete com a análise das imagens a partir da sua relação com os discursos, também é possível compreender as relações destas imagens com as correntes estéticas, a partir da investigação dos traços semelhantes entre as produções iconográficas e obras deste período que se tornaram mundialmente famosas. Tomando como base estes pontos de vista, torna-se plausível visibilizar o discurso como prática que produz um sujeito indígena de acordo com a formação dos saberes. Homens e mulheres indígenas: discursivizações e mediações Desde a infância, a partir das mais variadas fontes de informação, que nos ajudam a construir memórias sobre o mundo ao nosso redor, há um discurso que se impõe em relação aos povos indígenas: um ser distante e quase encantado que vive na floresta, veste-se (ou na maioria das vezes não veste nada ou quase nada) de uma forma peculiar, pode ter o temperamento bom e prestativo como o índio Peri da obra “O Guarani”, ou a beleza despida de “Iracema” de José de Alencar, que deixa ver, banhada 1 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Letras (PPGL- UFPA - Estudos Línguísticos); Mestre em Comunicação, Linguagens e Cultura (UNAMA); graduado em Letras (UFPA); ( e-mail: [email protected]

Upload: lythuy

Post on 23-Nov-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Iconografia e identidades: o discurso da imagem na construção do sujeito indígena.

Raimundo de Araújo Tocantins1

Resumo: Em diálogo com o conceito de Foucault (2008) de que tudo fala em uma

cultura e considerando que além da materialidade verbal a outra maneira de investigar o

discurso em relação aos indígenas está na materialidade visual das imagens. Esta

trabalho tem como objetivo retomar o tema do olhar do não-indígena sobre os indígenas

em um primeiro momento e em seguida, na atualidade, mostrar como os indígenas, ao

apropriarem-se da tecnologia, constroem a partir dos enunciados imagéticos uma nova

memória para suas identidades. Pois, considera esta linguagem também portadora de

discursos. Na esteira da análise minuciosa de Thekla Hartmann (1975) sobre este

assunto, somos conscientizados de que estas representações foram construídas sob

situações como por exemplo, olhares estéticos de determinadas correntes artísticas.

Neste sentido, a representação sobre os indígenas, revela-se como um documento visual

que retrata temporalidades. Ao submetermos este material visual, à lupa teórica da

intericonicidade de Jean-Jacques Courtine (2011), teoria analítica que se compromete

com a análise das imagens a partir da sua relação com os discursos, também é possível

compreender as relações destas imagens com as correntes estéticas, a partir da

investigação dos traços semelhantes entre as produções iconográficas e obras deste

período que se tornaram mundialmente famosas. Tomando como base estes pontos de

vista, torna-se plausível visibilizar o discurso como prática que produz um sujeito

indígena de acordo com a formação dos saberes.

Homens e mulheres indígenas: discursivizações e mediações

Desde a infância, a partir das mais variadas fontes de informação, que nos

ajudam a construir memórias sobre o mundo ao nosso redor, há um discurso que se

impõe em relação aos povos indígenas: um ser distante e quase encantado que vive na

floresta, veste-se (ou na maioria das vezes não veste nada ou quase nada) de uma forma

peculiar, pode ter o temperamento bom e prestativo como o índio Peri da obra “O

Guarani”, ou a beleza despida de “Iracema” de José de Alencar, que deixa ver, banhada

1 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Letras (PPGL- UFPA - Estudos Línguísticos); Mestre em

Comunicação, Linguagens e Cultura (UNAMA); graduado em Letras (UFPA); ( e-mail: [email protected]

pelos raios de sol, a pele morena à beira mar, imortalizada na pintura homônima de José

Maria de Medeiros de 1884 (imagem 1).

Semiologia histórica, Intericonicidade: na compreensão dos discursos das imagens

Os discursos estão imbricados em práticas não-verbais, o verbo não pode mais ser

dissociado do corpo e do gesto, a expressão pela linguagem conjuga-se com aquela do

rosto, de modo que não podemos mais separar linguagem e imagem.

Jean Jacques Courtine

O conceito de enunciado, na análise arqueológica de Foucault, não é

exclusivamente linguístico, ele assume nas palavras de Gregolin (2011), uma natureza

semiológica. É relativamente fácil citar enunciados que não correspondem à estrutura

linguística das frases. [...] um quadro classificatório de espécies botânicas é constituído

de enunciados, não de frases (Genera Plantarum de Lineu é um livro inteiramente

constituído de enunciados, em que não podemos reconhecer mais que um número

restrito de frases); uma árvore genealógica, um livro de contábil, as estimativas de um

balanço comercial, são enunciados: onde estão as frases? [...]. Não parece possível,

Imagem 1

assim, definir um enunciado pelos caracteres gramaticais da frase. (FOUCAULT, 2005,

p. 92-93)

A semiologia histórica proposta por Jean-Jacques Courtine pode contribuir na

compreensão das materialidades que se oferecem como corpus de análise deste trabalho,

na medida em que se encontra no exato ponto de encontro entre semiologia e história,

que irá nos auxiliar a articular a questão do sujeito com os elementos sócio-históricos,

sobretudo quando se trata de focalizar os sinais do corpo.

Para avançar nas análises das imagens, Courtine (2011) propõe uma categoria

de análise referente à relação entre imagem e discurso, que ele define como

intericonicidade. Nas palavras do autor,

A intericonicidade supõe, portanto, dar um tratamento discursivo às imagens,

supõe considerar as relações entre imagens que produzem os sentidos: imagens

exteriores ao sujeito, como quando uma imagem pode ser inscrita em uma série de

imagens, uma arqueologia, de modo semelhante ao enunciado em uma rede de

formulação, em Foucault; mas também imagens internas, que supõem a consideração de

todo conjunto da memória da imagem no indivíduo e talvez também os sonhos, as

imagens vistas, esquecidas, ressurgidas ou fantasiadas que frequentam o imaginário.

(COURTINE, 2011, p.160)

Thekla Hartmann (1975) argumenta sobre a produção de imagens indígenas, de

que estas representações foram construídas sob situações como: olhares estéticos de

determinadas correntes artísticas, alterações nos desenhos originais feitas “in loco”, uso

em algumas dessas imagens de um único “manequim” como modelo de corpo, nos

levam a conclusão de que estes fatores interferem no seu fator documental e histórico.

Entre imagens e olhares estéticos: o discurso da arte na produção de uma

identidade indígena

Em meados do século XVI, este trabalho atribuído a Hans Staden, apresenta

aos olhos, uma espécie de banquete antropofágico (imagem 2). O desenho do viajante

alemão apresentou à Europa índios nus comendo pedaços de corpos humanos, como

isso fosse algo corriqueiro do cotidiano dos Tupinambá. O ritual de antropofagia dos

índios Tupinambá consistia na captura de outros indígenas, que eram aprisionados e

devorados por eles. Porém, este ritual era realizado com seus prisioneiros de guerra

considerados heróis. Em outras palavras, havia uma ordem para esta prática, ao

contrário da desordem e do caos que o olhar europeu instituiu ao leitor desta imagem

como representação do selvagem e do não civilizado.

A memória da imagens, a intericonicidade, nos revela a partir da leitura de seus

traços e vestígios quais modelos de corpos foram utilizados para retratar os indígenas

brasileiros: vemos no plano central superior, na imagem à esquerda, a representação de

um homem de braços, tórax e abdômen de músculos salientes. Além disso, seu rosto

possui uma longa barba. Apesar desta figura central se diferenciar das outras

representações do sexo masculino desta imagem, também é possível perceber que os

corpos no trabalho de Staden obedecem a uma ordem que nos remete às divindades

gregas.

Iracema (Imagem 1) é explicitamente de vertente romântica, a começar pelo

tema. A heroína do romance de José de Alencar encontra-se em pé, do lado esquerdo da

composição, ao lado da flecha fincada na areia, transpassando um guaiamum e um ramo

de maracujá, que divide a tela em duas. À esquerda, uma praia próxima, com bordas de

floresta. À direita, uma praia longínqua, o mar e a linha do horizonte. O desenho e a

composição são mais bem acabados aqui. As cores são mais claras e exuberantes, para

corresponder à nossa natureza e às paixões românticas que o tema exige.

Imagem 2

Imagem 3

Neste trabalho do pintor francês Auguste Raynaud (1854) (imagem 4), é

possível perceber aproximações e distanciamentos entre a Iracema de Medeiros e O

Índio de Raynaud. No centro da tela observamos um “índio” de pele branca e contornos

faciais tipicamente europeus. Além disso, a presença de uma natureza noturna, um raio

de luar prateado sobre a superfície calma do que parece ser um rio, do lado direito da

imagem, denotam a presença da estética romântica nesta obra.

É possível a partir da articulação entre a intericonicidade e seu tratamento

discursivo às imagens, e as observações de Thekla Hartmann sobre os olhares estéticos

de determinadas correntes artísticas, considerarmos que a produção de sentidos sobre os

indígenas brasileiros de acordo com a pintura de estética romântica do século XIX, os

apresenta como seres sensuais, portadores de uma beleza idealizada e inseridos em uma

paisagem calma e receptiva.

Imagem 4

Espaços digitais e enunciados imagéticos

As tecnologias da informação sofreram rápidas e profundas transformações. A

evolução do rádio, do telégrafo, da fotografia, dos impressos, do cinema, da televisão e

mais recentemente da informática produziram uma revolução nos processos de

comunicação. E dentro desta conjuntura, é necessário estabelecer uma diferença entre

tecnologias de distribuição e meios de comunicação. Para Henry Jenkins (2009, p. 41):

Para uma definição de meios de comunicação, recorramos à

historiadora Lisa Gitelman, que oferece um modelo de mídia que

trabalha em dois níveis: no primeiro, um meio é uma tecnologia que

permite a comunicação; no segundo, um meio é um conjunto de

“protocolos” associados ou práticas sociais e culturais que cresceram

em torno dessa tecnologia. Sistema de distribuição são apenas e

simplesmente tecnologias; meios de comunicação são também

sistemas culturais. Tecnologias de distribuição vêm e vão o tempo

todo, mas os meios de comunicação persistem como camadas dentro

de um estrato de entretenimento e informação cada vez mais

complicado.

Diante desta realidade, é preciso considerar as condições de acesso dos

indígenas brasileiros à internet. Segundo Neves e Monarcha (2013):

A presença de indígenas brasileiros na rede mundial de computadores

é bastante heterogênea e acontece por razões bem diversas, que

independem de iniciativas governamentais. Durante as pesquisas,

encontramos apenas uma sociedade indígena com ponto de internet

nas casas da aldeia, com acesso 24h, os Suruí- Paiter. Poucas

sociedades contam com ponto de internet na escola e para a grande

maioria, a inclusão digital é uma realidade muito distante.

Os discursos produzidos por novas vozes autorizadas que circulam nos novos

suportes midiáticos, em diálogo com a cultura da convergência, confrontam-se com os

antigos discursos construídos pela grande mídia brasileira. Velhas e novas mídias

colidem, mídia corporativa e mídia alternativa se cruzam (JENKINS, 2009).

Na imagem seguinte, imagem 5, os indígenas inseridos no ativismo, em espaço

urbano, é possível perceber o Facebook como novo espaço de mídia, tornando possível

a construção de enunciados visuais pelos próprios indígenas. Para este confronto entre

mídias e discursos, Jenkins (2009) nos diz:

Nesses novos espaços, o poder do produtor de mídia e o poder do consumidor

interagem de maneira errática (JENKINS, 2009). Dessa forma, abre-se espaço para a

constituição de novas redes de memória que produzirão novos efeitos de verdade sobre

as identidades.

Outro ponto relevante para a discussão das identidades indígenas inseridas na

cultura da convergência é a reflexão sobre a relação, muitas vezes conflituosa, entre

mídia e tradição. Contudo, esta reflexão não pretende conduzir a discussão na direção

de conceber estas mídias como portadoras de um poder devastador das tradições

culturais, nem tampouco, vê-las como salvadoras ou verdadeiras heroínas no convívio

das culturas que a acolheram. A argumentação gira em torno de como os indígenas

fazem uso das novas mídias com o objetivo de colocar em circulação suas tradições.

Considerações finais

Nesta reflexão em que retomo as imagens que “retratam” os indígenas

brasileiros em diferentes momentos da nossa história, tento tornar visível que estas

representações artísticas não constituem uma verdade absoluta sobre suas identidades.

Imagem 5

Fonte:

http://www.facebook.com/photo.php?fbid=451790371524415&set=a.323086754394778.66939.283843084985812&type=3&

theater

O material visual produzido sobre as identidades indígenas apresentado neste

trabalho representa apenas uma ínfima parte das representações realizadas sobre os

indígenas brasileiros. Contudo, é possível notar nesta breve reflexão, que quando

comparamos os enunciados visuais construídos por outros enunciadores e os

comparamos com os construídos pelos próprios indígenas, percebemos diferenças nas

diferentes temporalidades que atravessam essas imagens e também nos corpos que

constituem estas imagens.

Ao analisarmos as relações com estilos de época, personagens que constituem a

memória de outros povos e representações de corpos que não se relacionam exatamente

com os corpos de indígenas brasileiros, compreendermos que para compreender os

enunciados visuais é preciso observar seus enunciadores e suas condições históricas de

aparecimento.

REFERÊNCIAS

COURTINE, J-J. Discurso e imagens: para uma arqueologia do imaginário. In:

PIOVEZANI, C; CURCINO, L; SARGENTINI, V. Discurso, semiologia e história.

São Carlos: Claraluz, 2011.

FOUCAULT, M. A arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,

2005.

GREGOLIN, M. R. Análise do discurso e semiologia: enfrentando discursividades

contemporâneas. In PIOVEZANI, C; CURCINO, L; SARGENTINI, V. Discurso,

semiologia e história. São Carlos: Claraluz, 2011.

HARTMANN, T. A Contribuição da Iconografia para o Conhecimento dos Índios

Brasileiros do Século XIX. Coleção Museu Paulista, Série Etnologia, v1, São Paulo,

USP, (1975).

JENKINS, H. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009.

MONARCHA, H. Redes Sociais e Sociedades Indígenas: entre dígitos e jenipapo.

Dissertação de Mestrado. Belém: Universidade da Amazônia, 2012.

TOCANTINS, R. Mulheres Indígenas no Facebook: Corpos, identidades e

intericonicidade. Dissertação de Mestrado. Belém: Universidade da Amazônia, 2012.