enquadramento #6: stanley kramer

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PUBLICAÇÃO TRIMESTRAL FEVEREIRO 2015 ISSN 2183-1734

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Revista Enquadramento, do Cineclube de Guimarães

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FEVEREIRO 2015

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Talvez só um cinéfilo extraordinariamente atento lem-braria o nome de Stanley Kramer quando alguém per-guntasse a quem pertence o recorde de nomeações para os Óscar. Juntando a sua carreira como produtor e rea-lizador, os filmes a que este nova-iorquino, desde cedo radicado em Hollywood, esteve ligado foram indicados 80 vezes para os prémios da indústria cinematográfica norte-americana. Ao todo, receberam 16 estatuetas, em-bora o próprio Kramer nunca tenha sido reconhecido como melhor realizador.

As obras a que esteve ligado valeram, por exemplo, Ós-cares para as performances de José Ferrer, Gary Cooper e Katharine Hepburn. Stanley Kramer foi ainda respon-sável por ter lançado a carreira de Kirk Douglas ou Mar-lon Brando. Mais: o seu nome estava também numa das primeiras estrelas a ser colocadas no Hollywood Walk of Fame, em 1960.

Números e nomes: eis algo a que Hollywood costuma dar grande atenção. E, no entanto, Stanley Kramer é hoje um nome praticamente desconhecido do público e das referências a que a Hollywood contemporânea sem-

pre recorre para evocar inspiração ou exemplo. O exem-plo mais paradigmático deste esquecimento é o filme mais marcante de Kramer enquanto realizador, “Guess Who’s Coming to Dinner” (“Adivinhem quem vem Jan-tar”, 1967). A obra foi incluída na lista dos 100 melhores filmes do século pelo American Film Institute, mas é muito mais rapidamente associada ao seu protagonista, o ator Sidney Poitier, do que ao realizador e produtor.

Eis o grande mistério a que é preciso dar atenção para entender a carreira de Kramer: como é que um homem que esteve ligado a grandes sucessos comerciais no seu tempo, e que foi capaz de se tornar uma figura incontor-nável da indústria pela pertinência dos temas que trata-va, caiu tão rapidamente no esquecimento? A resposta a esta questão não é linear. Para conseguirmos entender a questão, talvez seja preciso olhar para as mudanças que, entre a década de 1950, quando Stanley Kramer come-çou a construir o seu sucesso, e 1970, quando se retirou do ativo, muito tenha mudado na sociedade norte-ame-ricana, no cinema de Hollywood e na linguagem desta arte. Com o mundo a girar rapidamente, Kramer parece não se ter movido.

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Stanley Kramer ganhou desde cedo a reputação de pa-ladino das ideias liberais em Hollywood. Ele mesmo se definiu como liberal – no sentido norte-americano do termo – numa entrevista dada, no final da década de 1970, a Donald Spoto, o seu biógrafo (e de Alfred Hitch-cock ou Tennessee Williams), onde lembra que entrou no mundo do cinema na era em que Franklin Roosevelt era Presidente dos EUA. Estava-se na era da “aborda-gem liberal”, dizia. “Hoje em dia não há maior anáte-ma do que a abordagem liberal – chamam-lhe a abor-dagem falhada”. (Donald Spoto, “Stanley Kramer: Film maker”, 1978)

Kramer nunca foi um homem muito alinhado à esquer-da, associando-se mais com o consenso político nos EUA saído do New Deal. Seria um social-democrata na Europa. Um homem alinhado com o capitalismo norte--americano, mas definitivamente preocupado em aler-tar a sociedade para os perigos do fascismo, da guerra, da bomba atómica e também para o racismo.

Quando Kramer trocou Hollywood por Seattle, no final da década de 1970, com 66 anos, pondo fim à carreira no cinema, a América estava prestes a entrar no período de liderança de Ronald Reagan (eleito em 1981). Nos anos anteriores, o consenso liberal começara a ser rompido, as-sistindo-se a um crescente repúdio do reformismo social, e o individualismo ganha um papel central, tanto na socie-dade norte-americana como na indústria cinematográfica.

Também a visão de Kramer sobre os temas progressistas começou a ficar ultrapassada pelos movimentos sociais que então irrompiam nos EUA. A forma como enten-dia temas complexos como o racismo, por exemplo, era algo pueril, e a abordagem caía muito facilmente num

moralismo simplificado. O produtor e realizador manti-nha uma crença algo ingénua de que a sociedade ameri-cana iria cumprir as suas promessas simplesmente por ser confrontada com os seus “defeitos”, algo que, tal como a sua visão liberal, emanava do consenso norte--americano do pós-guerra.

Todavia, para perceber o declínio de Stanley Kramer, não se pode retirar da equação a forma como a sua pró-pria visão sobre o cinema foi ficando cada vez mais fora de moda. Ao contrário de outros cineastas norte-ame-ricanos, Kramer não se deixou influenciar pelas novas abordagens do cinema que vinham da Europa. De res-to, fez alguns comentários demolidores sobre a Nouvelle Vague francesa e os movimentos europeus por ela inspi-rados, considerando estes cineastas uns vigaristas. “A técnica cobre uma multitude de pecados”, acusava.

O estilo não era, claramente, uma das suas grandes pre-ocupações. No seu cinema encontramos alguns defeitos formais, movimentos de câmara desajustados e opções mais do que discutíveis como o recurso a planos de por-menor para reforçar o óbvio ou um uso de zooms mais próximo da estética dos filmes serie B.

O grande triunfo de Kramer foi, ainda assim, a capaci-dade de levar ao grande ecrã temas que até então esta-vam fora da agenda da produção norte-americana. Foi isso que lhe valeu ser considerado “a bússola moral de Hollywood” e um “cineasta de mensagem”. Ainda que o próprio odiasse esse apodo. “Eu nunca entrei num fil-me com uma mensagem”, dizia. Mas, acrescentava, “se fazer um filme contemporâneo e provocador, se fazer um drama a partir do que já é um drama, é comunicar uma ‘mensagem’, então eu sou culpado”.

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A infância de Stanley Kramer foi marcante e decisiva para o seu percurso. O realizador nasceu em Setembro de 1913, em Nova Iorque. Apesar de a mãe e um tio es-tarem ligados à indústria cinematográfica – ela traba-lhava no escritório nova-iorquino da Paramount Pictu-res e ele na distribuição da Universal Pictures – não se pode dizer que Kramer fosse propriamente um filho do meio cinematográfico norte-americano.

O produtor e realizador cresceu no bairro de Hell’s Kitchen, uma vizinhança difícil, marcada pelas difi-culdades económicas e sociais e pela violência. Os pais separaram-se quando ele era ainda criança e acabou por ser criado sobretudo pelos avós. Quan-do entrou na New York University, Kramer tinha a intenção de ser advogado. Formou-se aos 19 anos, mas já com as ideias mudadas, tendo ido viver para Hollywood.

Ainda na universidade, Stanley Kramer ganhou um concurso de escrita que lhe garantiu um estágio na 20th Century Fox. Mas esses eram os anos da Grande De-

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pressão e a vida em Hollywood não estava fácil. Se a sua intenção, quando se mudou para a Califórnia, era escrever filmes, na realidade teve que começar por fa-zer um pouco de tudo, desde carpinteiro a construtor de cenários, conseguindo posteriormente um emprego no departamento de investigação da MGM.

Passou posteriormente pela Columbia Pictures e Re-public Pictures, chegando a guionista e editor. Em 1942 foi assistente-executivo do produtor de “The Moon and Sixpence” (“Mesmo assim elas amavam-no”) de Albert Lewin, mas a carreira viria a ser interrompida com a chamada para o exército. Kramer esteve três anos ao serviço durante a II Guerra Mundial, mas o cinema não se afastou do seu percurso, uma vez que a experiência anterior valeu-lhe um lugar na equipa de realização de filmes de treino no Signal Corps, em Nova Iorque, onde também estiveram outros cineastas como Frank Capra e Anatole Litvak.

Após a vitória dos Aliados, Kramer regressou a Hollywood, mas cedo percebeu que seria difícil encon-trar um emprego. Centenas de veteranos regressavam aos EUA e havia excesso de mão-de-obra, conjugado com uma quebra da faturação dos grandes estúdios, a partir de 1946. Na mesma altura, o Supremo Tribunal norte-americano obriga os estúdios a alienar as suas participações na produção, distribuição e propriedade de salas de cinema, pondo fim ao monopólio que tinha vigorado até então.

Esta é uma mudança significativa na indústria cinema-tográfica, que acaba por se tornar uma oportunidade que Stanley Kramer soube explorar. Partindo a sua ex-periência anterior, juntou alguns amigos e criaram uma produtora independente, a Screen Plays Inc., em 1947. Os sócios de Kramer eram o escritor Herbie Baker, o pu-blicitário George Glass e o produtor Carl Foreman, que seria também guionista de muitos dos seus primeiros sucessos.

A nova empresa foi capaz de tirar partido das instala-ções de produção que não estavam a ser utilizadas pelos grandes estúdio, alugando-as por períodos mais curtos de tempo, o que lhes permitia criar filmes independen-tes por uma custo menor. A criação de uma estrutura in-dependente foi também a oportunidade que permitiu a Kramer começar a produzir filmes que tratassem de as-suntos a que os estúdios tradicionais evitavam anterior-mente, especialmente obras sobre temas controversos.

Kramer não foi o único a participar nesta mudança na reorganização de Hollywood e a segunda metade dos anos 1940 tornou-se a época das produções indepen-dentes, com quase uma centena de novos produtores a aparecerem nos EUA. Entre eles estavam alguns dos maiores nomes do cinema norte-americano, como Ca-pra, John Ford ou Howard Hawks. A estratégia inicial da Screen Plays foi precisamente fazer filmes com temas de que outros não tinham falado antes, em vez de recor-rer a estrelas com nome firmado.

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O primeiro filme produzido pela produtora de Kra-mer foi a comédia “So This Is New York” (“Nova Iorque”, 1948), dirigida por Richard Fleischer, e que se revelou um falhanço de bilheteira. Mas o segundo esforço da empresa trouxe o primeiro grande suces-so dos anos de Kramer como produtor: “Champion” (1949). Dirigido por Mark Robson e com argumento de Foreman, o filme conta a história de um boxeur ambicioso e sem escrúpulos, que sobe à custa de to-dos os que estão à sua volta. Esta foi a obra que apre-sentou a Hollywood o ex-lutador Kirk Douglas, tor-nado actor recentemente, que conquistou um imenso sucesso de bilheteria e ganhou o primeiro dos Ós-cares da carreira de Kramer (Melhor Edição), bem como outras quatro nomeações.

O filme seguinte foi um sucesso ainda maior. “Home of the Brave” (“Páginas Gloriosas”, 1949), também di-

rigido por Mark Robson, adaptava uma peça de Arthur Laurents, originalmente sobre antissemitismo no exérci-to, mas transformada num filme sobre a perseguição de um soldado negro. Foi o primeiro filme de Kramer sobre racismo, um dos temas que mais vezes iria recuperar ao longo dos anos seguintes e foi um marco na história de Hollywood: Foi o primeiro filme sobre racismo contra negros da história do cinema sonoro. De resto, o tema era tão sensível na época, que toda a pelicula foi rodada em absoluto sigilo para evitar protestos de várias orga-nizações.

Em 1950, já sob o nome de Stanley Kramer Company, a sua produtora fez “The Men” (“O Desesperado”), um drama sobre veteranos de guerra paraplégicos, que promoveu a estreia no grande ecrã de Marlon Brando. No ano seguinte, a Columbia Pictures ofe-rece a Kramer um acordo para produzir vinte filmes durante cinco anos, mas que viria a ser rescindindo ao fim de dois. Durante esse tempo, foram produzi-das sete peliculas, das quais apenas a última resul-

tou no sucesso esperado: “Death of a Salesman” (“A Morte de um Caixeiro Viajante”, 1951), “The Sniper” (1952), “The member of the Wedding” (1952), “The Juggler” (“O Malabarista”, 1953), “The Wild One” (“O Selvagem”, 1953), “The 5000 Fingers of Dr. T” (1953) e “The Caine Mutiny” (“Os Revoltados do Caine”, 1954).

A fase de colaboração com a Columbia foi uma das me-nos interessantes da sua carreira, o que levou os críti-cos da época a dizerem que o dinheiro disponibilizado pelo estúdio – um milhão de dólares por filme – tinha estragado a visão que Stanley Kramer tinha demonstra-do possuir nos seus filmes independentes. Essas obras, aproximando-se de facto dos “valores de produção” dos grandes estúdios, deixam cair os temas progressistas ou polémicos que tinham marcado a primeira fase do seu trabalho de produtor.

Antes da mudança para o grande estúdio, Kramer ain-da terminou sua última produção independente, “High Noon” (“O Comboio apitou três vezes”, 1952), um wes-tern feito com a dupla de colaboradores com quem tinha produzido os seus maiores sucessos até então: o realizador Fred Zinnemann e o guionista Carl Foreman. O filme se-gue os esforços de Will Kane (Gary Cooper), um homem a caminho da reforma que é xerife de uma pequena cidade sitiada, que tenta garantir o apoio da população para um confronto iminente com um gangue que quer matá-lo.

O guião foi então interpretado como uma parábola da caça às bruxas do Macarthismo. De resto, todo o processo de produção foi atingido pelo início das atividades da House Un-American Activities Committee (HUAC). O guionista Foreman tinha sido membro do Partido Comunista dez anos antes e foi chamado a prestar declarações à comis-são, mas recusou-se a apontar nomes de outros comu-nistas. Por isso, foi marcado como “testemunha não co-operante”, sendo colocado na lista negra das empresas de Hollywood, tendo que se exiliar em Inglaterra.

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Terminado o contrato com a Columbia, Kramer de-cide voltar à produção independente, mas passaria então a assumir também a posição de realizador. Esse momento marca igualmente um regresso aos seus te-mas prediletos, como a corrupção, a guerra e o racis-mo. O seu primeiro filme como realizador é “Not as a Stranger” (“Médico e só Médico”, 1955), que conta a história de um grupo de estudantes de medicina e da sua carreira, acompanhando a forma como alguns deles perdem o seu idealismo e sucumbem à ambição cega e ao comportamento imoral ao longo da sua vida.

A obra seguinte, “Pride and Passion” (“Orgulho e Pai-xão”, 1957), retrata o esforço de um grupo de guerri-lheiros espanhóis que arrastou um canhão gigantesco ao longo de metade do país para derrotar o exército de Napoleão, numa primeira aproximação de Kramer aos temas da guerra e dos imperialismos, que iriam marcar os anos seguintes da sua carreira como reali-zador.

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O seu primeiro grande sucesso como realizador chega no ano seguinte, com o lançamento de “The Defiant Ones” (“Os Audaciosos”, 1958), no qual regressa às questões raciais de “Home of the Brave”. O filme re-trata dois foragidos, um negro (Sidney Poitier) e um branco (Tony Curtis), que são forçados a cooperar para evitar a sua captura. O tema do racismo contra os negros seria retomado nove anos depois, numa das suas obras mais marcantes. Mas antes disso, a carreira de Kramer entra numa fase fulgurante, em que assina os seus filmes mais interessantes do ponto de vista vi-sual e narrativo e consegue acrescentar outros temas fraturantes aos seus interesses.

“On the Beach” (“A hora final”, 1959) estreou em ple-no momento de aquecimento da Guerra Fria, com a Revolução Cubana a triunfar às portas dos EUA. A tensão entre norte-americanos e o bloco soviético nunca tinha sido tão grande e Kramer imagina uma situação hipotética de um III Guerra Mundial a pouco

Kramer atrAs da cAmara^anos de distância, que, por erro, termina numa guer-ra nuclear que foi capaz de destruir a vida em gran-de parte do planeta. O filme tem lugar na Austrália, onde a população começa a perceber que, dentro de cinco meses, terá o mesmo destino trágico do resto da Humanidade, quando a radiação atingir a ilha.

A obra é uma das mais bem filmadas da carreira de Stanley Kramer, situação a que não será alheia a co-laboração de Giuseppe Rotunno – o diretor de foto-grafia de “O Leopardo” (1963) de Luchino Visconti e “Amarcord” (1973) de Federico Fellini. Mas, uma vez mais, o seu grande trunfo estava fora do ecrã. Pelo menos a acreditar na opinião de Linus Pauling, ven-cedor do Prémio Nobel da Química em 1954, que vol-taria a ser galardoado pela academia Sueca oito anos mais tarde, com o Nobel da Paz, precisamente devido à sua campanha contra os testes nucleares. Sobre “On the Beach”, o cientista disse que este “pode muito bem ter sido o filme que salvou o mundo”.

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Há também uma questão científica em destaque na obra seguinte de Stanley Kramer, “Inherit the Wind” (“O vento será a tua herança”, 1960). Este é um filme ao jeito clássico do cinema norte-americano, mas que opõe religião e ciência, Evolucionismo e Criacionis-mo. A obra ficciona um julgamento que aconteceu no interior do estado do Tennessee em 1925, onde um professor foi julgado por ensinar a Teoria da Evolu-ção de Charles Darwin e é a primeira colaboração com o actor Spencer Tracy.

Ele voltaria a ser a estrela da obra seguinte, na qual Kramer não sai dos tribunais. “Judgment at Nurem-berg” (“O Julgamento de Nuremberga”, 1961) tam-bém ficciona um julgamento, o dos oficiais alemães ao serviço do regime nazi. Tracy interpreta o papel de um juiz norte-americano que preside ao julgamento e é pressionado pelas autoridades dos EUA para ser condescendentes com os acusados, com interesse de garantir o apoio alemão na Guerra Fria.

Depois de duas obras graves, Kramer lança-se no seu primeiro filme ligeiro, a comédia “It’s a Mad Mad

Fred Astaire, Gregory Peck e Ava Gardner em “On the Beach”. Spencer Tracy em “Judgment at Nuremberg”.

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Mad Mad World (“O Mundo Maluco”, 1963). No elenco estavam praticamente todas as grandes refe-rências cómicas norte-americanas da altura, de Jona-than Winters e Jerry Lewis ao clássico Buster Keaton. O filme é, mais uma vez, uma crítica ao materialismo e à ganância, no qual um grupo de motoristas parte à procura de 350.000 dólares enterrados algures.

Em “Ship of Fools” (“A Nave dos Loucos”, 1965) Kra-mer volta ao tema do nazismo, acompanhando as re-lações pessoais entre os passageiros a bordo de um navio que regressa do México à Alemanha em 1933, durante a ascensão de Hitler, e onde se pressentem todas as tensões que destruíram aquele país e a Euro-pa nesses anos.

Esse é o filme que antecede “Guess Who’s Coming to Dinner” (1967), a obra mais conhecida de Stanley Kramer, onde regressa em força ao tema do racismo, já então uma questão candente na sociedade norte--americana. Como nota Jan-Horak Christopher do Ar-quivo de Cinema e Televisão da UCLA, no tempo em que o filme foi feito “em 60 a 80 por cento dos estados

ainda havia leis que consideram criminoso um casa-mento inter-racial”.

É esse o tema do filme: Sidney Poitier é um homem negro que vai jantar a casa de uma família de clas-se média branca, em San Francisco, pedindo a sua fi-lha em casamento. No entanto, a obra expõe também a visão algo “naïf” de Kramer, que cria um cenário perfeito (Poitier é um médio de reputação impecá-vel e reconhecido internacionalmente, faz trabalho voluntário, é um cavalheiro e um homem atraente), que surge em casa de casal de velhos liberais compla-centes, que acabam por recebê-lo, apesar das dificul-dades iniciais. Isto numa sociedade já então marcada pelos protestos, pelos tumultos e pela violência racial, cada vez mais evidente.

Stanley Kramer defendeu-se então dizendo que a opção para tornar a personagem de Poitier pouco menos do que perfeito foi deliberada: “Fizemos isso para que, se o jovem casal não se casasse por causa da desaprovação de seus pais, a única razão seria a de que ele era negro e ela branca. Eles tinham tudo o resto a seu favor…”.

Spencer Tracy em “Judgment at Nuremberg”. Lee Marvin e Vivien Leigh em “Ship of Fools”.

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Apesar das críticas, “Guess Who’s Coming to Dinner” foi um sucesso de bilheteira e continua ainda hoje a ser reconhecido como um filme marcante na relação de Hollywood com o racismo. Todavia, é a partir do seu lançamento que começa o declínio do seu realizador e produtor. Kramer lança logo a seguir “The Secret of Santa Vittoria” (“O Segredo de Santa Vitória”, 1969), onde retoma a sua abordagem do nazismo e da guerra.

O filme é uma farsa sobre a ocupação alemã de Itália, depois da deposição de Benito Mussolini. A história é a de uma pequena aldeia conhecida pelo seu vinho e que tenta defendê-lo a todo o custo da intenção nazi de con-fiscar as suas garrafas. O vinho é, de resto, o elemento central de uma obra que ensaia também um pensamen-to sobre o poder e a capacidade de resistência coletiva aos totalitarismos.

Seguiram-se: um filme sobre agitação estudantil, R.P.M. (1971); “Bless the Beasts & Children” (“Os Homens do Amanhã”, 1971), um filme infantil; “Oklahoma Crude” (“O Poço do Ódio”) (1973), sobre exploração de petró-leo; o “thriller” “The Domino Principle” (“Atentado ao Presidente”, 1977); e a história de um romance entre um padre e uma freira, “The Runner Stumbles” (“A Que-da”, 1979).Kramer decide então deixar Hollywood, despedindo--se com uma frase que marcava o seu desconforto com as mudanças na indústria cinematográfica norte-ameri-cana. “Entre filmes sobre o espaço e [Sylvester] Stallo-ne, não há lugar para mim”. O produtor e realizador retirou-se depois para Seattle, onde foi colunista do Se-attle Times, teve um programa de televisão na estação independente KCPQ-TV e preparou a autobiografia, “A Mad Mad Mad Mad World: A Life in Hollywood”, lan-çada em 1997.

Em vida, Kramer recebeu o Óscar por “Excelência Glo-bal” (Irving Thalberg Memorial), em 1962, e o Globo de Ouro pela integridade artística, no ano anterior. Em 1998, recebeu ainda o primeiro Vanguard Award da Na-tional Association for the Advancement of Colored Peo-

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ple (Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor) “em reconhecimento dos fortes temas sociais que percorreram o seu corpo de trabalho”.

O produtor e realizador faleceu a 20 de Fevereiro de 2001, com 87 anos, na Motion Picture Home, um lar de idosos para antigos trabalhadores de Hollywood, onde tinha ingressado pouco tempo antes. No momento da sua morte, os EUA começavam a redescobrir a sua obra depois de 20 anos de esquecimento. Em 2013, no ano em que assinalava o 100º aniversário do seu nascimento, a UCLA, a Hollywood Foreign Press Association e a Film Foundation fizeram uma reposição dos seus filmes, que voltaram a colocar a imprensa norte-americana e os es-tudantes de cinema a olharem para o seu legado, dando força a um trabalho de recuperação da sua obra inicia-do, no final dos anos 1990, quando a Guilda de Produ-tores de Hollywood lhe atribuiu o David O. Selznick Award pelo conjunto da sua carreira. A mesma institui-ção criou, um ano após a sua morte, o prémio Stanley Kramer, destinado a premiar filmes sobre “temas sociais provocadores” e que, nos últimos anos, foi ganho por “Precious” (2009), de Lee Daniels, ou “Fruitvale Sta-tion” (“A última paragem”, 2013), de Ryan Coogler.

Filmografia

1955“Not as a Stranger” (“Médico e só Médico”)

1 957“The Pride and the Passion” (“Orgulho e Pai-xão”)

1 958“The Defiant Ones” (“Os Audaciosos”)

1 959“On the Beach” (“A hora final”)

1 960“Inherit the Wind” (“O vento será a tua he-rança”)

1 96 1“Judgment at Nuremberg” (“O Julgamento de Nuremberga”)

1 963“It’s a Mad, Mad, Mad, Mad World” (“O Mun-do maluco”)

1 965“Ship of Fools” (A Nave dos loucos”)

1 968“Guess Who’s Coming to Dinner” (“Adivi-nhem quem vem jantar”)

1 969“The Secret of Santa Vittoria” (“O Segredo de Santa Vitória”)

1 970“R. P. M.”

1 97 1“Bless the Beasts and Children” – (“Os Ho-mens do Amanhã”)

1 973“Oklahoma Crude” (“O Poço do ódio”)

1 977“The Domino Principle” (“Atentado ao Presi-dente”)

1 979“The Runner Stumbles” (“A Queda”)

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“No momento em que “Adivinhem quem vem Jantar” foi lançado, em 60a 80 por cento dos estados [norte-americanos] ainda havia leis que

consideravam criminoso um casamento inter-racial”.

Jan-Horak Christopher,Arquivo de Cinema e Televisão da UCLA

Edição:Cineclube de Guimarães

Coordenação Editorial:Paulo CunhaRui SilvaSamuel Silva

Texto:Samuel Silva

Design:Alexandra Xavier

ISSN:2183-1734

12 de Fevereiro de 2015

FICHA TECNICA