i. de stanley a lumumba, do rei leopoldo ii a mobutu: o ... · existência. vemos que, para lá das...

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Segundo maior rio do mundo pelo volume de água que lança para o oceano, o rio Congo dita a sua lei ao país. A 150 km do mar, o rio enfurece-se e obriga a contorná-lo por terra. Subir o rio, é penetrar na história. Da foz à nascente, lendas e história não têm fim: epopeias cosmológicas, colonização, assassínios e ditaduras, guerras fratricidas… As margens do rio mostram bem essas marcas, e a verdura e as paisagens majestosas não conseguem esconder o sofrimento das povoações ribeirinhas e a sua luta contra a morte. Há palácios à beira-rio. O falecido Marechal Mobutu era um construtor de palácios, mas destruiu o país, e os palácios estão em ruínas. Seguem-se 1700 Km de via navegável. Quatro barcaças, um rebocador, um piloto e umas centenas de passageiros acomodados de qualquer maneira. A vida instala--se a bordo como se fosse na aldeia. O sol abrasador, as fortes chuvadas, o tempo que se molda ao ritmo do rio. I. De Stanley a Lumumba, do rei Leopoldo II a Mobutu: o destino de um país i

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Segundo maior rio do mundo pelo volume de água que lança para o oceano, o rio Congo dita a sua lei ao país. A 150 km do mar, o rio enfurece-se e obriga a contorná-lo por terra.Subir o rio, é penetrar na história. Da foz à nascente, lendas e história não têm fim: epopeias cosmológicas, colonização, assassínios e ditaduras, guerras fratricidas… As margens do rio mostram bem essas marcas, e a verdura e as paisagens majestosas não conseguem esconder o sofrimento das povoações ribeirinhas e a sua luta contra a morte. Há palácios à beira-rio. O falecido Marechal Mobutu era um construtor de palácios, mas destruiu o país, e os palácios estão em ruínas.Seguem-se 1700 Km de via navegável. Quatro barcaças, um rebocador, um piloto e umas centenas de passageiros acomodados de qualquer maneira. A vida instala--se a bordo como se fosse na aldeia. O sol abrasador, as fortes chuvadas, o tempo que se molda ao ritmo do rio.

I.De Stanley a Lumumba, do rei Leopoldo II a Mobutu: o destino de um país

i

Os comerciantes e os barqueiros não param o seu vaivém constante entre a margem e o barco, durante toda a viagem.Mas a guerra, tão longe e tão próxima, recorda-nos que o rio arrastava cadáveres sem cabeça. Os Maï-Maï, guerreiros invencíveis, herdeiros dos simbas, lumumbistas fiéis, estão sempre prontos para novas guerras na floresta. A água sagrada, as ervas, os feitiços e as danças protegem-nos das balas do inimigo.Mais adiante, um dispensário, algumas camas, uma freira enfermeira reconforta mulheres, adolescentes e rapariguinhas violadas pela soldadesca oficial ou pelos Maï-Maï.O rio retoma a palavra, é testemunha da esperança e da dignidade das vendedeiras, dos marinheiros, dos barqueiros, dos pescadores, dos médicos, dos missionários, todos decididos a darem, custe o que custar, um sentido à vida, quer nas situações mais banais quer nas grandes privações.Pouco a pouco, o rio recupera a memória e volta a falar: e isso é para todos nós, ribeirinhos daqui ou de outras margens, um verdadeiro rito de iniciação nos mistérios da floresta equatorial e do rio Congo.

Esta viagem ao coração de África é um hino à vida, à semelhança da vegetação indomável que comprime o rio Congo. Nas margens, vão-se desenrolando cenas de alegria e de tristeza dum povo, festas e cerimónias que lhe ritmam a existência. Vemos que, para lá das trevas e da história trágica e violenta deste continente, também há felicidade e esperança, nos rituais, nos cânticos, nas danças.Com este filme percorremos, da foz à nascente, a maior bacia fluvial do mundo, a do rio Congo. Ao longo dos seus 4371 km, descobrimos os lugares que testemunham a história tumultuosa deste país, enquanto imagens de arquivo nos recordam as personagens míticas que moldaram o destino do coração da África: os exploradores Livingstone e Stanley, os reis colonizadores Leopoldo II e Balduíno I, os dirigentes africanos Lumumba e Mobutu.Mas esta viagem é também um percurso pessoal, opercurso de um cineasta que já consagrou três filmes a este país, que

II.Rio CongoPara lá das trevasum filme de Thierry Michel

“Sou agora habitado por uma enorme chaga...Que buscava eu naquele país?”Viagem ao Congo, André Gide

iii ii

Os comerciantes e os barqueiros não param o seu vaivém constante entre a margem e o barco, durante toda a viagem.Mas a guerra, tão longe e tão próxima, recorda-nos que o rio arrastava cadáveres sem cabeça. Os Maï-Maï, guerreiros invencíveis, herdeiros dos simbas, lumumbistas fiéis, estão sempre prontos para novas guerras na floresta. A água sagrada, as ervas, os feitiços e as danças protegem-nos das balas do inimigo.Mais adiante, um dispensário, algumas camas, uma freira enfermeira reconforta mulheres, adolescentes e rapariguinhas violadas pela soldadesca oficial ou pelos Maï-Maï.O rio retoma a palavra, é testemunha da esperança e da dignidade das vendedeiras, dos marinheiros, dos barqueiros, dos pescadores, dos médicos, dos missionários, todos decididos a darem, custe o que custar, um sentido à vida, quer nas situações mais banais quer nas grandes privações.Pouco a pouco, o rio recupera a memória e volta a falar: e isso é para todos nós, ribeirinhos daqui ou de outras margens, um verdadeiro rito de iniciação nos mistérios da floresta equatorial e do rio Congo.

Esta viagem ao coração de África é um hino à vida, à semelhança da vegetação indomável que comprime o rio Congo. Nas margens, vão-se desenrolando cenas de alegria e de tristeza dum povo, festas e cerimónias que lhe ritmam a existência. Vemos que, para lá das trevas e da história trágica e violenta deste continente, também há felicidade e esperança, nos rituais, nos cânticos, nas danças.Com este filme percorremos, da foz à nascente, a maior bacia fluvial do mundo, a do rio Congo. Ao longo dos seus 4371 km, descobrimos os lugares que testemunham a história tumultuosa deste país, enquanto imagens de arquivo nos recordam as personagens míticas que moldaram o destino do coração da África: os exploradores Livingstone e Stanley, os reis colonizadores Leopoldo II e Balduíno I, os dirigentes africanos Lumumba e Mobutu.Mas esta viagem é também um percurso pessoal, opercurso de um cineasta que já consagrou três filmes a este país, que

II.Rio CongoPara lá das trevasum filme de Thierry Michel

“Sou agora habitado por uma enorme chaga...Que buscava eu naquele país?”Viagem ao Congo, André Gide

iii ii

mostra a arrogância do poder e a revolta de um povo em Zaire, O Ciclo da Serpente, o espírito predador em Os Últimos Colonos e a vaidade trágica dum déspota shakespeariano em Mobutu, rei do Zaire. Com Rio Congo, Thierry Michel continua essa procura de luz e de trevas, levado por um desejo, o de penetrar ainda mais no mistério e nas profundezas deste país e da sua floresta equatorial, no tempo e na história deste rio majestoso que prossegue inexoravelmente o seu caminho há séculos e nos séculos futuros.

Ficha técnica

Longa-metragem

Duração: 116 minutos; 35mm; HD (alta definição)

Versões: francesa e inglesa

Série televisiva

Número de episódios: 3; Duração: 1 hora

Versões: francesa, inglesa, internacional

Equipa técnica:

Realizador: Thierry Michel

Director de fotografia: Michel Techy

Engenheiro de som: Lieven Callens

Montagem: Marie Quinton

Música: Lokua Kanza

Narração: Lye Mudaba Yoka, Thierry Michel, Olivier Cheysson

Produtores-delegados: Christine Pireaux – Serge Lalou

Coprodução: Les Films de la Passerelle - Les Films d'Ici - Centro do Cinema e do Audiovisual da

Comunidade Francesa da Bélgica e dos Tele-Distribuidores da Valónia - RTBF televisão belga -

VRT Canvas - V.A.F.- YLE - T.S.R. - VPRO - DGCD - Wallimage – EVS -XDC

Apoio da Loterie Nationale

Developed with the support of MEDIA

Colaboração e participação: Eurimages - Canal + - Promimage - DDC

Thierry Michel

Patrocínios: Région wallonne; Tax-shelter do governo federal belga; Studio l' Equipe.

Das minas de carvão às prisões, do Brasil e do Magreb à África negra, Thierry Michel denuncia os dramas e as revoltas do mundo, fundindo, por vezes, ficção e realidade.

Nascido a 13 de Outubro de 1952, em Charleroi, na Bélgica, numa região industrial, a que chamam "Le Pays Noir", Thierry Michel ingressa, aos 16 anos, no Instituto das Artes de Difusão de Bruxelas.

Em 1976, entra para a televisão belga para a qual realiza inúmeras reportagens pelo mundo fora. Passa, em seguida, para o cinema, alternando duas longas-metragens de ficção com múltiplos documentários internacionalmente reconhecidos, premiados e divulgados. Entre eles, contam-se "Gosses de Rio", "Zaïre, le cycle du serpent", "Donka, radioscopie d'un hôpital africain", "Mobutu, roi du Zaïre" e v iv

mostra a arrogância do poder e a revolta de um povo em Zaire, O Ciclo da Serpente, o espírito predador em Os Últimos Colonos e a vaidade trágica dum déspota shakespeariano em Mobutu, rei do Zaire. Com Rio Congo, Thierry Michel continua essa procura de luz e de trevas, levado por um desejo, o de penetrar ainda mais no mistério e nas profundezas deste país e da sua floresta equatorial, no tempo e na história deste rio majestoso que prossegue inexoravelmente o seu caminho há séculos e nos séculos futuros.

Ficha técnica

Longa-metragem

Duração: 116 minutos; 35mm; HD (alta definição)

Versões: francesa e inglesa

Série televisiva

Número de episódios: 3; Duração: 1 hora

Versões: francesa, inglesa, internacional

Equipa técnica:

Realizador: Thierry Michel

Director de fotografia: Michel Techy

Engenheiro de som: Lieven Callens

Montagem: Marie Quinton

Música: Lokua Kanza

Narração: Lye Mudaba Yoka, Thierry Michel, Olivier Cheysson

Produtores-delegados: Christine Pireaux – Serge Lalou

Coprodução: Les Films de la Passerelle - Les Films d'Ici - Centro do Cinema e do Audiovisual da

Comunidade Francesa da Bélgica e dos Tele-Distribuidores da Valónia - RTBF televisão belga -

VRT Canvas - V.A.F.- YLE - T.S.R. - VPRO - DGCD - Wallimage – EVS -XDC

Apoio da Loterie Nationale

Developed with the support of MEDIA

Colaboração e participação: Eurimages - Canal + - Promimage - DDC

Thierry Michel

Patrocínios: Région wallonne; Tax-shelter do governo federal belga; Studio l' Equipe.

Das minas de carvão às prisões, do Brasil e do Magreb à África negra, Thierry Michel denuncia os dramas e as revoltas do mundo, fundindo, por vezes, ficção e realidade.

Nascido a 13 de Outubro de 1952, em Charleroi, na Bélgica, numa região industrial, a que chamam "Le Pays Noir", Thierry Michel ingressa, aos 16 anos, no Instituto das Artes de Difusão de Bruxelas.

Em 1976, entra para a televisão belga para a qual realiza inúmeras reportagens pelo mundo fora. Passa, em seguida, para o cinema, alternando duas longas-metragens de ficção com múltiplos documentários internacionalmente reconhecidos, premiados e divulgados. Entre eles, contam-se "Gosses de Rio", "Zaïre, le cycle du serpent", "Donka, radioscopie d'un hôpital africain", "Mobutu, roi du Zaïre" e v iv

"Iran sous le voile des apparences".FilmografiaFerme du fir (1972), curta-metragem (documentário)Portrait d'un autoportrait (1973), longa-metragem (documentário)Pays noir, pays rouge (1975), média-metragem (documentário)Chronique des saisons d'acier (1980), longa-metragem (documentário)Hiver 60 (1982), longa-metragem (ficção)Hôtel particulier (1985), longa-metragem (documentário)Issue de secours (1987), longa-metragem (ficção)Gosses de Rio (1990), média-metragem (documentário)A fleur de terre (1990), média-metragem (documentário)Zaïre, le cycle du serpent (1992), longa-metragem (documentário)La grâce perdue d'Alain van der Biest (1993), longa-metragem (documentário)Somalie, l'humanitaire s'en va-t-en guerre (1994) longa-metragem (documentário)Les derniers colons (1995), média-metragem (documentário)Nostalgies post coloniales (1995), média-metragem (documentário)Donka, radioscopie d'un hôpital africain (1997), longa-metragem (documentário)Mobutu, roi du Zaïre (2000), longa-metragem (documentário)Iran sous le voile des apparences (2002), longa-metragem (documentário)

Parte 1.Um olhar europeu, um olhar sobre o Congo, sobre África

vi

Contactos: Les Films de la Passerelle 62 rue de Renory 4031 Liège – Belgique Tel +32 43 42 36 02 Fax +32 43 43 07 20 E-mail: [email protected] URL: www.passerelle.be

"Iran sous le voile des apparences".FilmografiaFerme du fir (1972), curta-metragem (documentário)Portrait d'un autoportrait (1973), longa-metragem (documentário)Pays noir, pays rouge (1975), média-metragem (documentário)Chronique des saisons d'acier (1980), longa-metragem (documentário)Hiver 60 (1982), longa-metragem (ficção)Hôtel particulier (1985), longa-metragem (documentário)Issue de secours (1987), longa-metragem (ficção)Gosses de Rio (1990), média-metragem (documentário)A fleur de terre (1990), média-metragem (documentário)Zaïre, le cycle du serpent (1992), longa-metragem (documentário)La grâce perdue d'Alain van der Biest (1993), longa-metragem (documentário)Somalie, l'humanitaire s'en va-t-en guerre (1994) longa-metragem (documentário)Les derniers colons (1995), média-metragem (documentário)Nostalgies post coloniales (1995), média-metragem (documentário)Donka, radioscopie d'un hôpital africain (1997), longa-metragem (documentário)Mobutu, roi du Zaïre (2000), longa-metragem (documentário)Iran sous le voile des apparences (2002), longa-metragem (documentário)

Parte 1.Um olhar europeu, um olhar sobre o Congo, sobre África

vi

Contactos: Les Films de la Passerelle 62 rue de Renory 4031 Liège – Belgique Tel +32 43 42 36 02 Fax +32 43 43 07 20 E-mail: [email protected] URL: www.passerelle.be

1. Rio Congo, para lá das trevas, um filme de Thierry Michel

"Sou agora habitado por uma enorme chaga...

Que buscava eu naquele país?"

Viagem ao Congo, André Gide

Sinopse

Na linha dos grandes exploradores, o filme Rio Congo faz-nos subir, da foz à nascente, uma das maiores bacias fluviais do mundo, a do rio Congo. Ao longo de todos os seus 4371 km, percorremos os lugares que testemunham a história tumultuosa do país, encontramos os fantasmas daqueles que deram forma ao seu destino: Stanley, o explorador, Leopoldo II, o colonizador, Mobutu, o déspota... Encontramos também todo um povo, barqueiros, pescadores, comerciantes e viajantes, militares e rebeldes, mulheres, crianças, à procura de luz e de dignidade. Para lá das trevas das guerras e das tragédias, esta viagem ao coração da África é um hino à vida, como igualmente o é a vegetação indomável nas margens do rio.

Texto do realizador

Procuro, já desde há algum tempo, abordar África na sua intemporalidade e na sua universalidade, falar deste continente simultaneamente no passado, no presente e no futuro, filmar estas paisagens e estes homens, no mais profundo da sua cultura e da sua tradição. Desejo captar e transmitir o que faz a sua felicidade, mas também o trágico deste continente, exprimir o que esta região do mundo pode transmitir às outras culturas e às outras civilizações como valores fundadores, em termos de troca e de diálogo, nesta relação de dar e de receber que é a base de qualquer relação humana.

E mesmo que África tenha acumulado um atraso tecnológico considerável na corrida pelo desenvolvimento e pelos lucros, dominada pelas oligarquias financeiras, em termos de cultura, modo de vida, celebração da vida e respeito pela morte, África tem ainda muitas coisas para nos oferecer. E se Stanley, explorador mercenário ao serviço das potências reais e imperiais da época colonial, se meteu no meio deste continente para impor o punho de ferro do jugo colonial, outros, como Livingstone, foram sugados por este continente numa procura pessoal e existencial, numa embriaguez mística que o conduziu à morte. 3 2

É sobre os vestígios de uns e de outros que parti para o grande rio, para melhor compreender este continente negro, hoje esquecido das grandes correntes mediáticas e, mais frequentemente, reduzido a imagens exóticas da fauna, da flora, ou ainda, a outro tipo de imagens, as dos massacres, das rebeliões e de guerras inter-étnicas, que fazem, por vezes, os grandes títulos dos telejornais, ainda que "...depois do 11 de Setembro, importe que a ordem reine nos subúrbios do mundo, e as potências — os Estados Unidos, a França, a Grã-Bretanha — façam por isso." Mas se os papéis foram redistribuídos, se novos actores apareceram, as ambições persistem e os interesses das populações continuam a passar para segundo plano. O destino desta região tão cobiçada é um exemplo marcante de uma realidade doravante planetária.

Neste caminho, nesta descoberta progressiva, tentei ver, ouvir, comover-me e reflectir, nos dois sentidos, filosófico e óptico, deste termo. Subindo em direcção à nascente do rio e às origens deste país-continente, conto arrastar comigo o espectador para este caminho iniciático que, bem para além da realidade contemporânea da África e da história deste país, nos permitirá integrar no nosso imaginário esta parte da história dos homens, da história do mundo.

Assim, numa década, após ter filmado Zaire, o Ciclo da Serpente, que é um momento da história do Zaire preso nas redes da ditadura e do partido único, depois de ter realizado Mobutu, Rei do Zaire, que é o retrato de um homem que se crê semi-Deus e que confundiu o seu país com a sua pessoa, hoje, com este novo filme, subi ainda um pouco mais nas profundezas deste país, na sua floresta equatorial, e no tempo da história de um rio milenar.

Hoje, um frágil acordo de paz permitiu a reunificação do Congo e a abertura das vias de comunicação, entre as quais a principal, o rio, a única via de acesso às múltiplas regiões e o verdadeiro pulmão através do qual a vida económica, política e cultural vai poder ser retomada. É este momento charneira, este período de esperança para todos os congoleses que desejo filmar durante os próximos meses.

No interior deste país, as estradas construídas na época colonial desde há muito tempo que foram reabsorvidas pela floresta. Somente subsistem estas redes de rios e de afluentes, com ramificações quase que infinitas e que nenhum homem pode destruir. Os africanos utilizam estes rios desde há milhares de anos, as gerações sucederam-se nas suas margens, aí houve culturas que nasceram e desapareceram há algumas centenas de anos, deixando as regiões completamente invadidas pela floresta selvagem.

1. Rio Congo, para lá das trevas, um filme de Thierry Michel

"Sou agora habitado por uma enorme chaga...

Que buscava eu naquele país?"

Viagem ao Congo, André Gide

Sinopse

Na linha dos grandes exploradores, o filme Rio Congo faz-nos subir, da foz à nascente, uma das maiores bacias fluviais do mundo, a do rio Congo. Ao longo de todos os seus 4371 km, percorremos os lugares que testemunham a história tumultuosa do país, encontramos os fantasmas daqueles que deram forma ao seu destino: Stanley, o explorador, Leopoldo II, o colonizador, Mobutu, o déspota... Encontramos também todo um povo, barqueiros, pescadores, comerciantes e viajantes, militares e rebeldes, mulheres, crianças, à procura de luz e de dignidade. Para lá das trevas das guerras e das tragédias, esta viagem ao coração da África é um hino à vida, como igualmente o é a vegetação indomável nas margens do rio.

Texto do realizador

Procuro, já desde há algum tempo, abordar África na sua intemporalidade e na sua universalidade, falar deste continente simultaneamente no passado, no presente e no futuro, filmar estas paisagens e estes homens, no mais profundo da sua cultura e da sua tradição. Desejo captar e transmitir o que faz a sua felicidade, mas também o trágico deste continente, exprimir o que esta região do mundo pode transmitir às outras culturas e às outras civilizações como valores fundadores, em termos de troca e de diálogo, nesta relação de dar e de receber que é a base de qualquer relação humana.

E mesmo que África tenha acumulado um atraso tecnológico considerável na corrida pelo desenvolvimento e pelos lucros, dominada pelas oligarquias financeiras, em termos de cultura, modo de vida, celebração da vida e respeito pela morte, África tem ainda muitas coisas para nos oferecer. E se Stanley, explorador mercenário ao serviço das potências reais e imperiais da época colonial, se meteu no meio deste continente para impor o punho de ferro do jugo colonial, outros, como Livingstone, foram sugados por este continente numa procura pessoal e existencial, numa embriaguez mística que o conduziu à morte. 3 2

É sobre os vestígios de uns e de outros que parti para o grande rio, para melhor compreender este continente negro, hoje esquecido das grandes correntes mediáticas e, mais frequentemente, reduzido a imagens exóticas da fauna, da flora, ou ainda, a outro tipo de imagens, as dos massacres, das rebeliões e de guerras inter-étnicas, que fazem, por vezes, os grandes títulos dos telejornais, ainda que "...depois do 11 de Setembro, importe que a ordem reine nos subúrbios do mundo, e as potências — os Estados Unidos, a França, a Grã-Bretanha — façam por isso." Mas se os papéis foram redistribuídos, se novos actores apareceram, as ambições persistem e os interesses das populações continuam a passar para segundo plano. O destino desta região tão cobiçada é um exemplo marcante de uma realidade doravante planetária.

Neste caminho, nesta descoberta progressiva, tentei ver, ouvir, comover-me e reflectir, nos dois sentidos, filosófico e óptico, deste termo. Subindo em direcção à nascente do rio e às origens deste país-continente, conto arrastar comigo o espectador para este caminho iniciático que, bem para além da realidade contemporânea da África e da história deste país, nos permitirá integrar no nosso imaginário esta parte da história dos homens, da história do mundo.

Assim, numa década, após ter filmado Zaire, o Ciclo da Serpente, que é um momento da história do Zaire preso nas redes da ditadura e do partido único, depois de ter realizado Mobutu, Rei do Zaire, que é o retrato de um homem que se crê semi-Deus e que confundiu o seu país com a sua pessoa, hoje, com este novo filme, subi ainda um pouco mais nas profundezas deste país, na sua floresta equatorial, e no tempo da história de um rio milenar.

Hoje, um frágil acordo de paz permitiu a reunificação do Congo e a abertura das vias de comunicação, entre as quais a principal, o rio, a única via de acesso às múltiplas regiões e o verdadeiro pulmão através do qual a vida económica, política e cultural vai poder ser retomada. É este momento charneira, este período de esperança para todos os congoleses que desejo filmar durante os próximos meses.

No interior deste país, as estradas construídas na época colonial desde há muito tempo que foram reabsorvidas pela floresta. Somente subsistem estas redes de rios e de afluentes, com ramificações quase que infinitas e que nenhum homem pode destruir. Os africanos utilizam estes rios desde há milhares de anos, as gerações sucederam-se nas suas margens, aí houve culturas que nasceram e desapareceram há algumas centenas de anos, deixando as regiões completamente invadidas pela floresta selvagem.

Só o rio nos pode tirar deste mundo de obscuridade e de estagnação. Só o rio nos pode projectar para a luz, para o espaço, sempre mais distante, para o mar. Só o rio nos pode trazer esta paz dos corpos e dos espíritos, só o rio nos pode fazer sair deste inferno, deste caos. Só o rio nos dá um ritmo, um sentido à criação, um caminho, um itinerário, uma procura.

A propósito do Congo

Se a sua foz é conhecida desde 1482 (descoberta pelo navegador português Diogo Cão que baptizou o rio de “Rio do Padrão”), o curso superior do rio Congo permaneceu terra incógnita durante séculos. As numerosas expedições organizadas para subir o rio defrontaram-se com a hostilidade dos indígenas locais e doenças, assim como com os obstáculos naturais (rápidos, cataratas). Tendo partido à procura da nascente do Nilo, o missionário britânico David Livingstone atingiu Lualaba, o curso superior do rio, sem o ter podido identificar enquanto tal. É o jornalista e explorador Henri Morton Stanley que reencontrará Livingstone em 1871 nas margens do lago Tanganyika, quando este já era dado como morto. Em 1874, Stanley seguiu os trilhos de Livingstone: partindo de Zanzibar com 350 homens e uma embarcação em peças desmontáveis, Stanley desce o rio até à foz, após uma arriscada exploração que terá durado quase três anos. O sucesso desta expedição abre o caminho à colonização do Congo. Stanley aceita a oferta do rei dos belgas Leopoldo II (1865-1909), que procurava criar uma zona de influência na África Central. De 1879 a 1884, este explora e coloniza a região. Submete os chefes locais, organiza a navegação fluvial, constrói estradas e fortes. A sua energia e a sua determinação dar-lhe-ão a alcunha de "Boula Matari", o quebrador de rochas. A iniciativa de Leopoldo II é recompensada na Conferência de Berlim que, em 1885, reconhece a sua soberania pessoal sobre este imenso território, enquanto a margem ocidental, explorada por Savorgnan de Brazza, fica para a França (o futuro Congo-Brazzaville).

A exploração económica do "Estado Independente do Congo", feudo e propriedade de Leopoldo II, pode começar. Apoiada na criação de infra-estruturas (estradas, vias de caminho de ferro), a exploração é confiada a companhias concessionárias. Estas investem primeiro na exploração de rendimentos imediatos, principalmente os da borracha e, em seguida, da exploração mineira. Os abusos das companhias (generalização de trabalho forçado e repressão sangrenta), dos quais

Conrad fará eco na sua novela O Coração das Trevas, desencadeou uma campanha internacional de protesto. Em 1906, Leopoldo II lega a sua colónia à Bélgica. Prossegue-se o desenvolvimento económico, associando a administração belga às grandes companhias, enquanto as obras sanitárias, sociais e de alfabetização são confiadas às missões católicas.

Persuadida de uma justificação bem fundamentada da sua obra no Congo, a Bélgica não tem a percepção da enorme dimensão do movimento anti-colonial que marca o pós-guerra, nem das aspirações da população congolesa. O plano Van Bilsen de 1956 previa um período de transição de 30 anos antes da independência! Os motins e o espectro de um conflito armado como o que encheu de sangue a Argélia desde 1954 levam o governo Eyskens a precipitar o processo. A "aposta congolesa" consiste em abandonar a soberania política para salvaguardar os interesses económicos da metrópole. O jovem Patrice Lumumba e o seu partido, o Movimento Nacional Congolês, ganha as primeiras eleições livres e a independência é proclamada a 30 de Junho de 1960. Mas os acontecimentos que se desencadearam (sublevações no exército, intervenção militar belga, secessão da rica província do Katanga) mergulham rapidamente o país no caos. Nomeado por Lumumba para chefiar o exército, Mobutu destituiu-o depois e entregou-o aos seus inimigos katangueses. Trinta anos mais tarde, a Bélgica reconhecerá a sua parte de responsabilidade no assassinato do líder congolês.

Após quatro anos de instabilidade governamental e de guerra civil (que opõe o governo central, o Katanga separatista e os partidários de Lumumba), o general Mobutu toma definitivamente o poder na sequência de um segundo golpe de Estado (24 de Novembro de 1965). Restabelecendo a ordem no país, Mobutu apresenta-se no plano internacional como o garante da estabilidade regional e o ponta de lança contra o comunismo. É tudo isto que lhe garante o apoio inabalável das grandes potências ocidentais até ao fim da guerra-fria.

No interior, o país afunda-se numa ditadura implacável. O General-Presidente Mobutu Sese Seko concentra todos os poderes e controla o conjunto da vida social e cultural. Promove o seu próprio culto e um nacionalismo exacerbado, quer cultural (o país e o rio tornam-se "Zaire" e os lugares rebaptizados) quer económico (nacionalização dos activos estrangeiros). A corrupção e a fraude impedem qualquer desenvolvimento económico. O poder satisfaz-se em monopolizar as rendas da exploração mineira e a ajuda ocidental, enquanto se 5 4

Só o rio nos pode tirar deste mundo de obscuridade e de estagnação. Só o rio nos pode projectar para a luz, para o espaço, sempre mais distante, para o mar. Só o rio nos pode trazer esta paz dos corpos e dos espíritos, só o rio nos pode fazer sair deste inferno, deste caos. Só o rio nos dá um ritmo, um sentido à criação, um caminho, um itinerário, uma procura.

A propósito do Congo

Se a sua foz é conhecida desde 1482 (descoberta pelo navegador português Diogo Cão que baptizou o rio de “Rio do Padrão”), o curso superior do rio Congo permaneceu terra incógnita durante séculos. As numerosas expedições organizadas para subir o rio defrontaram-se com a hostilidade dos indígenas locais e doenças, assim como com os obstáculos naturais (rápidos, cataratas). Tendo partido à procura da nascente do Nilo, o missionário britânico David Livingstone atingiu Lualaba, o curso superior do rio, sem o ter podido identificar enquanto tal. É o jornalista e explorador Henri Morton Stanley que reencontrará Livingstone em 1871 nas margens do lago Tanganyika, quando este já era dado como morto. Em 1874, Stanley seguiu os trilhos de Livingstone: partindo de Zanzibar com 350 homens e uma embarcação em peças desmontáveis, Stanley desce o rio até à foz, após uma arriscada exploração que terá durado quase três anos. O sucesso desta expedição abre o caminho à colonização do Congo. Stanley aceita a oferta do rei dos belgas Leopoldo II (1865-1909), que procurava criar uma zona de influência na África Central. De 1879 a 1884, este explora e coloniza a região. Submete os chefes locais, organiza a navegação fluvial, constrói estradas e fortes. A sua energia e a sua determinação dar-lhe-ão a alcunha de "Boula Matari", o quebrador de rochas. A iniciativa de Leopoldo II é recompensada na Conferência de Berlim que, em 1885, reconhece a sua soberania pessoal sobre este imenso território, enquanto a margem ocidental, explorada por Savorgnan de Brazza, fica para a França (o futuro Congo-Brazzaville).

A exploração económica do "Estado Independente do Congo", feudo e propriedade de Leopoldo II, pode começar. Apoiada na criação de infra-estruturas (estradas, vias de caminho de ferro), a exploração é confiada a companhias concessionárias. Estas investem primeiro na exploração de rendimentos imediatos, principalmente os da borracha e, em seguida, da exploração mineira. Os abusos das companhias (generalização de trabalho forçado e repressão sangrenta), dos quais

Conrad fará eco na sua novela O Coração das Trevas, desencadeou uma campanha internacional de protesto. Em 1906, Leopoldo II lega a sua colónia à Bélgica. Prossegue-se o desenvolvimento económico, associando a administração belga às grandes companhias, enquanto as obras sanitárias, sociais e de alfabetização são confiadas às missões católicas.

Persuadida de uma justificação bem fundamentada da sua obra no Congo, a Bélgica não tem a percepção da enorme dimensão do movimento anti-colonial que marca o pós-guerra, nem das aspirações da população congolesa. O plano Van Bilsen de 1956 previa um período de transição de 30 anos antes da independência! Os motins e o espectro de um conflito armado como o que encheu de sangue a Argélia desde 1954 levam o governo Eyskens a precipitar o processo. A "aposta congolesa" consiste em abandonar a soberania política para salvaguardar os interesses económicos da metrópole. O jovem Patrice Lumumba e o seu partido, o Movimento Nacional Congolês, ganha as primeiras eleições livres e a independência é proclamada a 30 de Junho de 1960. Mas os acontecimentos que se desencadearam (sublevações no exército, intervenção militar belga, secessão da rica província do Katanga) mergulham rapidamente o país no caos. Nomeado por Lumumba para chefiar o exército, Mobutu destituiu-o depois e entregou-o aos seus inimigos katangueses. Trinta anos mais tarde, a Bélgica reconhecerá a sua parte de responsabilidade no assassinato do líder congolês.

Após quatro anos de instabilidade governamental e de guerra civil (que opõe o governo central, o Katanga separatista e os partidários de Lumumba), o general Mobutu toma definitivamente o poder na sequência de um segundo golpe de Estado (24 de Novembro de 1965). Restabelecendo a ordem no país, Mobutu apresenta-se no plano internacional como o garante da estabilidade regional e o ponta de lança contra o comunismo. É tudo isto que lhe garante o apoio inabalável das grandes potências ocidentais até ao fim da guerra-fria.

No interior, o país afunda-se numa ditadura implacável. O General-Presidente Mobutu Sese Seko concentra todos os poderes e controla o conjunto da vida social e cultural. Promove o seu próprio culto e um nacionalismo exacerbado, quer cultural (o país e o rio tornam-se "Zaire" e os lugares rebaptizados) quer económico (nacionalização dos activos estrangeiros). A corrupção e a fraude impedem qualquer desenvolvimento económico. O poder satisfaz-se em monopolizar as rendas da exploração mineira e a ajuda ocidental, enquanto se 5 4

degradam lentamente todas as infra-estruturas coloniais, ao mesmo tempo que o nível de vida desce dramaticamente.

Contestado internamente, o regime de Mobutu é ainda mais destabilizado pela crise do Ruanda, que traz para o Leste do Zaire mais de dois milhões de refugiados, bem como o ex-exército ruandês e as milícias responsáveis pelo genocídio. Em 1997, Laurent-Désiré Kabila (um herdeiro do maquis

lumumbiste) assume a direcção da Aliança das Forças Democráticas para a Libertação do Congo (AFDL). Apoiado pelo novo governo ruandês e pelo Uganda, derruba o regime, já em grande decomposição, de Mobutu que foge do país e morre no exílio pouco depois, fulminado por um cancro.

A República Democrática do Congo, fundada em Maio de 1997, conhece apenas uma paz efémera. Em Julho de 1998, os ruandeses que habitavam no Leste do país pegam em armas contra o seu antigo aliado, apoiados pelo Uganda. O governo Kabila recebe o apoio militar do Zimbabué, da Namíbia e de Angola. O Congo torna-se um gigantesco campo de batalha onde se confrontam seis potências regionais e numerosos movimentos rebeldes. Todos eles são financiados pilhando os recursos naturais do país (ouro, diamantes, urânio), fazendo reinar o terror. Esta guerra fantasma, porque guerra da savana e da floresta virgem, vai durar mais de quatro anos. Será uma das mais mortíferas da África pós-colonial, tendo feito, segundo diversas estimativas, entre um e três milhões de mortes.

Em Janeiro de 2001, Laurent-Désiré Kabila é assassinado em Kinshasa e o seu filho Joseph Kabila sucede-lhe, anunciando a retoma das negociações de paz. Nestas, apoiadas pela comunidade internacional (o Conselho de Segurança da ONU enviou para o local uma força de interposição, a MONUC, a partir do Novembro de 1999), estão envolvidos os países beligerantes bem como os partidos congoleses. Em Dezembro de 2002, é assinado um acordo global que procura dar ao país um processo de transição política a ser concluído com eleições. O governo de transição dirigido pelo Chefe de Estado Joseph Kabila e compreendendo todas as componente do "diálogo inter-congolês" é encarregado de preparar as eleições livres num prazo de dois anos. Estas eleições, as primeiras desde a independência, terão finalmente lugar em Junho próximo [em 2006], sob fortíssima

(a)vigilância internacional .

(a) Veja-se o caderno de textos de apoio ao filme Kisangani Diary, parte “Longe do Congo” sobre o Congo.

Entrevista com o realizador

P.: Já filmou muito o Congo. Porquê lançar-se nesta nova aventura?R.: Realizei cinco filmes sobre o Congo/Zaire em pouco mais de

uma década. Mas nestes filmes dediquei-me, sobretudo, ao universo urbano, aos grandes centros políticos e económicos que são Kinshasa, Kisangani, Lubumbashi. Tinha o desejo de explorar o coração selvagem do país, de descobrir a África na sua intemporalidade. Queria compreender como este continente esquecido que viveu todas as tragédias, o tráfico esclavagista, a dominação colonial, as independências, as ditaduras e as guerras, começa hoje a recompor-se sobre os seus destroços.

P.: Porquê percorrer o país pelo rio? R.: Em primeiro lugar, porque não há outros meios de comunicação.

Todas as infra-estruturas herdadas da colonização foram destruídas ou tornadas inutilizáveis. Pela força das coisas, o rio tornou-se a coluna vertebral do país. E, depois, a história do Congo é inseparável do rio. Ao contrário dos outros países africanos, as fronteiras do Congo correspondem a uma verdadeira realidade geográfica: a bacia do rio. É um princípio de unidade geográfica e histórica muito forte.

P.: Há também uma dimensão simbólica neste subir do rio…R.: O trajecto era triplo: um trajecto geográfico, uma viagem

histórica, e uma viagem iniciática, uma procura das origens. O rio, indomável e majestoso, tem esta dimensão cosmológica, para além dos homens, dos regimes, das épocas, é universal e intemporal. Relativiza a pequena dimensão dos homens.

P.: Coloca-se sob os auspícios dos grandes exploradores como Stanley, mas também Conrad em O Coração das Trevas...

R.: Na época de Stanley, tratava-se de uma viagem impossível, perigosa, um mergulho no desconhecido desta "terra incógnita". A situação tornou-se aproximadamente a mesma: para nós tratava-se de atravessarmos um país com as infra-estruturas destruídas, um país dividido pela guerra, vítima da violência mais terrível. Quanto à novela de Conrad, é um dos livros que me acompanhou a partir das minhas primeiras filmagens no coração da África. Conta esta longa descida do rio para o desconhecido e para a sua parte mais obscura. A viagem conclui-se com o personagem incrível Kurtz — encarnado em Apocalypse Now por Marlon Brando — que morre dizendo "o horror, o horror"...

P.: Stanley procurava Livingstone, Conrad procurava Kurtz. E o que é Tierry Michel procura exactamente? 7 6

degradam lentamente todas as infra-estruturas coloniais, ao mesmo tempo que o nível de vida desce dramaticamente.

Contestado internamente, o regime de Mobutu é ainda mais destabilizado pela crise do Ruanda, que traz para o Leste do Zaire mais de dois milhões de refugiados, bem como o ex-exército ruandês e as milícias responsáveis pelo genocídio. Em 1997, Laurent-Désiré Kabila (um herdeiro do maquis

lumumbiste) assume a direcção da Aliança das Forças Democráticas para a Libertação do Congo (AFDL). Apoiado pelo novo governo ruandês e pelo Uganda, derruba o regime, já em grande decomposição, de Mobutu que foge do país e morre no exílio pouco depois, fulminado por um cancro.

A República Democrática do Congo, fundada em Maio de 1997, conhece apenas uma paz efémera. Em Julho de 1998, os ruandeses que habitavam no Leste do país pegam em armas contra o seu antigo aliado, apoiados pelo Uganda. O governo Kabila recebe o apoio militar do Zimbabué, da Namíbia e de Angola. O Congo torna-se um gigantesco campo de batalha onde se confrontam seis potências regionais e numerosos movimentos rebeldes. Todos eles são financiados pilhando os recursos naturais do país (ouro, diamantes, urânio), fazendo reinar o terror. Esta guerra fantasma, porque guerra da savana e da floresta virgem, vai durar mais de quatro anos. Será uma das mais mortíferas da África pós-colonial, tendo feito, segundo diversas estimativas, entre um e três milhões de mortes.

Em Janeiro de 2001, Laurent-Désiré Kabila é assassinado em Kinshasa e o seu filho Joseph Kabila sucede-lhe, anunciando a retoma das negociações de paz. Nestas, apoiadas pela comunidade internacional (o Conselho de Segurança da ONU enviou para o local uma força de interposição, a MONUC, a partir do Novembro de 1999), estão envolvidos os países beligerantes bem como os partidos congoleses. Em Dezembro de 2002, é assinado um acordo global que procura dar ao país um processo de transição política a ser concluído com eleições. O governo de transição dirigido pelo Chefe de Estado Joseph Kabila e compreendendo todas as componente do "diálogo inter-congolês" é encarregado de preparar as eleições livres num prazo de dois anos. Estas eleições, as primeiras desde a independência, terão finalmente lugar em Junho próximo [em 2006], sob fortíssima

(a)vigilância internacional .

(a) Veja-se o caderno de textos de apoio ao filme Kisangani Diary, parte “Longe do Congo” sobre o Congo.

Entrevista com o realizador

P.: Já filmou muito o Congo. Porquê lançar-se nesta nova aventura?R.: Realizei cinco filmes sobre o Congo/Zaire em pouco mais de

uma década. Mas nestes filmes dediquei-me, sobretudo, ao universo urbano, aos grandes centros políticos e económicos que são Kinshasa, Kisangani, Lubumbashi. Tinha o desejo de explorar o coração selvagem do país, de descobrir a África na sua intemporalidade. Queria compreender como este continente esquecido que viveu todas as tragédias, o tráfico esclavagista, a dominação colonial, as independências, as ditaduras e as guerras, começa hoje a recompor-se sobre os seus destroços.

P.: Porquê percorrer o país pelo rio? R.: Em primeiro lugar, porque não há outros meios de comunicação.

Todas as infra-estruturas herdadas da colonização foram destruídas ou tornadas inutilizáveis. Pela força das coisas, o rio tornou-se a coluna vertebral do país. E, depois, a história do Congo é inseparável do rio. Ao contrário dos outros países africanos, as fronteiras do Congo correspondem a uma verdadeira realidade geográfica: a bacia do rio. É um princípio de unidade geográfica e histórica muito forte.

P.: Há também uma dimensão simbólica neste subir do rio…R.: O trajecto era triplo: um trajecto geográfico, uma viagem

histórica, e uma viagem iniciática, uma procura das origens. O rio, indomável e majestoso, tem esta dimensão cosmológica, para além dos homens, dos regimes, das épocas, é universal e intemporal. Relativiza a pequena dimensão dos homens.

P.: Coloca-se sob os auspícios dos grandes exploradores como Stanley, mas também Conrad em O Coração das Trevas...

R.: Na época de Stanley, tratava-se de uma viagem impossível, perigosa, um mergulho no desconhecido desta "terra incógnita". A situação tornou-se aproximadamente a mesma: para nós tratava-se de atravessarmos um país com as infra-estruturas destruídas, um país dividido pela guerra, vítima da violência mais terrível. Quanto à novela de Conrad, é um dos livros que me acompanhou a partir das minhas primeiras filmagens no coração da África. Conta esta longa descida do rio para o desconhecido e para a sua parte mais obscura. A viagem conclui-se com o personagem incrível Kurtz — encarnado em Apocalypse Now por Marlon Brando — que morre dizendo "o horror, o horror"...

P.: Stanley procurava Livingstone, Conrad procurava Kurtz. E o que é Tierry Michel procura exactamente? 7 6

R.: O que é que eu procuro? Não sei, talvez a loucura deste país. Certos espectadores dizem que Kurtz é o general Maï-Maï... É verdade que com esta cena e com os testemunhos de mulheres violadas, se desce ao mais baixo possível da alma humana, ao coração das trevas. Mas não; eu não queria que o meu filme terminasse com o horror como em Conrad, queria precisamente ir para lá das trevas. O filme termina com apaziguamento, primeiro com as cataratas magníficas, seguidamente com a nascente purificadora. Uma nascente nunca é apenas um fio de água que começa nalgum lugar, é o ponto mais afastado, em distância, da foz. Mas é um lugar sagrado, sobretudo para o congolês. Queria que, pela simbologia do rio e da água, o filme terminasse com um renascimento, não somente do Congo, mas do continente africano, neste início de milénio. Procurei sempre sobrepor a luz ao coração das trevas.

P.: O filme mostra numerosas personagens extremamente positivas. Ao vê-las, diz-se que há finalmente esperança para o Congo.

R.: Há muitas imagens, muito dignas e muito resistentes dos congoleses: o médico e a enfermeira que tratam das mulheres violadas, o chefe de estação (estação ao abandono desde há quinze anos) que sem nenhuns meios, remove ervas daninhas e liberta as vias, criando as condições para que a actividade do caminho-de-ferro seja retomada. Mas há, sobretudo, este personagem muito simbólico que é o capitão da embarcação. Tem a responsabilidade de uma pequena comunidade humana, trezentas pessoas que embarcaram nesta aldeia flutuante, nesta Arca de Noé, e leva-a até bom porto, após uma travessia cheia de perigos. No fim diz: "Tivemos êxito na viagem, foi sem acidentes, sem feridos, sem afogados". É bonita, é uma imagem, nobre e responsável, que contrasta com a que dão os actuais líderes africanos. Toda a África se pode identificar com estes personagens, são eles quem permitirão ao continente reconstruir-se.

P.: A religião parece ter um lugar primordial no Congo de hoje.R.: Fui surpreendido pela importância da religião na vida

congolesa. Mas o povo congolês é um povo esgotado. Acreditou na independência, acreditaram alguns no marxismo, outros acreditaram na democracia e nada se concretizou. E este país, ao qual a colonização tinha tentado trazer modernidade e racionalidade, refugiou-se na irracionalidade absoluta: a das práticas ancestrais da tradição animista (magia e feitiçaria) e, simultaneamente, a das igrejas cristãs evangelistas (a que se chama no Congo "églises du réveil" [igrejas do despertar]), que

assumem uma importância enorme em todo o país. Em todos os actos da vida, o retorno ao religioso age como força de sobrevivência, de resistência, de revitalização. É claro que o povo congolês aspira à espiritualidade para sair da crise, ao mesmo tempo, económica e social, mas também moral, que o país atravessa. Também o religioso vai dar um ritmo ao filme. Porque o religioso não é somente o recolhimento, é também a festa, os cânticos, a energia...

P.: O filme é ritmado pelas imagens de arquivo... R.: Desde o início que estava previsto ter esta alternância de imagens

de arquivo e de imagens actuais, porque no meu percurso eu queria inscrever a memória do rio. A investigação de arquivos constituiu uma segunda viagem, também ela completamente apaixonante. Durante o período colonial, a Bélgica recorreu aos seus cineastas para filmar o Congo sob todos os aspectos, como se fosse a constituição de uma grande enciclopédia cinematográfica do país. Trata-se de obras de propaganda, é certo, mas são às vezes verdadeiras obras cinematográficas, magnificamente filmadas. A justaposição das imagens do presente e do passado permite um questionamento da história colonial em relação ao presente. Vê-se, por exemplo, a perenidade da desflorestação, da exploração da natureza. Vê-se também perpetuarem-se as relações entre o branco, que é o proprietário, e o preto, que é o trabalhador.

P.: Pode fazer-se uma outra leitura destas imagens: concluir que o país estava melhor naquela época que hoje...

R.: Cada imagem pode ser interpretada de muitas maneiras. Mostrei o filme no Congo. Certas imagens de arquivo são recebidas muito dolorosamente, como sendo o testemunho da insuportável exploração colonial. Mas as dificuldades actuais podem também fazer lamentar o período colonial a alguns congoleses. Ao projectar Mobutu, Rei do Zaire vi quanto, de acordo com as situações geopolíticas de cada país africano, a leitura do personagem e da ditadura podia divergir.

P.: Em França, o debate assenta no polémico "papel positivo da colonização"...

R.: A colonização era depredadora, discriminatória, violenta, mas também criou infra-estruturas. Mobutu, este não construiu praticamente nada em trinta anos de ditadura, a não ser os seus próprios palácios. A polémica francesa não tem equivalente na Bélgica. O debate teve lugar serenamente entre a Bélgica e o Congo, através de comissões compostas por especialistas dos dois 98

R.: O que é que eu procuro? Não sei, talvez a loucura deste país. Certos espectadores dizem que Kurtz é o general Maï-Maï... É verdade que com esta cena e com os testemunhos de mulheres violadas, se desce ao mais baixo possível da alma humana, ao coração das trevas. Mas não; eu não queria que o meu filme terminasse com o horror como em Conrad, queria precisamente ir para lá das trevas. O filme termina com apaziguamento, primeiro com as cataratas magníficas, seguidamente com a nascente purificadora. Uma nascente nunca é apenas um fio de água que começa nalgum lugar, é o ponto mais afastado, em distância, da foz. Mas é um lugar sagrado, sobretudo para o congolês. Queria que, pela simbologia do rio e da água, o filme terminasse com um renascimento, não somente do Congo, mas do continente africano, neste início de milénio. Procurei sempre sobrepor a luz ao coração das trevas.

P.: O filme mostra numerosas personagens extremamente positivas. Ao vê-las, diz-se que há finalmente esperança para o Congo.

R.: Há muitas imagens, muito dignas e muito resistentes dos congoleses: o médico e a enfermeira que tratam das mulheres violadas, o chefe de estação (estação ao abandono desde há quinze anos) que sem nenhuns meios, remove ervas daninhas e liberta as vias, criando as condições para que a actividade do caminho-de-ferro seja retomada. Mas há, sobretudo, este personagem muito simbólico que é o capitão da embarcação. Tem a responsabilidade de uma pequena comunidade humana, trezentas pessoas que embarcaram nesta aldeia flutuante, nesta Arca de Noé, e leva-a até bom porto, após uma travessia cheia de perigos. No fim diz: "Tivemos êxito na viagem, foi sem acidentes, sem feridos, sem afogados". É bonita, é uma imagem, nobre e responsável, que contrasta com a que dão os actuais líderes africanos. Toda a África se pode identificar com estes personagens, são eles quem permitirão ao continente reconstruir-se.

P.: A religião parece ter um lugar primordial no Congo de hoje.R.: Fui surpreendido pela importância da religião na vida

congolesa. Mas o povo congolês é um povo esgotado. Acreditou na independência, acreditaram alguns no marxismo, outros acreditaram na democracia e nada se concretizou. E este país, ao qual a colonização tinha tentado trazer modernidade e racionalidade, refugiou-se na irracionalidade absoluta: a das práticas ancestrais da tradição animista (magia e feitiçaria) e, simultaneamente, a das igrejas cristãs evangelistas (a que se chama no Congo "églises du réveil" [igrejas do despertar]), que

assumem uma importância enorme em todo o país. Em todos os actos da vida, o retorno ao religioso age como força de sobrevivência, de resistência, de revitalização. É claro que o povo congolês aspira à espiritualidade para sair da crise, ao mesmo tempo, económica e social, mas também moral, que o país atravessa. Também o religioso vai dar um ritmo ao filme. Porque o religioso não é somente o recolhimento, é também a festa, os cânticos, a energia...

P.: O filme é ritmado pelas imagens de arquivo... R.: Desde o início que estava previsto ter esta alternância de imagens

de arquivo e de imagens actuais, porque no meu percurso eu queria inscrever a memória do rio. A investigação de arquivos constituiu uma segunda viagem, também ela completamente apaixonante. Durante o período colonial, a Bélgica recorreu aos seus cineastas para filmar o Congo sob todos os aspectos, como se fosse a constituição de uma grande enciclopédia cinematográfica do país. Trata-se de obras de propaganda, é certo, mas são às vezes verdadeiras obras cinematográficas, magnificamente filmadas. A justaposição das imagens do presente e do passado permite um questionamento da história colonial em relação ao presente. Vê-se, por exemplo, a perenidade da desflorestação, da exploração da natureza. Vê-se também perpetuarem-se as relações entre o branco, que é o proprietário, e o preto, que é o trabalhador.

P.: Pode fazer-se uma outra leitura destas imagens: concluir que o país estava melhor naquela época que hoje...

R.: Cada imagem pode ser interpretada de muitas maneiras. Mostrei o filme no Congo. Certas imagens de arquivo são recebidas muito dolorosamente, como sendo o testemunho da insuportável exploração colonial. Mas as dificuldades actuais podem também fazer lamentar o período colonial a alguns congoleses. Ao projectar Mobutu, Rei do Zaire vi quanto, de acordo com as situações geopolíticas de cada país africano, a leitura do personagem e da ditadura podia divergir.

P.: Em França, o debate assenta no polémico "papel positivo da colonização"...

R.: A colonização era depredadora, discriminatória, violenta, mas também criou infra-estruturas. Mobutu, este não construiu praticamente nada em trinta anos de ditadura, a não ser os seus próprios palácios. A polémica francesa não tem equivalente na Bélgica. O debate teve lugar serenamente entre a Bélgica e o Congo, através de comissões compostas por especialistas dos dois 98

países, que permitiu a emergência de um novo olhar, mais distanciado, sobre a colonização. A Bélgica reconheceu as suas responsabilidades, por exemplo, no assassinato de Lumumba. Mas não é necessário esquecer que a França saiu da Argélia com uma guerra terrível, o que não foi o caso no Congo belga.

P.: Retornemos à rodagem. Esta deve ter sido completamente uma aventura.

R.: A rodagem foi certamente longa e difícil. Longa, porque o rio é longo: tem 4371 km, e em sete sítios (rápidos, quedas, cascatas) leva-se tempo a contorná-lo por terra. O nosso objectivo durante toda a viagem era partilhar os transportes comuns: barcos, pirogas, etc., quando, simultaneamente, também se transportava uma tecnologia de ponta, uma câmara de alta definição, lâmpadas HMI e toda a logística. Tinha-se sempre estruturas na rectaguarda a electrogénio e a combustível, todo o nosso material de campismo, mas lavávamo-nos na água do rio, comíamos os seus peixes, partilhávamos a vida de todos.

A dificuldade estava em rodar um filme num país em guerra, ou antes, vários países, dado que cada grupo rebelde tem o seu território. Metade do tempo de rodagem gastou-se no que se chama, às vezes, "o protocolo", ou seja, as negociações com múltiplas autoridades nacionais, regionais, locais... Para filmar a sequência com os guerreiros Maï-Maï, foi necessário uma foto do realizador e que eu fosse entronizado no círculo, e ser sujeito à iniciação pelo ferro, pelo fogo, pela água e pelo sangue.

P.: Escolheu não deixar transparecer estas dificuldades no filme. R.: Quis-se fazer um belo poema cinematográfico, sublimar a

realidade do Congo. A realidade da filmagem (que foi objecto de um making-of) era muito mais trivial, para não dizer sórdida. Vê-se a corrupção, as negociatas, as relações de força, as prisões. Queria dar-se outra imagem da África, digna e bela, mesmo na tragédia.

P.: O resultado final é muito diferente do vosso cenário de partida? R.: Quando parto em rodagem é com um plano de trabalho

imaginário, uma lista de sequências que espero poder filmar. Aqui todas elas se referiam aos aspectos da vida do rio, a vida, a morte, a guerra, a doença, um casamento, um nascimento, um falecimento, etc. E, depois, o curso do rio levou-me, ao seu ritmo, a encontrar ou não os acontecimentos. Há também os imprevistos, como este naufrágio duma embarcação que custou a vida a 250 pessoas. Este tipo de

acidente acontece de maneira bastante regular, o Congo é um rio perigoso. Chegar ao destino é uma hipótese de partida e não uma certeza. É o trabalho de montagem que permite encontrar uma estrutura dramática e cinematográfica. Há no filme diferenças em relação à geografia porque privilegiei o itinerário simbólico e a dramaturgia. Não é um filme jornalístico ou didáctico.

P.: Uma palavra sobre a música de Lokua Kanza? R.: A música original de Lokua Kanza dá a sua dimensão sinfónica à

banda sonora, numa mistura de ritmos e de vozes tradicionais. As suas palavras fazem sentido e prolongam a dramaturgia do filme: partindo das mitologias das origens ("ouve este vento passar que leva os espíritos sobre a água"), atravessam as tragédias contemporâneas ("que quantidade de sangue se derramou sobre o rio") antes de transmitir uma mensagem para o futuro ("soou a hora, filho do Congo, reconstrói o teu país, na humildade, na sabedoria."). É o ponto de vista de um congolês sobre o drama do seu país e a sua esperança de tempos novos.

P.: O Congo ocupa um lugar à parte na sua filmografia. De onde vem esta fascinação?

R.: Creio que é o resultado de um encontro entre um momento histórico e um cineasta. Tive a possibilidade de filmar o Congo num momento decisivo da sua história: no início dos anos 90, quando uma ditadura em decomposição vacilou e caiu na violência. Após trinta anos de reinado, Mobutu agarrou-se desesperadamente ao poder e arrastou o país na sua queda. Tudo isto deu lugar a um filme muito importante para mim, o Zaire, O Ciclo da Serpente. A partir daí apaixonei-me por este país em grande mutação, grande como um continente, fabuloso pela diversidade das suas paisagens e com uma história tumultuosa. Tive a possibilidade de ser uma testemunha privilegiada. Espero que os meus filmes venham a permanecer na memória do continent, que constituem o retrato do fim e do início de século de um grande país.

Tradução livre. Texto disponível em www.passerelle.be

11 10

países, que permitiu a emergência de um novo olhar, mais distanciado, sobre a colonização. A Bélgica reconheceu as suas responsabilidades, por exemplo, no assassinato de Lumumba. Mas não é necessário esquecer que a França saiu da Argélia com uma guerra terrível, o que não foi o caso no Congo belga.

P.: Retornemos à rodagem. Esta deve ter sido completamente uma aventura.

R.: A rodagem foi certamente longa e difícil. Longa, porque o rio é longo: tem 4371 km, e em sete sítios (rápidos, quedas, cascatas) leva-se tempo a contorná-lo por terra. O nosso objectivo durante toda a viagem era partilhar os transportes comuns: barcos, pirogas, etc., quando, simultaneamente, também se transportava uma tecnologia de ponta, uma câmara de alta definição, lâmpadas HMI e toda a logística. Tinha-se sempre estruturas na rectaguarda a electrogénio e a combustível, todo o nosso material de campismo, mas lavávamo-nos na água do rio, comíamos os seus peixes, partilhávamos a vida de todos.

A dificuldade estava em rodar um filme num país em guerra, ou antes, vários países, dado que cada grupo rebelde tem o seu território. Metade do tempo de rodagem gastou-se no que se chama, às vezes, "o protocolo", ou seja, as negociações com múltiplas autoridades nacionais, regionais, locais... Para filmar a sequência com os guerreiros Maï-Maï, foi necessário uma foto do realizador e que eu fosse entronizado no círculo, e ser sujeito à iniciação pelo ferro, pelo fogo, pela água e pelo sangue.

P.: Escolheu não deixar transparecer estas dificuldades no filme. R.: Quis-se fazer um belo poema cinematográfico, sublimar a

realidade do Congo. A realidade da filmagem (que foi objecto de um making-of) era muito mais trivial, para não dizer sórdida. Vê-se a corrupção, as negociatas, as relações de força, as prisões. Queria dar-se outra imagem da África, digna e bela, mesmo na tragédia.

P.: O resultado final é muito diferente do vosso cenário de partida? R.: Quando parto em rodagem é com um plano de trabalho

imaginário, uma lista de sequências que espero poder filmar. Aqui todas elas se referiam aos aspectos da vida do rio, a vida, a morte, a guerra, a doença, um casamento, um nascimento, um falecimento, etc. E, depois, o curso do rio levou-me, ao seu ritmo, a encontrar ou não os acontecimentos. Há também os imprevistos, como este naufrágio duma embarcação que custou a vida a 250 pessoas. Este tipo de

acidente acontece de maneira bastante regular, o Congo é um rio perigoso. Chegar ao destino é uma hipótese de partida e não uma certeza. É o trabalho de montagem que permite encontrar uma estrutura dramática e cinematográfica. Há no filme diferenças em relação à geografia porque privilegiei o itinerário simbólico e a dramaturgia. Não é um filme jornalístico ou didáctico.

P.: Uma palavra sobre a música de Lokua Kanza? R.: A música original de Lokua Kanza dá a sua dimensão sinfónica à

banda sonora, numa mistura de ritmos e de vozes tradicionais. As suas palavras fazem sentido e prolongam a dramaturgia do filme: partindo das mitologias das origens ("ouve este vento passar que leva os espíritos sobre a água"), atravessam as tragédias contemporâneas ("que quantidade de sangue se derramou sobre o rio") antes de transmitir uma mensagem para o futuro ("soou a hora, filho do Congo, reconstrói o teu país, na humildade, na sabedoria."). É o ponto de vista de um congolês sobre o drama do seu país e a sua esperança de tempos novos.

P.: O Congo ocupa um lugar à parte na sua filmografia. De onde vem esta fascinação?

R.: Creio que é o resultado de um encontro entre um momento histórico e um cineasta. Tive a possibilidade de filmar o Congo num momento decisivo da sua história: no início dos anos 90, quando uma ditadura em decomposição vacilou e caiu na violência. Após trinta anos de reinado, Mobutu agarrou-se desesperadamente ao poder e arrastou o país na sua queda. Tudo isto deu lugar a um filme muito importante para mim, o Zaire, O Ciclo da Serpente. A partir daí apaixonei-me por este país em grande mutação, grande como um continente, fabuloso pela diversidade das suas paisagens e com uma história tumultuosa. Tive a possibilidade de ser uma testemunha privilegiada. Espero que os meus filmes venham a permanecer na memória do continent, que constituem o retrato do fim e do início de século de um grande país.

Tradução livre. Texto disponível em www.passerelle.be

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Parte 2.Pontos de vista de africanos sobre o filme Rio Congo, sobre África

2. "Sou um passador", entrevista a Thierry Michel,

a propósito de Rio Congo

Realizou duas obras de ficção e uma quinzena de documentários, cinco dos quais sobre o Congo. O último, Rio Congo, para lá das trevas, suscita algumas interrogações. Quisemos esclarecê-las com o realizador.

P.: Cinco filmes sobre um mesmo país, o Congo, parece ser para si uma obsessão. O que o motivou a realizar Rio Congo?

R.: Não é uma obsessão. É a fidelidade a uma história. Fui ao Congo em pleno período de grandes perturbações, quando Mobutu, para permanecer no poder, impôs uma ditadura terrível. Aí permaneci como cronista e estabeleci relações de amizade com intelectuais do Congo. Além disso, estudei com congoleses, como Mweze Ngangura; e os laços que se estabelecem quando se estuda podem ser impulsionadores de toda uma obra. Eu volto sempre ao Congo para aprofundar o meu conhecimento deste país. Volto para compreender como é que os africanos conseguem manter este humor sobre si próprios, apesar de todos os seus problemas. E aqui estou para ser disso testemunha. Albert Londres não disse ele que um jornalista deve saber mergulhar a sua caneta nas feridas? Aliás, tento, ao mesmo tempo, mostrar a resistência, o orgulho, a revolta do povo congolês. E Rio Congo é disso um símbolo. O capitão da embarcação, por exemplo, é uma pessoa muito responsável. Responsável pelos outros, que sabe levar ao seu destino. Há também o chefe de estação que decide voltar a mobilizar as pessoas que não são pagas para viabilizar 125 km de via-férrea. Teve êxito. Há também Mr. Musengo. Queria mostrar todas as pessoas que se distinguem dos líderes de certos países africanos.

P.: Faz uso, de maneira recorrente, de imagens de arquivo para recordar os benefícios da colonização no Congo ("o continente negro é tirado do seu sono milenário"). Será para o justificar?

R.: Porque tem África medo de debater a colonização? Será que, depois da independência, o mundo se alterou? A colonização é a dominação ultrajante, mas construiu estradas, escolas. A doença do sono foi erradicada no Congo em 1936. A pergunta que se põe é a de saber se a gestão destas imagens foi bem feita. Os africanos não conhecem a sua história. A modernização não se constrói através de um certo sincretismo? Não será que, num dado momento, para se fazer uma abordagem histórica e sociológica, se deve falar das carências, das lacunas? Se as 13

Parte 2.Pontos de vista de africanos sobre o filme Rio Congo, sobre África

2. "Sou um passador", entrevista a Thierry Michel,

a propósito de Rio Congo

Realizou duas obras de ficção e uma quinzena de documentários, cinco dos quais sobre o Congo. O último, Rio Congo, para lá das trevas, suscita algumas interrogações. Quisemos esclarecê-las com o realizador.

P.: Cinco filmes sobre um mesmo país, o Congo, parece ser para si uma obsessão. O que o motivou a realizar Rio Congo?

R.: Não é uma obsessão. É a fidelidade a uma história. Fui ao Congo em pleno período de grandes perturbações, quando Mobutu, para permanecer no poder, impôs uma ditadura terrível. Aí permaneci como cronista e estabeleci relações de amizade com intelectuais do Congo. Além disso, estudei com congoleses, como Mweze Ngangura; e os laços que se estabelecem quando se estuda podem ser impulsionadores de toda uma obra. Eu volto sempre ao Congo para aprofundar o meu conhecimento deste país. Volto para compreender como é que os africanos conseguem manter este humor sobre si próprios, apesar de todos os seus problemas. E aqui estou para ser disso testemunha. Albert Londres não disse ele que um jornalista deve saber mergulhar a sua caneta nas feridas? Aliás, tento, ao mesmo tempo, mostrar a resistência, o orgulho, a revolta do povo congolês. E Rio Congo é disso um símbolo. O capitão da embarcação, por exemplo, é uma pessoa muito responsável. Responsável pelos outros, que sabe levar ao seu destino. Há também o chefe de estação que decide voltar a mobilizar as pessoas que não são pagas para viabilizar 125 km de via-férrea. Teve êxito. Há também Mr. Musengo. Queria mostrar todas as pessoas que se distinguem dos líderes de certos países africanos.

P.: Faz uso, de maneira recorrente, de imagens de arquivo para recordar os benefícios da colonização no Congo ("o continente negro é tirado do seu sono milenário"). Será para o justificar?

R.: Porque tem África medo de debater a colonização? Será que, depois da independência, o mundo se alterou? A colonização é a dominação ultrajante, mas construiu estradas, escolas. A doença do sono foi erradicada no Congo em 1936. A pergunta que se põe é a de saber se a gestão destas imagens foi bem feita. Os africanos não conhecem a sua história. A modernização não se constrói através de um certo sincretismo? Não será que, num dado momento, para se fazer uma abordagem histórica e sociológica, se deve falar das carências, das lacunas? Se as 13

potências ocidentais não permitiram a África a sua descolagem, não será também porque os africanos também têm uma parte da responsabilidade? Na maior parte dos países da África Central, há debate. Voltar à nostalgia pré-colonial é utopia. É o que fazem os muçulmanos integristas. Mas os jovens africanos dizem: "Vamos manter os nossos valores e, ao mesmo tempo, nós vamos modernizar-nos".

P.: Deus está presente ao longo de todo o filme, enquanto a canção no fim diz: "Não esperem que o espírito de Deus vos venha salvar". A religião surge actualmente, para o congolês, como o ópio do povo de que falava Karl Marx?

R.: Os encontros falhados, de forma repetida, com a história, e as decepções desde os anos 60 mergulharam os congoleses no irracional. E daí resultaram duas vias: o regresso às crenças animistas e às feitiçarias, com as crianças feiticeiras — vê-se uma no filme — e a emergência das Igrejas evangelistas, em detrimento das Igrejas tradicionais. Há uma nova cruzada de evangelização. Estas Igrejas voltam a dar energia aos seus crentes. São muito numerosas, algumas mais morais que outras, que fazem da dolarização do culto ou da moralização da vida pública uma das bases da sua acção. O povo está farto da classe política, e estas Igrejas são complementares da tradição da feitiçaria através de sessões de transe onde é necessário expulsar o demónio ou através dos elementos festivos e musicais que atraem a simpatia da juventude.

P.: Para lá das trevas, das alegrias e dos sofrimentos, é, apesar de tudo, a vida de miséria de certos congoleses que o filme mostra. Além disso, o filme mostra imagens atrozes de cadáveres inchados a virem à tona de água. Tal como também mostra, a rosto descoberto, as raparigas e as mulheres violadas, e um homem muito jovem que conta as suas proezas de feiticeiro, assim como crianças pequenas que trabalham numa pedreira abandonada. Não será, tudo isto, "voyeurismo"? Não tem medo de processos por não ter protegido estas crianças?

R.: Não é nada disso o que eu faço. Estou lá como alguém que passa. Encontro os congoleses, dou-lhes a palavra, mesmo aos Maï-Maï. Dirigem-se mais a mim do que eu a eles. As mulheres violadas e todos os outros que tomam a palavra, é o orgulho e a dignidade que se reencontram através dela. Como todos os jornalistas do mundo, não posso deixar passá-los em silêncio, não posso ignorá-los. Exprimem a necessidade de não serem esquecidos, de denunciar esta impunidade. A mãe da pequena rapariga dirige-se a nós, o médico quer que se fale da sua situação. As crianças das quais fala estiveram no Parlamento, e tudo o que fizemos, fizemo-lo com

a sua permissão e a dos seus pais. Não há pois risco de processos. De resto, nos quinze dias que se seguiram ao nosso encontro, obtive dois financiamentos de instituições belgas para a criação de duas estruturas de apoio a estas crianças. A minha consciência está em paz. Era necessário mostrar estas crianças. Hoje, friamente, exploram-os e chicoteiam-os como escravos. Era necessário mostrá-las. Não há "voyeurisme", há sim uma obrigação de testemunhar.

P.: Sentimos apreensão na sua voz quando embaraçou o general Maï-Maï fazendo-lhe a pergunta sobre as sevícias feitas às mulheres. O que é que se passou em seguida?

R.: Se fosse um ilustre desconhecido, ter-me-ia sentido em perigo. Estava constantemente em perigo. Por três vezes estive com guardas à vista. Viveu-se com estas ameaças durante metade da rodagem. Aquilo fazia parte da intimidação. Os congoleses já estão habituados. Devo reconhecer que a minha pele branca me protegeu. Um realizador congolês nunca se teria atrevido a fazer este filme. Lá, há discriminação, há desigualdade. Mas tive frequentemente que modular a minha equipa em função dos lugares de rodagem (mobutistas, rebeldes, etc.). E é necessário também sublinhar que o facto de ser um estrangeiro dá mais apetência financeira às autoridades. Quanto ao general Maï-Maï, ele sabia a importância deste filme, porque conhecia o filme Mobutu, Rei do Zaire. Aproveitou para explicar que fazia o seu melhor, mas que havia ovelhas negras na sua manada.

P.: O rito iniciático dos guerreiros Maï-Maï é uma reconstituição ou captou-os assim durante a rodagem?

R.: Captei-o. E, em dado momento, levaram-me e fui sujeito ao seu ritual de iniciação. Tive também uma espécie de protecção de chefe. Esta correlação com a tradição protegeu-nos, ainda que não se acredite nisso.

P.: Rio Congo foi mais difícil de realizar do que os outros filmes sobre este país?

R.: Sim e não. O mais difícil foi Os Últimos Colonos. Fui preso e torturado durante 48 horas. O meu material foi confiscado. Até à fuga de Mobutu, não pude realizá-lo. Tive uma depressão por ter sofrido tortura moral. Não me bateram, eles sabem que há um limite à violência que não se pode ultrapassar, mas, para me intimidarem, torturaram, na minha frente, outras pessoas que achavam que me tinham ajudado. Rio Congo, em contrapartida, foi um desafio logístico penoso, porque era necessário transportar um material delicado sobre os barcos e as pirogas. 15 14

potências ocidentais não permitiram a África a sua descolagem, não será também porque os africanos também têm uma parte da responsabilidade? Na maior parte dos países da África Central, há debate. Voltar à nostalgia pré-colonial é utopia. É o que fazem os muçulmanos integristas. Mas os jovens africanos dizem: "Vamos manter os nossos valores e, ao mesmo tempo, nós vamos modernizar-nos".

P.: Deus está presente ao longo de todo o filme, enquanto a canção no fim diz: "Não esperem que o espírito de Deus vos venha salvar". A religião surge actualmente, para o congolês, como o ópio do povo de que falava Karl Marx?

R.: Os encontros falhados, de forma repetida, com a história, e as decepções desde os anos 60 mergulharam os congoleses no irracional. E daí resultaram duas vias: o regresso às crenças animistas e às feitiçarias, com as crianças feiticeiras — vê-se uma no filme — e a emergência das Igrejas evangelistas, em detrimento das Igrejas tradicionais. Há uma nova cruzada de evangelização. Estas Igrejas voltam a dar energia aos seus crentes. São muito numerosas, algumas mais morais que outras, que fazem da dolarização do culto ou da moralização da vida pública uma das bases da sua acção. O povo está farto da classe política, e estas Igrejas são complementares da tradição da feitiçaria através de sessões de transe onde é necessário expulsar o demónio ou através dos elementos festivos e musicais que atraem a simpatia da juventude.

P.: Para lá das trevas, das alegrias e dos sofrimentos, é, apesar de tudo, a vida de miséria de certos congoleses que o filme mostra. Além disso, o filme mostra imagens atrozes de cadáveres inchados a virem à tona de água. Tal como também mostra, a rosto descoberto, as raparigas e as mulheres violadas, e um homem muito jovem que conta as suas proezas de feiticeiro, assim como crianças pequenas que trabalham numa pedreira abandonada. Não será, tudo isto, "voyeurismo"? Não tem medo de processos por não ter protegido estas crianças?

R.: Não é nada disso o que eu faço. Estou lá como alguém que passa. Encontro os congoleses, dou-lhes a palavra, mesmo aos Maï-Maï. Dirigem-se mais a mim do que eu a eles. As mulheres violadas e todos os outros que tomam a palavra, é o orgulho e a dignidade que se reencontram através dela. Como todos os jornalistas do mundo, não posso deixar passá-los em silêncio, não posso ignorá-los. Exprimem a necessidade de não serem esquecidos, de denunciar esta impunidade. A mãe da pequena rapariga dirige-se a nós, o médico quer que se fale da sua situação. As crianças das quais fala estiveram no Parlamento, e tudo o que fizemos, fizemo-lo com

a sua permissão e a dos seus pais. Não há pois risco de processos. De resto, nos quinze dias que se seguiram ao nosso encontro, obtive dois financiamentos de instituições belgas para a criação de duas estruturas de apoio a estas crianças. A minha consciência está em paz. Era necessário mostrar estas crianças. Hoje, friamente, exploram-os e chicoteiam-os como escravos. Era necessário mostrá-las. Não há "voyeurisme", há sim uma obrigação de testemunhar.

P.: Sentimos apreensão na sua voz quando embaraçou o general Maï-Maï fazendo-lhe a pergunta sobre as sevícias feitas às mulheres. O que é que se passou em seguida?

R.: Se fosse um ilustre desconhecido, ter-me-ia sentido em perigo. Estava constantemente em perigo. Por três vezes estive com guardas à vista. Viveu-se com estas ameaças durante metade da rodagem. Aquilo fazia parte da intimidação. Os congoleses já estão habituados. Devo reconhecer que a minha pele branca me protegeu. Um realizador congolês nunca se teria atrevido a fazer este filme. Lá, há discriminação, há desigualdade. Mas tive frequentemente que modular a minha equipa em função dos lugares de rodagem (mobutistas, rebeldes, etc.). E é necessário também sublinhar que o facto de ser um estrangeiro dá mais apetência financeira às autoridades. Quanto ao general Maï-Maï, ele sabia a importância deste filme, porque conhecia o filme Mobutu, Rei do Zaire. Aproveitou para explicar que fazia o seu melhor, mas que havia ovelhas negras na sua manada.

P.: O rito iniciático dos guerreiros Maï-Maï é uma reconstituição ou captou-os assim durante a rodagem?

R.: Captei-o. E, em dado momento, levaram-me e fui sujeito ao seu ritual de iniciação. Tive também uma espécie de protecção de chefe. Esta correlação com a tradição protegeu-nos, ainda que não se acredite nisso.

P.: Rio Congo foi mais difícil de realizar do que os outros filmes sobre este país?

R.: Sim e não. O mais difícil foi Os Últimos Colonos. Fui preso e torturado durante 48 horas. O meu material foi confiscado. Até à fuga de Mobutu, não pude realizá-lo. Tive uma depressão por ter sofrido tortura moral. Não me bateram, eles sabem que há um limite à violência que não se pode ultrapassar, mas, para me intimidarem, torturaram, na minha frente, outras pessoas que achavam que me tinham ajudado. Rio Congo, em contrapartida, foi um desafio logístico penoso, porque era necessário transportar um material delicado sobre os barcos e as pirogas. 15 14

E os constrangimentos administrativos foram permanentes. Contudo, quando éramos detidos, o Estado central intervinha, porque tínhamos todas as autorizações.

Tradução livre. Entrevista de Jean-Marie Mollo Olinga, disponível em www.africine.org/?menu=art&no=4828.

3. Rio Congo

Foi numa sala apinhada de gente que o filme do realizador belga Thierry Michel foi estreado, quinta-feira, 29 de Setembro passado, no âmbito da 20.ª edição do festival internacional do filme de língua francesa de Namur. E com razão, pois, com Mobutu, Rei do Zaire, saído em 1999, e os seus outros filmes, principalmente relacionados com a África e o Congo, Tierry Michel ganhou reputação neste festival. Depois de ter apresentado, designadamente, os filmes Zaire,

O Ciclo da Serpente, Os Últimos Colonos, Mobutu, Rei do Zaire e, alguns anos após a rodagem do documentário Sob o Véu das Aparências, rodado no Irão, voltou a África.

Acompanhado por uma melodia suave, composta pelo cantor congolês Lokua Kanza, a voz de Thierry Michel, narrador, guia o espectador nas águas do rio Congo, dedica-se a retratar a vida quotidiana e a narrar a história desta colónia belga, de que não se cansa de falar. No rio, o realizador acompanha uma embarcação de tal modo sobrecarregada de gente que dá a impressão de ser uma aldeia flutuante. Aqui, homens, mulheres e crianças disputam o espaço com as cabras, os porcos e outros animais. A alguns metros de distância, na margem do rio, descobre-se uma floresta luxuriante cheia de tesouros e testemunha de tantas aflições.

Nas margens, nas diferentes escalas da viagem, as imagens mostram as alegrias e os sofrimentos de um povo, as festas e as cerimónias que ritmam a existência dos homens das pirogas, dos pescadores, dos garimpeiros de diamantes, dos comerciantes. Através do testemunho de um chefe rebelde Maï-Maï, que se diz inspirado pela acção divina, mostram uma outra imagem da guerra que arruína o país. Mostram que, para lá das trevas e da história trágica e violenta deste continente, há vida e felicidade, a dos rituais, a dos cantos, a das danças. Não faltam à chamada as novas igrejas, as novas seitas religiosas, que prosperam nos países africanos. Como em várias ocasiões neste filme, o realizador abstém-se de falar e deixa às imagens e ao som esse cuidado de revelar os seus segredos. Num plano do filme vê-se o pastor a incitar o "fiel" a dar o máximo "para o arrependimento e a

glória do Senhor, que oferece mais a quem dá mais". Numa outra sequência, vê-se uma mulher, aparentemente desfavorecida em absoluto, sem nada, a contar os seus últimos cêntimos para os colocar no cesto da "salvação". Os fiéis cantam e entram em transe, o pastor rejubila, o Congo procura-se.

Ao longo de toda a subida dos 4371 km que compõem a maior bacia fluvial do mundo, o realizador afasta as ervas e as passagens para entrar nos pedaços de ruínas do país. Aqui, é com sarcasmo que faz uma incursão no palácio de Mobutu, agora em ruínas. Um pouco mais à frente apresenta populações à mercê da doença do sono e da mosca tsé-tsé. Os testemunhos de uns e de outros deixam siderado o espectador, ao mesmo tempo que, de vez em quando, faz curtas remissões às imagens de arquivo do país. Com temor, vêem-se pretos a levantar traves de madeiras aos ombros para a construção da via-férrea. Um breve relance é feito igualmente aos exploradores Livingstone e Stanley, aos reis colonizadores Leopoldo II e Balduíno I e aos líderes africanos Lumumba, Mobutu e Kabila. Todas as imagens que se entrechocam deixam falar por si mesmas a história deste país, e, portanto, de África. Uma "neutralidade" que custa a admitir a certos críticos, segundo os quais, o realizador deveria ter-se implicado politicamente mais nesta realização e denunciar, claramente, a responsabilidade de uns e de outros na história deste país.

Tradução Livre. Jornal Le Potenciel, R.D. do Congo, disponível em www.lepotentiel.com/afficher_article.php?id_edition=&id_article=26095.

4. África, levanta-te e avança

Contrariamente à Ásia do Sudeste, África, 40 anos depois, ainda não conseguiu sair do albergue, devido às guerras tribais, à ditadura, aos conflitos de poder e à corrupção que fazem o quotidiano dos Estados do continente. Houve certamente o tráfico de escravos, a colonização, seguidamente o aparecimento das independências e com elas o poder absoluto do chefe na África ancorado nas tradições. Mas é para se alcançar este resultado que os Chefes de Estado africanos se apropriam de tudo? Pode ser-se tão dotado de tantas riquezas como o Congo Democrático e estar-se perante um povo tão sofredor? Apesar da alternância dos governos, o povo africano continua na miséria, enquanto o continente está cheio de riquezas. 17 16

E os constrangimentos administrativos foram permanentes. Contudo, quando éramos detidos, o Estado central intervinha, porque tínhamos todas as autorizações.

Tradução livre. Entrevista de Jean-Marie Mollo Olinga, disponível em www.africine.org/?menu=art&no=4828.

3. Rio Congo

Foi numa sala apinhada de gente que o filme do realizador belga Thierry Michel foi estreado, quinta-feira, 29 de Setembro passado, no âmbito da 20.ª edição do festival internacional do filme de língua francesa de Namur. E com razão, pois, com Mobutu, Rei do Zaire, saído em 1999, e os seus outros filmes, principalmente relacionados com a África e o Congo, Tierry Michel ganhou reputação neste festival. Depois de ter apresentado, designadamente, os filmes Zaire,

O Ciclo da Serpente, Os Últimos Colonos, Mobutu, Rei do Zaire e, alguns anos após a rodagem do documentário Sob o Véu das Aparências, rodado no Irão, voltou a África.

Acompanhado por uma melodia suave, composta pelo cantor congolês Lokua Kanza, a voz de Thierry Michel, narrador, guia o espectador nas águas do rio Congo, dedica-se a retratar a vida quotidiana e a narrar a história desta colónia belga, de que não se cansa de falar. No rio, o realizador acompanha uma embarcação de tal modo sobrecarregada de gente que dá a impressão de ser uma aldeia flutuante. Aqui, homens, mulheres e crianças disputam o espaço com as cabras, os porcos e outros animais. A alguns metros de distância, na margem do rio, descobre-se uma floresta luxuriante cheia de tesouros e testemunha de tantas aflições.

Nas margens, nas diferentes escalas da viagem, as imagens mostram as alegrias e os sofrimentos de um povo, as festas e as cerimónias que ritmam a existência dos homens das pirogas, dos pescadores, dos garimpeiros de diamantes, dos comerciantes. Através do testemunho de um chefe rebelde Maï-Maï, que se diz inspirado pela acção divina, mostram uma outra imagem da guerra que arruína o país. Mostram que, para lá das trevas e da história trágica e violenta deste continente, há vida e felicidade, a dos rituais, a dos cantos, a das danças. Não faltam à chamada as novas igrejas, as novas seitas religiosas, que prosperam nos países africanos. Como em várias ocasiões neste filme, o realizador abstém-se de falar e deixa às imagens e ao som esse cuidado de revelar os seus segredos. Num plano do filme vê-se o pastor a incitar o "fiel" a dar o máximo "para o arrependimento e a

glória do Senhor, que oferece mais a quem dá mais". Numa outra sequência, vê-se uma mulher, aparentemente desfavorecida em absoluto, sem nada, a contar os seus últimos cêntimos para os colocar no cesto da "salvação". Os fiéis cantam e entram em transe, o pastor rejubila, o Congo procura-se.

Ao longo de toda a subida dos 4371 km que compõem a maior bacia fluvial do mundo, o realizador afasta as ervas e as passagens para entrar nos pedaços de ruínas do país. Aqui, é com sarcasmo que faz uma incursão no palácio de Mobutu, agora em ruínas. Um pouco mais à frente apresenta populações à mercê da doença do sono e da mosca tsé-tsé. Os testemunhos de uns e de outros deixam siderado o espectador, ao mesmo tempo que, de vez em quando, faz curtas remissões às imagens de arquivo do país. Com temor, vêem-se pretos a levantar traves de madeiras aos ombros para a construção da via-férrea. Um breve relance é feito igualmente aos exploradores Livingstone e Stanley, aos reis colonizadores Leopoldo II e Balduíno I e aos líderes africanos Lumumba, Mobutu e Kabila. Todas as imagens que se entrechocam deixam falar por si mesmas a história deste país, e, portanto, de África. Uma "neutralidade" que custa a admitir a certos críticos, segundo os quais, o realizador deveria ter-se implicado politicamente mais nesta realização e denunciar, claramente, a responsabilidade de uns e de outros na história deste país.

Tradução Livre. Jornal Le Potenciel, R.D. do Congo, disponível em www.lepotentiel.com/afficher_article.php?id_edition=&id_article=26095.

4. África, levanta-te e avança

Contrariamente à Ásia do Sudeste, África, 40 anos depois, ainda não conseguiu sair do albergue, devido às guerras tribais, à ditadura, aos conflitos de poder e à corrupção que fazem o quotidiano dos Estados do continente. Houve certamente o tráfico de escravos, a colonização, seguidamente o aparecimento das independências e com elas o poder absoluto do chefe na África ancorado nas tradições. Mas é para se alcançar este resultado que os Chefes de Estado africanos se apropriam de tudo? Pode ser-se tão dotado de tantas riquezas como o Congo Democrático e estar-se perante um povo tão sofredor? Apesar da alternância dos governos, o povo africano continua na miséria, enquanto o continente está cheio de riquezas. 17 16

Subindo da foz até à nascente do rio, o Congo, Rio Congo descobre-nos os lugares da história tumultuosa de um país. O filme conta-nos a loucura das grandezas dos homens de Estado, os escombros de África mas também as suas tragédias. Serve também para validar a citação de Frantz Fanon, "a África tem a forma de um revólver e o Zaire é o seu gatilho". Thierry Michel escolhe este país como para dizer que a realidade do Congo/Zaire, pela sua população e pela sua geografia, tem repercussões sem todo o conjunto do continente. Através deste país, vivem-se todas as contradições e os tormentos de África. As imagens de arquivo de Stanley e Leopoldo II, colonizadores do Congo, bem como as suas obras e as imagens da Universidade abandonada ou do caminho-de-ferro desactivado, mostram como os africanos não souberam capitalizar a herança colonial, nem mesmo algum benefício da presença ocidental no continente. Palácios de Mobutu a caírem em ruínas e erigidos em zonas de enclave, os problemas de transporte, o naufrágio de uma barca, arrombada no seu casco, em que se afogam 250 pessoas, ou ainda a jangada que se atola no fundo do rio e lá permanece quatro meses, mostram como os líderes africanos utilizam os fundos destinados à gestão do governo ou da comunidade.

Mas não há apenas dramas! Há também a Felicidade. E as imagens de festa de uma plataforma flutuante, a vida diária numa jangada em cada etapa da viagem, exprimem-no bem. Mais adiante, a câmara de Thierry Michel vai encontrar a homília do pastor no interior das igrejas do despertar que invadiram o Congo para atraírem a atenção dos africanos. Como é que um país que reza tanto não se consegue livrar do jugo dos conflitos e da miséria? A religião em África arruína as populações. Face a um povo desamparado que procura uma força espiritual, os bandidos das grandes facilidades criaram novas igrejas para extorquirem somas enormes aos seus adeptos. "O poder financeiro acompanha o poder divino, e dêem então a partir de 500 dólares e o vosso poder será multiplicado por esta taxa". O encontro com o chefe das milícias Maï-Maï a apoiar-se na Bíblia leva o espectador a compreender o fracasso da religião. O cinzento do céu ou do espaço, assim como o verde da floresta luxuriante que encerra as margens do rio indicam simultaneamente a tristeza e a esperança dos dias vindouros. Todas as imagens são apoiadas em canções melancólicas de Lokua Kanza. Acompanhadas dos sons de guitarra, elas questionam-se sobre o número de almas, sobre o sangue dos seres humanos que morreram no Congo.

Mas para lá deste sofrimento expresso através dos cantos de lamentações, este povo consegue conservar a sua força interior, a sua alegria de viver e é por isso que resiste a todas as turbulências. E os títulos "Tokoleka", tradução em francês "Passamos", "Chimama" ou "Levanta-te" são as mensagens de optimismo com as quais o filme termina.

Tradução livre. Yvette Mbogo, publicado a 24/08/2006, Africiné, 10.º FENCAF (Festival Ecrans Noirs), disponível em www.africine.org/?menu=film&no=1149.

19 18

Subindo da foz até à nascente do rio, o Congo, Rio Congo descobre-nos os lugares da história tumultuosa de um país. O filme conta-nos a loucura das grandezas dos homens de Estado, os escombros de África mas também as suas tragédias. Serve também para validar a citação de Frantz Fanon, "a África tem a forma de um revólver e o Zaire é o seu gatilho". Thierry Michel escolhe este país como para dizer que a realidade do Congo/Zaire, pela sua população e pela sua geografia, tem repercussões sem todo o conjunto do continente. Através deste país, vivem-se todas as contradições e os tormentos de África. As imagens de arquivo de Stanley e Leopoldo II, colonizadores do Congo, bem como as suas obras e as imagens da Universidade abandonada ou do caminho-de-ferro desactivado, mostram como os africanos não souberam capitalizar a herança colonial, nem mesmo algum benefício da presença ocidental no continente. Palácios de Mobutu a caírem em ruínas e erigidos em zonas de enclave, os problemas de transporte, o naufrágio de uma barca, arrombada no seu casco, em que se afogam 250 pessoas, ou ainda a jangada que se atola no fundo do rio e lá permanece quatro meses, mostram como os líderes africanos utilizam os fundos destinados à gestão do governo ou da comunidade.

Mas não há apenas dramas! Há também a Felicidade. E as imagens de festa de uma plataforma flutuante, a vida diária numa jangada em cada etapa da viagem, exprimem-no bem. Mais adiante, a câmara de Thierry Michel vai encontrar a homília do pastor no interior das igrejas do despertar que invadiram o Congo para atraírem a atenção dos africanos. Como é que um país que reza tanto não se consegue livrar do jugo dos conflitos e da miséria? A religião em África arruína as populações. Face a um povo desamparado que procura uma força espiritual, os bandidos das grandes facilidades criaram novas igrejas para extorquirem somas enormes aos seus adeptos. "O poder financeiro acompanha o poder divino, e dêem então a partir de 500 dólares e o vosso poder será multiplicado por esta taxa". O encontro com o chefe das milícias Maï-Maï a apoiar-se na Bíblia leva o espectador a compreender o fracasso da religião. O cinzento do céu ou do espaço, assim como o verde da floresta luxuriante que encerra as margens do rio indicam simultaneamente a tristeza e a esperança dos dias vindouros. Todas as imagens são apoiadas em canções melancólicas de Lokua Kanza. Acompanhadas dos sons de guitarra, elas questionam-se sobre o número de almas, sobre o sangue dos seres humanos que morreram no Congo.

Mas para lá deste sofrimento expresso através dos cantos de lamentações, este povo consegue conservar a sua força interior, a sua alegria de viver e é por isso que resiste a todas as turbulências. E os títulos "Tokoleka", tradução em francês "Passamos", "Chimama" ou "Levanta-te" são as mensagens de optimismo com as quais o filme termina.

Tradução livre. Yvette Mbogo, publicado a 24/08/2006, Africiné, 10.º FENCAF (Festival Ecrans Noirs), disponível em www.africine.org/?menu=film&no=1149.

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Parte 3.Pontos de vista de universitários sobre o filme Rio Congo, sobre África

5. Rio Congo: um outro olhar sobre o Congo

Rio Congo, um olhar de esperança de um renascimento humano, expresso simbolicamente pela difícil e bem sucedida subida do rio, da foz até à nascente.

“Trabalhei no Iraque, no Afeganistão, na Palestina, no cabo das

tormentas. Nunca vivi aí nada de semelhante ao que senti quando voltei ao Congo:

avassalado por paisagens, assombrado por rostos que me fazem insónias com sensações

indizíveis, nem mesmo aos meus próximos.” Este texto, que cito de memória, foi-me enviado por um grande repórter da Radio Suisse Romande, no final de uma missão no Leste do Congo, depois dos nossos caminhos e das nossas impressões se terem aí cruzado. Hoje, gostaria que ele visse também este filme. Nele reconhecerá, sem dúvida, uma obra magistral, para a qual se deseja um grande público, mas na qual só se entra completamente e sem equívocos quando se sente a "fraternidade do indizível".

Sugerir o indizível

Indizível da dimensão humana no Congo. Tendo em conta os seus filmes anteriores, Thierry Michel não pode ser suspeito de ignorar as dominações que laceraram o país, nem de ser indiferente aos movimentos geradores de esperança que se encontram activos nesta estrutura social. Mas optou, desta vez, por deixar falar o "Congo do coração". Assumiu o risco de exprimir aquilo que indigna ou fascina, mas que não é perceptível por um olhar de turista; ou o que caberia num estudo socio-político, mas está para além dos inquéritos e das explanações descritivas.

Evoca o que só é possível dizer de um modo poético. Foi necessária uma longa convivência, balizada alternadamente pela fascinação, pela revolta, pela simpatia, pelo desânimo... Por momentos, chega-se a sublimar as emoções e a ignorar a tentação analítica, visando chegar à consciência de uma humanidade ali tão exposta, acolhedora e vulnerável. Thierry Michel foi bem sucedido a concentrar estes clarões de luz numa obra magistral. Contudo, a produção do filme, assim como a recepção pelo público, expõem-no a uma pergunta incontornável: Apesar de tudo, o coração que fala, não será o coração do branco? 21

Parte 3.Pontos de vista de universitários sobre o filme Rio Congo, sobre África

5. Rio Congo: um outro olhar sobre o Congo

Rio Congo, um olhar de esperança de um renascimento humano, expresso simbolicamente pela difícil e bem sucedida subida do rio, da foz até à nascente.

“Trabalhei no Iraque, no Afeganistão, na Palestina, no cabo das

tormentas. Nunca vivi aí nada de semelhante ao que senti quando voltei ao Congo:

avassalado por paisagens, assombrado por rostos que me fazem insónias com sensações

indizíveis, nem mesmo aos meus próximos.” Este texto, que cito de memória, foi-me enviado por um grande repórter da Radio Suisse Romande, no final de uma missão no Leste do Congo, depois dos nossos caminhos e das nossas impressões se terem aí cruzado. Hoje, gostaria que ele visse também este filme. Nele reconhecerá, sem dúvida, uma obra magistral, para a qual se deseja um grande público, mas na qual só se entra completamente e sem equívocos quando se sente a "fraternidade do indizível".

Sugerir o indizível

Indizível da dimensão humana no Congo. Tendo em conta os seus filmes anteriores, Thierry Michel não pode ser suspeito de ignorar as dominações que laceraram o país, nem de ser indiferente aos movimentos geradores de esperança que se encontram activos nesta estrutura social. Mas optou, desta vez, por deixar falar o "Congo do coração". Assumiu o risco de exprimir aquilo que indigna ou fascina, mas que não é perceptível por um olhar de turista; ou o que caberia num estudo socio-político, mas está para além dos inquéritos e das explanações descritivas.

Evoca o que só é possível dizer de um modo poético. Foi necessária uma longa convivência, balizada alternadamente pela fascinação, pela revolta, pela simpatia, pelo desânimo... Por momentos, chega-se a sublimar as emoções e a ignorar a tentação analítica, visando chegar à consciência de uma humanidade ali tão exposta, acolhedora e vulnerável. Thierry Michel foi bem sucedido a concentrar estes clarões de luz numa obra magistral. Contudo, a produção do filme, assim como a recepção pelo público, expõem-no a uma pergunta incontornável: Apesar de tudo, o coração que fala, não será o coração do branco? 21

Um percurso iniciático...

O realizador não "faz" um documentário. Mobiliza notavelmente os recursos da "sétima arte" para transfigurar uma situação real, que assume, assim, o valor de parábola.

Trata-se de subir a parte navegável do rio a bordo de uma embarcação, verdadeira Arca de Noé, sobrelotada. Ao longo das margens, as cenas do quotidiano são outras tantas janelas abertas para um país devastado e magnífico, um povo que sofre ou faz sofrer, que resiste ou foge de uma realidade insuportável.

Depois da curva do rio, em Kisangani, ao sabor de encontros ocasionais, a dimensão iniciática da viagem é focalizada num condensado de realidades sociais: vítimas, "bons samaritanos", senhores da guerra, profetas, verdadeiros e falsos. O realizador entra na intimidade da sociedade, sugere notavelmente a complexidade de pessoas e de situações, distingue as vozes das gentes "de bem". Contudo, a sua visão não é, de modo algum, analítica ou normativa. O sentido está em algo diferente. O filme termina na nascente do rio, de onde surge a vida, da qual emergem seres humanos, no seio dos quais uma ordem social procura, sempre de maneira precária, resgatar-se da violência.

...semeado de obstáculos

A produção deste filme é confrontada com uma série de obstáculos. Como ter acesso à realidade das coisas sem comprometimentos? Como não cair no "voyeurismo" quando se está a pôr a nu as situações reais? Como escapar ao paternalismo quando se tem o controlo da filmagem? Para além do mais, uma tal obra expõe-se a muitas críticas. Não dissimula ela as relações de poder, uma vez que é concebida numa perspectiva que não é a de revelar a engrenagem da dominação? De resto, não preconiza ela a resignação, dando uma dimensão cósmica à realidade sócio-histórica que a perspectiva integra na força inegável do rio? Por último, no que se refere à recepção pelo grande público, como é que este conjunto de imagens de elevado teor sugestivo pode deixar de alimentar a piedade, a admiração, a revolta, o desprezo, o exotismo, tantas manifestações de senso comum que estão nos antípodas da lucidez e da vontade necessárias para reconstruir a República Democrática do Congo?

Pode responder-se que a realização mostra como este grande país foi pilhado, material e moralmente, do exterior e do interior, depois da sua população

ter sido lançada brutalmente no processo de modernização capitalista. À semelhança da imagem do gigantesco tronco de árvore cortado, que se vê transportado pelos "indígenas", sob o chicote de "colonos" de capacete, o filme opera um corte na história do Congo: da imposição violenta da ordem colonial à decomposição da ordem pós-colonial. Com muita inteligência, são entrecortadas sequências históricas, cuidadosamente seleccionadas em imagens de arquivo, com os estigmas reais que emergem das paisagens e das situações contemporâneas. Apesar de tudo, este "tronco" mutilado de história, de ontem e de hoje, é levado por homens desligados de tudo. De onde vêm, quem são, quais as relações entre eles, como é que eles dão sentido à sua própria realidade? Este filme é, por conseguinte, individualista e estritamente behaviorista?

A situação parece agravar-se quando se vê, no fim, o nome de Georges Forrest aparecer nos agradecimentos. No entanto, visionando o making-of, compreender-se-á melhor quanto a realização foi uma tarefa titânica, impossível sem conexões múltiplas, não ligadas a opções políticas ou ideológicas, mas a constrangimentos administrativos e materiais a ultrapassar com os meios de que se podia dispor no terreno...

À saída, um congolês expatriado vitupera o paternalismo do filme. Como dizer-lhe, quando se é branco, que o que aqui é visto parece corresponder, sem retoques nem arranjos politicamente correctos, à limitada experiência que se tem dos lugares do Congo profundo?

Itinerário simbólico

Em suma, em Rio Congo, Thierry Michel optou por seguir um guião do quotidiano, ao sabor dos acasos de um itinerário simbólico. A sua intenção não era fazer inquéritos ou enveredar pelas lógicas da abordagem social… Atendendo ao seu trabalho anterior, ele estava certamente a preparar-se para passar a outra coisa e estava capacitado para a fazer. A perspectiva deste último filme é, por assim dizer, "pós-sociológica" e "pós-política".

Sabe-se que "pós-" não é sinónimo de "a", o prefixo que exprime "ausência de". Naquela estrutura social congolesa, podemos nela viver, podemos colher informação sobre ela, podemos procurar explicar os seus mecanismos de funcionamento. Mas, no decorrer destas diligências, descobre-se que há uma parte 23 22

Um percurso iniciático...

O realizador não "faz" um documentário. Mobiliza notavelmente os recursos da "sétima arte" para transfigurar uma situação real, que assume, assim, o valor de parábola.

Trata-se de subir a parte navegável do rio a bordo de uma embarcação, verdadeira Arca de Noé, sobrelotada. Ao longo das margens, as cenas do quotidiano são outras tantas janelas abertas para um país devastado e magnífico, um povo que sofre ou faz sofrer, que resiste ou foge de uma realidade insuportável.

Depois da curva do rio, em Kisangani, ao sabor de encontros ocasionais, a dimensão iniciática da viagem é focalizada num condensado de realidades sociais: vítimas, "bons samaritanos", senhores da guerra, profetas, verdadeiros e falsos. O realizador entra na intimidade da sociedade, sugere notavelmente a complexidade de pessoas e de situações, distingue as vozes das gentes "de bem". Contudo, a sua visão não é, de modo algum, analítica ou normativa. O sentido está em algo diferente. O filme termina na nascente do rio, de onde surge a vida, da qual emergem seres humanos, no seio dos quais uma ordem social procura, sempre de maneira precária, resgatar-se da violência.

...semeado de obstáculos

A produção deste filme é confrontada com uma série de obstáculos. Como ter acesso à realidade das coisas sem comprometimentos? Como não cair no "voyeurismo" quando se está a pôr a nu as situações reais? Como escapar ao paternalismo quando se tem o controlo da filmagem? Para além do mais, uma tal obra expõe-se a muitas críticas. Não dissimula ela as relações de poder, uma vez que é concebida numa perspectiva que não é a de revelar a engrenagem da dominação? De resto, não preconiza ela a resignação, dando uma dimensão cósmica à realidade sócio-histórica que a perspectiva integra na força inegável do rio? Por último, no que se refere à recepção pelo grande público, como é que este conjunto de imagens de elevado teor sugestivo pode deixar de alimentar a piedade, a admiração, a revolta, o desprezo, o exotismo, tantas manifestações de senso comum que estão nos antípodas da lucidez e da vontade necessárias para reconstruir a República Democrática do Congo?

Pode responder-se que a realização mostra como este grande país foi pilhado, material e moralmente, do exterior e do interior, depois da sua população

ter sido lançada brutalmente no processo de modernização capitalista. À semelhança da imagem do gigantesco tronco de árvore cortado, que se vê transportado pelos "indígenas", sob o chicote de "colonos" de capacete, o filme opera um corte na história do Congo: da imposição violenta da ordem colonial à decomposição da ordem pós-colonial. Com muita inteligência, são entrecortadas sequências históricas, cuidadosamente seleccionadas em imagens de arquivo, com os estigmas reais que emergem das paisagens e das situações contemporâneas. Apesar de tudo, este "tronco" mutilado de história, de ontem e de hoje, é levado por homens desligados de tudo. De onde vêm, quem são, quais as relações entre eles, como é que eles dão sentido à sua própria realidade? Este filme é, por conseguinte, individualista e estritamente behaviorista?

A situação parece agravar-se quando se vê, no fim, o nome de Georges Forrest aparecer nos agradecimentos. No entanto, visionando o making-of, compreender-se-á melhor quanto a realização foi uma tarefa titânica, impossível sem conexões múltiplas, não ligadas a opções políticas ou ideológicas, mas a constrangimentos administrativos e materiais a ultrapassar com os meios de que se podia dispor no terreno...

À saída, um congolês expatriado vitupera o paternalismo do filme. Como dizer-lhe, quando se é branco, que o que aqui é visto parece corresponder, sem retoques nem arranjos politicamente correctos, à limitada experiência que se tem dos lugares do Congo profundo?

Itinerário simbólico

Em suma, em Rio Congo, Thierry Michel optou por seguir um guião do quotidiano, ao sabor dos acasos de um itinerário simbólico. A sua intenção não era fazer inquéritos ou enveredar pelas lógicas da abordagem social… Atendendo ao seu trabalho anterior, ele estava certamente a preparar-se para passar a outra coisa e estava capacitado para a fazer. A perspectiva deste último filme é, por assim dizer, "pós-sociológica" e "pós-política".

Sabe-se que "pós-" não é sinónimo de "a", o prefixo que exprime "ausência de". Naquela estrutura social congolesa, podemos nela viver, podemos colher informação sobre ela, podemos procurar explicar os seus mecanismos de funcionamento. Mas, no decorrer destas diligências, descobre-se que há uma parte 23 22

imperscrutável, da qual só se consegue entrever muito pouco, e apenas na medida do esforço do escutar, do viver e da compreensão que nos permitimos conceder. Então, questionamo-nos sobre o que é que, nesta realidade social, se dá a conhecer sobre a destruição e o renascimento dos seres humanos. Tal foi sem dúvida a abordagem do autor do filme. Mas a obra, uma vez realizada, escapa ao seu autor...

Estará ela, por isso, votada a ser tomada como hino esotérico a uma humanidade fundamental, mas "des-socializada", no coração de uma natureza esplendorosa? Pelo contrário, pode considerar-se que o autor não rompeu com a perspectiva da interpretação proposta no Ciclo da Serpente e em Mobutu, Rei do

Zaire. Mesmo não sendo o propósito principal do filme, podemos ver aí, com efeito, um apelo a uma leitura da situação que tome em toda a sua dimensão toda a realidade do que se passa no nível de "baixo". Encara-se correntemente a crise do Congo e as vias de saída pelo nível de "cima": conseguir realizar eleições livres, restaurar a autoridade do Estado, empreender acções internacionais, reiniciar os circuitos macroeconómicos de que depende a redistribuição da riqueza... E frisa-se também que é necessário alterar os comportamentos "desviantes" (corrupção, nepotismo, tráfico...) susceptíveis de serem obstáculos a este círculo virtuoso.

Uma obra de uma equipa da Universidade de Gand, muito pouco conhecida do público de língua francesa, convida a completar o raciocínio. O que se passa "em cima" é a parte emersa do iceberg: as grandes estruturas e o seu funcionamento, que provocam, "em baixo", o cortejo de degradação e de sofrimento que o filme põe em cena. Contudo, denunciar a avidez da parte "de cima" e as intrusões do exterior, varrer a história com os mecanismos de dominação e de destruição das identidades culturais, tudo isto não dispensa que se revele a trama das interacções diárias, aqui e agora... Ora, o que é se passa na base? Depois da longa decomposição mobutista, os anos de guerra alteraram os modos de vida das pessoas, as suas estratégias, os seus interesses, o sentido que dão à realidade. De boa fé ou cinicamente, são muito numerosos os indivíduos que aprenderam a tirar partido das suas vantagens num contexto de catástrofe. Para estes múltiplos actores, torna-se aceitável replicar, à sua pequena escala, comportamentos que são inaceitáveis à escala global, perpetuando, assim, a miséria. Vencer este estigma ao nível "micro" está também no cerne das tarefas de reconstrução.

O filme mostra esta situação paradoxal a partir de múltiplos comportamentos. Não se deixa contudo cair numa abordagem de tipo "Congo -

pessimismo". Com efeito, emana dele o sentimento formidável de uma vitalidade colectiva para se organizar com os meios de que dispõe, com a liderança de personalidades lúcidas, generosas, empreendedoras: o dinamismo das pessoas e do capitão da embarcação; o testemunho das mulheres violadas, primeiro passo para sair do sofrimento, na presença do médico; os fiéis que cantam em eco o apelo à justiça de um profeta "verdadeiro".

Esta cena de esperança de um renascimento humano é a expressão simbólica da viagem difícil e bem sucedida da subida da foz até à nascente...

...

Tradução livre. Paul Geradin, Universidade de Namur, disponível em www.laconscience.com/article.php?id_article=3915.

6. Rio Congo: um filme de Thierry Michel (2006)

Como conhecer África a partir duma poltrona de cinema? Como falar da África sub-Sahariana, convenhamos, àqueles que nunca a visitaram? Para Thierry Michel não é a sua primeira experiência onde nos dá a conhecer África com afecto: em 1999, um retrato de Rei (Mobutu); em 1999, um hospital; em 1994, as instituições humanitárias na Somália... Com Rio Congo, aí estamos no rio mítico de África e dos admiradores de Tintin, dos exploradores como Stanley, dos reis colonos como Leopoldo II, dos déspotas como Mobutu, das empresas e das missões católicas. Mas está-se aí, no meio de todo um povo de homens de piroga, de pescadores, de comerciantes, de militares e rebeldes, de africanos pura e simplesmente, muitas mulheres e crianças. Aí tudo pode mudar repentinamente para o trágico, numa decoração grandiosa para os nossos olhares europeus, a da selva equatorial e a do rio que não se assemelha em nada aos nossos rios.

A novidade de Thierry Michel consiste, neste filme, em ter saído das cidades, de Kinshasa, Kisangani ou Lubumbashi, que já antes tinha filmado, para nos contar a vida dos que têm apenas uma só preocupação: a de sobreviver a tudo o que possa acontecer. E que se assemelha, sem dúvida, ao que foi a emergência das colónias, a independência, a guerra, a ditadura... Como entrar nessa África, sem guia, sem grande referencial a partir do qual se pudesse viajar? O rio tornou-se a espinha dorsal do Congo, o meio mais cómodo para as deslocações, mas numa 25 24

imperscrutável, da qual só se consegue entrever muito pouco, e apenas na medida do esforço do escutar, do viver e da compreensão que nos permitimos conceder. Então, questionamo-nos sobre o que é que, nesta realidade social, se dá a conhecer sobre a destruição e o renascimento dos seres humanos. Tal foi sem dúvida a abordagem do autor do filme. Mas a obra, uma vez realizada, escapa ao seu autor...

Estará ela, por isso, votada a ser tomada como hino esotérico a uma humanidade fundamental, mas "des-socializada", no coração de uma natureza esplendorosa? Pelo contrário, pode considerar-se que o autor não rompeu com a perspectiva da interpretação proposta no Ciclo da Serpente e em Mobutu, Rei do

Zaire. Mesmo não sendo o propósito principal do filme, podemos ver aí, com efeito, um apelo a uma leitura da situação que tome em toda a sua dimensão toda a realidade do que se passa no nível de "baixo". Encara-se correntemente a crise do Congo e as vias de saída pelo nível de "cima": conseguir realizar eleições livres, restaurar a autoridade do Estado, empreender acções internacionais, reiniciar os circuitos macroeconómicos de que depende a redistribuição da riqueza... E frisa-se também que é necessário alterar os comportamentos "desviantes" (corrupção, nepotismo, tráfico...) susceptíveis de serem obstáculos a este círculo virtuoso.

Uma obra de uma equipa da Universidade de Gand, muito pouco conhecida do público de língua francesa, convida a completar o raciocínio. O que se passa "em cima" é a parte emersa do iceberg: as grandes estruturas e o seu funcionamento, que provocam, "em baixo", o cortejo de degradação e de sofrimento que o filme põe em cena. Contudo, denunciar a avidez da parte "de cima" e as intrusões do exterior, varrer a história com os mecanismos de dominação e de destruição das identidades culturais, tudo isto não dispensa que se revele a trama das interacções diárias, aqui e agora... Ora, o que é se passa na base? Depois da longa decomposição mobutista, os anos de guerra alteraram os modos de vida das pessoas, as suas estratégias, os seus interesses, o sentido que dão à realidade. De boa fé ou cinicamente, são muito numerosos os indivíduos que aprenderam a tirar partido das suas vantagens num contexto de catástrofe. Para estes múltiplos actores, torna-se aceitável replicar, à sua pequena escala, comportamentos que são inaceitáveis à escala global, perpetuando, assim, a miséria. Vencer este estigma ao nível "micro" está também no cerne das tarefas de reconstrução.

O filme mostra esta situação paradoxal a partir de múltiplos comportamentos. Não se deixa contudo cair numa abordagem de tipo "Congo -

pessimismo". Com efeito, emana dele o sentimento formidável de uma vitalidade colectiva para se organizar com os meios de que dispõe, com a liderança de personalidades lúcidas, generosas, empreendedoras: o dinamismo das pessoas e do capitão da embarcação; o testemunho das mulheres violadas, primeiro passo para sair do sofrimento, na presença do médico; os fiéis que cantam em eco o apelo à justiça de um profeta "verdadeiro".

Esta cena de esperança de um renascimento humano é a expressão simbólica da viagem difícil e bem sucedida da subida da foz até à nascente...

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Tradução livre. Paul Geradin, Universidade de Namur, disponível em www.laconscience.com/article.php?id_article=3915.

6. Rio Congo: um filme de Thierry Michel (2006)

Como conhecer África a partir duma poltrona de cinema? Como falar da África sub-Sahariana, convenhamos, àqueles que nunca a visitaram? Para Thierry Michel não é a sua primeira experiência onde nos dá a conhecer África com afecto: em 1999, um retrato de Rei (Mobutu); em 1999, um hospital; em 1994, as instituições humanitárias na Somália... Com Rio Congo, aí estamos no rio mítico de África e dos admiradores de Tintin, dos exploradores como Stanley, dos reis colonos como Leopoldo II, dos déspotas como Mobutu, das empresas e das missões católicas. Mas está-se aí, no meio de todo um povo de homens de piroga, de pescadores, de comerciantes, de militares e rebeldes, de africanos pura e simplesmente, muitas mulheres e crianças. Aí tudo pode mudar repentinamente para o trágico, numa decoração grandiosa para os nossos olhares europeus, a da selva equatorial e a do rio que não se assemelha em nada aos nossos rios.

A novidade de Thierry Michel consiste, neste filme, em ter saído das cidades, de Kinshasa, Kisangani ou Lubumbashi, que já antes tinha filmado, para nos contar a vida dos que têm apenas uma só preocupação: a de sobreviver a tudo o que possa acontecer. E que se assemelha, sem dúvida, ao que foi a emergência das colónias, a independência, a guerra, a ditadura... Como entrar nessa África, sem guia, sem grande referencial a partir do qual se pudesse viajar? O rio tornou-se a espinha dorsal do Congo, o meio mais cómodo para as deslocações, mas numa 25 24

temporalidade que se torna como que iniciática, exactamente da mesma maneira que na época de Stanley em que a viagem era perigosa, como conta Kurtz, personagem surpreendente de Conrad em O Coração das Trevas.

A filmagem foi uma verdadeira expedição: o rio é longo. É seccionado por rápidos que é necessário contornar por terra. O filme desenrola-se entre as pessoas nas embarcações, nas pirogas, enquanto a alta tecnologia transportada (câmara HD, lâmpadas HMI), material frágil, depende da estrutura de apoio a electrogéneo e a combustível.

A verdadeira dificuldade decorreu da situação de guerra larvar nos sete países ribeirinhos, onde cada grupo rebelde guarda um território. Uma parte da rodagem foi consagrada ao "protocolo", ou seja, às "conversações" com as autoridades para poder filmar, incluindo a sequência com os guerreiros Maï-Maï que impuseram a entronização no "círculo", a iniciação pelo ferro, pelo fogo, pela água e pelo sangue.

Que procura Thierry Michel neste filme? "Não sei, talvez a loucura deste país." Alguns dizem que Kurtz é o

general Maï-Maï... É certo que com esta cena e os testemunhos das mulheres violadas se desce ao mais baixo nível da condição humana, ao "coração das trevas". Mas vai bem para lá das trevas de Conrad: porque o filme é calmo, com as quedas de água, a nascente, um fino fio sagrado para o congolês, assim como para qualquer homem frente à água que nasce, salta e borbulha, metáfora do renascimento africano, como é sentido por Thierry Michel. O filme não é pessimista como o era O

Pesadelo de Darwin. Médicos, enfermeiras, chefe de estação, mães e crianças, todos têm a sua dignidade. E sobretudo este personagem admirável do piloto que dirige esta Arca de Noé, que quer levar a bom porto. Está-se longe dos irresponsáveis que pululam no continente africano, como os Mugabe e outros Chefes de Estado imbecis, cúpidos e incapazes.

A vida do rio é contada também pelas imagens de arquivo que se sobrepõem como uma segunda viagem, e que se devem a filmes da época colonial belga. A ideia tinha sido montar uma enciclopédia cinematográfica do país, mesmo sendo, por vezes, obras de propaganda, "algumas magnificamente filmadas” de acordo com Thierry Michel. Trazer o passado para o presente leva à compreensão da perenidade dos efeitos da desflorestação, da exploração da natureza, da relação Preto-Branco, sendo certas imagens, de acordo com o realizador, "dolorosas" de ver.

O filme mostra pouco do debate que se desenrolou entre a Bélgica e o Congo, com comissões científicas que ajudaram a construir um novo olhar mais distanciado sobre a colonização. "A Bélgica reconheceu as suas responsabilidades, por exemplo, no assassinato de Lumumba".

Interrogamo-nos se a opção tomada por Thierry Michel de rodar uma verdadeira ode a África não é um enviesamento demasiado forte que pode atingir os créditos do filme. Mas a corrupção, as negociatas, as prisões, a doença, as mortes não são escondidos, nem o naufrágio de uma embarcação que custou a vida a duas centenas e meia de pessoas, tudo isto está bem presente. O rio continua a ser perigoso e nunca há certeza de se chegar ao fim da viagem. Mas a geografia do filme não é provavelmente a do rio. É uma geografia do cineasta, reconstruída pelo drama de toda esta gente. Com uma música que mistura os estilos, os ritmos, as vozes tradicionais, a mitologia, e que nos oferece este poema: "Escuta este vento a passar levando os espíritos sobre a água".

Tradução livre. Gilles Fumey, Universidade de Paris-Sorbonne (Paris IV), disponível em http://www.cafe-geo.net/article.php3?id_article=819.

7. A posição da UNESCO

É com um grande prazer pessoal que estou convosco esta noite para a projecção da antestreia do filme Rio Congo, para lá das trevas, de Thierry Michel.

Uma semana depois das celebrações do Dia Mundial da Água, que se realizou a 22 de Março último, e que foram dedicadas este ano ao tema "Água e Cultura", a UNESCO congratula-se em se associar a esta iniciativa, nascida da cooperação entre as delegações permanentes da República Democrática do Congo, do Reino da Bélgica e da Comunidade Francesa da Bélgica, com o apoio do Departamento África e do sector das ciências da UNESCO.

O filme Rio Congo convida a debruçarmo-nos sobre questões essenciais ligadas às relações entre a água — origem da vida e da criação, no sentido espiritual, material, intelectual e afectivo do termo — e o homem, na construção do social, do religioso, do económico e do político.

A ciência e a tecnologia desempenham, é certo, um papel crucial na gestão e na governança dos recursos de água. Mas a dimensão cultural da água 27 26

temporalidade que se torna como que iniciática, exactamente da mesma maneira que na época de Stanley em que a viagem era perigosa, como conta Kurtz, personagem surpreendente de Conrad em O Coração das Trevas.

A filmagem foi uma verdadeira expedição: o rio é longo. É seccionado por rápidos que é necessário contornar por terra. O filme desenrola-se entre as pessoas nas embarcações, nas pirogas, enquanto a alta tecnologia transportada (câmara HD, lâmpadas HMI), material frágil, depende da estrutura de apoio a electrogéneo e a combustível.

A verdadeira dificuldade decorreu da situação de guerra larvar nos sete países ribeirinhos, onde cada grupo rebelde guarda um território. Uma parte da rodagem foi consagrada ao "protocolo", ou seja, às "conversações" com as autoridades para poder filmar, incluindo a sequência com os guerreiros Maï-Maï que impuseram a entronização no "círculo", a iniciação pelo ferro, pelo fogo, pela água e pelo sangue.

Que procura Thierry Michel neste filme? "Não sei, talvez a loucura deste país." Alguns dizem que Kurtz é o

general Maï-Maï... É certo que com esta cena e os testemunhos das mulheres violadas se desce ao mais baixo nível da condição humana, ao "coração das trevas". Mas vai bem para lá das trevas de Conrad: porque o filme é calmo, com as quedas de água, a nascente, um fino fio sagrado para o congolês, assim como para qualquer homem frente à água que nasce, salta e borbulha, metáfora do renascimento africano, como é sentido por Thierry Michel. O filme não é pessimista como o era O

Pesadelo de Darwin. Médicos, enfermeiras, chefe de estação, mães e crianças, todos têm a sua dignidade. E sobretudo este personagem admirável do piloto que dirige esta Arca de Noé, que quer levar a bom porto. Está-se longe dos irresponsáveis que pululam no continente africano, como os Mugabe e outros Chefes de Estado imbecis, cúpidos e incapazes.

A vida do rio é contada também pelas imagens de arquivo que se sobrepõem como uma segunda viagem, e que se devem a filmes da época colonial belga. A ideia tinha sido montar uma enciclopédia cinematográfica do país, mesmo sendo, por vezes, obras de propaganda, "algumas magnificamente filmadas” de acordo com Thierry Michel. Trazer o passado para o presente leva à compreensão da perenidade dos efeitos da desflorestação, da exploração da natureza, da relação Preto-Branco, sendo certas imagens, de acordo com o realizador, "dolorosas" de ver.

O filme mostra pouco do debate que se desenrolou entre a Bélgica e o Congo, com comissões científicas que ajudaram a construir um novo olhar mais distanciado sobre a colonização. "A Bélgica reconheceu as suas responsabilidades, por exemplo, no assassinato de Lumumba".

Interrogamo-nos se a opção tomada por Thierry Michel de rodar uma verdadeira ode a África não é um enviesamento demasiado forte que pode atingir os créditos do filme. Mas a corrupção, as negociatas, as prisões, a doença, as mortes não são escondidos, nem o naufrágio de uma embarcação que custou a vida a duas centenas e meia de pessoas, tudo isto está bem presente. O rio continua a ser perigoso e nunca há certeza de se chegar ao fim da viagem. Mas a geografia do filme não é provavelmente a do rio. É uma geografia do cineasta, reconstruída pelo drama de toda esta gente. Com uma música que mistura os estilos, os ritmos, as vozes tradicionais, a mitologia, e que nos oferece este poema: "Escuta este vento a passar levando os espíritos sobre a água".

Tradução livre. Gilles Fumey, Universidade de Paris-Sorbonne (Paris IV), disponível em http://www.cafe-geo.net/article.php3?id_article=819.

7. A posição da UNESCO

É com um grande prazer pessoal que estou convosco esta noite para a projecção da antestreia do filme Rio Congo, para lá das trevas, de Thierry Michel.

Uma semana depois das celebrações do Dia Mundial da Água, que se realizou a 22 de Março último, e que foram dedicadas este ano ao tema "Água e Cultura", a UNESCO congratula-se em se associar a esta iniciativa, nascida da cooperação entre as delegações permanentes da República Democrática do Congo, do Reino da Bélgica e da Comunidade Francesa da Bélgica, com o apoio do Departamento África e do sector das ciências da UNESCO.

O filme Rio Congo convida a debruçarmo-nos sobre questões essenciais ligadas às relações entre a água — origem da vida e da criação, no sentido espiritual, material, intelectual e afectivo do termo — e o homem, na construção do social, do religioso, do económico e do político.

A ciência e a tecnologia desempenham, é certo, um papel crucial na gestão e na governança dos recursos de água. Mas a dimensão cultural da água 27 26

merece que nela nos demoremos um pouco a reflectir. Compreender a ligação entre a cultura e a natureza, entre o homem e a água, é a via que nos poderá levar à valorização dos conhecimentos tradicionais em matéria de protecção do ambiente e gestão dos recursos de água, de forma a reduzir em mil milhões o número de pessoas que estão privadas de água potável, e reduzir igualmente o grande número de crianças que morrem diariamente devido às doenças ligadas à água.

Esta viagem ao longo do rio Congo, o segundo rio mais importante no mundo pelo seu volume de água, oferece-nos também a ocasião de homenagear os povos ribeirinhos do rio e da sua bacia — República Democrática do Congo, Congo, Angola, Zâmbia, República Centro Africana, Camarões, Ruanda e Burundi.

Todos estes países têm relações privilegiadas de cooperação com a UNESCO e congratulo-me de os ver também esta noite neste filme. Ao longo de toda a sua história, a RDC viveu certamente períodos muito difíceis, nomeadamente, com uma guerra civil mortífera. Mas estou persuadido de que, embalado pelo seu rio, este país continua resolutamente o seu caminho para a luz, para a paz e para a reconciliação nacional. Fronteira natural da RDC, o rio Congo possui um imenso potencial fluvial, hidroeléctrico e turístico. Fonte da biodiversidade, cadinho rico de um património cultural imaterial, o rio Congo é o testemunho da história e da fusão dos povos. É igualmente um pólo de urbanização e um agente catalisador do desenvolvimento deste país.

Através da simbiose realizada entre a obra do realizador belga Thierry Michel e a do músico congolês Lokoua Kuanza, quero saudar a cooperação frutuosa que se estabeleceu nesta ocasião entre o Reino da Bélgica e a República Democrática do Congo.

Pela simbologia do rio e da água, o realizador quis que este filme exprimisse "uma viagem ao coração de África, um hino à vida", que ilustre o enorme reservatório de riquezas naturais, de homens competentes e motivados, assim como do saber-fazer que oculta o continente africano. Saúda-se igualmente o papel deste grande e majestoso rio como factor de integração regional para todos os países ribeirinhos.

Tradução livre. Discurso de Koichiro Matsuura, Director da Unesco sobre o Rio Congo, disponível em unesdoc.unesco.org/images/0014/001452/145205f.pdf.

Parte 4.Outros pontos de vista sobre o filme Rio Congo, sobre África

28

merece que nela nos demoremos um pouco a reflectir. Compreender a ligação entre a cultura e a natureza, entre o homem e a água, é a via que nos poderá levar à valorização dos conhecimentos tradicionais em matéria de protecção do ambiente e gestão dos recursos de água, de forma a reduzir em mil milhões o número de pessoas que estão privadas de água potável, e reduzir igualmente o grande número de crianças que morrem diariamente devido às doenças ligadas à água.

Esta viagem ao longo do rio Congo, o segundo rio mais importante no mundo pelo seu volume de água, oferece-nos também a ocasião de homenagear os povos ribeirinhos do rio e da sua bacia — República Democrática do Congo, Congo, Angola, Zâmbia, República Centro Africana, Camarões, Ruanda e Burundi.

Todos estes países têm relações privilegiadas de cooperação com a UNESCO e congratulo-me de os ver também esta noite neste filme. Ao longo de toda a sua história, a RDC viveu certamente períodos muito difíceis, nomeadamente, com uma guerra civil mortífera. Mas estou persuadido de que, embalado pelo seu rio, este país continua resolutamente o seu caminho para a luz, para a paz e para a reconciliação nacional. Fronteira natural da RDC, o rio Congo possui um imenso potencial fluvial, hidroeléctrico e turístico. Fonte da biodiversidade, cadinho rico de um património cultural imaterial, o rio Congo é o testemunho da história e da fusão dos povos. É igualmente um pólo de urbanização e um agente catalisador do desenvolvimento deste país.

Através da simbiose realizada entre a obra do realizador belga Thierry Michel e a do músico congolês Lokoua Kuanza, quero saudar a cooperação frutuosa que se estabeleceu nesta ocasião entre o Reino da Bélgica e a República Democrática do Congo.

Pela simbologia do rio e da água, o realizador quis que este filme exprimisse "uma viagem ao coração de África, um hino à vida", que ilustre o enorme reservatório de riquezas naturais, de homens competentes e motivados, assim como do saber-fazer que oculta o continente africano. Saúda-se igualmente o papel deste grande e majestoso rio como factor de integração regional para todos os países ribeirinhos.

Tradução livre. Discurso de Koichiro Matsuura, Director da Unesco sobre o Rio Congo, disponível em unesdoc.unesco.org/images/0014/001452/145205f.pdf.

Parte 4.Outros pontos de vista sobre o filme Rio Congo, sobre África

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8. Um povo à procura de futuro

Uma embarcação onde se amontoam famílias e gado, nas águas do rio Congo. A câmara de Thierry Michel, ligada às lutas e à esperança das populações em dificuldade, encontra-se a bordo nesta aventura. Através da panorâmica que se obtém percorrendo a linha das margens retrata-se um país martirizado, mas vivo.

Instalada numa espécie de aldeia flutuante onde viajam, lado a lado, animais e uma população muito variada, a câmara sobe o rio, o Congo, até à nascente, a mais de 4000 km da foz. O percurso da insólita embarcação descreve um longo "travelling" em que pontuam encontros que nos esclarecem sobre o estado da nação congolesa. Viagem ao coração das origens e da actualidade, o panorama é, por vezes, entrecortado por imagens de arquivo, filmes de propaganda colonialista, que põem em evidência, de maneira irónica, as mentiras do passado e as realidades do presente. A câmara tenta apreender a inércia na qual está mergulhado este vasto espaço em perpétuo recomeço, vítima das guerras intestinas e das ditaduras.

Do movimento emerge uma sucessão de constatações que não relevam da temporalidade e da geografia. A realização de Rio Congo não procura uma coerência física, mas preocupa-se em dar conta das realidades sociais e espirituais. Assim, faz-se uma escala para visitar uma universidade abandonada, aparentemente habitada pelo único vigilante do gigantesco herbário, esquecido de todos. Esta visão pungente torna-se aqui simbólica, como símbolo da morte da memória no seio de um país que se debate permanentemente com a sua sobrevivência. Mesmo os vestígios do reino de Mobutu, reconquistados pela selva e pelas águas, "génios que absorvem o poder e a revolução", estão como que exilados nas lembranças colectivas. O caminho não se fica por aí; bruscamente, avança-se, navega-se contra as correntes, cruzando com outros navios, outras populações em migração. Depois, como por acaso, numa margem, encontra-se uma multidão endomingada que ouve as charlatanices dos evangelistas. O pregador incita, com as suas pregações vociferantes, ao transe dos crentes e parece, sobretudo, estar atento à colecta obtida. Assim, aos poucos, no decurso da peregrinação, descobrem-se as religiões locais, com os seus maniqueísmos e os seus desvios. A fé, utilizada em proveito de causas, no mínimo egoístas e, no máximo, criminosas, mudando de forma, mas sempre em acção, revela o seu poder.

Uma viagem ao passado, contra a corrente do tempo

A cada aproximação das margens do rio, as imagens parecem ser habitadas pelas imagens do Apocalypse Now, em que a tripulação, à procura do coronel Kurtz, parece entrar numa loucura cada vez mais profunda. A coincidência é, no entanto, apenas aparente, uma vez que o filme de Francis Ford Coppola se inspira em O Coração das Trevas, uma novela de Joseph Conrad que se passa precisamente no Congo. Tudo acontece aqui como se o tempo se invertesse — como se o presente mais gritante voltasse a projectar-se nos erros do século XIX. Subir o rio em direcção à nascente é, também, viajar no sentido contrário ao da história e do progresso. Quanto mais se avança, mais a situação se embrulha em conflitos isolados, aparentemente afastados de qualquer racionalidade. Assim, cruzamo-nos com o chefe dos guerreiros Maï-Maï, um militar fantoche que usa o terror, as violações e as crenças heteróclitas para fundar o seu poder de pacotilha.

O retrato do Congo é, pois, parcelar, incompleto. Mas põe em destaque as consequências de uma colonização, a que se seguiu uma ditadura, que deixou um povo no caos. O trabalho das crianças nas minas de cobre e de cobalto não é dissimulado, e as zonas industriais e as infra-estruturas dos caminhos-de-ferro são mostradas tal como são: barcos naufragados e enferrujados à espera de poderem ser postos em actividade. O país parece tomado pela loucura e pela letargia, paradoxal estado de um mundo que quer apenas voltar a avançar e a redimir-se, à imagem, de resto, desta embarcação de tal forma sobrecarregada que corre o risco de encalhar a qualquer momento; mas, também, deste rio que se espraia, imenso, simultaneamente calmo e aterrador, indiferente às vicissitudes dos homens.

Tradução livre. Manuel Merlet, disponível em www.fluctuat.net.

9. Rio Congo

Road movie para lá das trevas. Com este sexto filme sobre o Congo, Thierry Michel decide deixar o universo urbano dos grandes centros políticos e económicos de Kinshasa, de Kisangani e de Lubumbashi. O filme Rio Congo faz-nos mergulhar no coração selvagem do país, numa África intemporal. Após muitas tragédias, como o tráfico de escravos, a dominação colonial, as ditaduras e as guerras, 31 30

8. Um povo à procura de futuro

Uma embarcação onde se amontoam famílias e gado, nas águas do rio Congo. A câmara de Thierry Michel, ligada às lutas e à esperança das populações em dificuldade, encontra-se a bordo nesta aventura. Através da panorâmica que se obtém percorrendo a linha das margens retrata-se um país martirizado, mas vivo.

Instalada numa espécie de aldeia flutuante onde viajam, lado a lado, animais e uma população muito variada, a câmara sobe o rio, o Congo, até à nascente, a mais de 4000 km da foz. O percurso da insólita embarcação descreve um longo "travelling" em que pontuam encontros que nos esclarecem sobre o estado da nação congolesa. Viagem ao coração das origens e da actualidade, o panorama é, por vezes, entrecortado por imagens de arquivo, filmes de propaganda colonialista, que põem em evidência, de maneira irónica, as mentiras do passado e as realidades do presente. A câmara tenta apreender a inércia na qual está mergulhado este vasto espaço em perpétuo recomeço, vítima das guerras intestinas e das ditaduras.

Do movimento emerge uma sucessão de constatações que não relevam da temporalidade e da geografia. A realização de Rio Congo não procura uma coerência física, mas preocupa-se em dar conta das realidades sociais e espirituais. Assim, faz-se uma escala para visitar uma universidade abandonada, aparentemente habitada pelo único vigilante do gigantesco herbário, esquecido de todos. Esta visão pungente torna-se aqui simbólica, como símbolo da morte da memória no seio de um país que se debate permanentemente com a sua sobrevivência. Mesmo os vestígios do reino de Mobutu, reconquistados pela selva e pelas águas, "génios que absorvem o poder e a revolução", estão como que exilados nas lembranças colectivas. O caminho não se fica por aí; bruscamente, avança-se, navega-se contra as correntes, cruzando com outros navios, outras populações em migração. Depois, como por acaso, numa margem, encontra-se uma multidão endomingada que ouve as charlatanices dos evangelistas. O pregador incita, com as suas pregações vociferantes, ao transe dos crentes e parece, sobretudo, estar atento à colecta obtida. Assim, aos poucos, no decurso da peregrinação, descobrem-se as religiões locais, com os seus maniqueísmos e os seus desvios. A fé, utilizada em proveito de causas, no mínimo egoístas e, no máximo, criminosas, mudando de forma, mas sempre em acção, revela o seu poder.

Uma viagem ao passado, contra a corrente do tempo

A cada aproximação das margens do rio, as imagens parecem ser habitadas pelas imagens do Apocalypse Now, em que a tripulação, à procura do coronel Kurtz, parece entrar numa loucura cada vez mais profunda. A coincidência é, no entanto, apenas aparente, uma vez que o filme de Francis Ford Coppola se inspira em O Coração das Trevas, uma novela de Joseph Conrad que se passa precisamente no Congo. Tudo acontece aqui como se o tempo se invertesse — como se o presente mais gritante voltasse a projectar-se nos erros do século XIX. Subir o rio em direcção à nascente é, também, viajar no sentido contrário ao da história e do progresso. Quanto mais se avança, mais a situação se embrulha em conflitos isolados, aparentemente afastados de qualquer racionalidade. Assim, cruzamo-nos com o chefe dos guerreiros Maï-Maï, um militar fantoche que usa o terror, as violações e as crenças heteróclitas para fundar o seu poder de pacotilha.

O retrato do Congo é, pois, parcelar, incompleto. Mas põe em destaque as consequências de uma colonização, a que se seguiu uma ditadura, que deixou um povo no caos. O trabalho das crianças nas minas de cobre e de cobalto não é dissimulado, e as zonas industriais e as infra-estruturas dos caminhos-de-ferro são mostradas tal como são: barcos naufragados e enferrujados à espera de poderem ser postos em actividade. O país parece tomado pela loucura e pela letargia, paradoxal estado de um mundo que quer apenas voltar a avançar e a redimir-se, à imagem, de resto, desta embarcação de tal forma sobrecarregada que corre o risco de encalhar a qualquer momento; mas, também, deste rio que se espraia, imenso, simultaneamente calmo e aterrador, indiferente às vicissitudes dos homens.

Tradução livre. Manuel Merlet, disponível em www.fluctuat.net.

9. Rio Congo

Road movie para lá das trevas. Com este sexto filme sobre o Congo, Thierry Michel decide deixar o universo urbano dos grandes centros políticos e económicos de Kinshasa, de Kisangani e de Lubumbashi. O filme Rio Congo faz-nos mergulhar no coração selvagem do país, numa África intemporal. Após muitas tragédias, como o tráfico de escravos, a dominação colonial, as ditaduras e as guerras, 31 30

o Congo começa a recompor-se. Arruinado, o país volta a ser a "terra incógnita" dos exploradores de outrora, da terra que é necessário redescobrir, reinventar e recomeçar a amar. Nem filme jornalístico, nem filme didáctico, Rio Congo é mais do que um poema cinematográfico, é um itinerário simbólico.

O filme começa com imagens de Stanley e de Livingstone, dois exploradores que iniciarão a colonização do Congo. A história deste país começa, por conseguinte, por uma procura, e Thierry Michel propõe-se retomá-la, da foz à nascente do rio. O seu recurso às numerosas imagens de arquivo da Bélgica, rodadas durante o período colonial, ilustra a miséria ao longo da história do país.

O único meio de comunicação, o rio, é a coluna vertebral do país. Fronteira natural é, sobretudo, factor de unidade geográfica e histórica. A sua lenda é-nos contada por um velho congolês. Uma serpente saída debaixo da terra arrastou-se sobre a terra formando gigantescos laços até ao mar, para onde se atirou. O rio, o Congo, tinha nascido. A bordo de uma "aldeia flutuante" onde mais de 300 pessoas tinham embarcado, subimos com elas ao longo desta serpente, às vezes cinzenta, às vezes vermelha, às vezes dócil, às vezes pérfida. Verdadeira "Arca de Noé" sujeita aos caprichos do rio.

Encontramos em Yangambi um professor, último guardião de uma universidade agronomia fantasma. Nos armários e gavetas dormem a fauna e a flora do Congo, abandonadas à poeira do tempo. Em Gbadolite e Mbandaka, os sumptuosos palácios de Mobutu estão em ruínas, orgulhosos elefantes brancos que se transformaram em monstros. Num outro lugar, tenta-se, sobre os vestígios coloniais, reconstruir a via-férrea, ao abandono desde há quinze anos, para que possam circular outra vez as "embarcações de fogo". Nas minas de Tshinkolobwe, as crianças são pagas a 40 cêntimos do euro. Última escala: a catedral de Kisangani. O religioso habita o filme, ritma-o. Não há somente recordações, há também festividades, cânticos e energia, ainda que esta se transforme, por vezes, em lágrimas e transes. A música de Lokua Kanza, misturando ritmos e vozes tradicionais, prolonga a dramaturgia do filme. É, ao mesmo tempo, o eco duma mitologia das origens, das tragédias contemporâneas e duma mensagem para o futuro. Na penumbra da catedral celebra-se a Páscoa e, ao ritmo das vozes, o renascimento do Congo.

Tradução livre. Cécile Brou, Cinechronique, 5.04.06, Paris, disponível em ns31393.ovh.net/~cinechro/film.php?id_film=1152.

10. Rio Congo, para lá das trevas, de Thierry Michel (Bélgica)

A referência do subtítulo a Joseph Conrad (O Coração das Trevas) e sobretudo a sua superação é essencial para compreender a linha de análise deste conhecido documentarista que apresenta já o seu quarto filme sobre o Congo depois de ter explorado as derivas políticas em Zaire, O Ciclo da Serpente, reencontrado em Os Últimos Colonos e sobretudo explicitado em Mobutu, Rei do Zaire os arcanas imaginários da ditadura mobutista. Como Marlow em O Coração das Trevas, fascinado por um Kurtz inatingível, Thierry Michel parece prosseguir o espectro de Mobutu de filme em filme. Contudo, a referência a Conrad não é para fazer um Apocalypse Now, mas antes para conservar a violenta carga contra a colonização e a relatividade das nossas referências quando se observa África. Subindo o rio, o Congo, ele mantém-se ancorado na realidade, fundando a sua abordagem documental na desconstrução do mito africano. Começa assim o seu filme com um extracto de

Stanley and Livingston (Henri King, 1939) onde Spencer Tracy encarna o repórter Henry Stanley enviado pelo seu chefe de redacção para seguir os passos de David Livingston nas trevas de África. Nunca deixará, em seguida, de recordar progressivamente as escalas da viagem, através de imagens de arquivo coloniais (nomeadamente extractos dos filmes de Gérard de Boe e de André Cauvin), as duras realidades que estão na base do caos actual. Seguindo até à sua nascente, pequena ressurgência num lago perdido, este rio serpenteante de 4320 km "que é muito mais

que o barulho dos seus rápidos", procura ir "ao mais profundo da memória e do destino de

África". Ambicioso e delicado plano, de tal modo que a referência ao mito corre o risco de distorcer a realidade nos meandros do fascínio. Para evitar este possível revés, do qual está bem consciente, toma múltiplas precauções, como a de começar por visitar os chefes do costume e desta forma introduz a viagem, lá onde o rio desagua no mar, faz referência aos segredos dos Deuses, mas recoloca o mito ao nível africano e não numa visão etnocêntrica. As suas referências são bem suas, não as do realizador. É este mergulho que permite a Thierry Michel evitar os escolhos. Ei-lo embarcado com a sua equipa numa verdadeira aldeia flutuante, cheia de cores e fumos, de quatro embarcações reunidas na frente de uma outra embarcação que empurra, onde cada um se instala, na medida do possível, com animais e cozinha para enfrentar os 1734 km navegáveis entre Kisangani e Kinshasa. Como os rebocadores do poema "Le

bateau ivre" de Rimbaud, os vigias (guetteurs) marcam o ritmo da vida: sondam 33 32

o Congo começa a recompor-se. Arruinado, o país volta a ser a "terra incógnita" dos exploradores de outrora, da terra que é necessário redescobrir, reinventar e recomeçar a amar. Nem filme jornalístico, nem filme didáctico, Rio Congo é mais do que um poema cinematográfico, é um itinerário simbólico.

O filme começa com imagens de Stanley e de Livingstone, dois exploradores que iniciarão a colonização do Congo. A história deste país começa, por conseguinte, por uma procura, e Thierry Michel propõe-se retomá-la, da foz à nascente do rio. O seu recurso às numerosas imagens de arquivo da Bélgica, rodadas durante o período colonial, ilustra a miséria ao longo da história do país.

O único meio de comunicação, o rio, é a coluna vertebral do país. Fronteira natural é, sobretudo, factor de unidade geográfica e histórica. A sua lenda é-nos contada por um velho congolês. Uma serpente saída debaixo da terra arrastou-se sobre a terra formando gigantescos laços até ao mar, para onde se atirou. O rio, o Congo, tinha nascido. A bordo de uma "aldeia flutuante" onde mais de 300 pessoas tinham embarcado, subimos com elas ao longo desta serpente, às vezes cinzenta, às vezes vermelha, às vezes dócil, às vezes pérfida. Verdadeira "Arca de Noé" sujeita aos caprichos do rio.

Encontramos em Yangambi um professor, último guardião de uma universidade agronomia fantasma. Nos armários e gavetas dormem a fauna e a flora do Congo, abandonadas à poeira do tempo. Em Gbadolite e Mbandaka, os sumptuosos palácios de Mobutu estão em ruínas, orgulhosos elefantes brancos que se transformaram em monstros. Num outro lugar, tenta-se, sobre os vestígios coloniais, reconstruir a via-férrea, ao abandono desde há quinze anos, para que possam circular outra vez as "embarcações de fogo". Nas minas de Tshinkolobwe, as crianças são pagas a 40 cêntimos do euro. Última escala: a catedral de Kisangani. O religioso habita o filme, ritma-o. Não há somente recordações, há também festividades, cânticos e energia, ainda que esta se transforme, por vezes, em lágrimas e transes. A música de Lokua Kanza, misturando ritmos e vozes tradicionais, prolonga a dramaturgia do filme. É, ao mesmo tempo, o eco duma mitologia das origens, das tragédias contemporâneas e duma mensagem para o futuro. Na penumbra da catedral celebra-se a Páscoa e, ao ritmo das vozes, o renascimento do Congo.

Tradução livre. Cécile Brou, Cinechronique, 5.04.06, Paris, disponível em ns31393.ovh.net/~cinechro/film.php?id_film=1152.

10. Rio Congo, para lá das trevas, de Thierry Michel (Bélgica)

A referência do subtítulo a Joseph Conrad (O Coração das Trevas) e sobretudo a sua superação é essencial para compreender a linha de análise deste conhecido documentarista que apresenta já o seu quarto filme sobre o Congo depois de ter explorado as derivas políticas em Zaire, O Ciclo da Serpente, reencontrado em Os Últimos Colonos e sobretudo explicitado em Mobutu, Rei do Zaire os arcanas imaginários da ditadura mobutista. Como Marlow em O Coração das Trevas, fascinado por um Kurtz inatingível, Thierry Michel parece prosseguir o espectro de Mobutu de filme em filme. Contudo, a referência a Conrad não é para fazer um Apocalypse Now, mas antes para conservar a violenta carga contra a colonização e a relatividade das nossas referências quando se observa África. Subindo o rio, o Congo, ele mantém-se ancorado na realidade, fundando a sua abordagem documental na desconstrução do mito africano. Começa assim o seu filme com um extracto de

Stanley and Livingston (Henri King, 1939) onde Spencer Tracy encarna o repórter Henry Stanley enviado pelo seu chefe de redacção para seguir os passos de David Livingston nas trevas de África. Nunca deixará, em seguida, de recordar progressivamente as escalas da viagem, através de imagens de arquivo coloniais (nomeadamente extractos dos filmes de Gérard de Boe e de André Cauvin), as duras realidades que estão na base do caos actual. Seguindo até à sua nascente, pequena ressurgência num lago perdido, este rio serpenteante de 4320 km "que é muito mais

que o barulho dos seus rápidos", procura ir "ao mais profundo da memória e do destino de

África". Ambicioso e delicado plano, de tal modo que a referência ao mito corre o risco de distorcer a realidade nos meandros do fascínio. Para evitar este possível revés, do qual está bem consciente, toma múltiplas precauções, como a de começar por visitar os chefes do costume e desta forma introduz a viagem, lá onde o rio desagua no mar, faz referência aos segredos dos Deuses, mas recoloca o mito ao nível africano e não numa visão etnocêntrica. As suas referências são bem suas, não as do realizador. É este mergulho que permite a Thierry Michel evitar os escolhos. Ei-lo embarcado com a sua equipa numa verdadeira aldeia flutuante, cheia de cores e fumos, de quatro embarcações reunidas na frente de uma outra embarcação que empurra, onde cada um se instala, na medida do possível, com animais e cozinha para enfrentar os 1734 km navegáveis entre Kisangani e Kinshasa. Como os rebocadores do poema "Le

bateau ivre" de Rimbaud, os vigias (guetteurs) marcam o ritmo da vida: sondam 33 32

incessantemente a profundidade das águas para evitar que se encalhe, um perigo bem real que bloqueia outras barcas-aldeia durante meses. Como num navio, o futuro dos passageiros depende das qualidades do capitão e aquele que Thierry Michel escolheu tem efectivamente o controlo da situação.

É certamente tentador ouvir anedotas sobre a compra de um macaco e da sua cozedura, mas este tipo de detalhes não preenche o filme. O encontro com um comissário fluvial que se instala como os outros na embarcação para acompanhar a sua mulher doente à cidade onde ela pode ser tratada é ocasião para assinalar que os códigos da época colonial ainda são utilizados na navegação. O rio está como o país: não tem nem sinalizações nem mapas actualizados, cada um deve desenrascar-se com os seus próprios esboços, com a sua própria experiência para encontrar o caminho. A memória ganha rugas, o saber transforma-se em poeira, como estas 150.000 amostras vegetais da universidade de Yangambi, que são guardadas apenas por um velho professor solitário que já só pode contemplar a sua lenta deterioração.

Inteiramente reconstruído para servir uma dramaturgia que sobe da foz à nascente, o filme multiplica os planos, acelera a sucessão das imagens para dar conta da intensidade da actividade humana, mas cede também aos tons da música de Lokua Kanza sobre a acalmia das águas ou deixa a embarcação progredir lentamente para dar conta da passagem do tempo. Nas escalas da viagem, desde as dificuldades administrativas à vigarice dos pregadores que prometem o poder a quem mais oferece, um retrato do Congo elabora-se gradualmente, onde mortíferos naufrágios dão apenas uma pálida ideia do sacrifício humano. Os temas sucedem-se sem que se tenha tempo de neles se deter, dado que são apenas escalas da viagem, e o filme esgota-se ligeiramente neste mundo de trânsito necessariamente efémero onde nada pode realmente ser aprofundado. Da mosca tsé-tsé ao estalar das trovoadas, dos cânticos patrióticos dos militares em pirogas aos guerreiros Maï-Maï, passando pelo castelo inacabado de Mobutu, de que a floresta se re-apropria como um templo dessacralizado, folheia-se este caderno de viagem como um álbum de fotografias.

No entanto, quando é necessário contornar os rápidos por terra para continuar a viagem é que se encontram estes homens que suam a renovar os 125 km da via-férrea deste caminho-de-ferro parado desde há seis anos (desde as pilhagens de 90-91 e da guerra), é a extraordinária coragem de um povo que nos é revelada, um povo que toma a sua vida nas próprias mãos e encontra, não sabe onde,

a energia para definir o futuro. Tudo se ilumina então: é esta compreensão que ultrapassa o mito, e é também disto que dá conta Rio Congo, estas passagens a esclarecerem as anteriores, para formarem, ligadas pelo rio, uma só imagem, a compreensão dum país à deriva mas de pé.

Tradução livre. Olivier Barlet, publicado a 14/10/2005, disponível em www.africultures.com/index.asp?menu=affiche_article&no=4072.

35 34

incessantemente a profundidade das águas para evitar que se encalhe, um perigo bem real que bloqueia outras barcas-aldeia durante meses. Como num navio, o futuro dos passageiros depende das qualidades do capitão e aquele que Thierry Michel escolheu tem efectivamente o controlo da situação.

É certamente tentador ouvir anedotas sobre a compra de um macaco e da sua cozedura, mas este tipo de detalhes não preenche o filme. O encontro com um comissário fluvial que se instala como os outros na embarcação para acompanhar a sua mulher doente à cidade onde ela pode ser tratada é ocasião para assinalar que os códigos da época colonial ainda são utilizados na navegação. O rio está como o país: não tem nem sinalizações nem mapas actualizados, cada um deve desenrascar-se com os seus próprios esboços, com a sua própria experiência para encontrar o caminho. A memória ganha rugas, o saber transforma-se em poeira, como estas 150.000 amostras vegetais da universidade de Yangambi, que são guardadas apenas por um velho professor solitário que já só pode contemplar a sua lenta deterioração.

Inteiramente reconstruído para servir uma dramaturgia que sobe da foz à nascente, o filme multiplica os planos, acelera a sucessão das imagens para dar conta da intensidade da actividade humana, mas cede também aos tons da música de Lokua Kanza sobre a acalmia das águas ou deixa a embarcação progredir lentamente para dar conta da passagem do tempo. Nas escalas da viagem, desde as dificuldades administrativas à vigarice dos pregadores que prometem o poder a quem mais oferece, um retrato do Congo elabora-se gradualmente, onde mortíferos naufrágios dão apenas uma pálida ideia do sacrifício humano. Os temas sucedem-se sem que se tenha tempo de neles se deter, dado que são apenas escalas da viagem, e o filme esgota-se ligeiramente neste mundo de trânsito necessariamente efémero onde nada pode realmente ser aprofundado. Da mosca tsé-tsé ao estalar das trovoadas, dos cânticos patrióticos dos militares em pirogas aos guerreiros Maï-Maï, passando pelo castelo inacabado de Mobutu, de que a floresta se re-apropria como um templo dessacralizado, folheia-se este caderno de viagem como um álbum de fotografias.

No entanto, quando é necessário contornar os rápidos por terra para continuar a viagem é que se encontram estes homens que suam a renovar os 125 km da via-férrea deste caminho-de-ferro parado desde há seis anos (desde as pilhagens de 90-91 e da guerra), é a extraordinária coragem de um povo que nos é revelada, um povo que toma a sua vida nas próprias mãos e encontra, não sabe onde,

a energia para definir o futuro. Tudo se ilumina então: é esta compreensão que ultrapassa o mito, e é também disto que dá conta Rio Congo, estas passagens a esclarecerem as anteriores, para formarem, ligadas pelo rio, uma só imagem, a compreensão dum país à deriva mas de pé.

Tradução livre. Olivier Barlet, publicado a 14/10/2005, disponível em www.africultures.com/index.asp?menu=affiche_article&no=4072.

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Créditos fotográficos: fotogramas do filme Congo River de Thierry Michel 37 36

Créditos fotográficos: fotogramas do filme Congo River de Thierry Michel 37 36

Com o apoio de:Caixa Geral de DepósitosFundação Calouste GulbenkianFundação para a Ciência e a Tecnologia

Organização:Alunos do Núcleo de Estudantes de Economia da AAC

Agradecemos a colaboração de:Les Films de la Passerelle

Logotipo:Jaime Ferreira

Arranjo gráfico:Pedro Grandão e Teresa Silvestre

Ciclo de Cinema e Debates Africa começou mal, África está mal: a tragédia africana

Textos traduzidos, montados e compilados por:Júlio Mota, Luís Peres Lopes, Margarida Antunes