hobsbawm nao basta a historia da identidade - sobre história

17
PREFÁCIO Os historiadores menos inclinados à ƘlosoƘa quase não podem evitar reƙexões gerais sobre sua matéria. Mesmo quando podem, talvez não sejam incentivados nesse sentido, já que a procura para conferências e simpósios, que tende a aumentar à medida que o historiador envelhece, é mais facilmente atendida por abordagens gerais que por pesquisas concretas. Em todo caso, o viés do interesse contemporâneo está voltado para questões conceituais e metodológicas da história. Teóricos de todos os tipos circulam ao redor dos tranquilos rebanhos de historiadores que se alimentam nas ricas pastagens de suas fontes primárias ou ruminam entre si suas publicações. De vez em quando, até os menos combativos se sentem impelidos a enfrentar seus detratores. Não que os historiadores, entre os quais este autor se inclui, não sejam combativos, pelo menos quando tratam dos textos uns dos outros. Algumas das controvérsias acadêmicas mais espetaculares foram travadas nos campos de batalha dos historiadores. Dessa forma, não é de admirar que alguém há cinquenta anos na atividade tenha produzido, ao longo do tempo, reflexões sobre sua matéria, agora reunidas nesta coleção de ensaios. Por mais curtos e assistemáticos que possam ser — em muitos deles transparecem os limites do que pode ser dito em uma conferência de cinquenta minutos —, estes ensaios constituem, no entanto, uma tentativa de embate direto com um conjunto coerente de problemas. Esses problemas são de três tipos que se sobrepõem. Em primeiro lugar, estou preocupado com os usos e abusos da história, tanto na sociedade quanto na política, e com a compreensão e, espero, transformação do mundo. Mais especiƘcamente, discuto o valor da história para as outras disciplinas, especialmente na área das ciências sociais. Nesse sentido, estes ensaios, se o leitor preferir, são anúncios para o meu negócio. Em segundo lugar, dizem respeito ao que tem acontecido entre os historiadores e outros pesquisadores acadêmicos do passado. Incluem levantamentos e avaliações críticas de várias tendências e modas em história, além de intervenções em debates, como, por exemplo, sobre pós-modernismo e cliometria. Em terceiro, dizem respeito a meu próprio tipo de história, ou seja, aos problemas centrais com que todo historiador sério deve se defrontar, à interpretação histórica que achei mais útil quando os enfrentei, e, também, à maneira pela qual a história que tenho escrito traz as marcas, antecedentes, convicções e experiência de vida de um

Upload: prometeusone

Post on 10-Aug-2015

42 views

Category:

Education


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: Hobsbawm   nao basta a historia da identidade - sobre história

PREFÁCIO

Os historiadores menos inclinados à loso a quase não podem evitar

re exõesgeraissobresuamatéria.Mesmoquandopodem,talveznãosejam

incentivadosnesse sentido, jáqueaprocuraparaconferênciase simpósios,

que tende a aumentar à medida que o historiador envelhece, é mais

facilmenteatendidaporabordagensgeraisqueporpesquisasconcretas.Em

todo caso, o viés do interesse contemporâneo está voltado para questões

conceituaisemetodológicasdahistória.Teóricosdetodosostiposcirculam

aoredordostranquilosrebanhosdehistoriadoresquesealimentamnasricas

pastagensdesuasfontesprimáriasouruminamentresisuaspublicações.De

vez emquando, até osmenos combativos se sentem impelidos a enfrentar

seusdetratores.Nãoqueoshistoriadores,entreosquaisesteautorseinclui,

nãosejamcombativos,pelomenosquandotratamdostextosunsdosoutros.

Algumasdascontrovérsiasacadêmicasmaisespetacularesforamtravadasnos

campos de batalha dos historiadores. Dessa forma, não é de admirar que

alguémhácinquentaanosnaatividadetenhaproduzido,aolongodotempo,

reflexõessobresuamatéria,agorareunidasnestacoleçãodeensaios.

Por mais curtos e assistemáticos que possam ser — em muitos deles

transparecem os limites do que pode ser dito em uma conferência de

cinquentaminutos—,estesensaiosconstituem,noentanto,umatentativade

embatediretocomumconjuntocoerentedeproblemas.Essesproblemassão

detrêstiposquesesobrepõem.Emprimeirolugar,estoupreocupadocom

osusoseabusosdahistória,tantonasociedadequantonapolítica,ecoma

compreensão e, espero, transformação do mundo. Mais especi camente,

discutoovalordahistóriaparaasoutrasdisciplinas, especialmentenaárea

das ciências sociais. Nesse sentido, estes ensaios, se o leitor preferir, são

anúnciosparaomeunegócio.Emsegundolugar,dizemrespeitoaoquetem

acontecido entre os historiadores e outros pesquisadores acadêmicos do

passado. Incluem levantamentos e avaliações críticas de várias tendências e

modas em história, além de intervenções em debates, como, por exemplo,

sobre pós-modernismo e cliometria. Em terceiro, dizem respeito a meu

próprio tipo de história, ou seja, aos problemas centrais com que todo

historiadorsériodevesedefrontar,à interpretaçãohistóricaqueacheimais

útilquandoosenfrentei,e,também,àmaneirapelaqualahistóriaquetenho

escritotrazasmarcas,antecedentes,convicçõeseexperiênciadevidadeum

Page 2: Hobsbawm   nao basta a historia da identidade - sobre história

homem de minha idade. É provável que os leitores descubram que cada

ensaio,deummodooudeoutro,érelevanteatodososdemais.

Minhasopiniões sobre todosesses assuntosdevemestar clarasno texto.

Não obstante, quero acrescentar uma palavra ou duas de esclarecimento

sobredoistemasdestelivro.

Primeiro,sobrecontaraverdadesobreahistória,parausarotítulodeum

livrodeamigosecolegasdoautor.1Defendovigorosamenteaopiniãodeque

aquilo que os historiadores investigam é real. O ponto do qual os

historiadores devem partir, por mais longe dele que possam chegar, é a

distinção fundamental e, para eles, absolutamente central, entre fato

comprovável e cção, entredeclaraçõeshistóricasbaseadas emevidências e

sujeitasaevidenciaçãoeaquelasquenãoosão.

Nasúltimasdécadas,tornou-semoda,principalmenteentrepessoasquese

julgamdeesquerda,negarquearealidadeobjetivasejaacessível,umavezque

oquechamamosde“fatos”apenasexistemcomoumafunçãodeconceitose

problemas prévios formulados em termos dos mesmos. O passado que

estudamos é só um constructo de nossas mentes. Esse constructo é, em

princípio,tãoválidoquantooutro,querpossaserapoiadopelalógicaepor

evidências, quernão.Namedida emque constitui parte deum sistemade

crençasemocionalmente fortes,nãohá,porassimdizer,nenhummodode

decidir, em princípio, se o relato bíblico da criação da terra é inferior ao

propostopelasciênciasnaturais:apenassãodiferentes.Qualquertendênciaa

duvidar disso é “positivismo”, e nenhum termodesquali camais que este,

excetoempirismo.

Em resumo, acredito que sem a distinção entre o que é e o que não é

assim, não pode haver história. Roma derrotou e destruiu Cartago nas

Guerras Púnicas, e não o contrário. O modo como montamos e

interpretamosnossaamostraescolhidadedadosverificáveis(quepodeincluir

nãosóoqueaconteceumasoqueaspessoaspensaramarespeito)éoutra

questão.

Na verdade, poucos relativistas estão à altura plena de suas convicções,

pelomenosquandosetrataderesponder,porexemplo,seoHolocaustode

Hitler aconteceu ou não. Porém, seja como for, o relativismo não fará na

histórianadaalémdoquefaznostribunais.Seoacusadoemumprocesso

por assassinato éounão culpado,dependeda avaliaçãoda velha evidência

positivista,desdequesedisponhadetalevidência.Qualquerleitorinocente

que se encontrar no banco dos réus fará bem em recorrer a ela. São os

advogadosdosculpadosquerecorremalinhaspós-modernasdedefesa.

Osegundoesclarecimentodizrespeitoàabordagemmarxistadahistória,

Leandro Klineyder
Highlight
Leandro Klineyder
Highlight
Leandro Klineyder
Highlight
Leandro Klineyder
Highlight
Leandro Klineyder
Highlight
Leandro Klineyder
Highlight
Page 3: Hobsbawm   nao basta a historia da identidade - sobre história

com a qual sou associado.Embora o rótulo seja vago, não o rejeito. Sem

Marxeunãoteriadesenvolvidonenhuminteresseespecialpelahistória,que,

conforme ensinadana primeirametade dos anos 1930 emumGymnasium

alemão conservador e por um admirável mestre liberal em uma escola

secundária de Londres, não era umamatéria inspiradora. Era quase certo

queeunãoiriaganharavidacomohistoriadoracadêmicopro ssional.Marx

e os campos de atividade dos jovens radicais marxistas forneceram meus

temasdepesquisaein uenciaramomodocomoescrevisobreeles.Mesmo

que eu achasse que grande parte da abordagem da história por Marx

precisasseserjogadanolixo,aindaassimcontinuariaalevaremconsideração,

profundamascriticamente, aquiloqueos japoneseschamamdeumsensei,

mestre intelectual para quem se deve algo que não pode ser retribuído.

Acontece que continuo considerando (com quali cações que serão

encontradas nestes ensaios) que a “concepção materialista da história” de

Marxé,delonge,omelhorguiaparaahistória,comoograndeeruditodo

séculoXIV,IbnKhaldun,adescreveu:

oregistrodasociedadehumana,oucivilizaçãomundial;dasmudançasque

acontecemnanaturezadessa sociedade [...];de revoluçõese insurreições

deumconjuntodepessoascontraoutro, comosconsequentes reinose

Estados dotados de seus vários níveis; das diferentes atividades e

ocupações dos homens, seja para ganharem seu sustento ou nas várias

ciências e artes; e, em geral, de todas as transformações sofridas pela

sociedadeemrazãodesuapróprianatureza.2

Écertamenteomelhorguiaparaaquelescomoeu,cujocampotemsidoo

daascensãodocapitalismomodernoeastransformaçõesdomundodesdeo

fimdaIdadeMédiaeuropeia.

Masoqueexatamenteéum“historiadormarxista”emcomparaçãocom

um historiador não marxista? Ideólogos de ambos os lados das guerras

religiosasseculares,emmeioàsquaisvivemosdurantegrandepartedoséculo

XX, tentaramestabelecer claras demarcações e incompatibilidades.Porum

lado,asautoridadesdaextintaURSSnãosedispuseramatraduzirnenhum

demeuslivrosparaorusso,emboraseuautorfossesabidamentemembrode

umPartidoComunista e editor da edição inglesa dasObrasescolhidas de

Marx e Engels. Pelos critérios de sua ortodoxia, os livros não eram

“marxistas”. Por outro lado, mais recentemente, nenhum editor francês

“respeitável” até agora se dispôs a traduzir meu livroEra dos extremos,

presumivelmente por considerar o livro por demais chocante em termos

Page 4: Hobsbawm   nao basta a historia da identidade - sobre história

ideológicos para os leitores parisienses, ou, o que é mais provável, para

aqueles que decerto fariam a resenha do livro, caso fosse traduzido.

Entretanto,conformemeusensaios tentammostrar,ahistóriadadisciplina

queinvestigaopassado,apartirdo mdoséculoXIX,pelomenosatéquea

nebulosidadeintelectualcomeçasseapairarsobreapaisagemhistoriográ ca

nos anos 1970, foi uma história de convergência e não de dispersão.

Constantemente se observou o paralelismo entre a escola dosAnnales na

FrançaeoshistoriadoresmarxistasnaGrã-Bretanha.Cadaladoviaooutro

empenhadoemumprojetohistóricosimilar,aindaquecomumagenealogia

intelectual diferente, e entretanto, ao que se presume, a política de seus

expoentes mais destacados estava longe de ser a mesma. Interpretações

outrora identi cadas exclusivamente com o marxismo, e até com o que

chameide“marxismovulgar”(veradiante,pp.206-9),penetraramnahistória

convencional em um grau extraordinário. É seguro dizer que, há meio

século, pelo menos na Inglaterra, apenas um historiador marxista teria

sugeridoqueoaparecimentodoconceitoteológicodepurgatórionaIdade

Médiaeuropeiaeramaisbemexplicadopelamudançanabaseeconômicada

Igreja,queseapoiavanasdoaçõesdeumpequenonúmerodenobresricose

poderosos,paraumabase nanceiramaisampla.Noentanto,quemchegaria

ao ponto de classi car o eminente medievalista de Oxford, Sir Richard

Southern,ouJacquesLeGoff—cujolivrooprimeiroresenhounessalinha

nosanos1980—comoadeptoousimpatizanteideológico,emuitomenos

político,deMarx?

Penso que essa convergência seja evidência salutar de uma das teses

centraisdestesensaios,ouseja,queahistóriaestáempenhadaemumprojeto

intelectual coerente, e fez progressos no entendimento de como omundo

passouasercomoéhoje.Naturalmentenãoquerosugerirquenãosepossa

ou não se deva distinguir entre históriamarxista e nãomarxista, apesar da

heterogeneidade e imprecisão da carga que os dois recipientes carregam.

HistoriadoresnatradiçãodeMarx—eissonãoincluitodososqueassimse

intitulam — têm uma contribuição importante a fazer para esse esforço

coletivo.Masnãoestãosozinhos.Nemdeveriaoseutrabalho,ouodequem

querqueseja,serjulgadopelasetiquetaspolíticasqueelesououtrosa xam

emsuaslapelas.

Os ensaios aqui reunidos foram escritos em momentos diferentes nos

últimos trinta anos, principalmente como conferências e contribuições

apresentadasemcongressosousimpósios,àsvezescomoresenhasdelivros

oucontribuiçõesparaessesestranhoscemitériosacadêmicos,osFestschriften

ou coletâneas de estudos dedicados a um colega acadêmico em alguma

Page 5: Hobsbawm   nao basta a historia da identidade - sobre história

ocasião que pede celebração ou apreciação.O público para o qual escrevi

varia de plateias gerais, principalmente de universidades, até grupos

especializadosdehistoriadoresoueconomistaspro ssionais.Oscapítulos3,

5,7,8,17e19estãosendopublicadospelaprimeiravez,emboraumaversão

docapítulo17notextoalemãooriginal,naformadeumaconferênciaparao

Historikertagalemãoanual,tenhasidopublicadaemDieZeit.Oscapítulos1

e 15 foram publicados inicialmente naNew York Review of Books ; os

capítulos2e14,narevistadehistóriaPastandPresent;oscapítulos4,11e

20apareceramnaNewLeftReview;ocapítulo6,emDaedalus,arevistada

AcademiaNorte-americanadeArtes eCiências, eos capítulos10e21, em

Diogenes, publicada sob os auspícios daUNESCO. O capítulo 13 foi

publicado naReview com patrocínio do Centro Fernand Braudel da

UniversidadeEstadual deNovaYork emBinghamton, e o capítulo 18 foi

publicado como folheto pela Universidade de Londres. Detalhes sobre o

Festschriftenparaosquais foramescritososcapítulos9e16encontram-se

nocabeçalhodoscapítulos,bemcomo,emgeral,asdatasdostextosoriginais

e, onde necessário, o motivo de sua redação original. Agradeço a todos,

tambémondenecessário,pelapermissãoparapublicarnovamente.

E.J.Hobsbawm

Londres,1997

Page 6: Hobsbawm   nao basta a historia da identidade - sobre história

21.NÃOBASTAAHISTÓRIADEIDENTIDADE

Este ensaio, que debate o relativismo de certas modas intelectuais

correntes (“pós-modernas”) ,foi escrito para um número especial sobre

história, editado por meu amigo, o professor François Bédarida, veterano

diretor do Institut pour l’Histoire du Temps Présent , de Paris, para o

periódicoDiogenes,42/4(1994),sobotítulo: “Ohistoriadorentreabusca

douniversalebuscadaidentidade”.

I

Devesermelhorcomeçaressadiscussãosobreasinadohistoriadorcom

uma experiência concreta.No início do verão de 1944, quando o exército

alemãoseretiravaparaoNortedaItáliaa mdeestabelecerumfrontmais

defensável contra o avanço das forças aliadas ao longo da chamadaLinha

Gótica nos Apeninos, suas unidades realizaram uma série de massacres,

normalmente justi cados como retaliações contra atividade local “bandida”

(istoé,guerrilheira).Cinquentaanosdepois,algunsdessesmassacresaldeões

na província de Arezzo, até então relegados para as memórias dos

sobreviventes das aldeias e dos historiadores locais da Resistência,

propiciaramo ensejo para uma conferência internacional sobre amemória

dosmassacresalemãesnaSegundaGuerraMundial.

Aconferênciareuniunãoapenashistoriadoresecientistassociaisdevários

paísesdaEuropaorientaleocidentaledosEUA,mastambémsobreviventes

locais, antigos combatentes da Resistência e outras partes interessadas.

Nenhumtemapoderiasermenospuramente“acadêmico”,mesmocinquenta

anosdepoisque175homensforamseparadosdesuasmulherese lhosem

CivitelladellaChiana,fuziladosedespejadosnoscrematóriosdesuaaldeia.

Porisso,nãoadmiraqueaconferênciaocorresseemumararaatmosferade

tensãoeincômodo.Todossabiamqueestavamemjogoquestõespolíticase

até existenciais de grande premência. Nenhum historiador presente podia

deixardere etirsobrearelaçãoentreahistóriaeopresente.A nal,apenas

algumassemanasantes,aItáliahaviaeleitooprimeirogovernodesde1943a

incluirfascistas,ededicadotantoaoanticomunismoquantoàproposiçãode

que a resistência de 1943-5 não havia sido um movimento de libertação

nacionaleque,emtodocaso,pertenciaaumpassadoremotoirrelevanteao

Page 7: Hobsbawm   nao basta a historia da identidade - sobre história

presente,devendoseresquecido.

Todosestavamincomodados.OssobreviventesdostemposdaResistência

edomassacreestavamincomodadosdiantedarevelaçãodecoisasque,como

sabiam todos os compatriotas, eramelhor deixar caladas.Como poderia a

vidarural,senãoporumacordotácitoementerraroscon itosdopassado,

ter retornado a algum tipo de “normalidade” após 1945? (Umhistoriador

norte-americano escreveu um ensaio perspicaz sobre esse mecanismo de

silêncio seletivo na aldeia ístria de sua mulher croata.) Os antigos

guerrilheiros e, de fato, a opinião pública na região profundamente

esquerdistadaToscana,estavamincomodadosporviveremummomentoem

que a República italiana rejeitava a tradição da Resistência contraHitler e

Mussolini, que (com razão) consideravam fundamento da mesma. Os

historiadores orais, jovens e presumivelmente esquerdistas em suamaioria,

que haviam entrevistado ou reentrevistado os aldeões na preparação da

conferência, estavam chocados por descobrirem que os habitantes, pelo

menos em uma aldeiamuito católica, não culpavam tanto os alemães pelo

massacrequantoosjovenslocaisquehaviamsejuntadoaosguerrilheirose,

segundoachavam,haviamirresponsavelmentelevadoseuslaresaodesastre.

Outros historiadores tinham seus próprios motivos de incômodo. Os

historiadoresalemãespresentesestavamsensivelmenteassustadosporaquilo

que seus pais ou avós haviam feito ou deixado de fazer em 1944.

Praticamentetodososhistoriadoresnãoitalianos,ediversositalianos,nunca

tinham ouvido falar nos massacres, em cuja memória a conferência foi

organizada: um lembrete perturbador quanto à pura arbitrariedade da

sobrevivênciaedamemóriahistóricas.Porquealgumasexperiênciashaviam

se tornado parte de uma memória histórica mais ampla, enquanto tantas

outrasnão?Osparticipantesrussosnãofaziamsegredodesuaconvicçãode

queconcentrarosestudosnasatrocidadesnazistaseraummeiodedesviara

atenção dos horrores stalinistas. Os especialistas na história da Segunda

Guerra Mundial, independentemente de seus antecedentes nacionais, não

podiamevitaraquestãodesaber,cinquentaanosapósoevento,seaqueles

massacresde inocentes—representando, segundosedizia,maisde1%da

populaçãototaldaprovínciadeArezzo—eramumpreço justi cávela ser

pago pelo embaraçomilitar relativamentemenor de um regimento alemão

que,emtodocaso,estavaplanejandoseretirardaáreaemumaquestãode

diasou,nomáximo,semanas.

O temamesmodaconferência, a atrocidade,não tinhacondiçõesde ser

consideradocomimparcialidade.Acertadamente,aatençãonãoselimitouà

micro-história local,mas se alargoupara considerar as atrocidadesmaiores

Page 8: Hobsbawm   nao basta a historia da identidade - sobre história

do genocídio, estudadas por alguns importantes historiadores também

presentes,eoproblemamaisamplodecomoessascoisassão,oupodemser,

lembradas.Entretanto,comoestávamosnapiazzareconstruídadeumaaldeia

outrora destruída, ouvindo uma elaborada narrativa comemorativa que os

sobreviventeseos lhosdosmortoshaviamconstruídoemtornodaqueledia

terrívelde1944,comonãoconseguimosperceberquenossotipodehistória

nãoeraapenasincompatívelcomadeles,mas,emcertossentidos,destrutivo

da mesma? Qual a natureza da comunicação entre o historiador que

entregouaoprefeitodaaldeiaa transcriçãodo inquéritosobreomassacre,

realizado pelo exército inglês poucos dias depois de sua ocorrência, e o

prefeitoquearecebeu?Paraum,eraumafonteprimáriadearquivo;parao

outro, um reforço do discurso comemorativo da aldeia, que nós,

historiadores, facilmente reconhecíamos como parcialmente mitológico.

Entretanto,essanarrativamemorialeraummododeacertarcontascomum

traumatãoprofundoparaCivitelladellaChianaquantooHolocaustoparaa

totalidade do povo judeu. Seria a nossa história, destinada à comunicação

universaldoquepodiaser testadopelaevidênciaea lógica,relevanteàsua

comemoração, que, por natureza, não pertencia a ninguém além de si

mesmos? Eram memórias que, conforme camos sabendo, os aldeões,

durante décadas, haviam guardado para si mesmos por esse motivo,

recusando-se, comuma cautela que não compartilhávamos, a investigar os

detalhes de um massacre em uma aldeia vizinha porque esse não era seu

passadomasodeseusvizinhos.Seriapossívelcompararnossahistóriacoma

sua?

Emsuma,nenhumaocasiãopoderia terdramatizadomelhorocontraste

entre a universalidade e a identidade na história, e o confronto dos

historiadorestantocomopassadoquantocomopresente.

Apesar disso, esse mesmo confronto demonstrava que para os

historiadoresauniversalidadenecessariamenteprevaleciasobreaidentidade.

Poracaso,pelomenosumhistoriadorpresenterepresentavaambasemsua

própriapessoa.Oorganizadordaconferênciahaviaestadopessoalmentena

piazza de Civitella, criança ainda e com sua mãe, quando os alemães

arrastarameassassinaramseupai.Eleaindaerapartedaaldeia,ondepassava

overãonavelhacasadafamília.Ninguémestavaemcondiçõesdenegarque,

para ele, bem como para todos os seus discípulos, o massacre trazia

lembrançasesignificadosquenãopodiatrazerparaorestantedenós,ouque

ele até mesmo leria os registros dos arquivos de modo diferente de um

pesquisador que não tivesse participado da experiência. Entretanto, como

historiador,assistiaànarrativamemorialqueaaldeiahaviaelaboradoporsi

Page 9: Hobsbawm   nao basta a historia da identidade - sobre história

mesma exatamente da mesma maneira que os historiadores que não

dispunham desse envolvimento pessoal, ou seja, aplicando as normas e

critérios de nossa disciplina. Pelos seus padrões e pelos nossos — pelos

critériosuniversalmenteaceitosdadisciplina—anarrativaaldeãtinhadeser

cotejada com as fontes, e por esses padrões não era história, ainda que a

formaçãodessamemória aldeã, sua institucionalizaçãoe suasmudançasno

cursodosúltimoscinquentaanosfossempartedahistória.Era,emsimesma,

umtemaparainvestigaçãohistóricapelosmesmosmétodoscomqueoforam

oseventosdejunhode1944comosquaiselahaviatentadoacertarcontas.

Apenasnesseaspectoa“culturadaidentidade[deCivitella]”erarelevanteà

história do massacre realizada pelos historiadores. Em todos os demais

aspectos,erairrelevante.

Emresumo,quantoàsquestõescomquepodemlidarapesquisahistórica

eareaçãoteórica,nãohaviaenãopodehavernenhumadiferençasubstancial

entre estudiosos para quem os problemas de identidade de Civitella eram

insigni cantesouseminteresse,eumhistoriadorparaquemessesproblemas

eramexistencialmentecentrais.Todososhistoriadorespresentesesperavam

concordarquantoà formulaçãodasquestões sobreas atrocidadesnazistas,

embora não se esperasse necessariamente que concordassem sobre as

mesmas.Todos concordavamquanto aos procedimentospara responder a

tais questões, quanto à natureza da possível evidência que permitiria que

fossem respondidas — na medida em que as respostas dependessem de

evidência— e quanto à comparabilidade de eventos experimentados pelos

participantes como únicos e incomunicáveis. Inversamente, os que não se

dispunham a submeter sua experiência, ou a de sua comunidade, a tais

procedimentos, ou que se recusavam a aceitar os resultados desses testes,

estavam fora da disciplina da história, por mais que os historiadores

respeitassem suas razões e sentimentos. De fato, entre os historiadores

presenteshouveumimpressionanteconsensosobrequestõesdesubstância.

Esseconsensocontrastavamarcadamentecomocaosdeemoçõesvariadase

conflitantesqueagitavamosparticipantes.

II

O problema para os historiadores pro ssionais é que seu objeto tem

importantes funções sociais e políticas. Essas funções dependem de seu

trabalho—quemmaisdescobreeregistraopassadoalémdoshistoriadores?

—,masaomesmotempoestãoemcon itocomseuspadrõespro ssionais.

Essa dualidade está no cerne de nosso objeto. Os fundadores daRevue

Page 10: Hobsbawm   nao basta a historia da identidade - sobre história

Historiquetinhamconsciênciadissoquandodeclararam,noavant-proposde

seu primeiro número que “Estudar o passado da França, que será nosso

interesse principal, é hoje uma questão de importância nacional. Isso nos

possibilitará restabelecer a nosso país a unidade e força moral de que

necessita”.1

Éclaroquenadaestavamaislongedesuasmentescon antesepositivistas

que servir sua nação de outromodo que não pela busca da verdade.No

entanto,osnãoacadêmicosquenecessitameconsomemamercadoriaqueos

historiadores produzem, e que constituem o seu mercado mais amplo e

politicamente decisivo, não se incomodam com a nítida distinção entre os

“procedimentosestritamentecientí cos”eas“construçõesretóricas”queera

tão fundamental para os fundadores daRevue.Seu critériodoque é “boa

história”éa“históriaqueéboaparanós”—“nossopaís”,“nossacausa”,ou

simplesmente “nossa satisfação emocional”.Quer gostemdisso ou não, os

historiadorespro ssionaisproduzemamatéria-primaparaousoouabuso

dosnãoprofissionais.

Queahistóriaestejaindissoluvelmenteligadaàpolíticacontemporânea—

como continua a demonstrar a historiogra a da Revolução Francesa —

provavelmentenãoéhojeumadi culdade importante,poisosdebatesdos

historiadores,pelomenosempaísesdeliberdadeintelectual,sãoconduzidos

dentro das normas da disciplina. Além disso, muitos dos debates mais

carregadosdeconteúdoideológicoentrehistoriadorespro ssionaisreferem-

se a questões sobre as quais os não historiadores menos sabem e se

importam.Noentanto,todosossereshumanos,coletividadeseinstituições

necessitamdeumpassado,masapenasocasionalmenteopassadoérevelado

pelapesquisahistórica.Oexemplo-padrãodeumaculturadeidentidade,que

se ancora no passado por meio de mitos disfarçados de história, é o

nacionalismo.ErnestRenanobservouhámaisdeumséculo,“Esquecer,ou

mesmointerpretarmalahistória,éumfatoressencialna formaçãodeuma

nação,motivopeloqualoprogressodos estudoshistóricosmuitas vezes é

um risco para a nacionalidade”. As nações são entidades historicamente

novas ngindoteremexistidodurantemuitotempo.Éinevitávelqueaversão

nacionalista de sua história consista de anacronismo, omissão,

descontextualizaçãoe,emcasosextremos,mentiras.Emumgraumenor,isso

éverdadeparatodasasformasdehistóriadeidentidade,antigasourecentes.

Nopassadopré-acadêmico,haviapoucacoisaaimpediramerainvenção

histórica,talcomoafalsi caçãodemanuscritoshistóricos(comonaBoêmia),

aredaçãodeumépiconacionalescocês,antigoeconvenientementeglorioso

(como o “Ossian” de James Macpherson), ou a produção de uma peça

Page 11: Hobsbawm   nao basta a historia da identidade - sobre história

totalmenteinventadadeteatropúblicosimulandoarepresentaçãodeantigos

rituais bárdicos, como noPaís deGales. (Isso ainda constitui o clímax do

NationalEisteddfodanual,ou festival culturaldaquelepequenopaís.)Nos

casos em que essas invenções têm que ser submetidas aos testes de uma

grande e sólida comunidade acadêmica, isso não é mais possível. Grande

partedaerudiçãohistóricaprimitivaconsistiadarefutaçãodetaisinvençõese

dadesconstruçãodosmitosporelasgerados.Ograndemedievalistainglês,J.

HoraceRound, fez suareputaçãoporumasériede impiedosasdissecações

dospedigreesde famíliasnobresbritânicas cujapretensãodedescendência

dos invasores normandos demonstrou ser espúria. Os testes não são

necessariamente apenas históricos. O “sudário de Turim”, para citar um

exemplo recente de uma relíquia sagrada do tipo que fez as fortunas de

centrosmedievaisdeperegrinação,nãoconseguiuresistiraotestededatação

porcarbono-Baquetevedesersubmetido.

Ahistóriacomo cção,contudo,recebeuumreforçoacadêmicodeuma

esfera inesperada: o “crescente ceticismo concernente ao projeto iluminista

de racionalidade”.2 Amoda do que é conhecido (pelomenos no discurso

acadêmicoanglo-saxão)pelovagotermo“pós-modernismo”felizmentenão

ganhou tanto terreno entre os historiadores quanto entre teóricos da

literatura e da cultura e antropólogos sociais, mesmo nosEUA, mas é

relevanteàquestãoempauta,jáquelançadúvidasobreadistinçãoentrefato

e cção,realidadeobjetivaediscursoconceitual.Éprofundamenterelativista.

Senãohánenhumadistinçãoclaraentreoqueéverdadeiroeoquesentimos

ser verdadeiro, então minha própria construção da realidade é tão boa

quantoasuaouadeoutrem,pois“odiscursoéoprodutordessemundo,

não o espelho”.3 Para citar o mesmo autor, o objetivo da etnogra a é

produzirumtextocooperativamentedesenvolvido,noqualnemsujeito,nem

autor,nemleitor,defatoninguém,temdireitoexclusivode“transcendência

sinóptica”.4Se,“nodiscursohistóricocomonoliterário,mesmoalinguagem

supostamente descritivaconstituiaquiloqueeladescreve”,5 entãonenhuma

narrativa entre asmuitas possíveis pode ser considerada comoprivilegiada.

Nãoéporacasoqueessasconcepçõesatraíramparticularmenteaquelesque

seveemcomorepresentantesdecoletividadesouambientesmarginalizados

pelaculturahegemônicadealgumgrupo(homensheterossexuaisbrancosde

classe média, por exemplo, de formação ocidental) cuja pretensão de

superioridadecontestam.Masissoestáerrado.

Sem entrar no debate teórico sobre essas questões, é essencial que os

historiadores defendam o fundamento de sua disciplina: a supremacia da

evidência. Se os seus textos são cções, como o são em certo sentido,

Page 12: Hobsbawm   nao basta a historia da identidade - sobre história

constituindo-sedecomposiçõesliterárias,amatéria-primadessas cçõessão

fatos veri cáveis.O fatodequeos fornosnazistas tenhamexistidoounão

pode ser estabelecido pormeio de evidências.Uma vez que isso foi assim

estabelecido, os que negam sua existência não estão escrevendo história,

quaisquerquesejamsuastécnicasnarrativas.Seumromancedevetratardo

retornodeNapoleãodeSantaHelenaemvida,elepoderiaserliteraturamas

nãoconseguiriaserhistória.Seahistóriaéumaarteimaginativa,éumaarte

que não inventa mas organizaobjets trouvés. A distinção pode parecer

pedante e trivial ao não historiador, principalmente aquele que utiliza

materialhistóricoparaseuspróprios ns.Oqueimportaàplateiateatralque

não haja nenhum registro histórico de uma Lady Macbeth instando seu

maridoamataroreiDuncan,oudebruxasprevendoqueMacbethseriarei

da Escócia, o que de fato aconteceu no período de 1040-57? O que

importava aos fundadores (pan-africanos) dos Estados pós-coloniais da

África ocidental, que deram a seus países nomes de impérios africanos

medievais,ofatodequeessesnomesnãopossuíssemnenhumaligaçãoóbvia

com os territórios atuais de Gana ou doMali? Não era mais importante

lembraraosafricanossubsaarianos,apósgeraçõesdecolonialismo,queeles

possuíamuma tradição deEstados independentes e poderosos em alguma

partedeseucontinente,aindaquenãoexatamentenointeriordeAcra?

De fato, a insistência dos historiadores, mais uma vez nas palavras do

primeiro número daRevue Historique, em “procedimentos estritamente

cientí cos, onde cada declaração é acompanhada de provas, fontes de

referênciaecitações”,6éàsvezespedanteetrivial,principalmenteagoraque

issonãoparticipamaisdeumafénapossibilidadedeumaverdadecientí ca

de nitiva, positivista, que lhe conferia uma certa grandeza simplória. No

entanto,osprocedimentosdotribunaldejustiça,queinsistemnasupremacia

da evidência comamesma forçaqueospesquisadoreshistóricos, emuitas

vezes quase da mesma maneira, demonstram que a diferença entre fato

históricoefalsidadenãoéideológica.Écrucialparamuitos nspráticosda

vidacotidiana,nomínimoporquedeladependemavidaeamorte,ou—o

queéquantitativamentemaisimportante—odinheiro.Quandoumapessoa

inocenteé julgadaporassassinato,edesejaprovar sua inocência,aquilode

que senecessitanão são as técnicas do teórico “pós-moderno”,mas as do

antiquadohistoriador.

Além disso, a veri cabilidade histórica de a rmações políticas ou

ideológicas pode ser de importância vital, se a historicidade for a base

essencial de tais a rmações. Isso é verdadeiro não só para pretensões

territoriais de Estados ou comunidades, que em geral são históricas. A

Page 13: Hobsbawm   nao basta a historia da identidade - sobre história

campanha antimuçulmana [em1992]movidapelopartido integristahindu,

BJP, que levou aomassacre em grande escala na Índia, era justi cada por

alegaçõeshistóricas.AcidadedeAyodhyaeratidacomolocaldenascimento

dodivinoRama.Poressemotivo,aconstruçãodeumamesquitaemterreno

sagradohindu,supostamentepeloconquistadormongolBabur,emtallocal

sagradoerauminsultomuçulmanoàreligiãohindueumaviolaçãohistórica.

Tinhadeserdestruídoesubstituídoporumtemplohindu.(Amesquitafoi

realmente derrubada por uma enorme multidão de fanáticos hindus,

mobilizadosparaessefimpeloBJPem1992.)Comoeradeesperar,oslíderes

dopartidodeclararamque “tais questõesnãopodem ser solucionadaspor

veredicto judicial”, já que não existia base histórica para a a rmação. Os

historiadores indianos conseguiram demonstrar que ninguém havia

consideradoAyodhya como local denascimentodeRama antes do século

XIX e que os imperadores mongóis não faziam nenhuma associação

especí ca com amesquita, embora considerações legaismostrassem que o

direitohinduaolocaleraduvidoso.Atensãoespecí caentreascomunidades

religiosaserarealmenterecente.Eraumabomba-relógiocujodisparadorfoi

acionado em 1949, quando, em consequência da partilha da Índia e da

criação do Paquistão, havia sido fabricado um “milagre das imagens” que

apareciamnamesquita.7

Insistirna supremaciadaevidênciaena importânciacentraldadistinção

entrefatohistóricoveri cávele cçãoéapenasumadasmaneirasdeexercera

responsabilidadedohistoriadore,comoaatualfabricaçãohistóricanãoéo

que era antigamente, talvez não seja amais importante. Ler os desejos do

presentenopassadoou,emtermostécnicos,anacronismo,éatécnicamais

comumeconvenientedecriarumahistóriaquesatisfaçaasnecessidadesdo

que Benedict Anderson chamou “comunidades imaginadas” ou coletivos,

quenãosão,demodoalgum,apenasnacionais.8

Durante muito tempo, a desconstrução de mitos políticos ou sociais

disfarçados como história foi parte das obrigações pro ssionais do

historiador,independentementedesuassimpatias.OshistoriadoresdaGrã-

Bretanha,segundoseespera,sãomaiscomprometidosqueninguémcoma

liberdadebritânica,masissonãoosimpededecriticaressamitologia.Toda

criançaoutroraaprendianaescolaqueaMagnaCartaeraofundamentodas

liberdadesbritânicas,masdesdeamonogra adeMcKechnie,de1914,todo

estudanteuniversitáriodehistóriadaGrã-Bretanhapassouaterdeaprender

que o documento extorquido do rei João pelos barões, em 1215, não

pretendia ser uma declaração de supremacia parlamentar e direitos iguais

parainglesesnascidoslivres,muitoemborapassasseaserencaradocomotal

Page 14: Hobsbawm   nao basta a historia da identidade - sobre história

naretóricapolíticabritânicabemmaistarde.Acríticacéticadoanacronismo

históricoprovavelmenteéhojeaprincipalmaneirapelaqualoshistoriadores

podem demonstrar sua responsabilidade pública. Hoje, seu papel público

mais importante, principalmente nos diversos Estados fundados ou

reconstituídosapartirdaSegundaGuerraMundial,épraticarseuofíciode

forma a constituirpour lanationalité (epara todasasdemais ideologiasde

identidadecoletiva)undanger.

Isso é extremamente óbvio em situações nas quais os con itos

internacionaisseapoiamemdiscussõeshistóricas,comonapresentefaseda

sempre explosiva questão macedônica. Tudo nesse ponto incendiário —

envolvendo quatro países e a União Europeia e podendo uma vez mais

desencadear uma guerra nos Bálcãs — é histórico. A história ostensiva

brandidapelasprincipaispartesnacontendaéantiga,poistantoaMacedônia

quantoaGrécia(querecusaaosdemaisEstadosindependentesatéodireito

deusaronome)a rmamserherdeirasdeAlexandre,oGrande.Averdadeira

históriaérelativamentecontemporânea,poisadisputaatualentreaGréciae

seusvizinhosdecorredadivisãodaMacedôniaapósasGuerrasdosBálcãsde

1912 entre Grécia, Sérvia e Bulgária. Toda essa área havia pertencido

anteriormente ao Império otomano. Os gregos acabaram cando com a

maior parte dela. Quais Estados sucessores têm direito a quais partes do

território inde nidomas enorme daMacedônia pré-1913 (pois o Império

otomanonãousavaonome) foi umaquestão semprediscutida em termos

acadêmicos,namaioriaetnográ coselinguísticos.Ocasogrego,atualmente

omaissonoro,apoia-seemgrandeparteemhistóriaanacronísticaporqueos

argumentos étnicos e linguísticos tendem mais a favorecer os reclamantes

eslavose,talvez,albaneses.Nãoémuitomaisconvincentequeoargumento

dequeaFrançatemdireitoàItáliaporqueJúlioCésarfoioconquistadorda

Gália.Umhistoriadorqueaponteparaissonãoestánecessariamentemovido

por preconceito contra os gregos ou em favor dos eslavos, embora

atualmentepossasermaispopularemSkopjequeemAtenas.Seomesmo

historiador destacar que a maioria da população da maior cidade da

Macedônia (indivisa), Salônica, não era identi cável nem como grega nem

como eslava, mas, quase com certeza, como muçulmana ou judia, será

igualmenteimpopularentreosfanáticosnacionalistasdostrêspaíses.

Entretanto,casoscomoessetambémsugeremaslimitaçõesdafunçãodo

historiador como destruidor de mitos. Em primeiro lugar, a força de sua

críticaénegativa.KarlPoppernosensinouqueotestedefalsi caçãopode

tornar insustentávelumateoria,masemsimesmonãosubstituiumateoria

melhor.Emsegundolugar,podemosdemolirummitoapenasnamedidaem

Page 15: Hobsbawm   nao basta a historia da identidade - sobre história

queseapoieemproposiçõescujoerropossaserdemonstrado.Édanatureza

dos mitos históricos, principalmente os nacionalistas, que normalmente

apenasalgumasdesuasproposiçõespodemserassimdesacreditadas.Oritual

nacionalisraelenseconstruídoemtornodasededeMasadanãodependeda

verdadehistoricamenteveri cáveldalendapatrióticaaprendidaporescolares

israelenses e visitantes estrangeiros, e, consequentemente, não é seriamente

afetada pelo ceticismo justi cável de historiadores que se especializam na

história da Palestina romana. Além disso, mesmo onde se pode aplicar o

teste, quando a evidência está ausente, é defeituosa, con itante ou

circunstancial,elenãopoderefutarconvincentementenemumaproposição

altamente implausível. A evidência pode mostrar conclusivamente, contra

aqueles que o negam, que o genocídio nazista dos judeus aconteceu,mas,

embora nenhum historiador sério duvide que Hitler desejasse a “Solução

Final”, ela não pode demonstrar que ele deu uma ordem especí ca nesse

sentido.Dado omodo de operação deHitler, semelhante ordem escrita é

improvável,enãoseencontrounenhuma.Assim,conquantonãosejadifícil

rejeitar as teses de M. Faurisson, não podemos, sem uma elaborada

discussão, rejeitar o argumento levantado por David Irving, como fazem

muitosespecialistasnaárea.

Aterceiralimitaçãonafunçãodoshistoriadorescomoeliminadordemitos

éaindamaisóbvia.Nocurtoprazo,estãoimpotentescontraosqueoptam

poracreditarnomitohistórico,principalmentesesustentampoderpolítico,

oque, emmuitospaíses, e especi camentenosnumerososEstadosnovos,

envolvecontrolesobreoqueaindaéocanalmaisimportanteparacomunicar

informaçõeshistóricas,asescolas.Econvémnuncaesquecerqueahistória

— principalmente a história nacional — ocupa um lugar importante em

todos os sistemas conhecidos de educação pública. A crítica dos

historiadores indianos aos mitos históricos do fanatismo hindu pode

convencerseuscolegasdaacademia,masnãoosfanáticosdopartidoBJP.Os

historiadores croatas e sérvios que resistem à imposição de uma lenda

nacionalista à história de seus Estados tiveram menos in uência que os

nacionalistas de longo curso das diásporas croatas e sérvias, movidos por

mitologianacionalistaimuneàcríticahistórica.

III

Essaslimitaçõesnãodiminuemaresponsabilidadepúblicadohistoriador,

que repousa, acima de tudo, no fato, já notado acima, de que os

historiadoressãoprodutoresbásicosdamatéria-primaqueéconvertidaem

Page 16: Hobsbawm   nao basta a historia da identidade - sobre história

propaganda e mitologia. Devemos estar cientes de que isso é assim,

particularmente em uma época em que estão desaparecendo as maneiras

alternativasdepreservaropassado—tradiçãooral,memóriafamiliar, tudo

que depende da efetiva comunicação intergeracional em desintegração nas

sociedades modernas. Em todo caso, a história de grandes coletividades,

nacionaisounão,não seapoiounamemóriapopular,masnaquiloqueos

historiadores, cronistas ou antiquários escreveram sobre o passado,

diretamente ou mediante livros escolares, naquilo que os professores

ensinaram a seus alunos a partir desses livros escolares, na forma como

escritores de cção, produtores de lmes ou programadores de televisão e

vídeo transformaram seu material. Mesmo oHamlet de Shakespeare, em

diversas passagens, derivou da obra de um historiador, o cronista

dinamarquês Saxo Grammaticus. É absolutamente essencial que os

historiadoressempreselembremdisso.Assafrasquecultivamosemnossos

campospodemterminarcomoalgumaversãodoópiodopovo.

Naturalmente é verdade que a inseparabilidade da historiogra a em

relaçãoàideologiaepolíticacorrentes—todahistória,comodiziaCroce,é

história contemporânea— abre as portas para omau uso da história.Os

historiadoresnão camnempodem cardoladodeforadeseuobjetocomo

observadoresobjetivoseanalistassubspecieaeternitatis.Todosnósestamos

mergulhados nas suposições de nosso tempo e lugar, mesmo quando

praticamosalgotãoapartadodaspaixõespúblicasatuaisquantoaediçãode

textos antigos. Muitos de nós, como o fundador daRevue Historique,

estamosfelizesdeproduzirobraquepossaserutilizadapornossopovoou

causa. Sem dúvida seremos tentados a interpretar nossas descobertas do

modomaisfavorávelàcausa.Podemossertentadosanosabsterdeinvestigar

tópicosquetendamalançar luzdesfavorávelsobreela.Nãoadmiraqueos

historiadores hostis ao comunismo se inclinassem bemmais a pesquisar o

trabalho forçado naURSS que os historiadores simpatizantes da mesma.

Podemos mesmo ser tentados a permanecer calados sobre a evidência

desfavorável, se acaso a descobrirmos, embora di cilmente com uma boa

consciênciacientí ca.A nal,nenhumalinhaclaradivideasuppressioverida

suggestiofalsi.Oquenãopodemosfazer,semdeixardeserhistoriadores,é

abandonar os critérios de nossa pro ssão.Não podemos dizer aquilo que

podemos demonstrar como inverídico. Nisso inevitavelmente diferimos

daquelescujodiscursonãoétãorestringido.

Porém,oprincipalperigonãoresidenatentaçãodementir,oque,a nal

de contas, não pode sobreviver facilmente ao escrutínio de outros

historiadores em uma comunidade acadêmica livre, embora a pressão e a

Page 17: Hobsbawm   nao basta a historia da identidade - sobre história

autoridadepolíticasforneçamumasustentaçãoparaainverdade,mesmoem

certos Estados constitucionais. O perigo reside na tentação de isolar a

história de uma parte da humanidade — a do próprio historiador, por

nascimentoouescolha—deseucontextomaisamplo.

Aspressõesinternaseexternasparaassimfazerpodemsergrandes.Nossas

paixões e interesses podem nos compelir nessa direção. Todo judeu, por

exemplo,qualquerque seja suaocupação, instintivamente aceita a forçada

questãocomque,durantemuitos séculosameaçadores,membrosdenossa

comunidade minoritária se defrontaram com todo e qualquer evento no

mundo mais amplo: “Isso é bom para os judeus? Isso é mau para os

judeus?”. Em tempos de discriminação ou perseguição ela fornecia

orientação — embora não necessariamente a melhor — para o

comportamentopúblicoouprivado,umaestratégiaemtodososníveispara

um povo disperso. No entanto, ela não pode e não deve orientar um

historiador judeu, mesmo um historiador que escreva a história de seu

próprio povo. Os historiadores, conquanto microcósmicos, devem se

posicionaremfavordouniversalismo,nãopor delidadeaumidealaoqual

muitos de nós permanecemos vinculados, mas porque essa é a condição

necessária para o entendimento da história da humanidade, inclusive a de

qualquer fração especí ca da humanidade. Pois todas as coletividades

humanassãoeforamnecessariamentepartedeummundomaisamploemais

complexo. Uma história que seja destinada apenas para judeus (ou afro-

americanos,ougregos,oumulheres,ouproletários,ouhomossexuais)não

pode ser boa história, embora possa ser uma história confortadora para

aquelesqueapraticam.

Infelizmente,comodemonstraasituaçãoemáreasenormesdomundono

nal de nosso milênio, a história ruim não é história inofensiva. Ela é

perigosa.Asfrasesdigitadasemtecladosaparentemente inócuospodemser

sentençasdemorte.