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HISTÓRIA DA ARTE PORTUGUESA Apontamentos de: António Guedes E-mail: [email protected] Data: 13-11-2006 Livro: Nota:

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HISTÓRIA DA ARTE PORTUGUESA Apontamentos de: António Guedes E-mail: [email protected] Data: 13-11-2006 Livro: Nota:

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I. SÉCULO XIX

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1. A Arte entre dois Séculos – 1790-1830

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1.1 A ruptura neoclássica na Arquitectura

A viragem da Expressão barroca para a neoclássica tem uma periodização de difícil delimitação. Em geral pode considerar-se que ela se manifesta no último quartel do século XVIII, quando o governo autoritário do Marquês de Pombal conseguira imprimir um sentido de modernidade à economia e à sociedade portuguesas.

Na área cultural e do ponto de vista de uma sociologia da arte, o proto-neoclassocismo adivinha-se nas duas realizações urbanísticas mais significativas do consulado pombalino: a Lisboa pós-terramoto de 1755 e o chamado Porto dos Almadas.

No primeiro caso, há sobretudo que registar a eficácia do estabelecimento do programa. Logo após a catástrofe, o Marquês de Pombal encarregou o velho e prestigiado Manuel da Maia, engenheiro-mor do Reino, de pensar uma solução eficaz de reconstrução que, em tempo recorde, foi elaborada através de uma série de dissertações. De imediato Manuel da Maia encarregou diversas equipas dirigidas por arquitectos militares de ampla experiência, de elaborar planos alternativos de reconstrução qualificada, vido a ser escolhido o de Eugénio dos Santos, que deve ser considerado o genial inventor da “Lisboa moderna”.

O essencial do plano definiu-se na regularização do Rossio e do Terreiro do Paço, praças históricas de prestigiada memória. Alargadas e regularizadas, elas articulavam-se entre si pela malha de uma série de ruas ortogonalmente definidas.

Este plano imperativo entrou imediatamente em início de realização. Foi publicada legislação compulsiva, impedindo qualquer reconstrução fora das normas definidas, e aplicado a todos os produtos entrados na cidade o célebre imposto dos 4%, que financiou grande parte da execução. O próprio autor de desenho urbanístico, projectou também os modelos de prédios a edificar sobre as novas ruas, segundo tipologias obrigatórias, numa espectacular e inédita submissão da arquitectura ao urbanismo.

Se se considerarem as características formais da Baixa pombalina, ou seja, a ortogonalidade das ruas, a normalização das praças, a preocupação com a higiene e a segurança e as exigências da circulação, a desornamentação e austera monotonia da arquitectura, parece que os arquitectos envolvidos (em primeiro lugar Eugénio dos Santos, mas também Carlos Mardel, principal autor dos prédios do Rossio, depois da morte prematura daquele) optaram por uma estética de despojamento e linearidade, afim da teoria neoclássica.

Deste modo, a Lisboa pombalina, sobretudo o Terreiro do Paço, que é a sua realização maior, só empiricamente pode ser considerada proto-neoclássica: o arquitecto Eugénio dos Santos e os seus continuadores inseriram-se sobretudo em tradições formais do urbanismo e da arquitectura maneirista portuguesa, pouco ornamentada e bastante funcional. Mas em termos culturais, pode entender-se que a sua preocupação pela clareza dos volumes e a eficácia das soluções, o seu gosto de perspectivas unificadas e de geometrização do espaço manifestam uma época de mudança, mais austera, pragmática e de uma fria majestade que se opunha ao excesso retórico que fora apanágio da atitude barroca.

Quanto ao Porto dos Almadas, a situação apresenta-se bem diferenciada. A cidade não sofrera o terramoto que vitimara Lisboa e por isso os ousados planos urbanísticos elaborados não tiveram a mesma premência de execução. Sob a direcção da Junta de Obras Públicas, criada pelo Marquês de Pombal e sucessivamente dirigida por João de Almada e Melo e pelo seu filho Francisco de Almada e Mendonça – os dois Almadas-, desejou-se renovar completamente a velha Praça da Ribeira, segundo um plano radiocêntrico.

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No entanto, a colaboração empenhada na modernização do velho burgo da colónia inglesa, representada pelo cônsul britânico, permitiu a edificação de uma série de novos equipamentos de modo que a renovação, feita em Lisboa sobretudo por via da urbanística, revestiu no Porto a preponderância da arquitectura.

Refira-se, em primeiro lugar, o novo edifício da Feitoria Inglesa, projectada pelo próprio cônsul britânico, onde uma austeridade de desenho se afirmava e, logo depois, a contratação do arquitecto John Carr como autor do Hospital de Santo António, a peça maior deste ciclo arquitectónico.

Nestas obras, bem como na anterior Cadeia e Tribunal da Relação do Porto, manifesta-se uma estética desornamentada e geometrizante, estranha à obra barroca que, ainda nos mesmos anos, Nicolau Nasoni e os seus discípulos praticavam no Porto e em todo o Norte, e que passou à história com a designação de arquitectura “Port Wine”.

Com esta denominação, enuciam-se duas articulações: primeiro, a sua dependência em relação ao “Vinho do Porto” que, desde o início do século, vinha-se tornando o principal motor económico da região; em segundo lugar, a preponderância da Inglaterra, grande comprador daquela produção e interveniente activo na vida da cidade pelo destaque social e cultural dos membros da sua colónia. Ora, a arte inglesa nunca chagara a aderir ao Barroco, e ao longo do século XVIII, iniciara precocemente um processo de regresso ao clássico através, sobretudo, do culto e divulgação da obra de Andrea Palladio, importante arquitecto veneziano de meados do século XVI.

Este surto de neo-palladianismo inglês influenciou a arquitectura portuense, particularmente o já citado Hospital de Santo António que enunciava um erudito domínio dos princípios compositivos da arquitectura clássica, expressa numa estética geométrica de disciplina formal e contenção decorativa.

Assim, enquanto em Lisboa o proto-neoclassicismo se anunciava num notável projecto pragmático e eminentemente nacional que, em pouco anos, reprogramou o centro destruído, no Porto ele manifestou-se através de uma dinâmica influência inglesa, bastante estranha aos ritmos da evolução artística continental.

Mas o neoclassicismo, sendo uma intenção sobretudo erudita, era de Roma renovada que deveria surgir, onde os estudiosos das antiguidades romanas iniciaram a recolha sistemática dos principais monumentos imperiais, impulsionados pelo choque positivo da descoberta dos vestígios arqueológicos de Herculano e Pompeia.

Em Portugal, o eco da nova estética chegará com a actividade de dois importantes arquitectos: José da Costa e Silva (1747-1819) e Francesco Saverio Fabri (1761-1817), o primeiro bolseiro da Corte em Roma e Bolonha, o segundo, também com formação na Academia de Bolonha, chamado pelo culto Bispo do Algarve, D. Francisco Gomes de Avelar, para restaurar as igrejas daquela província, profundamente danificadas pelo terramoto.

Entretanto, a conjuntura nacional alterara-se consideravelmente. A queda do Marquês de Pombal em circunstâncias dramáticas e o início do reinado de D. Maria I permitiram uma maior liberdade de iniciativa económica e social que anunciava um sentido de liberalização. A maçonaria e os ideais que sustentavam a já anunciada Revolução Francesa tornavam-se cada vez mais consistentes e, nesse contexto, a arte neoclássica assume a função metafórica de representar e promover novos valores culturais.

Assume assim sentido exemplar o facto da primeira obra significativa de Costa e Silva, após o seu regresso de Itália, ter sido uma encomenda privada de um grupo de burgueses aristocratizados que decidiram promover a construção do Teatro Nacional de São Carlos.

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Obra erudita, o São Carlos apresenta afinidades com o Scala de Milão, que o seu autor certamente conheceu, adoptando um vocabulário compositivo intencionalmente neoclássico. O edifício surge com uma implantação discreta e horizontal no pequeno largo e estende-se nas fachadas laterais com uma pobreza funcional que o faz confundir-se com as construções urbanas adjacentes. E, no entanto, estão presentes os elementos característicos de uma gramática clássica.

Em 1802 Costa e Silva e Fabri projectaram a peça mais significativa da arquitectura neoclássica portuguesa: o Palácio da Ajuda, quase cinquenta anos após o terremoto, visava finalmente edificar residência condigna à família real.

A sua filiação neoclássica é evidente na secura fria do mesmo módulo ao longo de toda a fachada, organizada em três andares, e na sobreposição retórica da expressão arquitectónica aos elementos decorativos.

Após o afastamento de Costa e Silva que acompanhou a Corte, quando esta se estabeleceu no Brasil na sequência das Invasões Francesas, e da morte de Fabri em 1817, a direcção do estaleiro foi assumida pela figura obscura de Francisco Rosa que se apropriou da responsabilidade do projecto e dirigiu o segundo período construtivo já depois da implantação do constitucionalismo monárquico em 1820.

Além destas peças maiores, consubstanciando com rigor erudito a estética neoclássica, há que referir a edificação de numerosos palácios onde o mesmo gosto empricamente se manifesta. O mais qualificado foi o Palácio Castelo Melhor, na Praça dos Restauradores, inicialmente desenhado por Francesco Fabri em 1777 e que permite aperceber o módulo inicial de rigorosa volumetria onde as molduragens dos vãos obedeciam à secura estilística e ao primado da arquitectura sobre a decoração.

1.2 O pré-romantismo na Pintura

Na passagem do século XVIII para o XIX, dois grandes pintores enunciaram em Portugal as profundas mutações culturais que definem a emergência de uma consciência contemporânea.

Em primeiro lugar Francisco Vieira, dito Vieira Portuense (1765-1805). O gosto da viagem que a sua vida manifesta indicia desde logo uma postura muito romântica: em primeiro lugar, o desejo aventuroso de conhecer e multiplicar experiências como condição de aperfeiçoamento.

No entanto, a matriz de aprendizagem do Portuense foi essencialmente académica, realizada sob a orientação do romano Domenico Corvi.

Em Londres, trabalhou sob o influxo de outra estrangeirada, a suíça Angelica Kauffman, como ele empenhada em adequar a herança clássica aos sentimentos contemporâneos.

Das obras realizadas neste período, destaquem-se Leonor e Eduardo I de Inglaterra na Palestina. A Fuga de Margarida de Anjou e Leda Surpreendida por Júpiter, todas datadas de 1798.

Nas duas primeiras, o mais significativo é a inovação temática, substituindo os tradicionais temas da história clássica por um gosto e valorização da Idade Média, na esteira do que, na literatura, fariam Alexandre Herculano e Almeida Garrett, promovendo o conhecimento das

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mitografias nacionais. Refira-se depois o gosto da representação de situações dramáticas, a morte ou a fuga.

Em Leda e o Cisne o pintor regressa a uma iconografia clássica de grande divulgação, mas a beleza luminosa das cores, o primado da paisagem sobre a narrativa, a emergência de uma luz que procura naturalizar-se representam o mesmo desejo de fuga à norma académica.

Finalmente refira-se a obra-prima do portuense, D. Filipa de Vilhena armando seus Filhos Cavaleiros, 1801, recriando, romanticamente, um tema heróico da história seiscentista portuguesa que enuncia a vontade de libertação do domínio político espanhol. As figuras dispõem-se cenograficamente como se de uma dramatização se tratasse. Peça maior da pintura histórica portuguesa, esta obra possuí inegável qualidade internacional que nenhum discípulo estava em condições de herdar. O Portuense regressara ao País, assumindo primeiro a direcção da Academia do Porto, e, logo depois, conjuntamente com Sequeira, a responsabilidade artística da pintura do Palácio da Ajuda.

Domingos António Sequeira (1768-1837) representa o outro volante da modernização pictórica portuguesa por volta de 1800. Estudou em Roma, tendo sido discípulo de Cavalucci e Corvi. Ao contrário do Portuense, nunca sentiu a sua apetência pela viagem formativa e pela experimentação estética moderna, considerando que tudo o que tinha a aprender estava contido nos grandes mestres do passado. No entanto, era um artista inquieto.

Tendo regressado a Lisboa em 1795, atravessou um período de crise religiosa que o fez ingressar como noviço, durante um ano, no Convento de Laveiras. Os quadros de temática religiosa que aí realizou denotam a sua admiração por Caravaggio e o seu dramático claro-escuro. Foi depois, com Vieira Portuense, nomeado pintor da Câmara e da Corte em 1802, iniciando o estudo de grandes composições alegóricas para o Palácio da Ajuda, mas a alteração traumática da vida política portuguesa, motivada pelas Invasões Francesas e a fuga da família real para o Brasil, interromperam, logo em 1807, este ciclo da sua actividade.

Aderiu então ao “partido dos franceses”, pondo o seu génio ao serviço da revolução liberal, primeiro celebrando Junot protegendo a Cidade de Lisboa, depois em obras como Alegoria à Virtude do Príncipe Regente D. João ou Apoteose de Wellington.

Mais importantes são os retratos que entretanto realiza. Destaque-se em primeiro lugar o do Conde de Farrobo (1813), num registo de elegância francesa. Outros retratos, como o da Família do Primeiro Visconde de Santarém, de complexa iconografia, aprofundam um percurso de progressiva individualização, entre o culto da alegoria e a descoberta de uma pura pintura.

O mais belo lápis de tantos que então realizou é o seu Auto-Retrato (1820), em que se encena de perfil como voluntarioso herói napoleónico, simultaneamente duro e frágil, belo e jovem.

Forçado à emigração no início da Guerra Civil, Sequeira tentou então uma carreira parisiense. Pouco depois desistirá cansado e desiludido dos reptos excessivos do presente. Em 1826 regressará à sua amada Roma, cumprindo prestigiada carreira como decano e conselheiro da Academia de S. Lucas onde obtivera a sua formação inicial.

Realizou então as suas obras-primas absolutas. Descimento da Cruz e A Adoração dos Magos, manifestam o regresso à temática religiosa mas são, simultaneamente, pinturas de notável modernidade pelo modo como a luz é assumida como razão de ser essencial e autónoma de plasticidade, comendo as formas e os volumes que se tornam dramáticas pontuações de sentido. Esteticamente, estas obras tanto remetem ao passado, nomeadamente à pintura esvaída de Rembrandt, como podem ser aproximadas das preocupações de William Turner,

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que, nesses anos, estudava em Itália. Em relação à arte portuguesa são peças únicas, pela qualidade, emoção e repto que constituem.

Facto mais importante a considerar é a presença e actividade de numerosos pintores estrangeiros em Portugal. Não tanto as dos nomes conceituados com inegável mestria académica, como Popeo Batoni, responsável por sete das oito telas da Basílica da Estrela, ou Domenico Pellegrini, retratando a aristocracia nacional com os requintes da sua formação veneziana, mas sobretudo os chamados pequenos-mestres que circulavam pelas cortes europeias, adequando a pintura a novos consumos burgueses.

O primeiro a destacar é Jean Pillement (1728-1808), que esteve por dois períodos em Portugal, primeiro entre 1750 e 1754 e depois a partir de 1780, altura em que abre a célebre escola “às portas do Olival”, que Vieira Portuense chegou a frequentar.

Muito popular e com imenso sucesso de encomendas, Pillement significava um gosto francês internacionalizado, segundo a estética rococó que anuncia o romantismo pelo seu gosto do paisagismo e das chinoiseries, trabalhadas em óleo, pastel e fresco, de grande impacte cenográfico e decorativo. Em Portugal, era disputado pela aristocracia, que lhe entregava a decoração das suas casas, particularmente das novas quintas de Sintra, onde as suas pinturas, deliciosamente requintadas e sentimentais, introduziam a sugestão esperada de exotismo e riqueza, de algum modo actualizando a memória dos murais das vilas romanas.

Outros pintores, como Nicolas Delerive (1755-1818), J. Noel e sobretudo Auguste Roquemont (1764-1852), celebrizaram-se por uma pintura de pequeno e médio formato, devoradora da tradição narrativa flamenga, que escolheu como temas predominantes as paisagens concretas do país, os hábitos e costumes populares, os acontecimentos precisos da história breve. Por isso, as suas obras possuem grande interesse documental como visualização de situações precisas cuja meticulosidade de registo em breve começará a sofrer a concorrência das nascentes técnicas fotográficas.

Particular importância tem a obra de Roquemont, elogiada por Garrett pela sua atenção às especificidades castiças da sociedade portuguesa, nomeadamente à permanência de valores antropológicos camponeses. O empenho que dedicou a esse tipo de iconografias rurais, em situação de festa, práticas religiosas ou trabalho, foi, na segunda metade do século, retomada pelos pintores românticos e naturalistas numa longa conjuntura cultural, de Tomás de Anunciação a José Malhoa.

1.3 A permanência dos valores académicos na Escultura

A prática escultórica constitui a componente mais frágil da arte portuguesa na transição entre os séculos XVIII e XIX. De facto, nesta área mal se vislumbram os dinamismos inovadores verificados na arquitectura e na pintura, permanecendo a maioria dos escultores meros e medíocres gestores da herança tardo-barroca e academizante do grande estaleiro de Mafra.

Neste contexto, deve falar-se sobretudo de continuidades e progressivo empobrecimento, através da permanência em actividade de Machado de Castro, o autor qualificado da estátua equestre de D. José. Este velho mestre já nessa obra enunciava a conversão de uma estética barroca a uma plasticidade mais controlada e fria que retoma os princípios teoricamente consagrados do academismo francês seiscentista. Por isso, quando surgiu o novo estaleiro do Palácio da Ajuda, Machado de Castro, a quem foi entregue a direcção dos trabalhos na área da

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escultura, para aí transportou o seu labor já envelhecido, eruditamente preocupado com a tradução metafórica das iconografias celebradas pelo academismo.

Assim, ele e os seus discípulos – Faustino José Rodrigues, João José de Barros Laborão, João Joaquim de Sousa Alão – corporizarão em modelos idealizados de jovens homens ou mulheres as figuras do Amor da Pátria, do Conselho, da Honestidade ou da Inocência que decoram o átrio principal do Palácio. Em todas elas verifica-se a permanência sem fulgor do Cânone idealizado da beleza grega, a presença esforçada e escolar dos signos identificadores de cada iconografia, numa aplicação sem rasgo das normas secularmente registadas pelos compêndios franceses e italianos de ensino académico.

Outra importância tem a escassa obra de João José de Aguiar (1769-1841), sobretudo na fase inicial da sua carreira. Tendo sido o único escultor da sua geração que pôde estudar em Itália aí terá compreendido a novidade da nova estética empenhada em simplificar o sentido decorativo da prática barroca, substituindo-o por um aturado e despojado trabalho sobre os volumes.

Já em Portugal, João José de Aguiar realizaria a sua obra-prima em 1823, a Estátua de D. João VI do Hospital da Marinha em Lisboa onde o modesto monarca português aparece enobrecido pela austeridade do traje militar e o frio desenrolar de majestoso manto. A solenidade da pose, a disciplina dos elementos decorativos, submetendo-se à exigência do impacte das massas, reforçam a intenção do escultor que, mais do que emocionar o espectador, pretende esmagá-lo pela metaforização de um conceito de poder. Que este rei assim inventado, numa segurança e firmeza que nunca teve, fosse na realidade uma hesitante personalidade, gerindo com dificuldade as fatais mudanças que então ocorriam em Portugal, traduz bem quanto a estética neoclássica era desadequada à figuração de uma situação cultural já romântica. Explicará também o apagamento seguinte do artista, enredado como todos os outros, nos trabalhos para a Ajuda, submetido também aos valores ultrapassados da forte personalidade de Machado de Castro.

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2. A Afirmação da Consciência Romântica

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2.1 O Urbanismo e a Arquitectura

Após a vitória liberal de 1834, o novo estado viu-se perante imensas dificuldades não só para pagar as dívidas acumuladas durante a guerra como para instalar as inúmeras funções governativas que no Antigo Regime se encontravam divididas entre os grupos senhoriais dominantes. A extinção dos conventos foi então um instrumento privilegiado para a resolução destes problemas: havendo no País centenas de casas monásticas, a sua venda ou apropriação pública contribuiu tanto para reforçar a Fazenda Pública como para instalar quartéis, escolas, tribunais, hospícios, hospitais, prisões ou sedes de secretaria de uma nascente e tentacular burocracia estatal.

Quase subitamente, a cidade mudava de modo radical, acentuando os seus circuitos e ritmos urbanos. E embora os meios fossem escassos, a demografia continuasse detida e a industrialização adiada, o Governo e a Câmara Municipal manifestavam uma preocupação crescente com a higiene, segundo os conceitos modernos que se afirmavam já noutras capitais europeias. Nesta área, a primeira realização de vulto foi a instalação dos cemitérios públicos, nos Prazeres e no Alto de São João, grandes quintas da periferia, mas também um conjunto autoritário de iniciativas visando a remoção definitiva das ruínas que ainda restavam do Terramoto de 1755, o calcetamento de ruas e passeios, a obrigatoriedade de construção de canalizações nas novas edificações, a concentração dos mercados e a proibição de venda e matança de animais em plena cidade, bem como o hábito enraizado de lançar os dejectos domésticos pelas janelas sobre as ruas. Estas medidas não impediram os terríveis surtos epidémicos dos anos de 1830 e depois de 1850, tanto mais que os problemas básicos de escassez de água e de inexistência de canalizações gerais se mantiveram sem resolução.

Apesar destes constrangimentos do processo de civilidade, havia o desejo de apropriar simbolicamente a cidade. A dinamização e modernização do Passeio Público de fundação pombalina foi o expediente mais significativo dessa intencionalidade.

Havendo falta de meios financeiros para a realização das obras, a Câmara implementou uma “subscrição pública patriótica”, que permitiu a substituição dos velhos muros monacais por novos gradeamentos abertos, a renovação das manchas vegetais, segundo esquemas rígidos do jardim à francesa, o desenho de lagos e áreas convidativas, a instalação de peças escultóricas.

Reinaugurado em 1836, no dia do aniversário da Rainha, este curto Passeio iniciava uma vida simbólica, espécie de palco dos rituais da vida burguesa onde os grupos sociais se misturavam e o próprio rei D. Fernando passeava rodeado de uma corte feminina, crescentemente convertida aos modelos da moda e da convivência parisiense. De algum modo ele substituía, ou pelo menos completava, os lugares de convívio que as igrejas antes constituíam.

Cite-se outra inovação significativa da cidade nos primeiros anos do liberalismo: a fundação do Teatro Nacional que se propunha, segundo o programa fundador elaborado por Almeida Garrett, desempenhar uma função eminentemente cívica, na esteira de uma memória grega, contribuindo para formar cidadãos conscientes da sua História e da necessidade da intervenção política e cultural.

Implantado no topo norte da Praça do Rossio, o Teatro Nacional D. Maria II teve projecto qualificado do italiano Fortunato Lodi que o concebeu dentro de um gosto académico.

Inaugurado em 1846, o novo Teatro representava também uma apropriação burguesa da prestigiada praça redesenhada na época pombalina. Outra marca especificamente epocal foi então nele introduzida com o calcetamento em motivos ondeados de calcário preto e branco,

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expediente de grande beleza e impacte visual que se generalizou nos passeios e outras praças da cidade.

A partir da década de 1840, e com maior continuidade nos anos do meio do século, finalmente estabilizados pela alternância política trazida pela Regeneração, Lisboa intensificou os ritmos da sua modernização. Citem-se apenas alguns exemplos: a iluminação a gás (1848), a criação dos serviços de incêndio (1853), a inauguração do caminho de ferro Lisboa-Carregado (1858), a fundação da Companhia das Águas de Lisboa (1867), a diversificação e acréscimo dos transportes públicos, traquitanas, caleches, tipóias.

Saliente-se também o gosto de ajardinar a cidade com a implantação do Jardim do Príncipe Real, belíssimo espaço central, modulando a luminosidade de um dos bairros aristocráticos mais prestigiados de então, e, sobretudo com o desenho do vasto Jardim da Estrela, à ilharga do também bairro aristocrático da Lapa, o primeiro jardim romântico da cidade, utilizando a estética ondulada do “jardim à inglesa”, de áreas múltiplas, pontes rústicas e o grande lago descentrado.

O sentido romântico que estas iniciativas representam é ainda mais evidente nalgumas marcas de arquitectura. O exemplo maior, de inegável qualidade internacional, é o Palácio da Pena em Sintra.

Nos anos seguintes, o portentoso modelo da Pena viu-se acompanhado de outras casas de excepção – o Palácio de Monserrate, projectado pelo inglês James Knowles, de gosto assumidamente orientalizante; a Quinta do Relógio, muito mais modesta, recriando os pavilhões palacianos da corte granadina – contribuindo para aprofundar o sentido mágico, de fuga e aparente recusa do presente que caracterizam a atitude romântica.

Na arquitectura urbana, todavia, não era ainda o tempo da assimilação e divulgação da arquitectura ecléctica e revivalista que só ocorreria nos anos do final do século. Com duas curiosas excepções: o arranjo do parque de Évora, da responsabilidade de Giuseppe Cinatti (1865); o excepcional Salão Árabe do Palácio da Bolsa do Porto, com início de edificação em 1862, que se prolongaria até 1880.

Na Lisboa regeneradora, iluminada a gás e com o Passeio Público pela segunda vez ampliado, permanecia no entanto um gosto palaciano em que os valores compositivos classicizantes continuavam a dominar. Refiram-se como exemplos mais qualificados o Palacete Nunes Correia sobre o Passeio Público ou os belos prédios da Rua de Vítor Cordon ou do Largo da Biblioteca Pública. Os autores destas obras do meio do século eram a famosa dupla G. Cinatti e Achiles Rambois, prestigiados cenógrafos do Teatro de S. Carlos, pondo a elegância fina e nervosa do seu desenho ao serviço de uma burguesia aristocratizada que finalmente se convertia aos requintes da civilização.

Quanto a construções públicas, registem-se duas importantes edificações: ainda na década de 1840, a Escola Politécnica, a primeira universidade de engenheiros do País, da autoria de P. J. Monteiro e P. J. Pézerat que reconstruíram o velho Colégio dos Nobres; a nova Câmara Municipal de Lisboa.

Mas a marca mais inovadora e original da arquitectura urbana de então encontra-se na moda de cobrir as fachadas sobre a rua de modestos prédios de edificação corrente com padrões azulejares já de fabrico industrial que, pela sua riqueza cromática e múltiplos entrosamentos dos motivos geométricos, encheram a cidade de uma artificiosa e tépida luz, espelhando e ampliando a sua belíssima luz natural. Em casos raros, os azulejos apresentam-se historiados e narrativos, propondo-se como espécie de livros ilustrados abertos à decifração. Um dos casos mais eloquentes desta específica estética é o prédio do Largo de Rafael Bordalo Pinheiro, erguido no lugar da frontaria demolida do convento da Trindade.

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2.2 A Pintura entre o culto da natureza e o gosto do retrato

A fundação da Academia Nacional de Belas-Artes, iniciativa setembrista de 1836, não significou de imediato a modernização do ensino artístico. De facto, a maioria dos seus professores havia sido recrutada nas anteriores instituições, veiculadas a um estilo académico que continuava a pautar-se pelos manuais do classicismo. Assim acontecia na área da pintura, dirigida pelo mestre António Manuel da Fonseca (1796-1890) que estudara em Roma e defendia o primado da Pintura de História, como género mais nobre, celebrando as memórias mitificadas da cultura Antigo Regime. A sua obra mas famosa, Eneias Salvando Seu Pai Anquises do Incêndio de Tróia, obsessivamente retomada entre 1843 e 1871, é uma marcação única em Portugal do gosto neoclássico de referência davidiana, de rigorosa execução técnica, mas na verdade distante dos interesses e dos reptos da cultura moderna.

Por isso, os seus jovens discípulos se rebelavam contra as normas estioladas da sua estética, preferindo-lhe os pequenos-mestres franceses, sobretudo August Roquemont, menos eruditos mas empenhados em aproximar a pintura das memórias e ritmos de uma cultura concreta. Essa espécie de discreta rebelião foi assumida por Tomás da Anunciação (1818-1879), históricamente considerado o fundador da escola romântica.

O que apaixonava este pintor, bem como os seus colegas e discípulos, concretizava-se na fuga à cópia obrigatória das estampas clássicas dos grandes mestres como critério essencial de aprendizagem, bem como as suas temáticas repetidas glosando a história religiosa, os eventos e os mitos da cultura grega ou romana. Contra estas referências estéticas e culturais, Anunciação proclamava a superioridade do ofício em plena natureza, registando motivos quotidianos da paisagem de um país concreto. Por isso, foi o primeiro a trocar as salas soturnas da Academia pela tomada de esboços e apontamentos ao ar livre, num confronto entusiasmado com a variabilidade do real.

No último período da sua actividade, Anunciação teve finalmente possibilidades de ir a Paris, onde admirou obras recentes da Escola de Barbizon, particularmente Troyon e Rose Bonheur, os grandes animalistas da época. O Vitelo (1873), talvez a sua obra-prima, manifesta esse influxo positivo, pela atenção a uma luz natural, velada e subtilíssima que concretizava a paisagem sem falsos recursos de receitas de atelier. Peça de charneira, os seus novos valores pictóricos seriam retomados, com outra consistência, pela geração seguinte dos pintores naturalistas.

Colega de Anunciação, João Cristino da Silva (1829-1877) foi uma personalidade artística mais interessante e arrebatada. Da sua escassa produção, deve destacar-se em primeiro lugar Cinco Artístas em Sintra (1855), espécie de pintura manifesto da nova escola.

Reunidos em volta de Anunciação, o pintor retractou-se a si mesmo e ainda Francisco Metrass, José Rodrigues e o escultor Vitor Bastos, os principais artistas então em actividade, comungando idênticas intencionalidades programáticas: pintar ao ar livre, procurando representar a beleza intacta da natureza, num país concreto que na paisagem é a romântica Sintra, imediatamente identificada pelo brumoso Palácio da Pena então em construção, e, nas gentes, os ingénuos saloios endomingados que rodeiam o mestre Anunciação, admirando os avatares misteriosos da arte.

Se esta pintura tem grande importância sociológica, é no entanto A Passagem do Gado (1867), a obra-prima de Cristino da Silva. O tema menoriza-se em relação ao impacte da

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pintura, onde a luz crua ilumina a terra seca e avermelhada. A amplidão da cena tem uma inegável plasticidade romântica, sugerindo a pequenez do homem e das suas actividades perante o esplendor silencioso e antiquíssimo da natureza.

Alfredo de Andrade (1839-1915), com longa e bem sucedida carreira em Itália, onde se fixou desde a juventude, foi o único pintor do período a desenvolver, com sensibilidade moderna, o sentido romântico da obra de Cristino da Silva e a atenção à variabilidade da luz, compreendida por Anunciação no último período da sua carreira. Da sua escassa obra, destaque-se Uma Manhã em Creys (1861).

Outra importante figura, representada com adequado traje romântico em Cinco Artistas em Sintra, é Francisco Metrass (1825-1861), que, depois da frequência da Academia de Belas-Artes, estudou em Roma, tendo viajado pelas principais cidades italianas e finalmente Paris, onde pôde apreciar a pintura romântica, sobretudo de Delacroix. Da sua obra muito desigual, destaque-se Camões na Gruta de Macau (1853), retomando um simbólico tema abordado primeiro por Sequeira. Esta soturna pintura representa assim a concepção de história dos românticos, em termos de identificação com momentos cruciais do passado que metaforizam a situação presente.

Interesse idêntico merece Só Deus! (1856), em que Metrass aborda uma espécie de evento do quotidiano, talvez uma notícia de jornal, ampliada em simbólica reflexão romântica: uma mulher é arrastada pela corrente e, misticamente, reza para se salvar a si a à criança que ergue acima das águas esverdinhadas e dos ameaçadores penhascos do leito do rio.

A última personalidade marcante deste ciclo pictórico foi Luís de Menezes, mais conhecido pelo seu título nobiliárquico de Visconde de Menezes (1817-1878). Tendo aprofundado a sua formação em Roma, frequentando os mesmos ateliers que Metrass, de quem pintou um retracto, ele viria a afastar-se dos empenhos dos artistas seus contemporâneos, escolhendo a arte inglesa, particularmente a retratística, como modelo da sua própria produção. Esta opção, bastante aristocrática, é evidente na sua mais célebre obra, o Retrato da Viscondessa de Meneses (1862), representando a sua mulher de origem inglesa.

Sem a mesma qualidade plástica, também o quadro de Leonel Marques Pereira (1828-1892) O rei D. Fernando no Passeio Público (1856), procura captar a vida elegante da corte romântica, aqui sugerida pelos corpos de crinoline das senhoras traçando, à volta do rei, uma espécie de círculo aberto de requinte e macieza social.

A realidade do país real era no entanto muito diversa e outros pintores a abordaram com um sentimentalismo de considerável sucesso público. Cite-se, por exemplo, O Cego Rabequista ou a Camponesa de Ílhavo de António José Rodrigues (1828-1887) ou A Despedida de António José Patrício (1827-1858), modestos pintores que nunca puderam estudar fora do País, acusando um estilo esforçado e uma execução muito ingenuísta.

2.3 A Escultura monumental: os programas de comemoração nacionalista

A sociedade romântica que conduziu o País à paz teve um culto intenso pela História, disciplina que então se autonomizava como importante ciência humana, sobretudo através da obra fundadora de Alexandre Herculano.

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Do passado, seleccionavam-se heróis que pudessem representar os ideais recentes da coragem política e do génio pessoal e o mais amado de todos foi Luís de Camões. Os românticos viam nele uma espécie de herói que inventou, num poema épico, a história de Portugal.

Compreende-se por isso que, quando a Câmara Municipal de Lisboa conseguiu finalmente libertar o espaço fronteiro ao Chiado das ruínas pós-terramoto do Palácio Marialva, e se decidiu engrandecê-lo monumentalmente, a homenagem a Camões tenha sido unanimemente sido aprovada por todos.

O autor do monumento, feito por subscrição pública, foi Vítor Bastos, o único escultor que aparece retractado em Cinco artistas em Sintra, de Cristino da Silva.

Obra de erudita composição académica, inventando trajes e posturas do Renascimento com acento histórico aceitável, moldando corpos e expressões com idealizado requinte naturalista, estruturando correctamente proporções e escalas, cultivando a diversidade mas submetendo-a a uma forte mensagem global, este monumento de Vítor Bastos é a obra-prima da escultura romântica nacional. Não só pela sua qualidade plástica mas, como já se sugeriu, pela emocionada carga simbólica que representa.

A partir de então esse lugar, quase sagrado para os homens que o inventaram, viu a sua representatividade sempre acrescida: em plena crise política de 1891, provocada pelas reacções ao Ultimatum inglês, a Praça de Luís de Camões encheu-se de povo, intelectuais e políticos empenhados em fazer renascer a Pátria moribunda que o poeta inventara e vira.

Entretanto, os românticos desejavam ardentemente celebrar um herói contemporâneo, a figura complexa do Duque de Bragança, primeiro Imperador do Brasil, libertador da Pátria do jugo miguelista e efémero D. Pedro IV durante o ano de 1834. Em Lisboa, o monumento em honra do doador da Carta Constitucional foi pensado para o Rossio logo pelos Constituintes de 1820, que dele encarregaram Sequeira, e cuja primeira pedra chegou a ser colocada para anos depois ser violentamente demolida pelos absolutistas.

Feita a paz, o ajuste com a memória voltou a equacionar-se e acabou por ser no Porto, em 1866, que, à entrada da Praça dos Aliados, foi inaugurado o primeiro monumento a D. Pedro IV. Da autoria do francês Calmels, representa o rei em garbosa pose militar, montado a cavalo.

Em Lisboa, a escolha, objecto de concurso internacional, recaiu também na proposta francesa de Davioud e E. Robert, executada entre 1868 e 1870. Erguido no centro do Rossio, o monumento de 27m de altura, possui uma rara elegância e acerto de escala com a magnífica praça da cidade. Composto de um complexo pedestal, bastante elevado, onde se adossam quatro figuras de iconografia académica, metaforizando, em figuras de mulheres, a Justiça, a Prudência, a Fortaleza e a Moderação – consideradas os atributos da função real -, sobre ele se ergue uma solitária coluna coríntia, no topo da qual pousa o monarca segurando na mão a Carta Constitucional.

Peça de segura qualidade internacional, veiculando as práticas compendiadas da escultura europeia que então se concretizavam, em monumentos idênticos, em todas as principais cidades da Europa e das Américas, ela animou, com impositiva presença arquitectónica e decorativa, um lugar fortíssimo de Lisboa.

O empenho urbanístico de modernizar a cidade permitiu então também a conclusão final do Arco da Rua Augusta, que, sendo um projecto inicial de Eugénio dos Santos, se encontrava, desde o início do século, interrompido ao nível dos pilares. O seu coroamento, pesadamente alegórico, encimado por um grupo escultórico composto pela Glória a coroar o Valor e a

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Nobreza, é da autoria de Calmels, Vitor Bastos e Veríssimo José da Costa e foi inaugurado em 1873.

O último grande monumento deste cíclo artístico foi inaugurado em Lisboa em 1866, num espaço urbano em profunda mutação. Projectado em 1877, da autoria de Tomás da Fonseca, homenageava os Restauradores, numa intencional atitude política de quem, no período final de vigência da monarquia liberal, sentia de novo a Pátria ameaçada. Obra profundamente ecléctica, misturando memórias escultóricas de todo o século, ela representa o desejo de monumentalizar uma zona agora central da cidade.

2.4 Instrumentos de formação e divulgação

O ensino artístico foi modernizado em Portugal por iniciativa setembrista de Passos Manuel, que, em 1836, instituiu as Academias de Belas-Artes em Lisboa e Porto, instaladas em velhos edifícios conventuais. Elas constituíram uma garantia de normalidade e relativa continuidade da formação de gerações sucessivas de artistas que acabavam por influenciar os ciclos possíveis de modernização, sempre orientados por normas estrangeiras, sobretudo francesas.

Na década de 1860, quando os frutos da política regeneradora finalmente se faziam sentir, as academias foram dirigidas pelas personalidades ilustres e unanimemente admiradas do Conde de Samodães, no Porto, e do Marquês de Sousa Holstein, em Lisboa, que, sem sucesso, procuraram reformar os estatutos e ampliar os recursos financeiros. Apesar dos magros resultados obtidos a eles se deve o apoio sistemático aos artistas e a organização das primeiras mostras de arte portuguesa em Paris (1855, 1867) e em Madrid (1871), forçando um reconhecimento público da importância das actividades artísticas que, no final do século, adquirira relevante dinamismo.

Entretanto, fora do espaço circunscrito das escolas, de outro modo se ia fazendo a divulgação cultural das artes. Refira-se, em particular, o tímido aparecimento de uma imprensa especializada: em 1843, publicava-se um ambicioso Jornal de Belas-Artes, dirigido por Almeida Garrett. Em 1857-1858, aparecia outra publicação exactamente com o mesmo título e foi aí que o público teve acesso aos primeiros hors-textes com reproduções, segundo a técnica da água-forte, de obras dos jovens pintores românticos.

Entre 1872 e 1875 publicou-se o mais importante jornal das artes deste período, as Artes e Letras, dirigidas pelo crítico Rangel de Lima. Dando notícias da actividade artística no País, apoiando os novos valores que iam surgindo, esta revista importava também excelentes gravuras de obras internacionais de artistas clássicos (de Rafael a Rubens).

Simultaneamente, ia-se paulatinamente elaborando um embrião de mercado de arte. O seu instrumento fundamental foi a actividade da Sociedade Promotora de Belas-Artes, fundada em 1861 por iniciativa de artistas, críticos, amadores e mecenas que organizavam exposições anuais dos artistas em actividade e leiloavam, entre os sócios, um certo número de obras comprados aos autores em cada certame.

Um mercado burguês ia-se lentamente estruturando e as obras de arte saíam do círculo restritíssimo dos tradicionais compradores para consumos progressivamente alargados.

No entanto, o principal comprador continuava a ser o rei D. Fernando, cuja actividade mecenática foi permanentemente em prol da arte e da cultura. Para lá dele os principais coleccionadores foram o Conde Daupiàs, em Lisboa, e John Allen, no Porto, responsáveis

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pelas maiores colecções de arte de então, onde a arte contemporânea tinha lugar relevante. A colecção do rei D. Fernando haveria de integrar as colecções nacionais dos Museus de Arte Antiga e Arte Contemporânea e a Allen seria adquirida pela Câmara Municipal do Porto, sendo a origem de importante museu municipal, logo em 1852.

Assim, apesar dos pesados condicionalismos financeiros e culturais, a sociedade burguesa, revelava-se capaz de gerir a prática artística que no passado havia sido dominada pela Igreja e pela iniciativa régia. Saída desses lugares restritos, democratizada pela existência de escolas, divulgada pela imprensa e valorizada por grupos sociais mais amplos, ela participava na elaboração do tempo presente.

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3. Da Estética Naturalista à Crise do Fim do Século, 1870-1910

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3.1 Crescimento urbano e arquitectura eclética

O lentíssimo desenvolvimento urbano, característico da primeira metade do século, vai acentuar-se consideravelmente a partir da Regeneração, movimento político que, implementando a alternância governativa dos dois principais partidos, possibilitou o arranque de uma dinâmica desenvolvimentista, representada pelas obras públicas – estradas, caminhos de ferro, pontes – de Fontes Pereira de Melo, coincidente também com o maior incremento industrial, uma acentuada euforia comercial e financeira e a explosão demográfica subjacente a todo o ciclo da contemporaneidade europeia.

É neste contexto estimulante que Lisboa vai conhecer os ritmos modernos de urbanização. O primeiro acto deste processo é simbolicamente representado pela abertura da Avenida da Liberdade, cujos trabalhos foram inaugurados em 1879.

Pretendia a Câmara Municipal – dirigida pela figura empenhada do seu presidente Rosa Araújo implantar na cidade uma espécie de Bois de Boulogne, símbolo europeu do veraneio citadino, propiciador dos rituais de convívio e representação, simultaneamente civilizado, pelo movimento das carruagens e a elegância aristocrática das novas burguesias dominantes, mas ainda nostalgicamente romântico pela beleza controlada do arvoredo, dos jardins e de todos os equipamentos ligados aos conceitos de lazer.

Em Lisboa, decidiu-se para isso partir do espaço breve e prestigiado do Passeio Público. Inaugurada em 1886, apesar do desamor inicial, os lisboetas depressa se converteram ao luxo breve da Avenida.

E se para Rosa Araújo esta Avenida parecia símbolo bastante da nova cidade, havia quem a considerasse mero ponto de partida de um projecto mais vasto e consequente para a expansão urbana.

Assim acontecia com Frederico Ressano Garcia, jovem engenheiro-chefe da Repartição Técnica da Câmara (desde 1874), que frequentara em Paris a prestigiada École des Ponts et Chaussées, o mais importante estabelecimento europeu do novo ensino da engenharia, contactando, simultaneamente, com o espectacular desenvolvimento da cidade de Paris sob o ímpeto demolidor e construtivo do Barão de Haussmann, o criador da rede múltipla dos boulevards.

Para este engenheiro, pragmático e empreendedor, a Avenida da Liberdade era pois apenas a primeira parte de um ambicioso projecto de expansão. Apoiando-se numa qualificada equipa, dirigida também pelo engenheiro António Maria Avelar e pelo arquitecto José Luís Monteiro, iniciou sistemáticos trabalhos de projecção. No essencial, previa-se o prolongamento para norte da Avenida da Liberdade, o desenho de uma ampla rotunda, depois, em direcção a nordeste, um conjunto complexo de ruas, de uma lado e outro da Avenida Fontes Pereira de Melo, finalmente uma nova rotunda – a futura Praça do Saldanha – a partir da qual se desenrolavam as Avenidas Novas, centralizadas pelo corpo amplo da Avenida Ressano Garcia, depois de 1910 designada por Avenida da República.

Do ponto de vista formal, as Avenidas Novas de Lisboa herdavam algumas das intencionalidades do Paris de Haussmann. Refira-se a ortogonalidade dos principais eixos, desenvolvendo-se como imensas linhas rectas, pragmaticamente adequadas a suportarem as infra-estruturas modernas das canalizações de água, gás e esgotos e, à superfície, os futuros cabos da electricidade e do telefone. Os amplos passeios e as faixas centrais, uns e outros generosamente arborizados, participavam na mesma intenção moderna de operacionalizar a cidade sem com isso a empobrecer.

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No entanto, apesar da visível e assumida marca internacional d todo o projecto, ele continha também uma fluência especificamente lisboeta. Em primeiro lugar, porque herdava uma linha direccional que havia sido enunciada um século antes pela Baixa pombalina: deste ponto de vista, as Praças da Rotunda, do Saldanha e de Entrecampos constituíam uma continuidade em relação ao poderoso eixo que articulava o Terreiro do Paço com o Rossio, reactualizando a opção de expansão para norte da cidade, em detrimento da antiga preponderância ao longo do Tejo.

O pragmatismo das Avenidas Novas, adaptando-se com eficácia aos estritos meios financeiros do Município, manifesta-se também no modo como nesse projecto de ruptura moderna se integraram percursos tradicionais de saída da cidade. Deste ponto de vista, a questão mais interessante diz respeito a não se ter adoptado o prolongamento da Avenida da Liberdade, num eixo recto através dos terrenos do futuro Parque da Liberdade (depois Eduardo VII). Contra esta solução imediatamente grandiosa, Ressano Garcia preferiu traçar a Fontes Pereira de Melo que reactualizava a velha Estrada das Picoas, que conduzia gentes, víveres e animais em direcção ao Campo Grande, Alvalade e ao rico subúrbio do Lumiar.

Um dos pontos altos de todo o projecto deveria ter sido a realização do Parque da Liberdade, enquadrando, do topo da Rotunda do Marquês de Pombal, a Avenida da Liberdade. O seu projecto foi objecto, em 1889, de concurso internacional. Mas a falta de meios da Câmara foi diferindo o início dos trabalhos, de modo que ele viria a ter tardia resolução, em pleno Estado Novo, noutro contexto político e urbanístico, assumido pelo arquitecto modernista Francisco Keil do Amaral na década de 1930.

Entretanto, a dinâmica equipa de Ressano Garcia debruçava-se sobre outras direcções do desenvolvimento da cidade. Registe-se brevemente a realização de uma série de bairros periféricos destinados à pequena e média burguesia, desenhados segundo critérios de ortogonalidade, no Calvário, em Campo de Ourique e na Estefânia; a abertura da Avenida das Cortes (depois D. Carlos I) e da D. Amélia (depois Almirante Reis), eixos fundamentais de articulação da Baixa com o interior; o prolongamento da Avenida 24 de Julho até Alcântara, que obrigou à canalização definitiva da ribeira de Alcântara.

Nascia assim a cidade novecentista, simultaneamente nova e plena de vestígios mais ou menos integrados do passado. As profundas mutações então ocorridas no sector dos transportes com a implantação dos castiços elevadores – da Bica, do Carmo, da Glória, do Lavra – e o início de funcionamento dos carros eléctricos, que, em 1906, inauguravam a linha do Rossio ao Campo Pequeno, fornecem uma imagem paradigmática dessa capacidade de renovação, elegendo a linha recta como expediente operativo e estético, mas adaptando-a ao tecido acidentado da velha cidade.

O intenso desenvolvimento urbano que se acabou de evocar manifesta-se também na prática arquitectónica. Dando continuidade aos sentidos estéticos do meio do século, ela caracteriza-se, nas décadas de transição entre oitocentos e novecentos, pelo gosto ecléctico, referenciado pela permanência de valores académicos, mais ou menos penetrados por marcações revivalistas.

Cite-se, em primeiro lugar, a figura axial de José Luís Monteiro (1848-1942), que, depois de ter sido o primeiro arquitecto moderno a estudar em Paris, foi arquitecto da Câmara Municipal de Lisboa, integrando a equipa dirigida por Frederico Ressano Garcia, e professor da Escola de Belas-Artes, responsável pela formação de gerações sucessivas de jovens arquitectos.

Da sua obra, destaca-se a Estação do Rossio (1886-1887) e o anexo Avenida Palace (1890). A primeira, por exigência da encomenda, apresenta uma insólita fachada neo-manuelina que

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esteticamente contrasta com o interior da gare, resolvida numa luminosa estrutura de ferro, representando assim as inseguranças do gosto da época. Quanto ao hotel, ele adopta uma solução compositiva académica, próxima de modelos parisienses então internacionalizados.

A experiência do trabalho com o ferro, exercitada na gare do Rossio, foi retomada por Monteiro na magnifica Sala de Portugal (1898) da Sociedade de Geografia.

Na arquitectura doméstica, as peças mais destacadas de José Luís Monteiro manifestam o gosto ecléctico, e ainda romântico, dos encomendadores. Refira-se a Casa Conde de Castro Guimarães (1885), ao Torel, integrando o mais luxuoso conjunto de palacetes então edificados em Lisboa; a Casa Biester (1890), em Sintra, recriando, com sensibilidade, modelos ingleses; a Casa Faial (1896), em Cascais.

Como arquitecto da Câmara Municipal, Monteiro foi ainda autor da nova Igreja dos Anjos (1897-1910), da Escola Frobel, instalada no Jardim da Estrela, e de diverso equipamento urbano, como as grades de ferro das fontes do Rossio ou os candelabros do mesmo material que ladeiam o monumento aos Restauradores, sinais representativos das novas preocupações de modernizar e cosmopolizar a cidade.

Miguel Ventura Terra (1866-1916), outra figura fundamental da arquitectura fim de século, teve formação idêntica à de José Luís Monteiro, estudando em Paris antes de regressar a Lisboa em 1896.

Da sua densa produção, destaca-se, a projecção de importantes equipamentos urbanos: o início da renovação, interior e exterior, do Palácio das Cortes, em S. Bento, segundo uma linguagem ostensivamente académica, que magnificava a estética maneirista do velho convento; a Igreja de Santa Luzia em Viana do Castelo; o Banco Totta e Açores (1906), na Rua do Ouro; os liceus Camões, Pedro Nunes e Maria Amália, a Maternidade Alfredo da Costa.

Grande destaque merece também a arquitectura doméstica projectada por Ventura Terra, constituindo o conjunto mais qualificado e coerente de todos os que então foram produzidos em Lisboa. O seu gosto, onde o eclectismo se submete sempre a uma estética de rigor racionalizado, manifesta-se com particular qualidade no Palacete Valmor (1906) na Avenida da República.

Bem diversas foram as referências de Raul Lino (1879-1974), outro dos arquitectos marcantes deste período. Ao contrário de Monteiro ou Ventura Terra, formados em Paris, ele estudou primeiro em Inglaterra e depois na Alemanha. Esta específica formação clarificou ao jovem arquitecto a sua sensibilidade anti-progressista.

São por isso raros os projectos urbanos de Raul Lino, que fez uma longa e prestigiada carreira quase só a projectar casas unifamiliares, a maioria das quais fora das cidades.

Se as casas de Ventura Terra eram seguras habitações urbanas, utilizando com eficácia os recursos da época em termos de conforto e representação social, as de Raul Lino manifestam idênticas preocupações mas acrescentam-lhe duas marcas deliberadas: a individualização de cada projecto; a recorrência a uma linguagem específica, antiparisiense e antiacadémica, contrapondo-lhe a recriação de motivos sintácticos e morfológicos da arquitectura tradicional portuguesa, nomeadamente a alentejana, mediterrânica e amouriscada.

Esta opção de Lino foi ao encontro de um movimento cultural, característico de todos os países europeus do tempo, procurando as especificidades das diversas arquitecturas nacionais. Em Portugal, já antropólogos ou arquitectos estavam a procurar inventariar os modos e as formas de uma Casa portuguesa mas seria ao nome de Raul Lino que essa questão ficaria definitivamente ligada.

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Procurando ampliar as soluções desenvolvidas nos seus primeiros projectos, publicará, em 1918, A Nossa Casa, espécie de receituário acessível daquilo que entendia serem as características de uma arquitectura doméstica nacional, valorizando o uso de materiais tradicionais, a pequena dimensão e a presença do jardim, os espaços de transição geradores do controlo da luz, os signos decorativos de tendência miniatural, como os muros caiados ou rotulados em madeira ou ladrilho, os alegretes, os beirais e os alpendres, os azulejos.

Hoje, encerrado há muito o ciclo da arquitectura moderna, e compreendidas as consequências desumanizantes da concetração urbana e da construção colectiva anónima, a obra de Lino pode ser desapaixonadamente apreciada e mesmo a questão da casa portuguesa volta a ser um repto inspirador de novas práticas arquitectónicas cansadas da uniformidade, da repetição e da desvalorização das condições específicas, de clima, solo e História.

Aliás, é injusto considerar-se Lino apenas um projectista de arquitectura unifamiliar. Recorde-se que ele é autor de uma das mais belas lojas lisboetas dos anos 10, a Gardénia (1917), na Rua Garrett, e do mais selecto cinema de então, o Tivoli (1924), na Avenida da Liberdade, assumindo um raro gosto afrancesado.

Muitos outros arquitectos participaram activamente na elaboração de Lisboa 1900. Citem-se apenas algumas obras que se tornaram símbolos de uma época e de uma cultura: o Elevador do Carmo(1902) de Raul Mesnier Ponsard, autor de todos os outros elevadores sob carris da cidade; o Palacete Ribeiro Ferreira (1877), na Praça do Príncipe Real, de arquitecto desconhecido que conjuntamente com a Praça de Touros do Campo Pequeno (1891) do arquitecto J. Dias da Silva, constituem as manifestações mais exuberantes do gosto neo-árabe na capital, introduzindo-lhe deliberadas marcas de exotismo; o Colégio Académico (1904), na Avenida da República, ou a Sociedade Nacional de Belas-Artes (1900) na Avenida Barata Salgueiro, ambos da autoria de Álvaro Machado.

Em termos de espaços públicos, destaque-se a pequena e profunda Tabacaria Mónaco do Rossio (1894), de Rosendo Carvalheira, com azulejos Arte Nova de Rafael Bordalo Pinheiro e a espectacular fachada do Animatógrafo do Rossio (1907).

A intensa produção arquitectónica evocada para Lisboa alargou-se então a todo o País, representando bem o surto desenvolvimentista finalmente em curso.

No Porto, o mais importante arquitecto foi então José Marques de Oliveira (1869-1947), que, como os seus colegas da capital, estudou em Paris no início de 1890. Regressado a Portugal, a sua primeira obra significativa encontra-se na Sociedade Martins Sarmento (1899).

Nos últimos anos do século, Marques de Oliveira começou a elaborar os projectos para a Estação de S. Bento que, na versão final, de 1900, assume o internacionalizado gosto francês de intensa presença urbana.

Do mesmo autor refira-se o Teatro de S. João, 1909, onde manifesta um progressivo afastamento do gosto ecléctico. Esta evolução estilística culminará numa obra tardia, a excepcional Casa de Serralves, 1931, de que Marques de Oliveira não será o único autor inicial mas onde indiscutivelmente longamente trabalhou.

Na ambiência revivalista que globalmente caracteriza a prática arquitectónica entre os dois séculos, particular relevância teve a preocupação com a salvaguarda patrimonial.

O episódio mais significativo sobre esta questão ocorreu nos anos de 1870, quando decorriam os trabalhos de completamento do Mosteiro dos Jerónimos. Depois de projectos e início de trabalhos de vários autores, Cinatti e Rambois desenharam uma ambiciosa torre que deveria engrandecer o corpo central da zona conventual. Em 1878, quando estava quase concluída,

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ruiu aparatosamente, dando origem a acesa polémica sobre os critérios pouco rigorosos que presidiam aos trabalhos.

Neste contexto, o Estado procurou enquadrar com outra pertinência as necessidades urgentes que, por todo o país, se faziam sentir na matéria, confiando à Associação dos Arquitectos a classificação dos monumentos nacionais (1880) e institucionalizando, ao mesmo tempo, uma comissão dos movimentos nacionais que seria reorganizada em 1893.

Assim, não só os Jerónimos haviam de ter projecto final, da autoria de Rosendo Carvalheira, como se iniciou o restauro da Sé de Coimbra, sob orientação de António Augusto Gonçalves, da Sé da Guarda, confiada também a Rosendo Carvalheira, do Castelo de Leiria, apaixonadamente assumido pelo arquitecto Ernesto Korrodi, finalmente da Sé de Lisboa, dirigida por Augusto Fuschini.

Os critérios que orientaram estes trabalhos seguiam de perto a metodologia francesa de Viollet le Duc, segundo a qual o objectivo do restauro não se restringia conservar e repor com segurança as pré-existências, mas completar, mesmo sem base em documentos históricos, o que se desejava que os monumentos tivessem sido. Por isso, estudiosos e arquitectos reinventaram então pretensos estilos manuelinos ou românticos que não passavam de revivalismos.

Este entendimento, hoje completamente ultrapassado, da salvaguarda patrimonial teve como consequência negativa imediata o destruir-se todos os sinais de sucessivos tempos históricos existentes em cada monumento.

Devem, pois, entender-se os restauros de finais do século XIX como documentos de uma época que, procurando resistir às rupturas anunciadas da normalização modernista, olhava para o passado com atávica nostalgia da História: mais do que dos sonhos e vivências dos encomendadores iniciais, os novos Jerónimos, o novo Castelo de Leiria ou a nova Sé de Lisboa representam os desejos românticos dos homens de 1900.

3.2 A Pintura. Da predominância da estética naturalista à emergência do simbolismo e de traços expressionistas

Na história da pintura oitocentista portuguesa, António Silva Porto (1850-1893) e João Marques de Oliveira (185-1927), dois artistas portugueses que primeiro beneficiaram dos novos modelos de pensionato de Estado para aperfeiçoamento de estudos em Paris, institucionalizados na década de 1870, são considerados os fundadores da estética naturalista. Foi de facto a partir do produtivo estágio parisiense daqueles pintores – entre 1873 e 1879 – que os valores da Escola de Barbizon se estruturaram em Portugal como um dos mais longos e significativos ciclos picturais, glosado por gerações seguintes de artistas naturalistas.

Barbizon, pequena aldeia dos arredores de Paris atraíra, desde os anos de 1840, numerosos pintores, fugindo à prática académica do atelier. Novos recursos civilizacionais estiveram na base do novo tipo de artista, mas outros factos, eminentemente culturais, devem ser considerados.

A grande cidade da primeira revolução industrial provocava, por oposição, um novo amor pelo campo e pelos seus valores ancestrais, onde a natureza permanecia intocada pelos ritmos da vida moderna. Havia também um cansaço e distância mental progressivos em relação aos temas da pintura de salão, narrando histórias e lendas de um passado cada vez mais distante e

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em contradição com o gosto de recentes públicos burgueses pouco cultos e amantes, como os pintores, das temáticas próximas dos seus quotidianos e anseios. Refira-se finalmente, o início triunfante da prática da fotografia, arrastando um acréscimo de empenho pelo estudo da luz e das cambiantes cromáticas.

É neste contexto que pode entender-se os valores da Escola de Barbizon: o seu apego pela temática natural, pedaços melancólicos de paisagem, e o registo dos trabalhos campesinos; o interesse crescente pela captação das variantes, mínimas e subtis, das cores e das formas do real, diverso não só segundo o ciclo das estações e dos meses mas também ao longo das horas do dia. Finalmente, compreende-se o esfumar das formas e da sugestão dos volumes, tratados em grandes manchas de cor sem contornos precisos, porque desse modo se respeitava melhor a natureza que não tem linhas, como então se dizia. Este conjunto de valores técnicos, temáticos e artísticos, caracterizando brevemente a Escola de Barbizon, indiciam também um ciclo longo de evolução pictórica.

Quando os jovens Silva Porto e Marques de Oliveira chegaram a Paris já a Escola de Barbizon começava a ser ultrapassada pelo fulgor dos pintores impressionistas que, contra o campo, elegem a temática da vida urbana e, em relação ao trabalho da pintura, privilegia as cores inteiras e claras, aplicadas em pinceladas sobrepostas e não apagadas.

Este fervilhar de permanente inovação, que então, e nas décadas seguintes, caracterizava a vida artística parisiense, constituía um repto excessivo para os provincianos pintores portugueses.

Obrigados a frequentar as academias, onde a pintura de História continuava a dominar, eles haveriam de criar um estilo próprio, bastante ecléctico, que colhia os ensinamentos de Barbizon mas, nas melhores e mais inovadoras obras, abria-se já a sugestões impressionistas. Refira-se também a importância que teve na sua formação o último ano de bolsa, passado em Itália. Aí, sobretudo Silva Porto, fugindo às academias romanas e procurando a tranquilidade antiga de Capri, encontrou-se com uma plena luz, mediterrânica e intensa, muito diversa da tamizada luz parisiense, predominantemente cinzenta, que o ajudou a clarificar e a aclarar a sua paleta, segundo uma estética que avançava em relação à de Barbizon sem no entanto evoluir para a ruptura impressionista.

Deste produtivo período de estudos de Silva Porto provêm algumas das mais belas pinturas naturalistas portuguesas: Pequena Fiandeira Napolitana (1877), tema de género muito habitual na pintura internacional da época; Uma Marinha, Praia de Capri, 1877, manifestando o impacto referido da luz mediterrânica que simplifica as formas sem as fundir na paisagem; Um Campo de Trigo, Seara (Arredores de Paris), 1878), obra síntese de todo o período de formação; Cancela Vermelha, Barbizon (1878).

Regressado a Portugal, Silva Porto fixar-se-ia em Lisboa como pintor de paisagem da Escola de Belas-Artes, substituindo Anunciação, que, simbolicamente, morreu nesse mesmo ano de 1879. Muito elogiado pela crítica, apresentar-se-ia na 12ª Exposição da Sociedade Promotora de Belas-Artes com diversas obras, trazidas de França e Itália, mas sobretudo com um grande quadro, realizado já em Lisboa, Paisagem tirada da Charneca de Belas ao Pôr-do-Sol.

Considerado quadro-manifesto da nova estética naturalista, este óleo valeu a Silva Porto uma invejável fortuna crítica, que fez dele o divino mestre da nova pintura portuguesa, rodeado de discípulos, imortalizado por Columbano Bordalo Pinheiro no retracto O Grupo do Leão (1885), reunindo, numa mesa do café com aquela designação, os principais participantes das exposições de arte moderna, dinamizadoras da vida artística lisboeta na década de 1880.

Na breve carreira que lhe seria dado viver Silva Porto pintaria incansavelmente a paisagem portuguesa.

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A tarefa assumida por Silva Porto em Lisboa – implementar e ampliar a prática naturalista da pintura – foi, no Porto, dirigida pelo seu colega Marques de Oliveira. No entanto, o facto de este se ter especializado em pintura de História – de que o belo quadro Céfalo e Prócris (1879) é notável manifestação – limitou o âmbito do seu ensino e a plena assumção do seu gosto pessoal pelo paisagismo.

Outra obra significativa da produção de Marques de Oliveira é À Espera dos Barcos (1891).

A dinâmica introduzida na pintura portuguesa manifestou-se, nos anos do fim do século, por uma série de percursos bastante qualificados quase todos eles veiculados a estágios de formação em Paris. Assim aconteceu, logo na geração de Silva Porto e Marques de Oliveira, com Artur Loureiro (1853-1932), J. Sousa Pinto (1856-1939), António Ramalho (1858-1916) e João Vaz (1859-1931), praticando o paisagismo tonal de matriz barbizoniana, mais ou menos convertido aos valores lumínicos nacionais, e caracteristicamente envolvido nas narrativas de género, descrevendo as vivências quotidianas do campesinato e das gentes da beira-mar, e a par desta temática preponderante, o retrato burguês celebrador dos rituais de representação social.

As paisagens francesas ou italianas de Loureiro, as celebradas marinhas do Tejo ou Sado de Vaz, as cenas de género de Sousa Pinto, a maioria pintadas em França onde este pintor longamente viveu, o Retrato de Helena Dulac ou a Senhora Vestida de Preto de Ramalho, contam-se entre as obras-primas do naturalismo português.

Neste contexto relativamente expansivo três artistas devem ser destacados por específicas razões. Em primeiro lugar José Malhoa (1855-1929), o mais popular pintor português, discípulo de Silva Porto, que nunca estagiou em Paris e particularmente adaptou o casticismo já anunciado na obra do Mestre ao gosto e às expectativas de públicos burgueses.

Entre as suas obras mais celebradas citem-se Clara (1903), inventando o retrato ficcionado de uma célebre personagem do popular romance As Pupilas do Senhor Reitor; Os Bêbados (1907), adaptando um tema iconográfico de Velasquez à situação minuciosamente realista de uma taberna de aldeia; O Fado (1910), evocando com afectividade a vida fatalista dos bairros populares lisboetas; As Promessas (1933), sugerindo, numa ambiência cenográfica de densos amarelos e vermelhos, os ritos pagãos e antiquíssimos das romarias populares.

Em conjunto, a obra de Malhoa inventaria e celebra as tarefas e as vivências de um campesinato ancestral, nada tocado pelos ritmos da civilidade oitocentista, analfabeto, pobre e resignado, mas feliz por essa tenaz existência repetida. O pintor envolve-os numa atmosfera solar, de pregnante sensualidade, como se a natureza participasse e reflectisse os ritmos das gentes, amparando-lhes as alegrias e os dramas com a intensa luz estremenha.

Muito diversa é a importância de Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929). Membro ilustre do Grupo do Leão, Columbano não comungava no entanto do amor pela natureza e da pintura ar livrista, própria da estética naturalista. Ele foi essencialmente um retratista, perseguindo com uma deliberada atitude pictórica antimoderna as memórias de um passado prestigiado que se referenciavam entre a pintura flamenga, sobretudo Rembrandt, e o tenebrismo espanhol, de Velasquez a Goya.

No entanto, essa postura de desatenção ao tempo estético dos artistas da sua geração, divididos entre a herança de Barbizon e empíricos influxos de um impressionismo inicial, não significava menor qualidade pictórica, antes o contrário: Columbano foi, sem dúvida, o mais qualificado pintor entre os dois séculos, gerindo com perícia uma herança académica, sem se deixar tentar pelo virtuosismo narrativo em que os seus colegas mergulhavam.

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Uma obra de juventude, Concerto de amadores (1882), enuncia todo o programa estético de uma longa carreira. Sentido plástico idêntico tem a pequena Chávena de Chá (1898).

Excepcionalmente claros, e por isso mais imediatamente modernos, são os retratos de D. José Pessanha (1885), e de Maria Cristina Bordalo Pinheiro (1912).

Mas a obra-prima absoluta de Columbano, pelo seu extremo sentido cultural, é o Retrato de Antero de Quental (1889), realizado dosi anos antes do suicídio do poeta. Nesta imagem de angústia e desistência, mais do que o retrato próprio de Antero, Columbano imobiliza o fracasso assumido da Geração de 70 que quisera modernizar um país. É um “Vencido da Vida” que ele representa, pondo a pintura em consonância com os sentimentos de fracasso da intelectualidade portuguesa dos anos do Ultimatum inglês.

Muito diversa foi a breve carreira de Henrique Pousão (1859-1884), bolseiro em Paris e Roma na geração seguinte à de Silva Porto e Marques de Oliveira, cuja morte precoce, aos 25 anos, impediu o pleno desenvolvimento da mais promissora e original poética pictórica do fim de século português.

As suas obras mais significativas foram realizadas em Capri (1882), onde, dois anos antes de ser vencido pela tuberculose, procurara refúgio e condições climáticas mais favoráveis à sua ameaçada vida. Aí, quer a esfusiante série de pequenos formatos, registando recantos arquitecturais da vila, quer as peças mais elaboradas – Casas Brancas de Capri, Vista de Capri, Casa das Persianas Azuis – denotam uma inesperada actualização, e progressiva distanciação, em relação à estética naturalista.

Referenciados os mais importantes pintores do ciclo naturalista e as poéticas de excepção que nas suas margens se desenvolveram, é necessário abordar brevemente a permanência da pintura de história que, nas décadas do final do século, continuava academicamente a ser considerada o mais nobre dos géneros pictóricos.

Nesta área, deve destacar-se a produção de José Veloso Salgado (1864-1945), Ernesto Condeixa (1858-1933) e José de Brito (1855-1946) e ter em conta que outros artistas, como Malhoa, Marques de Oliveira, o próprio Columbano, a ela se dedicaram também.

De um modo geral, esta pintura situa-se na continuidade de uma tradição romântica, procurando recriar, mais pela imaginação do que pelo rigor histórico, episódios seleccionados da história pátria. Assim acontece com Vasco da Gama na Presença do Samorim de Veloso Salgado, ou D. João II ante o Corpo Inanimado do Seu Filho de Condeixa.

Mais interessantes, pela liberdade de plena invenção dos ícones, são as temáticas mitológicas, do já referido Céfalo e Prócris, de Marques de Oliveira, modernizando a herança clássica romana do século XVIII, ao Amor e Psique, de Veloso Salgado, único exemplo português do gosto académico francês.

Refira-se ainda a particularidade da pintura histórica de José Malhoa,: Vasco da Gama Ouve o Piloto Oriental, A Ilha dos Amores ou Retrato de Camões.

Esta participação da arte nos ritmos e empenhos da sociedade do tempo foi de modo diverso, desempenhado também por Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905), o maior caricaturista do século, responsável por importantes revistas satíricas – O António Maria, Pontos nos Iis, A Paródia – onde a vida política do constitucionalismo monárquico foi imortalizada em notáveis desenhos de traço miúdo, muito naturalizado, que constituem um espantoso diário visual de memórias e eventos.

Dos retratos humoristas que Bordalo incansavelmente elaborou, em que as particularidades, de cada um foram assumidas com ironia ou deliberada acutilância, destaca-se o retrato

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inventado do povo português, concretizado no Zé Povinho, camponês, pobre e descuidado, de fisionomia simultaneamente grosseira e ingénua, suportando fatalmente o fardo da política e os custos de uma sociedade corrupta que o utiliza sem o servir e em relação à qual o seu gesto mais eficaz, de tenaz resistência, é o popular manguito.

Nos anos de 1900, antes da eclosão do movimento modernista, o domínio incontestado da estética naturalista foi levemente confrontado com a emergência de atitudes plásticas simbolistas, de acordo com a evolução do gosto europeu.

António Carneiro (1872-1930), importante figura cultural portuense, poeta também e director artístico da revista Águia, foi o pintor que em Portugal melhor assumiu essa poética.

De imediato, numa obra de juventude, realizada em Paris, sob o impacto de Puvis de Chavannes: o típico A Vida Esperança, Amor, Saudade (1899-1901), inventa um paisagismo etéreo, uma visão de sonho, em que pousam figuras que não são retratos mas ícones representando o ciclo das idades humanas, a infância, a juventude e a velhice.

Com este exemplo, entende-se bem o sentido da estética simbolista: ao contrário dos naturalistas, e também dos impressionistas, estes pintores não querem registar o real, nem a pretensa verdade da natureza, interessa-lhes pouco também a afirmação do pictórico, mas antes a elaboração de narrativas ficcionadas, como que dar imagens materiais aos sonhos ou devaneios, capazes de propor do mundo não um equivalente mas uma imaginosa questionação, suportada pela literatura, os mitos religiosos, a elaboração filosófica.

Ao longo de uma vasta carreira, Carneiro, nas melhores obras, manteve-se fiel ao culto do sonho.

Esta pintura que intencionalmente se afasta do gosto dos naturalistas, foi um dos caminhos da inovação plástica no final do século, muito diverso do trilhado pelos impressionistas.

Outra pintora portuense, Aurélia de Sousa (1865-1922) manifestou de outro modo uma inegável modernidade. Na sua mais célebre obra, o Auto-Retrato de Casaco Vermelho (1900), ela concentra-se sobre si mesma com uma atenção totalizadora.

3.3 A Escultura entre a continuidade dos cânones académicos e os sinais de individualização.

Contemporâneo dos primeiros pintores naturalistas, António Soares dos Reis (1847-1889) foi o renovador da escultura portuguesa da segunda metade do século XIX.

A sua obra-prima, simultaneamente a mais importante escultura nacional do século, foi O Desterrado (1872), realizado em Roma na fase final de uma agitada estada como bolseiro do Estado, em que manifesta o pleno domínio da modulação académica, segundo uma gramática estilística que continuava a valorar a herança plástica clássica mas também a emergência de uma poética que com o simbolismo deve ser conotada.

A escultura, em magnifico mármore de Carrara, figura um jovem nu nostalgicamente sentado ou abandonado sobre um penhasco. O jovem posa, talvez frente ao mar, mas nada vê a não ser as imagens do seu mundo interior.

Espécie de auto-retrato idealizado do seu autor que nunca veria reconhecido o seu génio e se suicidaria com pouco mais de 40 anos, ele é também metáfora de uma situação cultural, representando a situação dos melhores artistas portugueses que frequentavam os grandes

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centros da arte internacional mas radicalmente sabiam a eles não pertencer pelas limitações criativas do seu próprio país. Assim, a tristeza suspensa desta escultura assume pungência idêntica à do Retrato de Antero de Quental, sendo ambos signos do entusiasmo da “Geração de 70” e da rápida desistência dos “Vencidos da Vida” que os suicídios de Quental, Soares dos Reis, Camilo Castelo Branco ou Oliveira Martins dramaticamente expressam.

Muito diverso é o sentido poético do Busto de Senhora Inglesa (1877), belíssimo retrato segundo uma firme e sintética modulação. Modelo qualificado das intenções representativas da escultura de finais do século, este retrato pode ser considerado paradigma do gosto de uma época que pretendeu introduzir na escultura o sentido lumínico e a pesquisa formal características da estética naturalista.

José Simões de Almeida (1844-1926), contemporâneo de Soares dos Reis, foi um dos divulgadores dessas intencionalidades da escultura. Da sua vasta produção, destaquem-se O Malmequer (1872) E D. Sebastião (1877), retrato inventado de um menino-rei.

O sentimentalismo burguês que estas obras evocam manifesta-se também na mais cenográfica escultura do naturalismo português: A Viúva (1893) de António Teixeira Lopes (1866-1942), detendo no mármore, o movimento de uma jovem mulher soerguendo o filho do berço.

Da importante produção monumental de Teixeira Lopes, Destaque-se o Monumento a Eça de Queirós, inaugurado no princípio do século no Largo do Barão de Quintela, à Rua do Alecrim.

A partir do final do século, tal como vimos acontecer com a pintura, multiplicam-se os sinais de fuga à descrição do real, através de uma busca de temas mais distanciados do quotidiano, de recorte literário ou mitológico.

Citem-se, como exemplos, Ismael (1899) de Augusto Santo (1858-1907), e Salomé (1917), de Francisco dos Santos (1878-1930).

3.4 As artes decorativas sob o signo da industrialização

Nos anos do final do século acentua-se, nas principais cidades europeias, a produção industrial de objectos decorativos, enunciando o advento do design. Arquitectos sobretudo, mas também artistas plásticos, envolveram-se na produção tendencialmente massificada de marcenaria, vidros, cerâmicas e porcelanas, tecidos, jóias, papéis, cartazes. De um modo geral, esta activa produção veicula-se ao gosto Arte Nova, estilo ondulado e elegante, recriando motivos vegetalistas. Procura-se assim o requinte de marcação cosmopolita mas também a simplificação e a comodidade, conceitos adequados ao ritmo crescente da vida urbana. Em breve, o preciocismo fim de século da Arte Nova cederá a um gosto mais despojado e geométrico, divulgado pela designação francesa de Art Déco, ou seja Artes Decorativas, onde o modernismo se insinua através da valorização de formas essenciais, de cromatismo primário, valorizando o aço como novo material industrial.

Em Portugal, foram quase inexistentes estas manifestações, que só em plenos anos 20-30 ganhariam consistência e autonomia, já num contexto modernista. Entretanto, nos últimos anos do século XIX, o gosto Arte Nova manifesta-se esparsamente sobretudo em soluções arquitectónicas, já referidas quando se abordou a arquitectura do período.

A fixação em Portugal de diversos artistas estrangeiros – o cinzelador Giovanni Battisni, o ceramista Leopoldo Battistini, sobretudo os arquitectos Cesare Ianz, Ernest Korrodi e Nicola

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Bigaglia – que participaram activamente na estruturação do novo ensino industrial nas recém-criadas escolas técnicas, contribuiu também para a renovação das práticas artísticas em diversos domínios.

O episódio mais significativo de um desejo de modernização, sempre mal sustentado pelo teor restritivo do consumo e a permanência de um gosto revivalista, foi a fundação da Fábrica de Cerâmicas das Caldas da Rainha (1885), de que foi director Rafael Bordalo Pinheiro. Aí o conhecido caricaturista implementou a renovação de utensílios e métodos de trabalho industrializados que procuravam recuperar tradições artesanais de grande vitalidade. Os objectos produzidos, funcionais ou apenas decorativos, em particular a azulejaria, revelam uma curiosa síntese empírica entre as influências externas, de estilística Arte Nova, e a recriação de formas e ornatos tradicionais, de forte marca popular.

Foi esta uma quase isolada tentativa de aproveitar, no sentido da modernização, a excelente qualidade das astesanias tradicionais, que, em geral, continuavam ao serviço do gosto e da encomenda convencionais e desinseridas do indispensável contexto de produção industrial.

3.5 Evolução dos instrumentos de formação e divulgação

O triunfo da estética naturalista e a emergência das poéticas simbolistas, gerando um relativo dinamismo das práticas artísticas, inexistente até meados do século, foi a consequência positiva de uma política continuada de suporte de bolsas de estudo no estrangeiro. Quase todos os artistas portugueses de maior destaque, arquitectos, pintores e escultores, delas beneficiaram, gerando um movimento de articulação com os grandes centros internacionais, sobretudo Paris, e permitindo também a participação portuguesa em grandes exposições ou eventos internacionais. Estas estadas foram condição de actualização e evolução que as gerações seguintes puderam ampliar.

Regressados do estrangeiro, os artistas empenhavam-se em programas de divulgação que foram gerando novos públicos e coleccionadores. Recorde-se a importante acção do Grupo do Leão, em Lisboa, organizador das Exposições de Arte Moderna, as primeiras que em Portugal tiveram cuidados catálogos, e, no Porto, a do Centro Artístico Portuense e, desde 1887, a do Grupo das Exposições de Arte. Em 1890, esgotado o modelo das Exposições de Arte Moderna, o grupo de pintores, ainda liderado por Silva Porto, fundará o Grémio Artístico, de que nascerá, em 1901, a Sociedade Nacional de Belas-Artes empenhada na defesa profissional dos artistas e na valorização das suas obras nos circuitos do mercado e do coleccionismo.

Simultaneamente a acção promocional dos artistas foi apoiada pelo advento de uma crítica de arte mais profissionalizada. A participação nesta recente actividade de nomes literários com o prestígio de Ramalho Ortigão, Mariano Pina, Abel Botelho ou Fialho de Almeida ajudou a consolidar o gosto naturalista e a prestigiar a prática artística, tradicionalmente desprezada na vida cultural. Foram na época importantes instrumentos de reflexão estética e adquiriram valor inestimável para todos os estudiosos da arte oitocentista.

Refira-se finalmente a fundação dos primeiros museus de arte. Em primeiro lugar, o Museu de Belas-Artes, instalado no Palácio das Janelas Verdes.

O Museu incluía importante espólio de colecções do Estado (oriundas da Casa Real e sobretudo dos extintos conventos), generosas doações e as aquisições mais recentes da então arte contemporânea. A vastidão do período coberto exigia desde logo a sua divisão, que só

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ocorreu em 1911, com a criação dos Museus Nacionais de Arte Antiga e Arte Contemporânea. Com ele, e com o velho Museu Portuense, só modernizado mais tarde com a designação de Museu Nacional de Soares dos Reis, iniciava-se a institucionalização e definitiva consagração da arte oitocentista, no momento em que o modernismo irrompia como atitude de ruptura em relação ao naturalismo.

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II. SÉCULO XX

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4. Erupção e Cristalização da Estética Moderna

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4.1 A Pintura

O conceito de modernismo, aplicado às artes plásticas das décadas iniciais do nosso século, é suficientemente vasto. A sua abordagem mais simplificada talvez possa fazer-se através daquilo que se lhe opõe – o academismo naturalista, herdado do século XIX, que se mantinha ainda na ordem do dia. Cronologicamente, é nos anos 10-20 que se encontram situações válidas para inferir uma existência cultural modernista, que cobrirá a actuação de artistas até cerca de finais dos anos 30.

Dois dos valores evidentes nas obras modernistas são a substituição da iconografia rústica por uma temática alusiva ao mundanismo boémio, a substituição da melancolia e do saudosismo naturalista por uma pretendida consciência urbana. Para acompanhar estas transformações iconográficas, inovou-se cromaticamente através do uso insistente e quase exclusivo dos tons claros; evoluiu-se para uma esquematização das figuras, um delineamento ondulante em desfavor da sua corporização, para uma estilização em detrimento do tratamento volumétrico; preferiu-se decisivamente o plano em vez do escalonamento que servia a perspectiva tradicional. A busca de originalidade e a constante experimentação definem a atitude de muitos dos artistas. Mas são o sucessivo desprendimento do meio exterior, dos referentes naturais que constituem o corolário dos princípios modernistas. Narrar deixa de ser a intenção fundamental, comum como é a outras artes; já a exploração de linhas, cores e planos, meios de expressão exclusivos da pintura, são o que interessa valorizar.