i a queda de lúcifer

3
I A queda de Lúcifer Quem pode contar o grande número de demônios [...] que tentam e atormentam os homens? [...] São como poeira no ar [...] que zumbem ao redor de nossas cabeças como moscas [...] seu número é conhecido somente por Deus” 1 . Assim registrava um pregador, talvez franciscano, na segunda metade do Trecento 2 , ao celebrar a ilimitada grandeza da criação, o sentimento comum da presença concreta e ubíqua dos demônios no horizonte e, sobretudo, na vida cristã de cada dia. Infinitos e invasores como moscas só Deus pode conhecer o número os demônios habitam o ar entorno da Terra 3 segundo uma tradição judaico-cristã, in aere caliginoso 4 , para tentar e pôr os homens à prova. Portanto, graças a Deus, na zona intermediária do ar, e não “conosco na terra”, porque nesse caso – como atentava Pedro Lombardo “seria perturbador demais para os homens” 5 . Ainda assim, todavia, “é muito cansativo e penoso estar sempre em guarda contra as investidas do inimigo e estar como que em contínua batalha”, recorda o pregador anônimo citando a triste consideração de um discípulo de Gregório Magno, que não se sabe quanta consolação pôde tirar das palavras do mesmo Gregório: “não será cansativo se confiarmos nossa defesa não a nós mesmos mas à graça divina” 6 . Há um número incontável de demônios ao nosso redor: “grande é a multidão no ar que nos rodeia e que não está longe de nós”, lê-se na Vida de Antonio 7 ; era uma experiência comum dos monges no deserto, espaço próprio dos demônios. Algumas décadas depois da morte de Antonio, Cassiano, que traduziu para o Ocidente a experiência dos Padres do deserto, repetirá: “grande é o número dos espíritos que povoam o ar entre a terra e o céu, do que decorre não podermos estar nunca parados ou ociosos8 . Não é por acaso que, em um mundo infestado de demônios, tenha se tornado comum a idéia, muito presente na espiritualidade essênia e judaico-cristã como em 1 Texte aus der Zeit Meister Eckharts, II, hrsg. von A. Beccarisi, Hamburg 2004, p. 270 ; o texto é uma coletânea de citações de Aimone de Halberstandt, Boaventura de Bagnoregio e João Damasceno. 2 Período da história da arte européia que se dá no século XIV, caracterizado pela transição do estilo gótico para a cultura renascentista. 3 Ef., 2,2; 6,12. 4 Cfr. J. Daniélou, Théologie du Judéo-Christianisme, Tournai 1958, pp. 149-150. 5 Petri Lombardi Sententiae in IV libris distinctae, lib. II, dist. IV, cap. 3, Grottaferrata 1971, vol. I, p. 356 (as citações sucessivas se referem sempre a esta edição). 6 Texte cit., p. 273; cfr. também Gregorio Magno, Dialoghi, III, 20, 3 (segundo a ed. latino-italiana da Fundação L. Valla, com o título Histórias de santos e de diabos, 2 vol., editado por S. Pricoco e M. Simonetti, Milano 2005-2006; depois vol. II, p. 94) 7 Vita di Antonio, 21, editado por G.J.M. Bartelink, Fundação L. Valla, Milano 1974, p.50 (A referência é sempre ao texto latino, a versão italiana aqui utilizada vem à frente; a advertência é válida para todos os volumes da Fundação L. Valla, as traduções são raramente modificadas; para os outros textos latinos traduzidos no decorrer do ensaio as versões são minhas, salvo indicação diferente). 8 Cassiano, Collationes, VII, 12, P.L. 49, 740.

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Trecho do capítulo I (La caduta de Lucifero) de "Il principe de questo mondo", Tullio Gregory.

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  • I

    A queda de Lcifer

    Quem pode contar o grande nmero de demnios [...] que tentam e atormentam

    os homens? [...] So como poeira no ar [...] que zumbem ao redor de nossas cabeas

    como moscas [...] seu nmero conhecido somente por Deus 1

    .

    Assim registrava um pregador, talvez franciscano, na segunda metade do

    Trecento2, ao celebrar a ilimitada grandeza da criao, o sentimento comum da presena

    concreta e ubqua dos demnios no horizonte e, sobretudo, na vida crist de cada dia.

    Infinitos e invasores como moscas s Deus pode conhecer o nmero os demnios

    habitam o ar entorno da Terra3 segundo uma tradio judaico-crist, in aere caliginoso

    4,

    para tentar e pr os homens prova. Portanto, graas a Deus, na zona intermediria do

    ar, e no conosco na terra, porque nesse caso como atentava Pedro Lombardo

    seria perturbador demais para os homens 5

    .

    Ainda assim, todavia, muito cansativo e penoso estar sempre em guarda contra

    as investidas do inimigo e estar como que em contnua batalha, recorda o pregador

    annimo citando a triste considerao de um discpulo de Gregrio Magno, que no se

    sabe quanta consolao pde tirar das palavras do mesmo Gregrio: no ser cansativo

    se confiarmos nossa defesa no a ns mesmos mas graa divina 6

    .

    H um nmero incontvel de demnios ao nosso redor: grande a multido no ar

    que nos rodeia e que no est longe de ns, l-se na Vida de Antonio7; era uma

    experincia comum dos monges no deserto, espao prprio dos demnios. Algumas

    dcadas depois da morte de Antonio, Cassiano, que traduziu para o Ocidente a

    experincia dos Padres do deserto, repetir: grande o nmero dos espritos que

    povoam o ar entre a terra e o cu, do que decorre no podermos estar nunca parados ou

    ociosos 8

    . No por acaso que, em um mundo infestado de demnios, tenha se tornado

    comum a idia, muito presente na espiritualidade essnia e judaico-crist como em

    1 Texte aus der Zeit Meister Eckharts, II, hrsg. von A. Beccarisi, Hamburg 2004, p. 270 ; o texto uma

    coletnea de citaes de Aimone de Halberstandt, Boaventura de Bagnoregio e Joo Damasceno. 2 Perodo da histria da arte europia que se d no sculo XIV, caracterizado pela transio do estilo

    gtico para a cultura renascentista. 3 Ef., 2,2; 6,12.

    4 Cfr. J. Danilou, Thologie du Judo-Christianisme, Tournai 1958, pp. 149-150.

    5 Petri Lombardi Sententiae in IV libris distinctae, lib. II, dist. IV, cap. 3, Grottaferrata 1971, vol. I, p.

    356 (as citaes sucessivas se referem sempre a esta edio). 6 Texte cit., p. 273; cfr. tambm Gregorio Magno, Dialoghi, III, 20, 3 (segundo a ed. latino-italiana da

    Fundao L. Valla, com o ttulo Histrias de santos e de diabos, 2 vol., editado por S. Pricoco e M.

    Simonetti, Milano 2005-2006; depois vol. II, p. 94) 7 Vita di Antonio, 21, editado por G.J.M. Bartelink, Fundao L. Valla, Milano 1974, p.50 (A referncia

    sempre ao texto latino, a verso italiana aqui utilizada vem frente; a advertncia vlida para todos os

    volumes da Fundao L. Valla, as tradues so raramente modificadas; para os outros textos latinos

    traduzidos no decorrer do ensaio as verses so minhas, salvo indicao diferente). 8 Cassiano, Collationes, VII, 12, P.L. 49, 740.

  • alguns Padres, que alm do bom anjo da guarda cada homem tivesse junto de si um anjo

    mal. Lembrar-se- de Incio de Loyola nos seus Exercitia dando regras precisas e

    teis para uma plena distino dos espritos entre angelus bonus e malus, porque

    um e outro se insinuam alma de modos diversos 9

    .

    E sendo a espiritualidade crist atormentada pela presena do mal entre os

    homens, Satans e seu exrcito de demnios ocupam amplo espao na obra de todos os

    escritores desde os primeiros sculos. O Novo Testamento apresenta o Maligno

    (tambm diabo e Satans) 10

    , o prncipe deste mundo 11

    , como o grande inimigo de

    Deus que impede o advento do Reino messinico (de cuja iminncia a expulso dos

    demnios operada por Jesus sinal), que tenta at o prprio o Cristo e que permanecer

    at sua derrota definitiva nos tempos apocalpticos. Cada vida e paixo de um mrtir

    exemplo da contnua luta entre o bem a mensagem crist e o mal personificado nas

    figuras dos perseguidores e das instituies pags, manifestaes de Satans.

    A reflexo exegtica, apologtica e teolgica dos primeiros sculos cristos

    empenhar-se- na difcil tarefa de encontrar no Antigo Testamento uma angelologia e

    uma demonologia um tanto estranhas a este, sob influncia da apocalptica judaica e da

    tradio filosfica grega, platnica e neoplatnica. Por outro lado, a demonologia que

    ocupa largo espao no Novo Testamento respondia ao problema da presena de foras

    adversas, do mal, da desordem, difceis de explicar num universo que, como no mito do

    Gnesis, formado ou melhor, criado por Jav que, no sexto dia, se compraz da

    bondade de sua obra: E Deus viu tudo o que havia feito, e tudo era muito bom 12

    .

    O primado veterotestamentrio de Jav no permitia solues dualsticas,

    encontradas no judasmo tardio e nos primeiros sculos cristos, sobretudo no

    gnosticismo: o mal que no Genesis se manifesta na tentao da serpente (criatura de

    Jav, astuta mas sem caractersticas demonacas) e na infrao de Eva e Ado

    necessitava de um cenrio mais amplo, que envolvesse toda a criao. A origem do mal

    no poderia dever somente desobedincia do primeiro casal humano a um comando

    divino, mas a uma crise mais profunda na ordem criada por Jav.

    No ambiente judaico, na comunidade de Qumran e sobretudo na literatura

    apocalptica onde angelologia e demonologia passaram por grandes

    desenvolvimentos, que se refletem nos escritos neotestamentrios e, por conseqncia,

    na literatura crist v-se definida de vrias maneiras a idia de que a origem do mal se

    deve a um ato das potncias superiores, das primeiras criaturas, dos anjos, que

    9 Incio de Loyola, Exercitia spitiualia, Ed. I. Colveras et C. De Dalmases, Romae 1969, p. 393. O tema

    dos dois espritos bom e mau juntos a cada homem (presente tambm na religiosidade grega) j est

    no Manuale di disciplina, III, 18-26, trad. it. in I manoscritti di Qumran, editado por L. Moraldi, Torino

    1971, p. 349 e p. 143. Cfr. Danilou, Thologie cit., p. 144; Id., Ls anges et leur missio daprs les Pres

    de lglise, Chevetogne 1952, pp. 108 sgg. 10

    Cfr. Mt., 13, 19; Mc., 4, 13; Lc., 8, 12. 11

    Jo., 12, 31. 12

    Gn., 1,31.

  • infringiram a ordem da criao e so cados ou jogados das moradas celestes nos

    cus inferiores, no ar caliginoso, para que sejam trancados nos lugares infernais no dia

    do juzo.

    O tema da origem do mal abarcado por um contexto amplo na cosmoteologia

    gnstica, onde o nascimento dos demnios faz parte do mundo original e perfeito do

    divino. E se so diversas as mitologias dos vrios grupos gnsticos, comum e coerente a

    todos so o dualismo radical e a conexo dos demnios com o mundo material, com a

    substncia corporal13

    e com a paixo inerente a ela. Na gnose valentina, o ltimo on,

    Sofia, esmagada pelas paixes advindas do imoderado desejo de conhecer o Pai

    incognoscvel, provoca a desordem entre os ons e gera uma substncia sem forma:

    a substncia da matria, filha da ignorncia, da dor, do medo e do terror, paixes de

    Sofia; tambm de uma delas a (o sofrimento) o Demiurgo, filho do medo,

    criador do mundo material, extrai a substncia do diabo, assim como da dor ()

    nascem os elementos espirituais da maldade; da substncia material e diablica o

    Demiurgo forma tambm o corpo do homem. Maligno por natureza, o diabo, filho do

    erro e da ignorncia, uma parte de toda a matria. So os demnios, cronocratores14

    celestes, que atravs dos cus governam o mundo: potncias malficas de esquerda

    em luta contnua com as potncias benficas de direita, de onde se origina a fora do

    destino () da qual s o Salvador pode nos libertar15

    .

    (Tullio Gregory. Principe di questo mondo Il diavolo in occidente. Editori

    Laterza, Roma-Bari, 2013, pp. 3-7 trad. Felipe Denardi)

    13

    Literalmente, a substncia lica, oposta substncia psquica, respectivamente e

    . (N. do T.) 14

    De (kronokrator), senhor do tempo. O termo era utilizado na astrologia helnica e rabe para designar o planeta regente de determinado perodo, mas tambm como ttulo dos imperadores

    bizantinos nos ltimos sculos, e, por excelncia, do prprio Cristo. (N. do T.) 15

    Ver os temas citados em Testi gnostici in lingua greca, editado por M. Simonetti, Fundao L. Valla,

    Milano 1993, pp. 290, 334-336, 306, 338, 242, 386-388. Para a relao entre e (o elo

    perdido do destino) no mundo grego, cfr. R.B. Onians, Le origini Del pensiero europeo, edio de L.

    Perilli, trad. de P. Zaninoni, Milano 1998, pp. 485 sgg.