holocausto memoria e poder

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MARISA RIBEIRO SILVA

HISTRIA, MEMRIA E PODER: XAVIER DA VEIGA, O ARCONTE DO ARQUIVO PBLICO MINEIRO

Dissertao apresentada ao curso PsGraduao em Histria, Linha Cincia e Cultura, Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Jos Carlos Reis

Belo Horizonte, outubro de 2006.

Dissertao a ser apresentada e defendida em ___ de outubro de 2006. Banca examinadora constituda pelos professores:

____________________________________

____________________________________ Prof. Dr. Regina Horta Duarte Professora Adjunta do Departamento de Histria Universidade Federal de Minas Gerais

____________________________________ Prof. Dr. Jos Carlos Reis Professor Adjunto do Departamento de Hi stria Universidade Federal de Minas Gerais

Arquivo Pblico Mineiro parte de uma sala [1922] Acervo do Arquivo Pblico Mineiro.

Ao Dcius, meu querido companheiro.

AGRADECIMENTOS

Ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Minas Gerais, em especial professora Regina Horta Duarte. Aos amigos queridos que muito me ajudaram com indicaes e leituras pacientes, especialmente Ana Luiza, Daniel, Paulo, Alexandre.

Aos meus colegas do Arquivo Pblico Mineiro, especialmente Marta Melgao e Alda Palhares.

A minha famlia pela compreenso e incentivo, especialmente s primas Lorena e Larissa por ainda acreditarem que podemos optar pelo gosto. Aos membros da banca.

Ao orientador Jos Carlos Reis, pelas leituras atentas e pela pacincia. Em especial, ao meu amado e infatigvel companheiro, pelos muitos momentos de compreenso, de leitura, de discusso, pelas noites mal dormidas, pelos finais de semana ao computador, pelo infinito bom humor.

RESUMO

O texto tem por objetivo a anlise da institucionalizao da memria no sculo XIX por meio da criao de lugares de memria e o uso poltico dessa memria como instrumento de disciplinarizao. Especificamente, a criao do Arquivo P blico Mineiro (APM) e os jogos de poder que envolveram a sua criao e a constituio do seu acervo. Alm disso, na pessoa do primeiro diretor da instituio Jos Pedro Xavier da Veiga, buscaremos compreender a idia de histria que motivou a criao do APM. Palavras-chave: histria, memria, arquivo, relaes de poder. ABSTRACT

The objective of this text is the analysis of memory institucionalization in the XIX century through the creation of "memory places" and its political use as a disciplinary instrument. Specifically, the creation of the Arquivo Pblico Mineiro (APM) and the power games that surrounded its creation and the establishment of its collection. Moreover, following the footsteps of the institutions first director Jos Pedro Xavier da Veiga, we will examine the historical idea that motivated the creation of the APM. Keywords: history, memory, archive, power relation.

SUMRIO

Introduo .............................................................................................................................8 Captulo I Arquivo, Memria, Histria e Poder...........................................................12 1.1. Arquivo .........................................................................................................................12 1.2. Memria.......................................................................................................................17 1.3. Memria e Poder........................................................................................................29 1.4. A disciplinarizao da memria ...............................................................................38 Captulo II - O Arquivo Pblico Mineiro como projeto poltico ....................................51 Captulo III - Xavier da Veiga, o arconte do Arquivo Pblico Mineiro ......................97 CONCLUSO.................................................................................................................. 133 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS: ........................................................................... 139 FONTES DOCUMENTAIS ............................................................................................ 144 ANEXO.................................................................................................................144

Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado.

George Orwell 1984.

Introduo

1

Introd uo

O texto apresentado para a banca de exame de dissertao de Mestrado do Departamento de Histria da UFMG, na linha de Cincia e Cultura na Histria, refere-se institucionalizao da memria no sculo XIX por meio da criao de lugares de memria e o uso poltico dessa memria como instrumento de disciplinarizao. Especificamente, a criao do Arquivo Pblico Mineiro (APM) e os jogos de poder que envolveram a sua criao e a constituio do seu acervo. Alm disso, na pessoa do primeiro diretor da instituio Jos Pedro Xavier da Veiga, buscaremos compreender a idia de histria que motivou a criao do APM. Inicialmente, esse trabalho tinha por objetivo principal analisar o processo de constituio do Arquivo Pblico Mineiro - instituio criada pela Lei n. 195 de 1895. Quais os motivos que levaram criao da instituio? Como se deram a formao, organizao e conservao do seu acervo? Quais as possveis relaes com o desenvolvimento do saber histrico? No entanto, a leitura mais atenta das fontes levou-nos a um redirecionamento do trabalho. Com a sua leitura percebeuse que as relaes de poder so muito mais presentes e determinantes na criao da instituio e na constituio do seu acervo do que a questo cientfica. Por mais que o discurso aparea, muitas vezes, permeado por um contedo primeira vista mais ligado questo histrica e preservao da memria, uma anlise minuciosa leva -nos para o ncleo de uma disputa poltica, assunto este que ser desenvolvido mais adiante.

Introduo

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Nesse sentido, identificou-se a necessidade de estabelecer um marco cronolgico de certa forma flexvel. Inicialmente, havia sido estabelecido como referncia inicial o ano de 1895 por ter sido a data de publicao da lei que criou a instituio. O ano de 1900 foi estabelecido, inicialmente, como marco temporal final marcado pelo falecimento do primeiro diretor da instituio, Jos Pedro Xavier da Veiga, que foi escolhido pelo ento governador de Minas Gerais, Chrispin Jaques Bias Fortes, para ser o responsvel pela criao e direo do Arquivo, ficando frente da instituio por quatro anos. O falecimento de Xavier da Veiga uma referncia na histria da instituio j que, nessa data, o Arquivo j se encontrava estruturado e grande parte do seu acervo j estava constitudo. Alm disso, os diretores subseqentes, na grande maioria dos casos, apenas procuraram seguir os caminhos trilhados por Xavier da Veiga, passando a instituio por inmeras dificuldades financeiras, deixando inclusive de exercer as suas atividades por alguns anos. Apesar desses dois marcos importantes, percebeu-se ao longo do trabalho a necessidade de se estender o perodo da pesquisa para perceber melhor o contexto poltico de mudana no qual est inserido o projeto. Foi relevante a anlise de algumas discusses que envolveram a Proclamao da Repblica no Brasil, e que estavam presentes em alguns discursos publicados em dois peridicos dirigidos por Xavier da Veiga, entre julho de 1888 e junho de 1900, que enfocavam, principalmente, as disputas entre os partidos polticos e os rearranjos no poder aps o 15 de novembro. Alm disso, optou-se pela extenso da pesquisa da documentao primria at o ano de 1911, justamente para analisar a atuao dos diretores que seguiram administrao de Xavier da Veiga.

Introduo

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O marco espacial estabelecido para esse trabalho o Estado de Minas Gerais, especialmente Ouro Preto, sede do Arquivo Pblico Mineiro. Apesar do enfoque do trabalho ser a instituio que permaneceu em Ouro Preto de 1896 at 1907, quando foi tra nsferida para Belo Horizonte, percebeu-se uma insero tanto do Arquivo como do seu primeiro diretor no contexto de relaes polticas que extrapolam o permetro da antiga capital da provncia. Xavier da Veiga manteve, por meio dos peridicos que dirigiu e de correspondncias como diretor do APM1, redes de relacionamento e de influncia por todo o Estado de Minas Gerais. As fontes documentais primrias para o desenvolvimento desse trabalho so as publicaes, organizadas e dirigidas por Xavier da Veiga, da Revista do Arquivo Pblico Mineiro compostas de 18 volumes do ano de 1896 a 1901. Alm disso, em alguns volumes podem ser encontrados artigos por ele assinados. Foi tambm consultada a documentao administrativa do fundo 2 Arquivo do Arquivo, no perodo de 1895 a 1902. Este fundo composto principalmente por correspondncias entre Xavier da Veiga e amigos e pessoas ilustres de todo o Estado. Muitas destas pessoas foram nomeadas correspondentes do Arquivo Pblico Mineiro e tinham como funo contribuir para a formao do acervo da instituio. Alm de correspondncias, o fundo possui tambm a lei n. 195 que cria a instituio e estabelece as suas funes, cargos, remuneraes, etc, medidas administrativas como pagamentos, nomeaes e demisses; pedidos de cpias de documentos e certides.1 2

Arquivo Pblico Mineiro

Conjunto de documentos, independente de sua forma ou suporte, organicamente produzido e ou acumulado e utilizado por pessoa fsica, famlia ou instituio no decurso de suas atividades e funes.

Introduo

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Foram analisadas ainda as Efemrides Mineiras nas quais Xavier da Veiga escreve uma histria cronolgica de Minas Gerais, destacando os principais eventos e personalidades do Estado, desde os primeiros anos da ocupao portuguesa na regio at a Proclamao da Repblica. Foram tambm objeto de anlise os jornais publicados por Xavier da Veiga. O primeiro jornal chamado A Provncia foi publicado entre os anos de 1879 e 1889, quando deixou de circular. Esse jornal era um rgo do Partido Conservador, apresentando em todas as suas edies um editorial direcionado para as discusses polticas do momento, principalmente um embate severo com os republicanos. Com a Proclamao da Repblica, Xavier da Veiga passou a publicar um novo jornal intitulado A Ordem tendo sua primeira edio em novembro de 1889 e a ltima em novembro 1892. Esse peridico j no mais declaradamente conservador como o anterior, pelo contrrio, possui um editorial bastante brando e conciliador com as propostas republicanas. E por fim, mas no menos importante, foram objeto de anlise as leis referentes guarda, preservao e acesso de documentos pblicos do Estado de Minas Gerais. Para analisarmos a documentao relacionada acima, teremos como base a metodologia proposta por Michel Foucault 3 em A arqueologia do saber, na perspectiva da anlise do discurso. A anlise arqueolgica nos permite mudar o foco da pergunta: o nosso interesse no saber quais os fatores que levaram ao

3

FOUCAULT, Michel . A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2004.

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discurso da memria, qual o contexto que o motivou, mas, porque o discurso da memria e no outro? Porque o discurso da memria e da histria era tido como estratgia importante nas relaes de poder em jogo? Quais eram essas relaes de poder? Quais as relaes de poder que se estabeleceram em torno da instituio e por que uma instituio de memria se constituiu como uma importante referncia de poder, representada na pessoa do seu diretor. Nossa principal fonte so os discursos de Xavier da Veiga e de seus correspondentes. Essas prticas discursivas trazem referncias importantes sobre as relaes polticas do perodo e sobre a concepo de histria e de memria. A anlise arqueolgica nos permite trabalhar esses discursos na sua positividade, ou seja, no que eles realmente dizem.Descrever um conjunto de enunciados, no como a totalidade fechada e pletrica de uma significao, mas como figura lacunar e retalhada; descrever um conjunto de enunciados, no em referncia interioridade de uma inteno, de um pensamento ou de um sujeito, mas segundo a disperso de uma exterioridade; descrever um conjunto de enunciados para a reencontrar no o momento ou a marca de origem, mas sim as formas especficas de um acmulo, no certamente revelar uma interpretao, descobrir um fundamento, liberar atos constituintes; no tampouco, decidir sobre uma racionalidade ou percorrer uma teleologia. estabelecer o que eu chamaria, de bom grado, uma positividade4.

Buscaremos descrever e analisar cada discurso como um acontecimento nico, buscando a sua riqueza; cada documento, cada discurso ser lido como se fosse um monumento 5, ou seja, trabalharemos a massa informe, sem vivacidade e transformaremos cada documento em um monumento a ser decifrado, organizado, relacionado. O objetivo , a partir dessa forma de anlise, ser estabelecer dois tipos4

FOUCAULT, Michel . A Arqueologia, 2004. p. 141.

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Monumento, segundo Foucault, so os rastros deixados pelos homens, mas no matrias inertes, e sim rastros vvidos, inseridos, correlacionados e correlacionveis.

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de relaes: primeiro, as relaes entre os discursos; em segundo, as relaes dos discursos com as prticas no-discursivas que os envolvem, um conjunto de acontecimentos, de prticas, de decises polticas. O mtodo foucaultiano 6 consiste em descrever, positivamente, e no pressupor nada mais. No pressupor que existe um alvo, um objeto, uma causa, um material, um tipo de conduta. A prtica no uma instncia misteriosa, um motor oculto, o que fazem a s pessoas literalmente. A nossa primeira hiptese de que a criao do Arquivo Pblico Mineiro no esteve vinculada a uma idia de progresso ou de uma maior sensibilidade ou de valorizao do passado, mas sim a um rearranjo nas relaes de poder especficas do Estado de Minas Gerais. Nesse sentido, a valorizao da memria e da histria no um fim em si, mas um meio, um instrumento, um discurso que permea e legitima as relaes de poder. As concepes de memria e de histria esto completamente interligadas. A valorizao da memria no sculo XIX, principalmente aquela ligada celebrao dos grandes heris e dos grandes acontecimentos, refletiram uma concepo de histria universalizante, que tambm valorizava os grandes eventos e grandes personagens, dentro de uma idia de progresso da humanidade. Se optarmos por uma concepo de histria baseada no na marcha da humanidade, com uma temporalidade nica, mas uma histria que valoriza a descontinuidade, o tempo da disperso, que valoriza a multiplicidade de indivduos caminhando em sentidos variados, tambm mltiplos, rompemos ento com a6

Cf. VEYNE, Paul. Como se escreve a histria; Foucault revoluciona a histria. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1998.

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concepo de uma histria que se encerra em si, mas buscamos na histria aquilo que til para a vida presente e para a ao. Quando nos propomos a analisar a constituio do Arquivo Pblico Mineiro, partimos da idia de que estamos trabalhando com um objeto histrico, dinmico, inserido em um contexto poltico especfico, que se relaciona com outros acontecimentos e que faz parte de uma rede de relaes e disputas de poder. O poder exercido em mltiplas relaes, descentralizado. No nosso objetivo aqui entender as relaes de poder apenas numa relao hierrquica, de cima para baixo, soberano / sdito, mas temos como objetivo perceber os sditos em suas relaes recprocas - relaes de poder. Todas as relaes so relaes de poder. O poder se exerce em rede, ele no pode ser apropriado, como um bem. No nosso caso especfico, pretendemos analisar no apenas o poder institucional e poltico de Xavier da Veiga, mas tambm o poder legal e histrico dos "donos" dos documentos, o poder do tcnico - o saber - que seleciona, que joga fora, que guarda e exclui. Temos aqui uma multiplicidade de relaes que permeam a Instituio e a ultrapassam. Relaes que envolvem no s nomeaes de funcionrios e correspondentes, mas tambm, a posse e a permuta de documentos, a construo de um imaginrio histrico para o Estado, assessorias histricas que envolveram, inclusive, a delimitao do territrio mineiro. Em qualquer sociedade existem relaes de poder mltiplas que constituem o corpo social e essas relaes de poder no podem se exercer sem a produo do discurso. nesse sentido que desenvolver um estudo sobre as relaes

Introduo

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arquivsticas torna -se fundamental, pois confrontamos aqui as relaes de poder sociais e polticas de um determinado contexto histrico, a produo de discurso e as novas relaes de poder que esses discursos estabelecem enquanto discurso arquivstico, relaes essas que no se esgotam, mas, ao contrri o, sempre se renovam. Antes mesmo da criao do APM, a guarda de documentos histricos j era um costume das pessoas diretamente ligadas aos rgos governamentais. A guarda de documentos j se dava no mbito privado, constituindo um certo status familiar que ia se desenvolvendo na medida em que os descendentes tambm se integravam aos jogos governamentais do poder. Toda vez que um poltico cumpria o seu mandato, ao entregar o cargo, levava consigo os documentos referentes ao seu perodo administrativo e essa documentao passava a fazer parte de um acervo familiar privado. Assim, um registro que, por princpio, era um bem pblico, tornava -se um bem privado. Com a criao da Instituio, o maior esforo de Xavier da Veiga foi o de tentar recuperar esses documentos pblicos que estavam em posse de polticos. A maior parte da documentao por ns consultada composta por discursos, tanto de Xavier da Veiga quanto dos seus correspondentes, negociando a doao ou a troca de documentos e publicaes. O problema que se coloca para ns : como a histria e a memria podem servir de respaldo, legitimando novos Estados ou novas estruturas de poder? Quais valores esto sendo atribudos ao passado e a qual passado? Quais fatos e personagens so fundamentais de serem mantidos no imaginrio popular? Em

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contrapartida, quais fatos e personagens deveriam ser apagados da memria do grupo? Qual projeto de histria estava sendo construdo? O sculo XIX foi um momento privilegiado de advento da histria cientfica e da valo rizao da memria no s no Brasil, mas em todo o mundo ocidental. Principalmente aps a Revoluo Francesa podemos perceber um crescimento significativo na criao de arquivos nacionais e museus que buscavam, ao mesmo tempo, guardar os objetos de memria e escrever uma histria oficial que desse respaldo s novas relaes de poder que estavam se constituindo no momento. A busca pela legitimidade era um problema concreto dos novos Estados e um meio recorrente de se construir essa legitimidade era a elaborao de um ideal de nao e de povo que tivessem um passado em comum, que teria como funo promover a unio do povo e o fortalecimento da nova nao. O nosso objetivo nesse trabalho fazer uma anlise conjunta de como a memria e a histria foram utilizadas para legitimar novas relaes de poder. Para isso, iremos atuar em duas frentes: primeiro, faremos uma anlise dos documentos que foram selecionados para constiturem o acervo do APM. Que histria esses documentos pretendem contar? Que eventos eles iluminam e quais eles deixam na obscuridade? Como a historiografia est sendo construda para legitimar uma nova ordem poltica? Em segundo, analisaremos os discursos publicados nos dois jornais editados por Xavier da Veiga antes da criao do Arquivo Mineiro. Esses discursos voltam-se para o debate poltico da poca, envolvido no s com a Proclamao da Repblica, mas tambm com os conflitos partidrios em Minas Gerais, os confrontos ideolgicos, as disputas por cargos. Quais eram as articulaes polticas engendradas no Estado? Em quais

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momentos e de que maneira a memria e a histria eram evocadas nessas disputas? Faremos aqui uma anlise de um discurso institucional. Analisaremos como os grupos que detm o poder poltico formal no perodo se utilizaram da memria e da histria para se legitimarem. Uma questo que fica pendente como esse discurso chega populao, como ele recebido, em quais aspectos ele absorvido ou recusado. Por uma questo de ordem prtica, deixaremos essa segunda questo para um trabalho posterior. O nosso trabalho est dividido em trs captulos. No primeiro captulo Arquivo, Memria, Histria e Poder faremos uma discusso buscando conceituar e problematizar a idia de arquivo, memria, histria e poder. A nossa hiptese principal que a constituio de arquivos e museus no sculo XIX na Europa e tambm no Brasil se deu no bojo das mudanas nas relaes de poder, quando a memria passou a ter um significado especial tanto com relao ao passado que se esforava para esquecer e superar, quanto com relao aos novos sistemas polticos que se estabeleceram no perodo. Acreditamos ser necessria uma discusso terica sobre os conceitos e idias que sero desenvolvidas nos prximos captulos, para que se delimite com clareza os parmetros com que estamos lidando e se defina um norte bem slido sobre o significado do trabalho historiogrfico para ns. No segundo captulo O Arquivo Pblico Mineiro Como Projeto Poltico buscaremos fazer uma contextualizao poltica e cientfica. Analisaremos os personagens envolvidos na criao do APM e a sua participao poltica no Estado e no pas. Como o APM se constituiu numa moeda de troca? Quais as

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relaes de poder que se desenvolviam na e em torno da Instituio? Quais os critrios utilizados para a distribuio de cargos? Quem eram os correspondentes do Arquivo tanto no cenrio poltico quanto cientfico? Quais as negociaes que envolviam as doaes e trocas de documentos? No terceiro e ltimo captulo Xavier da Veiga, o arconte do Arquivo Pblico Mineiro buscaremos analisar: como foi feita a seleo da memria? Quais os documentos que foram para o Arquivo e quais foram eliminados? Qual histria estava sendo iluminada e qual deveria ser esquecida? Qual histria oficial estava sendo construda e valorizada naquele momento? Qual a concepo de histria de Xavier da Veiga e quais as relaes estabelecidas a partir dessa concepo? Nesse sentido, buscaremos, nesses trs captulos, analisar a relevncia da memria como um instrumento de poder e, mais especificamente, as relaes de poder em Minas Gerais, representadas na figura, para ns importantssima, do primeiro diretor do Arquivo Pblico Mineiro, Jos Pedro Xavier da Veiga.

Arquivo, Memria, Histria e Poder

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Captulo I Arquivo, Memria, Histria e Poder

Precisamente esse animal que necessita esquecer, no qual o esquecer uma fora, uma forma de sade forte, desenvolveu em si uma faculdade oposta, uma memria, com cujo auxlio o esquecimento suspenso em determinados casos nos casos em que se deve prometer: no sendo um simples no-mais-poder-livrar-se da impresso certa vez recebida, no a simples indigesto da palavra uma vez empenhada, da qual no conseguimos dar conta, mas sim um ativo no-mais-querer-livrar -se, um prosseguir-querendo o j querido, uma verdadeira memria da vontade. 7

1.1. Arquivo

o termo arquivo aparece na bibliografia de formas bastante diversas, significando ora a instituio que abriga o acervo documental, ora o prprio acervo documental. No entanto, alguns autores como Jacques Derrida e Michel Foucault trabalham com concepes mais tericas para o referido termo. Neste trabalho, optamos pelos conceitos de Derrida e Foucault por problematizarem mais a discusso e terem uma viso mais dinmica, no s do Arquivo, mas da prpria histria. Schellenberg 8 define arquivo (archival institution) como a instituio responsvel pela guarda de material de arquivo ou arquivos (archives). Mais precisamenteOs documentos de qualquer instituio pblica ou privada que hajam sido considerados de valor, merecendo preservao permanente para fins de referncia e de pesquisa e que hajam sido depositados ou 9 selecionados para depsito, num arquivo de custdia permanente .

7

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. So Paulo: Ed. Brasiliense, 1987. p 58. Theodore R. Arquivos Modernos: princpios e tcnicas. Rio de Janeiro:

8

SCHELLENBERG, Editora FGV, 2002.9

SCHELLENBERG, Theodore R. Arquivos Modernos, 2002. p. 11.

Arquivo, Memria, Histria e Poder

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Segundo ele , existem trs elementos essenciais que caracterizam o material de arquivo: em primeiro lugar, para serem considerados arquivos, os documentos deveriam ter sido criados e acumulados na consecuo de algum objetivo, seja um ato administrativo ou executivo; o segundo elemento refere -se aos valores pelos quais os arquivos so preservados, que podem ser tanto oficiais quanto culturais, o principal que esses arquivos sejam preservados para uso de outros alm de seus prprios criadores; o terceiro elemento refere-se custdia, em se tratando do grande volume dos documentos modernos n possvel o seguir uma linha imaculada de custdias ininterruptas, deve-se apenas ter como quesito essencial a suposio de que os documentos sejam realmente do rgo que os oferece. A partir da perspectiva foucaultiana, partiremos de uma conceituao de arquivo mais terica, ou seja, analisaremos o arquivo a partir do ponto de vista da Histria e no da prtica arquivstica, como recorrentemente se faz. Arquivo, segundo Foucault 10, o que permite que os discursos permaneam histricos, ou seja, o que possibilita que os acontecimentos do passado sejam apropriados pelo presente e reiteradamente reinventados, reconstrudos, rearranjados, o que permite a vitalidade da histria contada e recontada. Dentro dessa concepo, os discursos do passado adquirem constantemente novas roupagens pela iluminao do presente, no correspondendo, assim, viso tradicional de uma massa amorfa, coesa, passada. Mas presentificada, viva, co-relacionada.

10

FOUCAULT, Michel . A Arqueologia, 2004. p. 141.

Arquivo, Memria, Histria e Poder

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Os discursos arquivsticos no podem ser compostos dentro de uma temporalidade nica e um arranjo nico. Eles so histricos e, como tais, possuem sua temporalidade prpria e sua rede de relaes. Quando tratamos as prticas discursivas como histricas, rompemos com a idia de uma histria linear que teria como objetivo uma grande acumulao de documentos, uniformizando-os em uma temporalidade nica. Valorizamos cada discurso, cada documento como um monumento, que deve ser tratado dentro do seu contexto especfico de produo, dentro das relaes que produz e estabelece. Ao contrrio de uma historiografia tradicional que via na criao de instituies arquivsticas a possibilidade de criar um vnculo de continuidade com o passado, evitando as rupturas e a emergncia de novos atores no cenrio poltico, os arquivos permitem a exploso de temporalidades diversas. O Arquivo o lugar primordial da ruptura, j que cada discurso histrico e que cada historicidade se constri e reconstri, a todo o momento, pelo olhar do presente. No o passado que se acomoda linearmente nas estantes das instituies, mas o presente que ilumina os discursos trazendo-os para uma nova historicidade. Alm disso, fundamental destacarmos que os discursos do passado devem ser tratados dentro de sua historicidade especfica. Cada discurso foi produzido dentro de um contexto singular, com um propsito, e em relao com outros discursos, que por sua vez tambm tm a sua historicidade.

Arquivo, Memria, Histria e Poder

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Na mesma linha, para Jacques Derrida 11 arquivo arkh designa, ao mesmo tempo, comeo e comando, isto , coordena tanto o princpio da natureza e da histria, o comeo das coisas, quanto o princpio da lei, o lugar onde se exerce a autoridade, a ordem social, o lugar a partir do qual a ordem dada. No entanto, Derrida ressalta que temos dificuldade em apreender os dois sentidos colocados acima tanto no documento quanto no arquivo. Geralmente, o arquivo remete ao sentido originrio, ontolgico, e no ao sentido de comando. O sentido de arquivo vem, para ele, do arkeon grego: inicialmente, uma casa, um domicio, um endereo, a residncia dos magistrados superiores, os l arcontes, aqueles que comandavam. Aos cidados e assim denotavam o poder poltico reconhecia-se o direito de fazer ou de representar a lei12. Diante da autoridade publicamente reconhecida, era na casa deles (casa particular, de famlia ou funcional) que se depositavam os documentos oficiais. Os arcontes foram os primeiros guardies dos documentos oficiais: alm de serem os responsveis pela segurana fsica do depsito e do suporte, tinham tambm o direito e o poder de interpretar os arquivos. Sob a guarda dos arcontes, os documentos evocavam a lei e convocavam lei. A condio de existncia do arquivo exige que este seja depositado em algum lugar sobre um suporte estvel, que esteja disposio de uma autoridade hermenutica legtima, que concentre funes de unificao, identificao e

11

DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo: uma impresso freudiana. Rio de janeiro: Relume Dumar, 2001.12

DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo... 2001, p. 12.

Arquivo, Memria, Histria e Poder

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classificao e, por ltimo, o poder de consignao. A idia de consignao est ligada ao princpio de reunio.Uma cincia do arquivo deve incluir a histria desta institucionalizao, isto , ao mesmo tempo, da lei que a se inscreve e do direito que a autoriza. Este direito pe ou supe um conjunto de limites que tm uma 13 histria, uma histria desconstrutvel (...) .

Quando fala de descontruo, Derrida manifesta -se contrrio instituio de limites declarados intransponveis, como o direito das famlias e do Estado, a relao entre o pblico e o privado, etc. Aproxima-se da idia foucaultiana de no aceitar conceitos prontos e determinados sem questionamento, ou seja, justamente o arquivo que permite a desconstruo de conceitos pr -determinados e a sua permanente reconstruo De acordo com Derrida, o que motiva o registro, mesmo quando se tem conscincia de que o que se diz algo j conhecido, uma pulso de perda. Freud trabalha com a idia de pulso de morte, que visa destruir o arquivo. A pulso de morte destruidora do arquivo, o que o autor chama de potncia arquivioltica. Na tentativa de se limitar essa pulso de perda, que se d o registro documental e a sua guarda em instituies arquivsticas. Essa potncia arquivioltica no leva somente ao esquecimento, amnsia, aniquilao da memria, comanda tambm o apagamento radical, a erradicao daquilo que no se reduz jamais a mneme, ou, memria espontnea. O arquivo no se relaciona idia de memria como experincia espontnea, viva e interior.

13

DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo... 2001, p 14.

Arquivo, Memria, Histria e Poder

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O arquivo tem lugar em lugar da falta originria e estrutural da chamada memria 14. A salvao do documento , portanto, um ato de escolha, escolha de salvar para o futuro; essa escolha um ato de poder, de exerccio e de imposio de poder. A memria no algo natural, espontneo, mas uma escolha de poder. E nessa escolha que o arquivo tem o seu papel primordial.

1.2. Memria

O debate da memria ser conduzido por uma discusso acerca das produes de saberes e das relaes de poder que envolvem a sua construo e a sua preservao. Poder e saber mantm uma relao de interdependncia que acompanha toda produo de conhecimento, no podendo um se exercer sem o outro. A produo de um conhecimento est sempre relacionada a interesses, sejam polticos ou econmicos, que motivam e possibilitam o conhecimento, sejam as disputas e os jogos no meio acadmico, etc. Por outro lado, as relaes de poder so mltiplas e dinmicas, ou seja, esto sempre mudando as suas estratgias de combate e, portanto, motivando e produzindo saber; todas as relaes so relaes de poder. A construo da memria no diferente. Desde a Antiguidade, antes mesmo da e scrita, as pessoas responsveis pela conservao da memria do grupo os homens -memria tinham um papel importantssimo na manuteno14

DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo... 2001,p. 22.

Arquivo, Memria, Histria e Poder

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da coeso do grupo, alm de uma posio de destaque na sociedade. Nesse sentido, o conhecimento da memria se constitua em um instrumento poderoso na reproduo das relaes de poder. Tendo como base os estudos de Michel Foucault15 sobre as relaes de poder, entendemos que o poder no algo de que se apropria, uma instncia superior O Poder, mas sim jogos de fora que so negociados a todo o momento. Nesse sentido, acreditamos que a memria uma construo histrica, ou seja, cada perodo e cada contexto promovem a construo da histria de acordo com os interesses polticos do momento. A memria define-se ento como uma estratgia, um instrumento de poder. As relaes de poder podem ser analisadas de duas maneiras: a primeira, por meio da prpria seleo da memria, ou seja, quais eventos e personagens histricos so privilegiados na seleo da memria e quais so propositadamente esquecidos; em segundo, as negociaes nas quais se envolvem os personagens no processo de criao das instituies de memria, no caso, do Arquivo Pblico Mineiro e na constituio do seu acervo. Como j dissemos anteriormente, a proposta de trabalharmos com a seleo da memria problemtico, pois estaremos acessando o nosso objeto a partir do ponto de vista institucional, que no negocia a seleo da memria, mas impe. Isso no quer dizer que no consideramos a possibilidade de negociao,15

Cf. FOUCAULT, Michel - Vigiar e Punir. Petrpolis: Vozes, 2004. Pg.29.

______________ - Histria da Loucura. So Paulo: Editora Perspectiva, 2004. ______________ - Microfsica do Poder. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1979. ______________ - A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2004.

Arquivo, Memria, Histria e Poder

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rejeio, reconstruo de quem recebe a memria pronta, institucionalizada. Por uma questo de ordem prtica, nesse trabalho privilegiaremos apenas a construo oficial da memria, mas levando em considerao, em todo momento, a existncia de outros campos de fora. Outra questo importante a diferenciao dos tipos de memria e a anlise de qual memria, quais recortes e selees estavam sendo feitos no perodo. A utilizao da memria pressupe a manipulao tanto da lembrana quanto do esquecimento; nesse sentido, analisaremos qual memria estava sendo foradamente deixada de lado e qual estava sendo enfatizada, rememorada, celebrada. A constituio de arquivos e museus no sculo XIX na Europa e tambm no Brasil se deu a partir de uma mudana nas relaes de poder quando, tanto a memria quanto a histria, passam a ser utilizadas como instrumentos de controle social por meio da legitimao dos novos grupos polticos. Para Pierre Nora 16 a memria um conjunto de estratgias dentro do jogo de foras da poltica, muito mais uma moldura do que um significado, isto , a memria em si no tem nenhum significado; ela s adquire importncia na medida em que ela se manifesta por meio de smbolos e faz parte de um jogo de foras poltico. A memria foi intensamente utilizada no sculo XIX e ainda continua sendo - como uma estratgia poltica poderosa. Mas, o que possibilita que a memria e a histria sejam artifcios to poderosos, que permitiram a constituio

16

NORA, Pierre. Les lieux de mmoire. Gallimard, 1984.

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da idia de povo, de nacionalidade, que legitimaram a constituio de sistemas polticos? Que sentimentos a memria mobiliza? Quais necessidades ela preenche? No caso da Frana ps-revolucionria, a Repblica operou uma reduplicao da memria se constituindo na redefinio sinttica e no resultado da memria nacional. A Repblica se confundiu com a memria. A Repblica francesa promoveu uma acelerao da histria, rompendo com o equilbrio da tradio. Buscou-se, ento, o arquivamento de qualquer coisa logo aps ter comeado. A curiosidade pelos lugares onde se cristaliza e se refugia a memria est ligada tomada de conscincia da ruptura com o passado pela Revoluo. Esse sentimento de ruptura se confundiu com o sentimento de uma memria dilacerada, levando a uma busca pela continuidade. Nora destaca que essa corrida da memria no se restringiu Frana, mas ocorre em todo o mundo pelo fenmeno da mundializao, da democratizao, da massificao e da mediatizao. Especialmente, no caso da independncia das novas naes que, livres da violao colonial, buscam uma historicidade prpria. Passa-se das sociedades-memria nas quais eram asseguradas a passagem regular do passado ao futuro, para a idia de progresso, para o dever de mudana, mas seguindo um sentido nico, linear. Essa corrida da memria, estimulada pelo desaparecimento da memria tradicional, cria um movimento de sacralizao dos registros da memria. Buscase o acmulo cada vez maior de tudo que se produz, o que Nora chama de terrorismo da memria historicizada. A memria passa a ser dominada pela histria e assim destruda.

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A produo histrica no sculo XIX, assim como a produo da memria, estava marcada por um grande esforo cientificista que procurava preencher e adornar a histria com a marca da racionalidade e do progresso. Essa racionalidade materializava -se no exerccio da histria por meio do culto e da admirao do passado e dos seus vestgios. O historiador cientfico tinha a grandiosa funo de garimpar, acumular e reproduzir os grandes feitos do passado. Ele no se dirigia para o passado com um questionamento vivo, presente, mas apenas com a admirao de um f e de um seguidor. Dentro dessa concepo de histria, a lembrana dos grandes feitos histricos e dos grandes heris da humanidade se torna absolutamente essencial. O conceito de memria aqui se resume, ento, a lembrar e a guardar. O problema que a histria cientfica tem como pressuposto a objetividade, ela busca olhar de fora e reproduzir o passado nos moldes da imparcialidade; busca a universalidade, representa ndo a marcha da humanidade; mas apenas uma reconstruo incompleta, uma representao do passado. Enquanto que a memria vida, dinmica, est em evoluo permanente no jogo da lembrana e do esquecimento. A memria mgica, mtica, se instala no lugar do sagrado, promove ligaes, continuidades temporais; parte integrante do processo histrico, da evoluo dos homens, dos grupos sociais. Como j ressaltamos, a memria dominada pela histria destruda. Perde a vida, a sacralidade, e passa a ser vestgio, cadver pronto para ser dissecado. O mundo historicizado promove a dessacralizao definitiva da memria. E, quanto mais se mata a memria, mais a sociedade moderna busca acumular seus

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smbolos, seus objetos, constituindo lugares cheios de simbologia morta, que nada dizem ou representam. Para Nora, museus, arquivos, cemitrios, colees, monumentos,

santurios so as testemunhas de uma outra poca, iluses de eternidade, empreendimentos de piedade, patticos e glaciais; rituais de uma sociedade sem ritual; sacralidades passageiras em uma sociedade que dessacraliza; signos de reconhecimento em uma sociedade que tende a reconhecer que os indivduos so iguais e idnticos. Se tomarmos como conceito de histria a idia nietzschiana 17 de um conhecimento voltado para a vida, para o presente, para a realizao do homem enquanto um indivduo ativo que atua e constri o seu prprio presente e futuro, necessrio que se estabelea uma relao diferente com a idia de memria. Para a histria que parte do presente e tem no passado apenas um interlocutor que no se impe sobre o presente, mas que dialoga, tem na memria no apenas a lembrana, mas tambm o esquecimento. O esquecimento no avesso memria, muito menos histria, mas parte integrante e necessria. O esquecimento o que possibilita ao homem que ele construa a sua prpria histria sem a opresso do passado. Halbwachs 18 divide a memria em dois tipos: a memria individual e a memria coletiva ou histrica. Segundo o autor, a memria indi vidual ou autobiogrfica aquela que se restringe ao mbito da vida das pessoas, das17

NIETZSCHE, Friedrich. Segunda Considerao Intempestiva. Da Utilidade e desvantagem da histria para a vida. Rio de Janeiro: Ed. Relume Dumar, 2003.18

HALBWACHS, Maurice. A Memria Coletiva. So Paulo: Vrtica, Editora Revista dos Tribunais, 1990.

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lembranas pessoais, mas que esto enraizadas em diversos elementos do social. J a memria coletiva um pensamento contnuo e natural, retendo do passado aquilo que ainda est vivo ou capaz de viver na conscincia do grupo. A memria individual s possvel por meio do uso das palavras e das idias - estratgias e instrumentos fixados pela sociedade. Alm disso, limitada no espao e no tempo de acordo com o que foi visto, feito ou vivido. J os limites da memria coletiva podem ser mais remotos. A memria coletiva normalmente passa pela memria do outro, o que o autor chama de "memria emprestada". A memria autobiogrfica se apia de certa forma na memria histrica j que a nossa vida faz parte da histria em geral. A memria autobiogrfica contnua e densa, ao passo que a memria histrica se apresenta de forma resumida e esquemtica. O interessante dessa anlise que, segundo Halbwachs, adquirimos a memria histrica normalmente por meio das lembranas e dos relatos alheios, e esta est em constante renovao. O tempo social inteiramente exterior s duraes vividas pela conscincia. A operao que consiste em relacionar a memria individual s divises da vida coletiva artificial e exterior, alm de posterior. Halbwachs ressalta a importncia do contexto histrico e social como influncia determinante na vida das pessoas, no apenas fatos histricos determinantes, mas uma mentalidade, uma atmosfera psicolgica e social. A memria se apoiaria sobre nossa histria vivida e no apenas na histria aprendida.

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Nesse sentido, a memria social, coletiva, o que garante o sentimento de grupo, de coletividade; a memria individual interage com a memria coletiva criando um sentimento de pertencimento, de unidade, de conforto. No entanto, na medida em que essa memria coletiva passa a ser racionalizada e, portanto, destruda, perde-se a referncia tanto do indivduo quanto da coletividade. Destrise esse sentimento de pertencimento, unidade, conforto. A construo da memria surge, ento, como algo fundamental, no sentido de se devolver ao indivduo e coletividade sentimentos necessrios vida.A histria contnua o correlato indispensvel funo fundadora do sujeito: a garantia de que tudo o que lhe escapou poder ser devolvido. Fazer da anlise histrica o discurso do contnuo e fazer da conscincia humana o sujeito originrio de todo o devir e de toda a prtica so as duas faces de um mesmo sistema de pensamento. O tempo a concebido em termos de totalizao, onde as revolues jamais passam de tomadas de conscincia19.

Le Goff 20 tambm trabalha com a idia de memria coletiva, mas desenvolve uma viso diferente da de Halbwachs. Para Le Goff, o aparecimento da memria coletiva est muitas vezes relacionado aos conflitos e disputas sociais. Segundo ele, tanto os esquecimentos quanto as lembranas da histria so reveladores dos mecanismos de manipulao da memria coletiva. Le Goff destaca que o desenvolvimento da escrita possibilitou um duplo progresso: o primeiro a celebrao de um acontecimento memorvel; o segundo, o surgimento do documento escrito num suporte especialmente destinado escrita. Neste tipo de documento a escrita tem duas funes: a primeira o armazenamento de informaes que permite ao homem comunicar-se19 20

FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense -universitria, 2004. LE GOFF, Jacques. Histria e Memria. So Paulo: UNICAMP, 1990.

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por meio do tempo; a segunda, a possibilidade de poder reexaminar, reordenar o que foi escrito. Ele ressalta que essa mudana est muito mais ligada organizao de um novo poder (no caso, o poder monrquico) do que de um novo saber. Le Goff destaca que, no perodo ps-revolucionrio francs, ocorreu o retorno da memria dos mortos, com novos tipos de monumentos, inscries funerrias e o rito da visita ao cemitrio. Os calendrios festivos passaram a ser usados ostensivamente para relembrar a Revoluo, fato previsto na Constituio de 1791. O interessante que esse calendrio festivo, j na Revoluo Francesa, no era uma manifestao espontnea da populao, ao contrrio, as datas eram criteriosamente escolhidas pelos lderes revolucionrios para serem lembradas e celebradas. De acordo com Hobsbawm21 a aquisio da legitimidade era um problema concreto dos dirigentes dos novos Estados, inclusive a Frana revolucionria e, um meio conveniente de resolver isso, era criar uma identificao com um povo ou nao. Nesse caso especfico, a idia de nacionalidade francesa estava vinculada construo da cidadania. O que caracterizava uma pessoa como francesa no era, prioritariamente a lngua ou a etnia, mas o fato de participar politicamente da nova nao ou, nas palavras do autor: [] o que caracterizava o povo-nao, visto de baixo, era precisamente o fato de ele representar o interesse comum contra os interesses particulares e o bem comum contra o privilgio [...] 22.

21

HOBSBAWM, Eric J. Naes e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.22

HOBSBAWM, Eric J. Naes e nacionalismo desde 1780: , 1990.

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Na busca por essa legitimidade, os Estados usaram de forma intensa a maquinaria da comunicao, principalmente nas escolas primrias, com o objetivo de criar um sentimento de vnculo nao, inventando tradies e difundindo a idia de herana, vinculada aos smbolos nacionais como a bandeira e o hino. Benedict Anderson23 argumenta que os museus e a imaginao musestica so profundamente polticos. Citando o exemplo das colnias asiticas, destaca que houve uma grande concentrao de esforos arqueolgicos na restaurao de monumentos importantes como uma espcie de programa educativo conservador, que tambm serviu de pretexto para resistir presso dos grupos progressistas. Era a infinita reproduo cotidiana destes smbolos que revelava o autntico poder do Estado. Le Goff tambm ressalta a importncia da comemorao para

conservadores e nacionalistas para quem a memria um objetivo e um instrumento poderoso de governo, o que deu incio a um movimento cientfico que tinha como funo fornecer memria coletiva das naes os monumentos de lembrana. Devemos destacar que, nesse esforo de construo de uma memria a comemorao um fator essencial. na comemorao pblica dos grandes momentos nacionais que se consegue atingir os coraes da massa, no pela racionalidade da histria, mas pela emoo da memria, o passado comum e grandioso da nao. A criao dessa indstria pedaggica inclui no apenas a

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ANDERSON, Benedict . Comunidades Imaginadas Reflexiones sobre el origen y la difusin Del nacionalismo. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1993.

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criao de lugares de memria, como arquivos e museus, mas tambm a celebrao pblica dos grandes eventos do passado, com grandes paradas populares e comemoraes escolares. Um decreto de 7 de setembro de 1790 criou os primeiros Arquivos Nacionais Franceses e um outro, de 25 de junho de 1794 ordenou a publicidade dos mesmos. Alm da Frana, tambm criam seus depsitos centrais de arquivo os seguintes pases: Itlia no incio do sculo XVIII; Rssia em 1720; a Polnia em 1765; a Inglaterra em 1838 24. Alm disso, na primeira metade do sculo XVIII j foram criadas as primeiras instituies especializadas a fim de formarem especialistas do estudo desses fundos documentais. Seguindo a onda dos arquivos, foram criados tambm diversos museus no mesmo perodo.A memria um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca uma das atividades fundamentais dos indivduos e das sociedades de hoje, na febre e na angstia. Mas a memria coletiva no somente uma conquista, tambm um instrumento e um objeto de poder. []. 25

Le Goff se refere histria como a forma cientfica da memria coletiva. O que sobrevive do passado no o conjunto de tudo o que existiu, mas sim uma escolha, uma seleo desse passado. O documento uma escolha do historiador. O termo documento est ligado idia de prova. Para a escola positivista o documento era o fundamento do fato histrico e apresenta uma objetividade oposta intencionalidade do monumento.

24 25

Ver mais em: LE GOFF, Jacques. Histria e Memria. So Paulo: UNICAMP, 1990. LE GOFF, Jacques. Histria e Memria, 1990.P 476

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considerado documento qualquer escrito utilizado para consulta, estudo ou prova. J os monumentos so as heranas do passado; obras ou construes destinadas a transmitir posteridade a memria de algum fato ou pessoa notvel. tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordao. Normalmente conhecemos por monumento uma obra comemorativa de arquitetura ou escultura, ou mesmo um monumento funerrio. A segunda metade do sculo XIX marcou o triunfo do documento sobre o monumento, ou seja, transformou os monumentos em documentos, transformou os monumentos em fonte de informao objetiva, da qual se apropria a histria.A histria, em sua forma tradicional, se dispunha a "memorizar" os monumentos do passado, transform-los em documentos e fazer falarem estes rastros que, por si mesmos, raramente so verbais, ou que dizem em silncio coisa diversa do que dizem. Ou seja, a histria cientificista, positivista apenas memorizava porque os documentos falavam por si, ela s registrava e acumulava registros; memorizava os monumentos do passado, pois s os grandes feitos e grandes heris do passado que eram dignos de registro; transforma os monumentos, que tem uma intencionalidade em documentos que seriam isentos, o registro fiel do passado e fazem falar esses rastros por si s, como um conhecimento isento, cientifico.26

Segundo Hannah Arendt 27 a memria impote nte fora de um quadro de referncia preestabelecido, e somente em rarssimas ocasies a mente humana capaz de reter algo inteiramente desconexo. Salienta ainda que todo acontecimento vivido precisa ter um acabamento mental para que se possa, posteriormente, contar a histria e transmitir o significado do acontecimento. Sem

26 27

FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense -universitria, 2004. p 8. ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. So Paulo: Ed. Perspectiva, 1997.

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esse acabamento pensado aps o ato e sem a articulao da memria, no sobra histria que possa ser contada. Histria e memria se articulam e mantm uma relao de dependncia no s durante o processo de produo do conhecimento histrico, mas tambm como instrumento importante utilizado pelo Estado na construo da sua legitimidade e do seu povo. No entanto, nosso interesse aqui exatamente no ficarmos restritos s relaes hierrquicas do poder estatal, mas observar as mltiplas relaes de poder que envolvem a construo e o uso da memria. Para tanto, analisaremos quais so essas relaes de poder que permeam a construo da memria, do discurso oficial, e como essas relaes se desenvolvem a partir de uma perspectiva micro, ou seja, a partir da criao do Arquivo Pblico Mineiro, partindo dos discursos que envolveram a criao da instituio e a composio de seu acervo.

1.3. Memria e Poder

Como j dissemos anteriormente, todas as relaes so relaes de poder, inclusive aquelas que se relacionam institucionalizao da memria. A nossa hiptese que a institucionalizao da memria foi um poderoso instrumento de disciplinarizao utilizado ostensivamente na era moderna, dentro das novas conjunturas polticas que esto se estabelecendo no perodo e das novas relaes de poder.

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Foucault 28 salienta a necessidade de renunciar tradio que defende que o conhecimento s se desenvolve fora das relaes de poder, que o "saber s pode desenvolver-se fora de suas injunes, suas exigncias e seus interesses" 29 um conhecimento isento.Temos antes que admitir que o poder produz saber; que poder e saber esto diretamente implicados; que no h relao sem constituio correlata de um campo de saber, nem saber que no suponha e no constitua ao mesmo tempo relaes de poder.30

Em Vigiar e Punir, Foucault fez uma histria correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar, uma genealogia do atual complexo cientfico-judicirio. Mais do que isso, ele fez uma anlise da Modernidade e das novas relaes de poder e controle social estabelecidas nesse perodo. O seu objetivo era analisar os mtodos punitivos enquanto tcnicas que tm sua especificidade no campo mais geral dos outros processos de poder. um processo histrico de disciplinarizao que tem como objetivo tornar o sujeito no s mais obediente, mas tambm mais til.O momento histrico das disciplinas o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa no unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeio, mas a formao de uma relao que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto mais til, e inversamente. Forma-se ento uma poltica das coeres que so um trabalho sobre o corpo, uma manipulao calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompe. Uma 'anatomia poltica', que tambm igualmente uma 'mecnica d poder', est o nascendo: ela define como se pode ter domnio sobre o corpo dos outros, no simplesmente para que faam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as tcnicas, segundo a rapidez e a eficcia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos2829 30

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrpolis: Vozes, 2004. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, 2004. p.29. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, 2004. p.30.

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submissos e exercitados, corpos 'dceis'. A disciplina aumenta as foras do corpo (em termos econmicos de utilidade), e diminui essas mesmas foras (em termos polticos de obedincia)31.

O objetivo de Foucault no era fazer a histria das instituies disciplinares, mas sim localizar, por meio de uma srie de exemplos, algumas das tcnicas de disciplinarizao essenciais que se generalizaram mais facilmente. Tcnicas minuciosas e muitas vezes ntimas que definem um certo modo de investimento poltico e detalhado do corpo, uma nova microfsica do poder. Ou, como diria Deleuze 32Uma das idias essenciais de Vigiar e Punir que as sociedades modernas podem ser definidas como sociedades disciplinares, mas a disciplina no pode ser identificada com uma instituio nem com um aparelho, exatamente porque ela um tipo de poder, uma tecnologia, que atravessa todas as espcies de aparelhos e de instituies para reuni-los, prolong-los, faz-los convergir, fazer com que se apliquem de um novo modo 33.

O poder no est ligado idia de posse, mas de exerccio. E ele no se exerce apenas de cima para baixo, de uma classe dominante para uma dominada, mas por meio de posies estratgicas e dinmicas que, invertendo a ordem estabelecida, pode ser exercida por aquela aparentemente dominada.Esse poder, por outro lado, no se aplica pura e simplesmente, como uma obrigao ou uma proibio, aos que no tem; eles os investe, passa por eles e atravs deles; apoia-se neles, do mesmo modo que eles, em sua luta contra esse poder, apoiam-se por sua vez no ponto em 34 que eles os alcana .

O poder no se exerce apenas nas relaes do Estado com os cidados ou na fronteira das classes. As relaes de poder definem inmeros pontos de lutas,31

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, 2004. P.119. DELEUZE, Gilles. Foucault. So Paulo: Brasiliense, 1988. DELEUZE, Gilles. Foucault, 1988. p. 35. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, 2004.

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focos de instabilidade. A inscrio dessas relaes de poder na Histria se d pelos efeitos por eles induzidos em toda a rede em que se encontra. O nosso objeto pensar a memria enquanto um processo poltico institucional naquilo que entendemos por processo de institucionalizao da memria. Nesse sentido, trabalhamos com a idia de uma memria construda artificialmente pelas instncias oficiais do poder governamental, como um instrumento de dominao e disciplinarizao.[...] onde h memria h poder e onde h poder h exerccio de memria. Memria e poder exigem-se. O exerccio do poder constitui lugares de memria que, por sua vez, so dotados de poder35.

A primeira das grandes operaes da disciplina foi a constituio de 'quadros vivos', ou diagramas, que transformavam as multides confusas, inteis e perigosas em multiplicidades organizadas. O poder, nas sociedades modernas, disciplinares, opera um enquadramento de todo o espao geogrfico. De acordo com Foucault 36 a constituio de 'quadros' foi um dos grandes problemas da tecnologia cientfica, poltica e econmica do sculo XVIII. Como exemplo , ele destaca a iniciativa de arrumar jardins de plantas e animais construindo, ao mesmo tempo, classificaes racionais dos seres vivos; observar, controlar, regularizar a circulao das mercadorias e da moeda; inspecionar os homens, constatar sua presena e sua ausncia, constituir um registro geral e permanente das foras armadas e, acrescentamos, o acmulo, organizao e instrumentalizao dos objetos de memria e documentos e, posteriormente, a produo de um conhecimento histrico oficial e a disseminao desse saber nas escolas e momentos cvicos. A35

CHAGAS, Mrio. Memria e Poder: contribuio para a teoria e a prtica nos ecomuseus. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, 2004.

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disciplinarizao nos sculos XVIII e XIX , ao mesmo tempo, uma tcnica de poder e um processo de produo de saber. O poder disciplinar , com efeito, um poder que tem como funo maior adestrar.Adestra as multides confusas, mveis, inteis de corpos e foras para uma multiplicidade de elementos individuais pequenas clulas separadas, autonomias orgnicas, identidades e continuidades genticas, segmentos combinatrios. A disciplina fabrica indivduos; 37.

Essa nova anatomia poltica deve ser entendida como uma multiplicidade de processos, de origens diferentes, de localizaes esparsas, mas que se repetem e se apiam uns sobre os outros. Como exemplo, Foucault cita os colgios, as escolas primrias, o exrcito e at as grandes oficinas.Uma observao minuciosa do detalhe, e ao mesmo tempo um enfoque poltico dessas pequenas coisas, para controle e utilizao dos homens, sobem atravs da era clssica, levando consigo todo um conjunto de tcnicas, todo um corpo de processos e de saber, de descries, de receitas e de dados. E desses esmiuamentos, sem dvida, nasceu o 38 homem moderno.

Foucault define a disciplina como a distri buio dos indivduos no espao. Essa distribuio pode se dar por meio de um processo de encarceramento, como colgios e quartis ou localizaes funcionais como hospitais. Alm disso, o mais importante que a disciplina promove um processo de individualizao dos corpos, distribuindo-os e os fazendo circular numa rede de relaes. Ao trabalhar com processos de disciplinarizao especficos, como a priso ou o hospcio, Foucault restringe o grupo social que ser atingido por esse mtodo. Contudo, quando ele coloca a hiptese dos elementos intercambiveis, precisamos

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FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, 2004. P.143. Iden.

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pensar em mtodos de disciplinarizao com uma amplitude maior, que atinja a sociedade como um todo, ou quase."Trata-se de organizar o mltiplo, de se obter um instrumento para percorr-lo e domin -lo; trata -se de lhe impor uma ordem 39. A nossa hiptese que na era moderna a proliferao de instituies de memria, tanto de arquivos quanto museus, foi um mtodo importante de disciplinarizao do corpo social, um processo de construo de uma massa de cidados que se identificassem com os novos sistemas polticos e que apoiassem a formao dos novos Estados Nacionais. Foi, portanto, uma nova microfsica do poder, um novo mtodo de controle que, assim como nos mtodos punitivos, atingia agora mais a alma do que o corpo. Nesse sentido, a legitimao dos Estados Nacionais fundamentava -se por meio de estratgias que se davam nas relaes interpessoais e cotidianas. Embora o objetivo esteja numa esfera macro, as estratgias se davam numa esfera micro. A memria, como instrumento de disciplinarizao, era formulada nas instituies oficiais, mas se infiltrava nas relaes cotidianas por meio dos bancos escolares, das celebraes cvicas, dos discursos, da propaganda. Alm da disciplinarizao da memria importante ressaltar que essa vem acompanhada pela consolidao da histria como um campo cientfico. A histria e a memria foram instrumentos poderosos na construo de um sentimento de nacionalidade principalmente por terem sido utilizados de forma conjunta.

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FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, 2004. p. 127.

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Nessa poca, a histria deixou de ser a estria de eventos que afetaram a vida dos homens e tornou-se um processo feito pelos homens, racional, o nico processo global cuja existncia se deveu exclusivamente raa humana. A noo moderna de processo histrico rejeita os conceitos gregos e romanos que valorizavam a tradio e a autoridade dos antepassados conferindo mera seqncia temporal uma importncia e dignidade que ela jamais tivera. Chagas 40 ressalta que o movimento de volta ao passado, sem nenhuma perspectiva de mudana, implica a comemorao da ordem estabelecida. Ora, o que percebemos no sculo XIX exatamente o contrrio, ocorreu um movimento de valorizao do passado, mas um passado selecionado pelo presente, exatamente com o objetivo de se superar a ordem estabelecida e se construir um novo sistema poltico. A subordinao do presente ao passado por meio da continuidade mantm o presente como est, inibe as mudanas, a criatividade, mantm as relaes de poder pr -estabelecidas. Alm disso, o controle da memria no tinha por objetivo regulamentar ou atingir apenas grupos sociais especficos como no caso do hospcio, que disciplinava apenas os loucos e os marginalizados, mas, pelo contrrio, era um mtodo de abranger os elementos intercambiveis. Nem s o louco, nem apenas a criana ou o presidirio, mas o cidado comum que, por meio das celebraes cvicas, ia sendo moldado, cercado, pelas novas relaes de poder.

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CHAGAS, Mrio. Memria e Poder: contribuio para a teoria e a prtica nos ecomuseus.

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Foucault41 argumenta que a sujeio no obtida s pelos instrumentos da violncia ou da ideologia. Ela pode ser fsica, direta, sem ser violenta. Nesse sentido, ressalta a existncia de um "saber" do corpo e um controle de suas foras, que ele chama de tecnologia poltica do corpo. Essa tecnologia difusa, raramente formulada em discursos contnuos e sistemticos. E, principalmente, impossvel encontr-la centralizada em qualquer tipo de instituio ou aparelho de Estado. Trata-se, essa tecnologia, de uma[] microfsica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituies, mas cujo campo de validade se coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos e os prprios corpos com sua materialidade e 42 suas foras .

O que mobilizou a criao dos Arquivos e Museus no sculo XIX no foi, nesse sentido, uma maior sensibilidade para os aspectos histricos, uma evoluo humana que levou elevao dos sentimentos de unio nacional, mas sim a modificao nas formas do exerccio do poder, uma tentativa de se criar artificialmente um sentimento de pertencimento, de naturalidade com os novos sistemas de poder. Na mesma linha, Veyne 43 cita o exemplo do desaparecimento das lutas de gladiadores na Roma Antiga, como tendo sido motivado por uma modificao das prticas polticas, fato anteriormente atribudo influncia da doutrina crist, que teria proporcionado um desenvolvimento de um sentimento de humanidade.

4142 43

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, 2004. p. 26. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, 2004. p. 26.

VEYNE, Paul. Foucault revoluciona a histria. In: Como se escreve a histria. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1998.

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Assim como o fim do suplcio foi muitas vezes justificado com uma maior humanizao do sistema penal, o surgimento das instituies de memria, muitas vezes, relacionado ao desenvolvimento de uma conscincia de preservao dos feitos histricos e memorveis. O corpo supliciado, verdade, deixa de ser o alvo principal da represso penal. As penas e confisses pblicas vo sendo abolidas dos pases europeus ao longo da segunda metade do sculo XVIII e a primeira metade do XIX. Essa mudana est relacionada com a tentativa de evitar o confronto entre o soberano e o condenado, confronto esse que poderia estimular a revolta da populao, j que, a partir da perspectiva do povo, o suplcio revelava a tirania, a sede de vingana e o cruel prazer de punir por parte do soberano. O castigo, antes pblico, passou a ser velado e tornou-se motivo de vergonha para o carrasco e para o prprio sistema penal. No h mais necessidade do vexame pblico, o simples fato de ser um condenado j motivo de vergonha. O mesmo aconteceu com o dito passado "vergonhoso": no era necessrio ficar constantemente rememorando o passado indigno. O melhor era elimin-lo e garantir na memria o passado glorioso que daria respaldo nova nao. Nesse sentido, ocorreu uma proliferao das instituies destinadas guarda e organizao de objetos e documentos e que, alm disso, tambm tinham como funo produzir conhecimento e torn -lo pblico. Na justia moderna a relao castigo-corpo assumiu uma nova dimenso: o corpo adquire uma posio de instrumento ou intermedirio, ou seja, tanto o enclausuramento quanto os trabalhos forados tinham como objetivo privar o indivduo de sua liberdade, considerada um direito e um bem. As prticas modernas visavam no mais o castigo do corpo, mas o controle da alma, da liberdade, da

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conscincia. Essa mudana das prticas penais foi acompanhada de uma percepo de que o controle da conscincia muito mais eficaz do que o controle apenas do corpo. Pois no mais o corpo, a alma. A expiao que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o corao, o intelecto, a vontade, as disposies 44. Quando a alma do criminoso invocada no tribunal, de forma to veemente e de aplicao cientfica, ela passa a ser julgada juntamente com o crime, e deve participar tambm da punio. O julgamento no sobre o que o criminoso fez, mas sobre aquilo que eles so, sero ou podero ser. Alm dos exemplos citados por Foucault, acreditamos que o controle da memria seria mais uma tcnica de disciplinarizao, um controle espacial e temporal do que deveria ser lembrado e celebrado e, por outro lado, daquilo que deveria ser esquecido. Voltamos nossa pergunta inicial, porque a memria um eficiente instrumento de disciplinarizao? 1.4. A disciplinarizao da memria

A disciplinarizao da memria capaz de criar um sentimento de identificao dos cidados com o sistema poltico vigente. No caso da Frana, por exemplo, logo aps a Revoluo, decidiu-se criar um Arquivo Nacional que teria por objetivo no s acumular e organizar os documentos referentes administrao pblica, mas tambm tornar esses documentos pblicos, para que os cidados franceses tivessem acesso sua histria.

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FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, 2004. p. 18.

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Essa publicidade dos documentos criou uma sensao de que a poltica se realizava de forma clara, democrtica, dando maior credibilidade ao novo governo. No entanto, antes de se tornarem pblicos, esses documentos passam por uma rigorosa seleo feita por pessoas especializadas. Essa seleo dos documentos no teria criado, muitas vezes, uma falsa idia de democracia? Referindo-se aos museus, Chagas45 destaca que estes tendem a se constituir em espaos pouco democrticos, pois a prevalece o argumento da autoridade, onde o que importa celebrar o poder ou o predomnio de um grupo social, tnico, religioso ou econmico sobre outros grupos. A construo de uma memria coletiva por meio da sistematizao da produo e recuperao das informaes documentais e a proliferao da criao de lugares de memria, como os museus e os arquivos, com certeza fazem parte desse processo de disciplinarizao do indivduo. Nesse caso, a memria se apresenta como um instrumento mais eficaz, pois atinge no apenas a grupos determinados, mas ao conjunto da populao. claro que no temos a pretenso nem a concepo de que um instrumento disciplinar alcanaria a totalidade da populao de um pas, mas acreditamos que ela tenha um alcance maior j que no se dirige a grupos especficos, como o louco ou o delinqente. Segundo Foucault, o que distingue as disciplinas de outros sistemas de poder que elas tentam definir em relao s multiplicidades uma ttica de poder que responde a trs critrios: economicamente, tornar o exerccio do poder o

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CHAGAS, Mrio. Memria e Poder: contribuio para a teoria e a prtica nos ecomuseus.

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menos custoso possvel; politicamente, garantir a discrio, sua relativa invisibilidade; e, por ltimo, fazer com que os efeitos desse poder social sejam levados a seu mximo de intensidade e estendidos to longe quanto possvel, sem fracasso, nem lacuna. O controle da memria possibilita o cumprimento desses trs critrios: a criao de arquivos e museus um investimento econmico bastante razovel se pensarmos a dimenso que esse mtodo de controle pode atingir; politicamente extremamente discreto, j que aparece revestido de um discurso que, ao contrrio, fala de transparncia governamental, democracia e preservao da memria como um direito e um bem coletivo; e, por ltimo, tem a possibilidade de se estender intensamente, pois atinge no apenas os corpos, mas tambm a alma. uma tcnica de disciplinarizao intensa que molda o indivduo desde criana nos bancos escolares, at a idade adulta. Essa disciplinarizao seria uma tentativa de destruio da memria natural, que seria substituda pela memria construda pelos aparelhos de Estado. Essa memria construda deveria ser pblica, e fazer parte da memria popular at que o indivduo no saiba mais fazer essa distino entre a memria natural e a construda. A memria construda pelas instituies passa a ser a memria natural, naturalizada. No sculo XIX, alm da proliferao de arquivos viu-se o surgimento da Escola Positivista que, alm de controlar essas instituies, adquire grande importncia na historiografia, contribuindo ainda mais para esse processo de disciplinarizao, por meio do controle do tempo histrico. Ocorreu a seriao disciplinar do tempo histrico, a histria evolutiva, linear, e ao mesmo tempo,

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subdividida, organizada, controlada. o perodo da supremacia do documento e da histria cientfica, criando uma idia de verdade histrica e de desenvolvimento. O conhecimento produzido pelas instituies arquivsticas adquire cada vez mais um status cientificista com o embasamento terico oferecido pelos positivistas. Esse status cientificista um importante fator de credibilidade e, portanto, de maior eficcia da histria como um instrumento de disciplinarizao. Traa-se uma linha temporal, elegem-se os fatos que devem ser rememorados periodicamente, transforma-se isso em um ato de cidadania, tornando os documentos pblicos, celebrando um novo sistema poltico ao mesmo tempo consolidado pela histria e, ainda por cima, democrtico.Uma macro e uma microfsica do poder permitiram, no certamente a inveno da histria, mas a integrao de uma dimenso temporal, unitria, cumulativa no exerccio dos controles e na prtica das dominaes. A historicidade 'evolutiva', assim como se constitui ento e to profundamente que ainda hoje para muitos uma evidncia - est ligada a um modo de funcionamento do poder, da mesma forma que a 'histria-rememorao' das crnicas, das genealogias, das proezas, dos reinos e dos atos esteve muito tempo ligada a uma outra modalidade de poder. Com a novas tcnicas de sujeio, a dinmica das evolues s 46 contnuas tende a substituir a 'dinstica' dos acontecimentos solenes .

No s a criao de arquivos e de tcnicas de organizao de acervos, mas a prpria produo documental foi um instrumento importante no processo de disciplinarizao. Foucault cita o exemplo dos hospitais que foram, durante o sculo XVIII, grandes laboratrios para os mtodos escriturrios e documentrios. Na medida em que os hospitais passam a ser no mais o refgio do religioso, mas o espao do mdico tem incio uma grande produo documental, discursos mdicos, relatrios, anlises sobre doenas e pacientes. A constituio do novo saber

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FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrpolis: Vozes, 2004. p.136.

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acompanhada por uma vasta produo documental; um saber no se constitui sem a produo do discurso. Durante a Idade Mdia, a individualidade, a crnica do homem, o relato de sua vida, sua historiografia redigida no desenrolar de sua existncia faziam parte dos rituais do poderio. Os procedimentos disciplinares , ressalta Foucault, reviraram essa relao, abaixando o limite da individualidade descritvel e fazendo dessa descrio um meio de controle e um mtodo de dominao. No mais monumento para uma memria futura, mas documento para uma utilizao eventual 47. Foucault fala da produo da verdade por meio da construo de provas, mas no uma construo qualquer, uma construo cientfica, seguindo regras rigorosas. Assim como a arquivstica, por meio da criao de um mtodo cientfico, cria a idia de verdade histrica. Para estabelecer a verdade certas regras deveriam ser obedecidas. Com relao ao sistema penal, Foucault descreve um confuso sistema de provas e penas, obedecendo a uma complicada hierarquizao dos fatos e das punies ou, como diz o autor, uma aritmtica penal meticulosa. Alm de complicada, socialmente amparada em privilgios. Como exemplo, durante um julgamento um testemunho pode ser anulado se vier de um vagabundo, ou reforado se se trata de uma pessoa de considerao. Alm do complicado sistema aritmtico de provas, o campo penal obedece a regras que s os especialistas podem conhecer. Enfim, toda essa informao penal escrita e, alm disso, secreta, era uma mquina de produzir a verdade, qual o prprio acusado no tinha acesso.

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FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir... 2004. p.136.

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O suplcio se inseriu to fortemente na prtica judicial, porque revelador da verdade e agente do poder. (...); permite que o crime seja reproduzido e voltado contra o corpo visvel do criminoso; faz com que o 48 crime, no mesmo horror, se manifeste e se anule .

No sculo XIX elevou-se o grito contra o suplcio em nome da "humanidade". Descobre -se que h um homem por trs do criminoso, e esse homem se tornou o alvo da punio, que tinha como objetivo corrigi-lo e transform -lo. O alvo da punio deixou de ser o corpo que seria castigado como sinal de fora, mas o homem, a alma, que seria tratada, reeducada. Ao contrrio da idia de humanizao das relaes de poder, essa mudana significa mais um esforo para ajustar os mecanismos de poder que enquadram a existncia dos indivduos, ou seja, uma adaptao dos instrumentos, uma outra poltica. Define-se ento uma justia mais desembaraada e mais inteligente para uma vigilncia penal mais atenta do corpo social. So estabelecidas estratgias e tcnicas de punio em que uma economia da continuidade e da permanncia substituir a da despesa e do excesso. O direito de punir deslocou-se da vingana do soberano defesa da sociedade, no entanto, o criminoso exposto a uma pena que no se v o que pudesse limitar, pois oculta. Essa economia calculada do poder de punir vir acompanhada de um deslocamento no ponto de aplicao desse poder: que no seja mais o corpo, mas o esprito, ou seja, um jogo de representaes e de sinais que circulem discretamente, mas com necessidade e evidncia no esprito de todos. A arte de punir deve repousar sobre toda uma tecnologia da representao.

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FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir..., 2004.

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O crime no natural, a sociedade que define qual ato deve ser considerado um crime. No entanto, o castigo para o crime tem que ser visto como algo natural e decorrente da prtica de alguma espcie de crime. O novo arsenal das penas deve ser ou parecer o mnimo arbitrrio possvel. Assim como se faz na seleo dos documentos pelas instituies responsveis. Criou-se a idia de que a memria natural, que a sua seleo e a sua organizao seguem critrios cientficos e, portanto, isentos. Alm disso, decorre dessa tarefa a produo de um conhecimento verdadeiro, inquestionvel. Que o castigo decorra do crime; que a lei parea ser uma necessidade das coisas, e que o poder aja mascarando-se sob a fora suave da natureza49. No sculo XIX que se concretizou a construo das prises nas cidades e o seu uso como meio de punio. No por acaso, tambm no sculo XIX que ocorreu a proliferao de instituies arquivsticas e de mus eus. Na Histria da Loucura, Foucault trabalha com o processo de

disciplinarizao das populaes errantes que eram excludas do convvio social e encarceradas. Era uma forma de controle dupla, pois mantinha sob vigilncia os loucos e vagabundos, evitando, ao mesmo tempo, que estes estimulassem revoltas ou rebelies no restante da populao. No exemplo da histria da loucura, a excluso fundada por uma estrutura de poder poltico, religioso e mdico. No entanto, esta uma prtica poltica universal. Pensar a prtica de excluir e penetrar na representao das idias que

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FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir..., 2004. p.88.

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formularam o conceito de excluso e, principalmente, na sua materialidade de sculos e sculos. 50 A loucura na poca clssica tinha como funo dar materialidade excluso, enquanto prtica da sociedade civil da poca. No se buscava curar a loucura, mas tirar proveito e benefcios daquilo que pudesse ser utilizado. Assim como na Idade Clssica se exclua os "loucos", selecionava-se o que deveria ser guardado, lembrado, escrito e celebrado, e aquilo que deveria ser esquecido, ou simplesmente apagado da memria e da histria. Se, na poca Clssica, o sujeito miservel, faminto e pobre deveria ser considerado louco e colocado margem da sociedade, o que deveria ser excludo dos arquivos da histria no sculo XIX? Em quais critrios se baseavam aquelas pessoas responsveis pela seleo da nossa memria? Assim como, na Histria da Loucura, o Hospital Geral constituiu-se em um forte centro de poder, uma fortaleza de recluso e disciplina, as Instituies de memria, na medida em que se tornam representantes legais do saber histrico e do que deve ser lembrado e, mais ainda, do que deve ser esquecido, tambm se tornam um centro de poder, uma fortaleza que exclui a loucura da histria e constri uma memria disciplinar. Se no Hospital Geral foi por meio do corpo que o poder em estado de fora agiu sobre as mentes, nos Arquivos e Museus, por meio da alma que o poder em estado de fora age sobre os corpos.

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PEREIRA, Antnio. A analtica do poder em Michel Foucault. Belo Horizonte: Autntica, 2003. p.26.

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A fundao de arquivos e museus no sculo XIX se apresentou como um acontecimento novo nas relaes de poder, uma nova forma de controle da populao por meio da institucionalizao e da seleo da memria. Uma nova forma de exerccio de poder que est sendo fundada nesse perodo, assim como, o acontecimento loucura uma situao fundante do poder no mundo clssico. Ao isolar o acontecimento da loucura, Foucault funda uma nova prtica de trabalhar pela anlise dos acontecimentos, tomando estes como prticas polticas que revelam uma infinitude de significaes at ento pouco vislumbradas pelos olhares de historiadores e filsofos. Essa forma de trabalhar tendo como ponto de partida o acontecimento, exige tambm a fundao de uma nova concepo de histria na qual no h seqncia nica e contnua, mas um processo marcado por rupturas, descontinuidades, comeos e recomeos, anulando a idia de um tempo linear, o fio condutor que dota a histria de sentido. Assim como na Histria da Loucura a dicotomia bem e mal se manteve viva e era praticada no dia-a-dia, por meio da corporificaro no sujeito louco do estigma do mal e, no poder centrado na Igreja e na poltica, aparecia como o retrato do bem. No sculo XIX, a boa memria era identificada com as novas estruturas de poder que esto sendo fundadas, ao passo que as velhas estruturas de poder eram identificadas com os fatos histricos descartveis da memria e dos arquivos. claro que esse processo de disciplinarizao pelo controle da memria, como todo mtodo disciplinar, no atinge a totalidade da populao. O alvo da disciplinarizao tambm tem seus mecanismos de resistncia e negociao com as instncias oficiais de poder.

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Como bem salientou Michael Pollak 51, a clivagem entre a memria oficial e dominante e as memrias subterrneas no remete forosamente oposio entre Estado dominador e sociedade civil. Essa disputa mais freqente nas relaes e confrontos entre os grupos minoritrios e a sociedade englobante. Em outras palavras, com relao ao uso da memria e da histria como instrumento de controle social, no podemos fazer uma distino simplista entre dominantes e dominados, mas privilegiaremos aqui a disputa entre grupos sociais que, a todo o momento, negociam e resistem. A memria, segundo Pollak, teria a funo de definir e de reforar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades, sejam elas partidos, sindicatos, igrejas, famlias, naes.A referncia ao passado serve para manter a coeso dos grupos e das instituies que compe uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade, mas tambm as oposies irredutveis52.

Pollak defende que o silncio diante de um determinado acontecimento ou perodo nem sempre significa que ele foi esquecido, mas que muitas vezes se tenta esquecer para se re tomar uma vida normal. o caso, por exemplo, do estudo que Pollak desenvolve sobre os sobreviventes dos campos de concentrao nazistas53.

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POL LAK, Michael. Memria, esquecimento, silncio. Estudos Histricos , Rio de Janeiro, vol.2, n.3, 1989.52 53

POLLAK, Michael. Memria, esquecimento ... 1989.

Para maiores detalhes ver POLLAK, Michael. Memria, esquecimento, silncio. Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol.2, n.3, 1989.

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Nietzsche 54 argumenta que esquecer uma fora positiva, graas qual o que por ns experimentado, vivenciado, no penetra mais em nossa conscincia. O esquecimento a possibilidade do novo, da construo do presente.Fechar temporariamente as portas e janelas da conscincia; permanecer imperturbado pelo barulho e a luta do nosso submundo de rgos serviais a cooperar e divergir; um pouco de sossego, um pouco de tabula rasa da conscincia, para que novamente haja lugar para o novo, sobretudo para as funes e os funcionrios mais nobres, para o reger, prever, predeterminar eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espcie de guardio da porta, de zelador da ordem psquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se v que no poderia haver felicidade, 55 jovialidade, esperana, orgulho, presente, sem o esquecimento.

O homem que no seleciona, que no esquece, assim como o personagem de Borges, Funes, o memorioso, no consegue se libertar do passado para produzir o presente. Para Nietzsche a felicidade exige o esquecimento. Todo agir requer o esquecimento. [...] possvel viver quase sem lembrana, sim, viver feliz assim, como o mostra o animal; mas absolutamente impossvel viver, em geral, sem esquecimento56. Irineu Funes sofreu um terrvel acidente que, alm de deix-lo paraplgico, aleijou-o de forma quase intolervel:Ao cair, perdeu o conhecimento; quando o recobrou, o presente era quase intolervel de to rico e to ntido, e tambm as lembranas mais antigas e mais triviais. Pouco depois constatou que estava aleijado. O fato apenas o afetou. Discutiu (sentiu) que a imobilidade era um preo 57 mnimo. Agora sua percepo e sua memria eram infalveis.

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NIETZSCHE, Friedrich. Segunda considerao intempestiva. Da Utilidade e desvantagem da historia para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2003. Pp 9,10.55 56 57

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. So Paulo: Ed. Brasiliense, 1987. NIETZSCHE, Friedrich. Segunda considerao intempestiva... 2003. Pp 9,10. BORGES, Jorge Luis. Funes, o memorioso. In: Fices. Porto Alegre: Editora Globo.

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A memria irrepreensvel de Irineu Funes limitou a sua existncia muito mais do que qualquer debilidade fsica poderia fazer: impediu-lhe de continuar construindo a vida no presente. Os seus dias passaram ento a ser interminveis reconstrues de acontecimentos passados, pois, ao recordar um dia inteiro, levava outro dia a recordar e reconstruir nos mnimos detalhes e sensaes do referido dia. Nesse sentido, quando Irineu perde a capacidade de recortar e selecionar o passado, permanece preso nesse ltimo, e o seu presente passa a ser uma mera rememorao do passado. Funes perde a possibilidade do novo. Podemos entender agora a importncia de se deletar acontecimentos do passado para se construir uma nova estrutura de poder. As instituies oficiais de memria tinham, ento, a funo de selecionar o que deveria ser lembrado, seja para glorificar as novas estruturas de poder ou para ressaltar os perigos do velho mas, principalmente, para possibilitar a criao do novo, do presente. Foucault ressalta que devemos romper com a idia de que a represso apenas algo negativo. Ao contrrio, ela muitas vezes positiva, no sentido de produzir positividades, saberes, relaes, reaes, verdades. A represso ou excluso de aspectos da histria, nesse contexto, vista como algo positivo, pois s assim possvel a construo do novo, do presente. A disciplinarizao do sculo XIX, apesar de enquadrar e domesticar o sujeito produziu idias de verdade por meio da construo de uma histria oficial, baseada em mtodos cientficos de seleo e uso de documentos, verdade essa que, profundamente difundida nas escolas, contribua para reforar e legitimar as novas relaes de poder.

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Nos prximos captulos faremos um estudo da criao do Arquivo Pblico Mineiro para tentar compreender por meio de atos e relaes concretas, como se d esse uso da memria como um mecanismo de poder, quais os instrumentos e as estratgias utilizadas, quais selees so feitas, o que preservado e o que deve ser esquecido.

O Arquivo Pblico Mineiro como projeto poltico

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Captulo II - O Arquivo Pblico Mineiro como projeto poltico

Creio que aquilo que se deve ter como referncia no o grande modelo da lngua e dos signos, mas sim da guerra e da batalha. A historicidade que nos dom ina e nos determina belicosa e no lingstica. Relao de poder, no relao de sentido. A histria no tem sentido, o que no quer dizer que seja absurda ou incoerente. Ao contrrio, inteligvel e deve ser analisada em seus menores detalhes, mas segundo a 58 inteligibilidade das lutas, das estratgias, das tticas .

A nossa hiptese que a criao do Arquivo Pblico Mineiro foi um projeto de poder, republicano, que buscava criar uma legitimao do novo governo por meio da criao de smbolos e heris que corroborassem com o novo ideal. Alm disso, acreditamos que o arquivo tenha representado, na poca, uma grande importncia, criando em torno de si microrelaes de poder. Nesse sentido, nos perguntamos: o que representou a criao de uma instituio arquivstica em Minas Gerais no comeo do perodo republicano? Quem foram as pessoas que contriburam para a formao do acervo da instituio? Quais os interesses que envolviam essas relaes? De que tipo eram essas relaes? O surgimento de instituies responsveis pela guarda dos documentos produzidos pela administrao pblica no Brasil ocorreu somente aps a Proclamao da Independncia. Colocava-se nesse momento a necessidade de se criar um imaginrio de unidade a partir da homogeneizao de mitos e smbolos que legitimassem a nova nao. O desenvolvimento de um discurso voltado para a preservao de bens histricos e para a organizao de uma

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FOUCAULT, Michel. Microfsica do Poder. Rio de Janeiro: Edies Graal, 2004.

O Arquivo Pblico Mineiro como projeto poltico

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poltica sistemtica de recolhimento e guarda de documentos constitui u um elemento fundamental do processo de formao dos Estados Nacionais e da construo da idia de nacionalidade de um pas. importante destacar a vinda da famlia real portuguesa para o Brasil e a sua emancipao poltica como fator fundamental para a criao de uma histria nacional independente. Ainda no ano de 1808, D. Joo VI apoiou a fundao de instituies culturais, como a Imprensa Rgia, a Livraria (futura Biblioteca Nacional), o Real Horto e o Museu Nacional, que tinha como objetivo estimular os estudos de botnica e zoologia. O papel de D. Joo VI foi fundamental, pois ele foi o primeiro responsvel pela constituio do acervo com a doao de uma pequena coleo composta de peas de arte, gravuras, objetos de mineralogia, artefatos indgenas e produtos naturais. O objetivo dessas instituies era, sobretudo, comemorativo, acmulo de curiosidades sem qualquer preocupao com relao classificao e aprofundamento terico. Com o retorno de D. Joo VI para Portugal, D. Pedro prosseguiu com a poltica de apoio fundao de novas ins tituies de saber. Um bom exemplo foi a criao das Escolas de Direito que possibilitaram a elaborao de um cdigo nico e desvinculado da tutela colonial, alm da formao de uma elite intelectual mais autnoma. Teve incio, assim, a formao de uma