hobsbawm nao basta a historia da identidade - sobre história
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PREFÁCIO
Os historiadores menos inclinados à loso a quase não podem evitar
re exõesgeraissobresuamatéria.Mesmoquandopodem,talveznãosejam
incentivadosnesse sentido, jáqueaprocuraparaconferênciase simpósios,
que tende a aumentar à medida que o historiador envelhece, é mais
facilmenteatendidaporabordagensgeraisqueporpesquisasconcretas.Em
todo caso, o viés do interesse contemporâneo está voltado para questões
conceituaisemetodológicasdahistória.Teóricosdetodosostiposcirculam
aoredordostranquilosrebanhosdehistoriadoresquesealimentamnasricas
pastagensdesuasfontesprimáriasouruminamentresisuaspublicações.De
vez emquando, até osmenos combativos se sentem impelidos a enfrentar
seusdetratores.Nãoqueoshistoriadores,entreosquaisesteautorseinclui,
nãosejamcombativos,pelomenosquandotratamdostextosunsdosoutros.
Algumasdascontrovérsiasacadêmicasmaisespetacularesforamtravadasnos
campos de batalha dos historiadores. Dessa forma, não é de admirar que
alguémhácinquentaanosnaatividadetenhaproduzido,aolongodotempo,
reflexõessobresuamatéria,agorareunidasnestacoleçãodeensaios.
Por mais curtos e assistemáticos que possam ser — em muitos deles
transparecem os limites do que pode ser dito em uma conferência de
cinquentaminutos—,estesensaiosconstituem,noentanto,umatentativade
embatediretocomumconjuntocoerentedeproblemas.Essesproblemassão
detrêstiposquesesobrepõem.Emprimeirolugar,estoupreocupadocom
osusoseabusosdahistória,tantonasociedadequantonapolítica,ecoma
compreensão e, espero, transformação do mundo. Mais especi camente,
discutoovalordahistóriaparaasoutrasdisciplinas, especialmentenaárea
das ciências sociais. Nesse sentido, estes ensaios, se o leitor preferir, são
anúnciosparaomeunegócio.Emsegundolugar,dizemrespeitoaoquetem
acontecido entre os historiadores e outros pesquisadores acadêmicos do
passado. Incluem levantamentos e avaliações críticas de várias tendências e
modas em história, além de intervenções em debates, como, por exemplo,
sobre pós-modernismo e cliometria. Em terceiro, dizem respeito a meu
próprio tipo de história, ou seja, aos problemas centrais com que todo
historiadorsériodevesedefrontar,à interpretaçãohistóricaqueacheimais
útilquandoosenfrentei,e,também,àmaneirapelaqualahistóriaquetenho
escritotrazasmarcas,antecedentes,convicçõeseexperiênciadevidadeum
homem de minha idade. É provável que os leitores descubram que cada
ensaio,deummodooudeoutro,érelevanteatodososdemais.
Minhasopiniões sobre todosesses assuntosdevemestar clarasno texto.
Não obstante, quero acrescentar uma palavra ou duas de esclarecimento
sobredoistemasdestelivro.
Primeiro,sobrecontaraverdadesobreahistória,parausarotítulodeum
livrodeamigosecolegasdoautor.1Defendovigorosamenteaopiniãodeque
aquilo que os historiadores investigam é real. O ponto do qual os
historiadores devem partir, por mais longe dele que possam chegar, é a
distinção fundamental e, para eles, absolutamente central, entre fato
comprovável e cção, entredeclaraçõeshistóricasbaseadas emevidências e
sujeitasaevidenciaçãoeaquelasquenãoosão.
Nasúltimasdécadas,tornou-semoda,principalmenteentrepessoasquese
julgamdeesquerda,negarquearealidadeobjetivasejaacessível,umavezque
oquechamamosde“fatos”apenasexistemcomoumafunçãodeconceitose
problemas prévios formulados em termos dos mesmos. O passado que
estudamos é só um constructo de nossas mentes. Esse constructo é, em
princípio,tãoválidoquantooutro,querpossaserapoiadopelalógicaepor
evidências, quernão.Namedida emque constitui parte deum sistemade
crençasemocionalmente fortes,nãohá,porassimdizer,nenhummodode
decidir, em princípio, se o relato bíblico da criação da terra é inferior ao
propostopelasciênciasnaturais:apenassãodiferentes.Qualquertendênciaa
duvidar disso é “positivismo”, e nenhum termodesquali camais que este,
excetoempirismo.
Em resumo, acredito que sem a distinção entre o que é e o que não é
assim, não pode haver história. Roma derrotou e destruiu Cartago nas
Guerras Púnicas, e não o contrário. O modo como montamos e
interpretamosnossaamostraescolhidadedadosverificáveis(quepodeincluir
nãosóoqueaconteceumasoqueaspessoaspensaramarespeito)éoutra
questão.
Na verdade, poucos relativistas estão à altura plena de suas convicções,
pelomenosquandosetrataderesponder,porexemplo,seoHolocaustode
Hitler aconteceu ou não. Porém, seja como for, o relativismo não fará na
histórianadaalémdoquefaznostribunais.Seoacusadoemumprocesso
por assassinato éounão culpado,dependeda avaliaçãoda velha evidência
positivista,desdequesedisponhadetalevidência.Qualquerleitorinocente
que se encontrar no banco dos réus fará bem em recorrer a ela. São os
advogadosdosculpadosquerecorremalinhaspós-modernasdedefesa.
Osegundoesclarecimentodizrespeitoàabordagemmarxistadahistória,
com a qual sou associado.Embora o rótulo seja vago, não o rejeito. Sem
Marxeunãoteriadesenvolvidonenhuminteresseespecialpelahistória,que,
conforme ensinadana primeirametade dos anos 1930 emumGymnasium
alemão conservador e por um admirável mestre liberal em uma escola
secundária de Londres, não era umamatéria inspiradora. Era quase certo
queeunãoiriaganharavidacomohistoriadoracadêmicopro ssional.Marx
e os campos de atividade dos jovens radicais marxistas forneceram meus
temasdepesquisaein uenciaramomodocomoescrevisobreeles.Mesmo
que eu achasse que grande parte da abordagem da história por Marx
precisasseserjogadanolixo,aindaassimcontinuariaalevaremconsideração,
profundamascriticamente, aquiloqueos japoneseschamamdeumsensei,
mestre intelectual para quem se deve algo que não pode ser retribuído.
Acontece que continuo considerando (com quali cações que serão
encontradas nestes ensaios) que a “concepção materialista da história” de
Marxé,delonge,omelhorguiaparaahistória,comoograndeeruditodo
séculoXIV,IbnKhaldun,adescreveu:
oregistrodasociedadehumana,oucivilizaçãomundial;dasmudançasque
acontecemnanaturezadessa sociedade [...];de revoluçõese insurreições
deumconjuntodepessoascontraoutro, comosconsequentes reinose
Estados dotados de seus vários níveis; das diferentes atividades e
ocupações dos homens, seja para ganharem seu sustento ou nas várias
ciências e artes; e, em geral, de todas as transformações sofridas pela
sociedadeemrazãodesuapróprianatureza.2
Écertamenteomelhorguiaparaaquelescomoeu,cujocampotemsidoo
daascensãodocapitalismomodernoeastransformaçõesdomundodesdeo
fimdaIdadeMédiaeuropeia.
Masoqueexatamenteéum“historiadormarxista”emcomparaçãocom
um historiador não marxista? Ideólogos de ambos os lados das guerras
religiosasseculares,emmeioàsquaisvivemosdurantegrandepartedoséculo
XX, tentaramestabelecer claras demarcações e incompatibilidades.Porum
lado,asautoridadesdaextintaURSSnãosedispuseramatraduzirnenhum
demeuslivrosparaorusso,emboraseuautorfossesabidamentemembrode
umPartidoComunista e editor da edição inglesa dasObrasescolhidas de
Marx e Engels. Pelos critérios de sua ortodoxia, os livros não eram
“marxistas”. Por outro lado, mais recentemente, nenhum editor francês
“respeitável” até agora se dispôs a traduzir meu livroEra dos extremos,
presumivelmente por considerar o livro por demais chocante em termos
ideológicos para os leitores parisienses, ou, o que é mais provável, para
aqueles que decerto fariam a resenha do livro, caso fosse traduzido.
Entretanto,conformemeusensaios tentammostrar,ahistóriadadisciplina
queinvestigaopassado,apartirdo mdoséculoXIX,pelomenosatéquea
nebulosidadeintelectualcomeçasseapairarsobreapaisagemhistoriográ ca
nos anos 1970, foi uma história de convergência e não de dispersão.
Constantemente se observou o paralelismo entre a escola dosAnnales na
FrançaeoshistoriadoresmarxistasnaGrã-Bretanha.Cadaladoviaooutro
empenhadoemumprojetohistóricosimilar,aindaquecomumagenealogia
intelectual diferente, e entretanto, ao que se presume, a política de seus
expoentes mais destacados estava longe de ser a mesma. Interpretações
outrora identi cadas exclusivamente com o marxismo, e até com o que
chameide“marxismovulgar”(veradiante,pp.206-9),penetraramnahistória
convencional em um grau extraordinário. É seguro dizer que, há meio
século, pelo menos na Inglaterra, apenas um historiador marxista teria
sugeridoqueoaparecimentodoconceitoteológicodepurgatórionaIdade
Médiaeuropeiaeramaisbemexplicadopelamudançanabaseeconômicada
Igreja,queseapoiavanasdoaçõesdeumpequenonúmerodenobresricose
poderosos,paraumabase nanceiramaisampla.Noentanto,quemchegaria
ao ponto de classi car o eminente medievalista de Oxford, Sir Richard
Southern,ouJacquesLeGoff—cujolivrooprimeiroresenhounessalinha
nosanos1980—comoadeptoousimpatizanteideológico,emuitomenos
político,deMarx?
Penso que essa convergência seja evidência salutar de uma das teses
centraisdestesensaios,ouseja,queahistóriaestáempenhadaemumprojeto
intelectual coerente, e fez progressos no entendimento de como omundo
passouasercomoéhoje.Naturalmentenãoquerosugerirquenãosepossa
ou não se deva distinguir entre históriamarxista e nãomarxista, apesar da
heterogeneidade e imprecisão da carga que os dois recipientes carregam.
HistoriadoresnatradiçãodeMarx—eissonãoincluitodososqueassimse
intitulam — têm uma contribuição importante a fazer para esse esforço
coletivo.Masnãoestãosozinhos.Nemdeveriaoseutrabalho,ouodequem
querqueseja,serjulgadopelasetiquetaspolíticasqueelesououtrosa xam
emsuaslapelas.
Os ensaios aqui reunidos foram escritos em momentos diferentes nos
últimos trinta anos, principalmente como conferências e contribuições
apresentadasemcongressosousimpósios,àsvezescomoresenhasdelivros
oucontribuiçõesparaessesestranhoscemitériosacadêmicos,osFestschriften
ou coletâneas de estudos dedicados a um colega acadêmico em alguma
ocasião que pede celebração ou apreciação.O público para o qual escrevi
varia de plateias gerais, principalmente de universidades, até grupos
especializadosdehistoriadoresoueconomistaspro ssionais.Oscapítulos3,
5,7,8,17e19estãosendopublicadospelaprimeiravez,emboraumaversão
docapítulo17notextoalemãooriginal,naformadeumaconferênciaparao
Historikertagalemãoanual,tenhasidopublicadaemDieZeit.Oscapítulos1
e 15 foram publicados inicialmente naNew York Review of Books ; os
capítulos2e14,narevistadehistóriaPastandPresent;oscapítulos4,11e
20apareceramnaNewLeftReview;ocapítulo6,emDaedalus,arevistada
AcademiaNorte-americanadeArtes eCiências, eos capítulos10e21, em
Diogenes, publicada sob os auspícios daUNESCO. O capítulo 13 foi
publicado naReview com patrocínio do Centro Fernand Braudel da
UniversidadeEstadual deNovaYork emBinghamton, e o capítulo 18 foi
publicado como folheto pela Universidade de Londres. Detalhes sobre o
Festschriftenparaosquais foramescritososcapítulos9e16encontram-se
nocabeçalhodoscapítulos,bemcomo,emgeral,asdatasdostextosoriginais
e, onde necessário, o motivo de sua redação original. Agradeço a todos,
tambémondenecessário,pelapermissãoparapublicarnovamente.
E.J.Hobsbawm
Londres,1997
21.NÃOBASTAAHISTÓRIADEIDENTIDADE
Este ensaio, que debate o relativismo de certas modas intelectuais
correntes (“pós-modernas”) ,foi escrito para um número especial sobre
história, editado por meu amigo, o professor François Bédarida, veterano
diretor do Institut pour l’Histoire du Temps Présent , de Paris, para o
periódicoDiogenes,42/4(1994),sobotítulo: “Ohistoriadorentreabusca
douniversalebuscadaidentidade”.
I
Devesermelhorcomeçaressadiscussãosobreasinadohistoriadorcom
uma experiência concreta.No início do verão de 1944, quando o exército
alemãoseretiravaparaoNortedaItáliaa mdeestabelecerumfrontmais
defensável contra o avanço das forças aliadas ao longo da chamadaLinha
Gótica nos Apeninos, suas unidades realizaram uma série de massacres,
normalmente justi cados como retaliações contra atividade local “bandida”
(istoé,guerrilheira).Cinquentaanosdepois,algunsdessesmassacresaldeões
na província de Arezzo, até então relegados para as memórias dos
sobreviventes das aldeias e dos historiadores locais da Resistência,
propiciaramo ensejo para uma conferência internacional sobre amemória
dosmassacresalemãesnaSegundaGuerraMundial.
Aconferênciareuniunãoapenashistoriadoresecientistassociaisdevários
paísesdaEuropaorientaleocidentaledosEUA,mastambémsobreviventes
locais, antigos combatentes da Resistência e outras partes interessadas.
Nenhumtemapoderiasermenospuramente“acadêmico”,mesmocinquenta
anosdepoisque175homensforamseparadosdesuasmulherese lhosem
CivitelladellaChiana,fuziladosedespejadosnoscrematóriosdesuaaldeia.
Porisso,nãoadmiraqueaconferênciaocorresseemumararaatmosferade
tensãoeincômodo.Todossabiamqueestavamemjogoquestõespolíticase
até existenciais de grande premência. Nenhum historiador presente podia
deixardere etirsobrearelaçãoentreahistóriaeopresente.A nal,apenas
algumassemanasantes,aItáliahaviaeleitooprimeirogovernodesde1943a
incluirfascistas,ededicadotantoaoanticomunismoquantoàproposiçãode
que a resistência de 1943-5 não havia sido um movimento de libertação
nacionaleque,emtodocaso,pertenciaaumpassadoremotoirrelevanteao
presente,devendoseresquecido.
Todosestavamincomodados.OssobreviventesdostemposdaResistência
edomassacreestavamincomodadosdiantedarevelaçãodecoisasque,como
sabiam todos os compatriotas, eramelhor deixar caladas.Como poderia a
vidarural,senãoporumacordotácitoementerraroscon itosdopassado,
ter retornado a algum tipo de “normalidade” após 1945? (Umhistoriador
norte-americano escreveu um ensaio perspicaz sobre esse mecanismo de
silêncio seletivo na aldeia ístria de sua mulher croata.) Os antigos
guerrilheiros e, de fato, a opinião pública na região profundamente
esquerdistadaToscana,estavamincomodadosporviveremummomentoem
que a República italiana rejeitava a tradição da Resistência contraHitler e
Mussolini, que (com razão) consideravam fundamento da mesma. Os
historiadores orais, jovens e presumivelmente esquerdistas em suamaioria,
que haviam entrevistado ou reentrevistado os aldeões na preparação da
conferência, estavam chocados por descobrirem que os habitantes, pelo
menos em uma aldeiamuito católica, não culpavam tanto os alemães pelo
massacrequantoosjovenslocaisquehaviamsejuntadoaosguerrilheirose,
segundoachavam,haviamirresponsavelmentelevadoseuslaresaodesastre.
Outros historiadores tinham seus próprios motivos de incômodo. Os
historiadoresalemãespresentesestavamsensivelmenteassustadosporaquilo
que seus pais ou avós haviam feito ou deixado de fazer em 1944.
Praticamentetodososhistoriadoresnãoitalianos,ediversositalianos,nunca
tinham ouvido falar nos massacres, em cuja memória a conferência foi
organizada: um lembrete perturbador quanto à pura arbitrariedade da
sobrevivênciaedamemóriahistóricas.Porquealgumasexperiênciashaviam
se tornado parte de uma memória histórica mais ampla, enquanto tantas
outrasnão?Osparticipantesrussosnãofaziamsegredodesuaconvicçãode
queconcentrarosestudosnasatrocidadesnazistaseraummeiodedesviara
atenção dos horrores stalinistas. Os especialistas na história da Segunda
Guerra Mundial, independentemente de seus antecedentes nacionais, não
podiamevitaraquestãodesaber,cinquentaanosapósoevento,seaqueles
massacresde inocentes—representando, segundosedizia,maisde1%da
populaçãototaldaprovínciadeArezzo—eramumpreço justi cávela ser
pago pelo embaraçomilitar relativamentemenor de um regimento alemão
que,emtodocaso,estavaplanejandoseretirardaáreaemumaquestãode
diasou,nomáximo,semanas.
O temamesmodaconferência, a atrocidade,não tinhacondiçõesde ser
consideradocomimparcialidade.Acertadamente,aatençãonãoselimitouà
micro-história local,mas se alargoupara considerar as atrocidadesmaiores
do genocídio, estudadas por alguns importantes historiadores também
presentes,eoproblemamaisamplodecomoessascoisassão,oupodemser,
lembradas.Entretanto,comoestávamosnapiazzareconstruídadeumaaldeia
outrora destruída, ouvindo uma elaborada narrativa comemorativa que os
sobreviventeseos lhosdosmortoshaviamconstruídoemtornodaqueledia
terrívelde1944,comonãoconseguimosperceberquenossotipodehistória
nãoeraapenasincompatívelcomadeles,mas,emcertossentidos,destrutivo
da mesma? Qual a natureza da comunicação entre o historiador que
entregouaoprefeitodaaldeiaa transcriçãodo inquéritosobreomassacre,
realizado pelo exército inglês poucos dias depois de sua ocorrência, e o
prefeitoquearecebeu?Paraum,eraumafonteprimáriadearquivo;parao
outro, um reforço do discurso comemorativo da aldeia, que nós,
historiadores, facilmente reconhecíamos como parcialmente mitológico.
Entretanto,essanarrativamemorialeraummododeacertarcontascomum
traumatãoprofundoparaCivitelladellaChianaquantooHolocaustoparaa
totalidade do povo judeu. Seria a nossa história, destinada à comunicação
universaldoquepodiaser testadopelaevidênciaea lógica,relevanteàsua
comemoração, que, por natureza, não pertencia a ninguém além de si
mesmos? Eram memórias que, conforme camos sabendo, os aldeões,
durante décadas, haviam guardado para si mesmos por esse motivo,
recusando-se, comuma cautela que não compartilhávamos, a investigar os
detalhes de um massacre em uma aldeia vizinha porque esse não era seu
passadomasodeseusvizinhos.Seriapossívelcompararnossahistóriacoma
sua?
Emsuma,nenhumaocasiãopoderia terdramatizadomelhorocontraste
entre a universalidade e a identidade na história, e o confronto dos
historiadorestantocomopassadoquantocomopresente.
Apesar disso, esse mesmo confronto demonstrava que para os
historiadoresauniversalidadenecessariamenteprevaleciasobreaidentidade.
Poracaso,pelomenosumhistoriadorpresenterepresentavaambasemsua
própriapessoa.Oorganizadordaconferênciahaviaestadopessoalmentena
piazza de Civitella, criança ainda e com sua mãe, quando os alemães
arrastarameassassinaramseupai.Eleaindaerapartedaaldeia,ondepassava
overãonavelhacasadafamília.Ninguémestavaemcondiçõesdenegarque,
para ele, bem como para todos os seus discípulos, o massacre trazia
lembrançasesignificadosquenãopodiatrazerparaorestantedenós,ouque
ele até mesmo leria os registros dos arquivos de modo diferente de um
pesquisador que não tivesse participado da experiência. Entretanto, como
historiador,assistiaànarrativamemorialqueaaldeiahaviaelaboradoporsi
mesma exatamente da mesma maneira que os historiadores que não
dispunham desse envolvimento pessoal, ou seja, aplicando as normas e
critérios de nossa disciplina. Pelos seus padrões e pelos nossos — pelos
critériosuniversalmenteaceitosdadisciplina—anarrativaaldeãtinhadeser
cotejada com as fontes, e por esses padrões não era história, ainda que a
formaçãodessamemória aldeã, sua institucionalizaçãoe suasmudançasno
cursodosúltimoscinquentaanosfossempartedahistória.Era,emsimesma,
umtemaparainvestigaçãohistóricapelosmesmosmétodoscomqueoforam
oseventosdejunhode1944comosquaiselahaviatentadoacertarcontas.
Apenasnesseaspectoa“culturadaidentidade[deCivitella]”erarelevanteà
história do massacre realizada pelos historiadores. Em todos os demais
aspectos,erairrelevante.
Emresumo,quantoàsquestõescomquepodemlidarapesquisahistórica
eareaçãoteórica,nãohaviaenãopodehavernenhumadiferençasubstancial
entre estudiosos para quem os problemas de identidade de Civitella eram
insigni cantesouseminteresse,eumhistoriadorparaquemessesproblemas
eramexistencialmentecentrais.Todososhistoriadorespresentesesperavam
concordarquantoà formulaçãodasquestões sobreas atrocidadesnazistas,
embora não se esperasse necessariamente que concordassem sobre as
mesmas.Todos concordavamquanto aos procedimentospara responder a
tais questões, quanto à natureza da possível evidência que permitiria que
fossem respondidas — na medida em que as respostas dependessem de
evidência— e quanto à comparabilidade de eventos experimentados pelos
participantes como únicos e incomunicáveis. Inversamente, os que não se
dispunham a submeter sua experiência, ou a de sua comunidade, a tais
procedimentos, ou que se recusavam a aceitar os resultados desses testes,
estavam fora da disciplina da história, por mais que os historiadores
respeitassem suas razões e sentimentos. De fato, entre os historiadores
presenteshouveumimpressionanteconsensosobrequestõesdesubstância.
Esseconsensocontrastavamarcadamentecomocaosdeemoçõesvariadase
conflitantesqueagitavamosparticipantes.
II
O problema para os historiadores pro ssionais é que seu objeto tem
importantes funções sociais e políticas. Essas funções dependem de seu
trabalho—quemmaisdescobreeregistraopassadoalémdoshistoriadores?
—,masaomesmotempoestãoemcon itocomseuspadrõespro ssionais.
Essa dualidade está no cerne de nosso objeto. Os fundadores daRevue
Historiquetinhamconsciênciadissoquandodeclararam,noavant-proposde
seu primeiro número que “Estudar o passado da França, que será nosso
interesse principal, é hoje uma questão de importância nacional. Isso nos
possibilitará restabelecer a nosso país a unidade e força moral de que
necessita”.1
Éclaroquenadaestavamaislongedesuasmentescon antesepositivistas
que servir sua nação de outromodo que não pela busca da verdade.No
entanto,osnãoacadêmicosquenecessitameconsomemamercadoriaqueos
historiadores produzem, e que constituem o seu mercado mais amplo e
politicamente decisivo, não se incomodam com a nítida distinção entre os
“procedimentosestritamentecientí cos”eas“construçõesretóricas”queera
tão fundamental para os fundadores daRevue.Seu critériodoque é “boa
história”éa“históriaqueéboaparanós”—“nossopaís”,“nossacausa”,ou
simplesmente “nossa satisfação emocional”.Quer gostemdisso ou não, os
historiadorespro ssionaisproduzemamatéria-primaparaousoouabuso
dosnãoprofissionais.
Queahistóriaestejaindissoluvelmenteligadaàpolíticacontemporânea—
como continua a demonstrar a historiogra a da Revolução Francesa —
provavelmentenãoéhojeumadi culdade importante,poisosdebatesdos
historiadores,pelomenosempaísesdeliberdadeintelectual,sãoconduzidos
dentro das normas da disciplina. Além disso, muitos dos debates mais
carregadosdeconteúdoideológicoentrehistoriadorespro ssionaisreferem-
se a questões sobre as quais os não historiadores menos sabem e se
importam.Noentanto,todosossereshumanos,coletividadeseinstituições
necessitamdeumpassado,masapenasocasionalmenteopassadoérevelado
pelapesquisahistórica.Oexemplo-padrãodeumaculturadeidentidade,que
se ancora no passado por meio de mitos disfarçados de história, é o
nacionalismo.ErnestRenanobservouhámaisdeumséculo,“Esquecer,ou
mesmointerpretarmalahistória,éumfatoressencialna formaçãodeuma
nação,motivopeloqualoprogressodos estudoshistóricosmuitas vezes é
um risco para a nacionalidade”. As nações são entidades historicamente
novas ngindoteremexistidodurantemuitotempo.Éinevitávelqueaversão
nacionalista de sua história consista de anacronismo, omissão,
descontextualizaçãoe,emcasosextremos,mentiras.Emumgraumenor,isso
éverdadeparatodasasformasdehistóriadeidentidade,antigasourecentes.
Nopassadopré-acadêmico,haviapoucacoisaaimpediramerainvenção
histórica,talcomoafalsi caçãodemanuscritoshistóricos(comonaBoêmia),
aredaçãodeumépiconacionalescocês,antigoeconvenientementeglorioso
(como o “Ossian” de James Macpherson), ou a produção de uma peça
totalmenteinventadadeteatropúblicosimulandoarepresentaçãodeantigos
rituais bárdicos, como noPaís deGales. (Isso ainda constitui o clímax do
NationalEisteddfodanual,ou festival culturaldaquelepequenopaís.)Nos
casos em que essas invenções têm que ser submetidas aos testes de uma
grande e sólida comunidade acadêmica, isso não é mais possível. Grande
partedaerudiçãohistóricaprimitivaconsistiadarefutaçãodetaisinvençõese
dadesconstruçãodosmitosporelasgerados.Ograndemedievalistainglês,J.
HoraceRound, fez suareputaçãoporumasériede impiedosasdissecações
dospedigreesde famíliasnobresbritânicas cujapretensãodedescendência
dos invasores normandos demonstrou ser espúria. Os testes não são
necessariamente apenas históricos. O “sudário de Turim”, para citar um
exemplo recente de uma relíquia sagrada do tipo que fez as fortunas de
centrosmedievaisdeperegrinação,nãoconseguiuresistiraotestededatação
porcarbono-Baquetevedesersubmetido.
Ahistóriacomo cção,contudo,recebeuumreforçoacadêmicodeuma
esfera inesperada: o “crescente ceticismo concernente ao projeto iluminista
de racionalidade”.2 Amoda do que é conhecido (pelomenos no discurso
acadêmicoanglo-saxão)pelovagotermo“pós-modernismo”felizmentenão
ganhou tanto terreno entre os historiadores quanto entre teóricos da
literatura e da cultura e antropólogos sociais, mesmo nosEUA, mas é
relevanteàquestãoempauta,jáquelançadúvidasobreadistinçãoentrefato
e cção,realidadeobjetivaediscursoconceitual.Éprofundamenterelativista.
Senãohánenhumadistinçãoclaraentreoqueéverdadeiroeoquesentimos
ser verdadeiro, então minha própria construção da realidade é tão boa
quantoasuaouadeoutrem,pois“odiscursoéoprodutordessemundo,
não o espelho”.3 Para citar o mesmo autor, o objetivo da etnogra a é
produzirumtextocooperativamentedesenvolvido,noqualnemsujeito,nem
autor,nemleitor,defatoninguém,temdireitoexclusivode“transcendência
sinóptica”.4Se,“nodiscursohistóricocomonoliterário,mesmoalinguagem
supostamente descritivaconstituiaquiloqueeladescreve”,5 entãonenhuma
narrativa entre asmuitas possíveis pode ser considerada comoprivilegiada.
Nãoéporacasoqueessasconcepçõesatraíramparticularmenteaquelesque
seveemcomorepresentantesdecoletividadesouambientesmarginalizados
pelaculturahegemônicadealgumgrupo(homensheterossexuaisbrancosde
classe média, por exemplo, de formação ocidental) cuja pretensão de
superioridadecontestam.Masissoestáerrado.
Sem entrar no debate teórico sobre essas questões, é essencial que os
historiadores defendam o fundamento de sua disciplina: a supremacia da
evidência. Se os seus textos são cções, como o são em certo sentido,
constituindo-sedecomposiçõesliterárias,amatéria-primadessas cçõessão
fatos veri cáveis.O fatodequeos fornosnazistas tenhamexistidoounão
pode ser estabelecido pormeio de evidências.Uma vez que isso foi assim
estabelecido, os que negam sua existência não estão escrevendo história,
quaisquerquesejamsuastécnicasnarrativas.Seumromancedevetratardo
retornodeNapoleãodeSantaHelenaemvida,elepoderiaserliteraturamas
nãoconseguiriaserhistória.Seahistóriaéumaarteimaginativa,éumaarte
que não inventa mas organizaobjets trouvés. A distinção pode parecer
pedante e trivial ao não historiador, principalmente aquele que utiliza
materialhistóricoparaseuspróprios ns.Oqueimportaàplateiateatralque
não haja nenhum registro histórico de uma Lady Macbeth instando seu
maridoamataroreiDuncan,oudebruxasprevendoqueMacbethseriarei
da Escócia, o que de fato aconteceu no período de 1040-57? O que
importava aos fundadores (pan-africanos) dos Estados pós-coloniais da
África ocidental, que deram a seus países nomes de impérios africanos
medievais,ofatodequeessesnomesnãopossuíssemnenhumaligaçãoóbvia
com os territórios atuais de Gana ou doMali? Não era mais importante
lembraraosafricanossubsaarianos,apósgeraçõesdecolonialismo,queeles
possuíamuma tradição deEstados independentes e poderosos em alguma
partedeseucontinente,aindaquenãoexatamentenointeriordeAcra?
De fato, a insistência dos historiadores, mais uma vez nas palavras do
primeiro número daRevue Historique, em “procedimentos estritamente
cientí cos, onde cada declaração é acompanhada de provas, fontes de
referênciaecitações”,6éàsvezespedanteetrivial,principalmenteagoraque
issonãoparticipamaisdeumafénapossibilidadedeumaverdadecientí ca
de nitiva, positivista, que lhe conferia uma certa grandeza simplória. No
entanto,osprocedimentosdotribunaldejustiça,queinsistemnasupremacia
da evidência comamesma forçaqueospesquisadoreshistóricos, emuitas
vezes quase da mesma maneira, demonstram que a diferença entre fato
históricoefalsidadenãoéideológica.Écrucialparamuitos nspráticosda
vidacotidiana,nomínimoporquedeladependemavidaeamorte,ou—o
queéquantitativamentemaisimportante—odinheiro.Quandoumapessoa
inocenteé julgadaporassassinato,edesejaprovar sua inocência,aquilode
que senecessitanão são as técnicas do teórico “pós-moderno”,mas as do
antiquadohistoriador.
Além disso, a veri cabilidade histórica de a rmações políticas ou
ideológicas pode ser de importância vital, se a historicidade for a base
essencial de tais a rmações. Isso é verdadeiro não só para pretensões
territoriais de Estados ou comunidades, que em geral são históricas. A
campanha antimuçulmana [em1992]movidapelopartido integristahindu,
BJP, que levou aomassacre em grande escala na Índia, era justi cada por
alegaçõeshistóricas.AcidadedeAyodhyaeratidacomolocaldenascimento
dodivinoRama.Poressemotivo,aconstruçãodeumamesquitaemterreno
sagradohindu,supostamentepeloconquistadormongolBabur,emtallocal
sagradoerauminsultomuçulmanoàreligiãohindueumaviolaçãohistórica.
Tinhadeserdestruídoesubstituídoporumtemplohindu.(Amesquitafoi
realmente derrubada por uma enorme multidão de fanáticos hindus,
mobilizadosparaessefimpeloBJPem1992.)Comoeradeesperar,oslíderes
dopartidodeclararamque “tais questõesnãopodem ser solucionadaspor
veredicto judicial”, já que não existia base histórica para a a rmação. Os
historiadores indianos conseguiram demonstrar que ninguém havia
consideradoAyodhya como local denascimentodeRama antes do século
XIX e que os imperadores mongóis não faziam nenhuma associação
especí ca com amesquita, embora considerações legaismostrassem que o
direitohinduaolocaleraduvidoso.Atensãoespecí caentreascomunidades
religiosaserarealmenterecente.Eraumabomba-relógiocujodisparadorfoi
acionado em 1949, quando, em consequência da partilha da Índia e da
criação do Paquistão, havia sido fabricado um “milagre das imagens” que
apareciamnamesquita.7
Insistirna supremaciadaevidênciaena importânciacentraldadistinção
entrefatohistóricoveri cávele cçãoéapenasumadasmaneirasdeexercera
responsabilidadedohistoriadore,comoaatualfabricaçãohistóricanãoéo
que era antigamente, talvez não seja amais importante. Ler os desejos do
presentenopassadoou,emtermostécnicos,anacronismo,éatécnicamais
comumeconvenientedecriarumahistóriaquesatisfaçaasnecessidadesdo
que Benedict Anderson chamou “comunidades imaginadas” ou coletivos,
quenãosão,demodoalgum,apenasnacionais.8
Durante muito tempo, a desconstrução de mitos políticos ou sociais
disfarçados como história foi parte das obrigações pro ssionais do
historiador,independentementedesuassimpatias.OshistoriadoresdaGrã-
Bretanha,segundoseespera,sãomaiscomprometidosqueninguémcoma
liberdadebritânica,masissonãoosimpededecriticaressamitologia.Toda
criançaoutroraaprendianaescolaqueaMagnaCartaeraofundamentodas
liberdadesbritânicas,masdesdeamonogra adeMcKechnie,de1914,todo
estudanteuniversitáriodehistóriadaGrã-Bretanhapassouaterdeaprender
que o documento extorquido do rei João pelos barões, em 1215, não
pretendia ser uma declaração de supremacia parlamentar e direitos iguais
parainglesesnascidoslivres,muitoemborapassasseaserencaradocomotal
naretóricapolíticabritânicabemmaistarde.Acríticacéticadoanacronismo
históricoprovavelmenteéhojeaprincipalmaneirapelaqualoshistoriadores
podem demonstrar sua responsabilidade pública. Hoje, seu papel público
mais importante, principalmente nos diversos Estados fundados ou
reconstituídosapartirdaSegundaGuerraMundial,épraticarseuofíciode
forma a constituirpour lanationalité (epara todasasdemais ideologiasde
identidadecoletiva)undanger.
Isso é extremamente óbvio em situações nas quais os con itos
internacionaisseapoiamemdiscussõeshistóricas,comonapresentefaseda
sempre explosiva questão macedônica. Tudo nesse ponto incendiário —
envolvendo quatro países e a União Europeia e podendo uma vez mais
desencadear uma guerra nos Bálcãs — é histórico. A história ostensiva
brandidapelasprincipaispartesnacontendaéantiga,poistantoaMacedônia
quantoaGrécia(querecusaaosdemaisEstadosindependentesatéodireito
deusaronome)a rmamserherdeirasdeAlexandre,oGrande.Averdadeira
históriaérelativamentecontemporânea,poisadisputaatualentreaGréciae
seusvizinhosdecorredadivisãodaMacedôniaapósasGuerrasdosBálcãsde
1912 entre Grécia, Sérvia e Bulgária. Toda essa área havia pertencido
anteriormente ao Império otomano. Os gregos acabaram cando com a
maior parte dela. Quais Estados sucessores têm direito a quais partes do
território inde nidomas enorme daMacedônia pré-1913 (pois o Império
otomanonãousavaonome) foi umaquestão semprediscutida em termos
acadêmicos,namaioriaetnográ coselinguísticos.Ocasogrego,atualmente
omaissonoro,apoia-seemgrandeparteemhistóriaanacronísticaporqueos
argumentos étnicos e linguísticos tendem mais a favorecer os reclamantes
eslavose,talvez,albaneses.Nãoémuitomaisconvincentequeoargumento
dequeaFrançatemdireitoàItáliaporqueJúlioCésarfoioconquistadorda
Gália.Umhistoriadorqueaponteparaissonãoestánecessariamentemovido
por preconceito contra os gregos ou em favor dos eslavos, embora
atualmentepossasermaispopularemSkopjequeemAtenas.Seomesmo
historiador destacar que a maioria da população da maior cidade da
Macedônia (indivisa), Salônica, não era identi cável nem como grega nem
como eslava, mas, quase com certeza, como muçulmana ou judia, será
igualmenteimpopularentreosfanáticosnacionalistasdostrêspaíses.
Entretanto,casoscomoessetambémsugeremaslimitaçõesdafunçãodo
historiador como destruidor de mitos. Em primeiro lugar, a força de sua
críticaénegativa.KarlPoppernosensinouqueotestedefalsi caçãopode
tornar insustentávelumateoria,masemsimesmonãosubstituiumateoria
melhor.Emsegundolugar,podemosdemolirummitoapenasnamedidaem
queseapoieemproposiçõescujoerropossaserdemonstrado.Édanatureza
dos mitos históricos, principalmente os nacionalistas, que normalmente
apenasalgumasdesuasproposiçõespodemserassimdesacreditadas.Oritual
nacionalisraelenseconstruídoemtornodasededeMasadanãodependeda
verdadehistoricamenteveri cáveldalendapatrióticaaprendidaporescolares
israelenses e visitantes estrangeiros, e, consequentemente, não é seriamente
afetada pelo ceticismo justi cável de historiadores que se especializam na
história da Palestina romana. Além disso, mesmo onde se pode aplicar o
teste, quando a evidência está ausente, é defeituosa, con itante ou
circunstancial,elenãopoderefutarconvincentementenemumaproposição
altamente implausível. A evidência pode mostrar conclusivamente, contra
aqueles que o negam, que o genocídio nazista dos judeus aconteceu,mas,
embora nenhum historiador sério duvide que Hitler desejasse a “Solução
Final”, ela não pode demonstrar que ele deu uma ordem especí ca nesse
sentido.Dado omodo de operação deHitler, semelhante ordem escrita é
improvável,enãoseencontrounenhuma.Assim,conquantonãosejadifícil
rejeitar as teses de M. Faurisson, não podemos, sem uma elaborada
discussão, rejeitar o argumento levantado por David Irving, como fazem
muitosespecialistasnaárea.
Aterceiralimitaçãonafunçãodoshistoriadorescomoeliminadordemitos
éaindamaisóbvia.Nocurtoprazo,estãoimpotentescontraosqueoptam
poracreditarnomitohistórico,principalmentesesustentampoderpolítico,
oque, emmuitospaíses, e especi camentenosnumerososEstadosnovos,
envolvecontrolesobreoqueaindaéocanalmaisimportanteparacomunicar
informaçõeshistóricas,asescolas.Econvémnuncaesquecerqueahistória
— principalmente a história nacional — ocupa um lugar importante em
todos os sistemas conhecidos de educação pública. A crítica dos
historiadores indianos aos mitos históricos do fanatismo hindu pode
convencerseuscolegasdaacademia,masnãoosfanáticosdopartidoBJP.Os
historiadores croatas e sérvios que resistem à imposição de uma lenda
nacionalista à história de seus Estados tiveram menos in uência que os
nacionalistas de longo curso das diásporas croatas e sérvias, movidos por
mitologianacionalistaimuneàcríticahistórica.
III
Essaslimitaçõesnãodiminuemaresponsabilidadepúblicadohistoriador,
que repousa, acima de tudo, no fato, já notado acima, de que os
historiadoressãoprodutoresbásicosdamatéria-primaqueéconvertidaem
propaganda e mitologia. Devemos estar cientes de que isso é assim,
particularmente em uma época em que estão desaparecendo as maneiras
alternativasdepreservaropassado—tradiçãooral,memóriafamiliar, tudo
que depende da efetiva comunicação intergeracional em desintegração nas
sociedades modernas. Em todo caso, a história de grandes coletividades,
nacionaisounão,não seapoiounamemóriapopular,masnaquiloqueos
historiadores, cronistas ou antiquários escreveram sobre o passado,
diretamente ou mediante livros escolares, naquilo que os professores
ensinaram a seus alunos a partir desses livros escolares, na forma como
escritores de cção, produtores de lmes ou programadores de televisão e
vídeo transformaram seu material. Mesmo oHamlet de Shakespeare, em
diversas passagens, derivou da obra de um historiador, o cronista
dinamarquês Saxo Grammaticus. É absolutamente essencial que os
historiadoressempreselembremdisso.Assafrasquecultivamosemnossos
campospodemterminarcomoalgumaversãodoópiodopovo.
Naturalmente é verdade que a inseparabilidade da historiogra a em
relaçãoàideologiaepolíticacorrentes—todahistória,comodiziaCroce,é
história contemporânea— abre as portas para omau uso da história.Os
historiadoresnão camnempodem cardoladodeforadeseuobjetocomo
observadoresobjetivoseanalistassubspecieaeternitatis.Todosnósestamos
mergulhados nas suposições de nosso tempo e lugar, mesmo quando
praticamosalgotãoapartadodaspaixõespúblicasatuaisquantoaediçãode
textos antigos. Muitos de nós, como o fundador daRevue Historique,
estamosfelizesdeproduzirobraquepossaserutilizadapornossopovoou
causa. Sem dúvida seremos tentados a interpretar nossas descobertas do
modomaisfavorávelàcausa.Podemossertentadosanosabsterdeinvestigar
tópicosquetendamalançar luzdesfavorávelsobreela.Nãoadmiraqueos
historiadores hostis ao comunismo se inclinassem bemmais a pesquisar o
trabalho forçado naURSS que os historiadores simpatizantes da mesma.
Podemos mesmo ser tentados a permanecer calados sobre a evidência
desfavorável, se acaso a descobrirmos, embora di cilmente com uma boa
consciênciacientí ca.A nal,nenhumalinhaclaradivideasuppressioverida
suggestiofalsi.Oquenãopodemosfazer,semdeixardeserhistoriadores,é
abandonar os critérios de nossa pro ssão.Não podemos dizer aquilo que
podemos demonstrar como inverídico. Nisso inevitavelmente diferimos
daquelescujodiscursonãoétãorestringido.
Porém,oprincipalperigonãoresidenatentaçãodementir,oque,a nal
de contas, não pode sobreviver facilmente ao escrutínio de outros
historiadores em uma comunidade acadêmica livre, embora a pressão e a
autoridadepolíticasforneçamumasustentaçãoparaainverdade,mesmoem
certos Estados constitucionais. O perigo reside na tentação de isolar a
história de uma parte da humanidade — a do próprio historiador, por
nascimentoouescolha—deseucontextomaisamplo.
Aspressõesinternaseexternasparaassimfazerpodemsergrandes.Nossas
paixões e interesses podem nos compelir nessa direção. Todo judeu, por
exemplo,qualquerque seja suaocupação, instintivamente aceita a forçada
questãocomque,durantemuitos séculosameaçadores,membrosdenossa
comunidade minoritária se defrontaram com todo e qualquer evento no
mundo mais amplo: “Isso é bom para os judeus? Isso é mau para os
judeus?”. Em tempos de discriminação ou perseguição ela fornecia
orientação — embora não necessariamente a melhor — para o
comportamentopúblicoouprivado,umaestratégiaemtodososníveispara
um povo disperso. No entanto, ela não pode e não deve orientar um
historiador judeu, mesmo um historiador que escreva a história de seu
próprio povo. Os historiadores, conquanto microcósmicos, devem se
posicionaremfavordouniversalismo,nãopor delidadeaumidealaoqual
muitos de nós permanecemos vinculados, mas porque essa é a condição
necessária para o entendimento da história da humanidade, inclusive a de
qualquer fração especí ca da humanidade. Pois todas as coletividades
humanassãoeforamnecessariamentepartedeummundomaisamploemais
complexo. Uma história que seja destinada apenas para judeus (ou afro-
americanos,ougregos,oumulheres,ouproletários,ouhomossexuais)não
pode ser boa história, embora possa ser uma história confortadora para
aquelesqueapraticam.
Infelizmente,comodemonstraasituaçãoemáreasenormesdomundono
nal de nosso milênio, a história ruim não é história inofensiva. Ela é
perigosa.Asfrasesdigitadasemtecladosaparentemente inócuospodemser
sentençasdemorte.