histórias de fantasmas para gente grande

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Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 15, n. 28, p. 347-353, jan./jun. 2014 | www.revistatopoi.org 347 Histórias de fantasmas para gente grande Julia Ruiz Di Giovanni * Didi-Huberman, Georges. A imagem so- brevivente: história da arte e tempo dos fan- tasmas segundo Aby Warburg. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto; Museu de Arte do Rio, 2013. Uma ciência da cultura Georges Didi-Huberman, filósofo, his- toriador da arte e professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales, é um autor de destaque: tem mais de trinta tra- balhos publicados na França, muitos dos quais foram e continuam sendo traduzidos em diferentes países. Tendo a história da arte e a teoria das imagens como temas prin- cipais, seus trabalhos vão do Renascimento aos problemas da arte contemporânea, e têm sido recebidos com interesse renovado entre historiadores e antropólogos, mas também no campo crescente da curadoria de arte. É também como curador que Didi-Huberman vem ao Brasil, em 2013, na ocasião do lan- çamento de A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg, trabalho publicado em versão ori- ginal na França há mais de dez anos. Em conjunto com o lançamento do livro foi rea- lizada, como uma das primeiras atividades a ocupar o espaço do recém-inaugurado Mu- seu de Arte do Rio (MAR), a exposição Atlas suite. A mostra exibiu fotografias cujo objeto é outra exposição também curada por Didi- -Huberman, esta muito maior, realizada em Hamburgo, em 2011: Atlas: como carregar o mundo nas costas, produzida originalmente em 2010 no Museu Reina Sofia, em Madri. Segundo a sinopse do MAR, tratava-se não de quadros, mas de “fantasmas” de uma exposição espalhados pelo chão do novo Museu. Atlas, a exposição original de 2010, era um desdobramento dos estudos de Didi- -Huberman sobre Aby Warburg (1866- 1929), historiador alemão a que se dedica o extenso trabalho de A imagem sobrevivente: “Warburg é nossa obsessão, está para histó- ria da arte como um fantasma não redimido — um dibuk — para a casa que habitamos” (p. 27). Os modos de pensar de Warburg, tal como inspiram Didi-Huberman em seu per- curso de produção teórica e agora também curatorial, recebem no livro um tratamento aprofundado, sendo apresentados menos por uma forma argumentativa linear do que por meio de séries de aproximações entre textos, imagens, referências teóricas e objetos de diversas naturezas. Demonstrando influên- cias explícitas e implícitas nos estudos deste “antropólogo das imagens” — Burckhardt e Nietzsche, Lucien Lévy-Bruhl, E. Tylor, Darwin, entre outros — e propondo relações intensas entre sua abordagem e as proposi-

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Didi-Huberman, Georges. A imagem sobrevivente:história da arte e tempo dos fantasmassegundo Aby Warburg. Tradução deVera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto;Museu de Arte do Rio, 2013.

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  • Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 15, n. 28, p. 347-353, jan./jun. 2014 | www.revistatopoi.org 347

    Histrias de fantasmas para gente grande

    Julia Ruiz Di Giovanni*

    Didi-Huberman, Georges. A imagem so-brevivente: histria da arte e tempo dos fan-tasmas segundo Aby Warburg. Traduo de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto; Museu de Arte do Rio, 2013.

    Uma cincia da cultura

    Georges Didi-Huberman, filsofo, his-toriador da arte e professor da cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, um autor de destaque: tem mais de trinta tra-balhos publicados na Frana, muitos dos quais foram e continuam sendo traduzidos em diferentes pases. Tendo a histria da arte e a teoria das imagens como temas prin-cipais, seus trabalhos vo do Renascimento aos problemas da arte contempornea, e tm sido recebidos com interesse renovado entre historiadores e antroplogos, mas tambm no campo crescente da curadoria de arte. tambm como curador que Didi-Huberman vem ao Brasil, em 2013, na ocasio do lan-amento de A imagem sobrevivente: histria da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg, trabalho publicado em verso ori-ginal na Frana h mais de dez anos. Em conjunto com o lanamento do livro foi rea-lizada, como uma das primeiras atividades a ocupar o espao do recm-inaugurado Mu-seu de Arte do Rio (MAR), a exposio Atlas

    suite. A mostra exibiu fotografias cujo objeto outra exposio tambm curada por Didi--Huberman, esta muito maior, realizada em Hamburgo, em 2011: Atlas: como carregar o mundo nas costas, produzida originalmente em 2010 no Museu Reina Sofia, em Madri. Segundo a sinopse do MAR, tratava-se no de quadros, mas de fantasmas de uma exposio espalhados pelo cho do novo Museu.

    Atlas, a exposio original de 2010, era um desdobramento dos estudos de Didi--Huberman sobre Aby Warburg (1866-1929), historiador alemo a que se dedica o extenso trabalho de A imagem sobrevivente: Warburg nossa obsesso, est para hist-ria da arte como um fantasma no redimido um dibuk para a casa que habitamos (p. 27). Os modos de pensar de Warburg, tal como inspiram Didi-Huberman em seu per-curso de produo terica e agora tambm curatorial, recebem no livro um tratamento aprofundado, sendo apresentados menos por uma forma argumentativa linear do que por meio de sries de aproximaes entre textos, imagens, referncias tericas e objetos de diversas naturezas. Demonstrando influn-cias explcitas e implcitas nos estudos deste antroplogo das imagens Burckhardt e Nietzsche, Lucien Lvy-Bruhl, E. Tylor, Darwin, entre outros e propondo relaes intensas entre sua abordagem e as proposi-

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    es de contemporneos Sigmund Freud e Walter Benjamin, fundamentalmente , Didi-Huberman busca destacar elementos para uma apreenso de Warburg que vai muito alm da histria da arte antiga e do Renascimento a que este em princpio se de-dicara. Para o autor, trata-se fundamental-mente de reconhecer em Warburg modelos temporais, culturais e psquicos que abrem a histria da arte a problemas fundamentais, em grande medida impensados da disci-plina, no por fornecer-lhe uma lei geral al-ternativa, mas por colocar as singularidades das imagens para funcionar na descrio das relaes entre modos de figurao e modos de agir, de saber ou de crer de uma socieda-de: passamos de uma histria da arte para uma cincia da cultura (p. 41).

    Uma compreenso expandida da obra de Warburg como teoria da cultura tem moti-vado interesse crescente em suas ideias e ins-pirado diversas extenses de seus conceitos e procedimentos metodolgicos, construdos no contexto de estudos da arte renascentis-ta e barroca, para as anlises da sociedade industrial e contempornea. Jos Emilio Buruca j indicou a importncia desse en-tusiasmo por um sistema warburguiano per-cebido como capaz de englobar os conflitos do tempo presente, identificando na ltima dcada certa tendncia desses interesses a se converterem em uma moda intelectual ou mania acadmica na Amrica Latina.1 A publicao do livro de Didi-Huberman, embora possa ser lida superficialmente como

    1 BURUCA, Jos Emilio. Repercusses de Aby War-burg na Amrica Latina. Concinnitas, Rio de Janeiro, v. 2, n. 21, dez. 2012. Disponvel em: .

    reforo dessas extrapolaes to interessan-tes quanto arriscadas, prope ao leitor bra-sileiro a possibilidade de uma confronta-o mais aprofundada com a densidade do pensamento de Warburg. O estudo detido de Didi-Huberman organizado em trs grandes segmentos: a imagem-fantasma, a imagem-pthos e a imagem-sintoma ofere-ce uma srie de elementos a serem problema-tizados no percurso (que tanto nos interessa) de formulao de teorizaes mais gerais so-bre a cultura que tenham a arte e as imagens como foco e como perspectiva a partir da qual pensar as relaes sociais e sua histori-cidade.

    A indagao sobre as estruturas e din-micas dos regimes visuais que Warburg ins-pira parece acenar com a possibilidade de acedermos, por meio da complexidade das imagens, ao olho do furaco dos proces-sos sociais, abarcar os lapsos e esquecimen-tos, recuperar tudo o que parece escapar a modos verbais e lineares da escritura da histria. A obsesso pelas imagens est li-gada, como afirma Stphane Huchet, a um fascnio em torno do estrato da experincia e da intuio anterior s formalizaes cien-tficas e de uma ambio de incorporao dessa dimenso ao saber terico.2 Essa ambi-o intelectual, se considerada apenas a par-tir de Warburg, j apresenta manifestaes mltiplas o suficiente para ser irredutvel a qualquer moda passageira. Mas admitindo,

    2 HUCHET, Stphane. O historiador e o artista na mesa de (des)orientao. Alguns apontamentos numa certa atmosfera warburguiana. Revista Ciclos, Florianpolis, v. 1, n. 1, p. 3-18, set. 2013. Dispo-nvel em: .

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    como prope Huchet, estarmos na presena de certa atmosfera warburguiana, rele-vante deixar-nos guiar pela leitura de War-burg construda por Didi-Huberman: no para reproduzi-la impensadamente, mas sobretudo para buscar entender quais so as particularidades da imagem que nos prome-tem ver o que fontes de outra natureza no mostram. De que modo, segundo ele, na ci-ncia warburguiana da cultura, as imagens se tornam no apenas objetos do pensamen-to, mas elementos com os quais pensar o pas-sado, o presente e o futuro?

    Sobrevivncia e frmula gestual

    Segundo Didi-Huberman, Warburg foi um pesquisador dotado de maravilhosa lu-cidez quanto histria transindividual de seus objetos de estudo e paixo: as imagens (p. 423-424). A primeira chave de apreen-so dessa sensibilidade um conceito to fundamental quanto, dir Didi-Huberman, mal interpretado: a sobrevivncia ou Nachle-ben. Antes de mais nada, o modo de anli-se criado por Warburg nos coloca diante da imagem como algo que no se define apenas por um conjunto de coordenadas positivas (como autor, data, tcnica, iconografia etc.). Uma composio visual uma sedimenta-o de uma multiplicidade de movimentos histricos, antropolgicos e psicolgicos que comeam e terminam fora dela. No um corte em uma linha do tempo, mas um n de temporalidades: ficamos diante da imagem como diante de um tempo com-plexo (p. 34; destaque do autor). Onde a

    histria da arte precedente explicava o re-trato como gnero das belas-artes surgido no Renascimento graas ao triunfo do hu-manismo, do indivduo e de novas tcnicas mimticas, Warburg encontrar uma forma em que se entrelaam marcas de diferentes tempos: prticas pags antigas, formas litr-gicas medievais crists e problemas artsticos e intelectuais do sculo XV italiano. Nessa perspectiva, a obra de arte no se deixa resol-ver to facilmente pela histria, apresenta-se antes como um ponto de encontro dinmi-co (p. 41) de historicidades heterogneas e sobredeterminaes: relaes com as ml-tiplas dimenses da vida, com os modos de agir, pensar ou crer, sem os quais toda imagem, segundo Warburg, perderia seu prprio sangue (p. 41). Haveria assim uma dinmica interna das imagens, um tempo que lhes prprio: denso, porque formado de sobreposies e misturas entre instncias histricas particulares. A sobrevivncia, do alemo Nachleben, o nome deste tempo, afirma Didi-Huberman.

    Inspirada inicialmente pelo uso do ter-mo por Edward Tylor (survival) para descre-ver os vestgios de um estado social j desa-parecido, que resiste sob formas deslocadas como o arco e a flecha de guerras antigas sobrevivem como brinquedos infantis , a noo warburguiana designa a intruso de formas anacrnicas que obriga a uma vi-so complexa do tempo histrico. Embora evoque um horizonte epistemolgico evolu-cionista, a forma sobrevivente de Warburg no aquela que vence suas concorrentes em uma corrida contra a morte, e sim a forma inapta que sobreviveu subterraneamente ao

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    prprio desaparecimento para reemergir de modo inesperado em outro ponto da hist-ria. Ao introduzir o conceito de sobrevivn-cia para discutir o Renascimento italiano, perodo a que estava remetida a inveno da histria da arte como tal, Warburg lanava luz sobre o carter fundamentalmente im-puro desse renascimento, pois cada perodo tecido por seu prprio n de antiguidades, anacronismos, presentes e propenses para o futuro (p. 69). Isso equivalia, segundo Di-di-Huberman, a comprar uma briga quanto ao estatuto do discurso histrico em geral (p. 60-66).

    Inspirado por Burckhardt, como afirma Didi-Huberman, Warburg reconheceria essa complexidade da articulao temporal como uma articulao formal (p. 89). Na arte, a forma dos detalhes, o movimento dos ador-nos ou as nuances cromticas so vestgios dos conflitos em ao no tempo, as formas so portanto vivas, portadoras de jogos de fora em estado de latncia. nesse sentido que as imagens de que trata Didi-Huberman so sobreviventes: formas da sobrevida de tenses j mortas, disponveis para assom-brar as periodizaes e causalidades defini-das pela histria. Warburg definiria a his-tria das imagens que praticava como uma histria de fantasmas para gente grande (p. 72), pois desvelava em sua temporalidade especfica, hbrida, a palpitao de conflitos que, apesar de enterrados, pareciam nunca encontrar repouso.

    Uma morfologia das imagens sensvel a seu carter de n temporal jamais pode prescindir de registrar seu carter dinmico: no h morfologia, ou anlise das formas,

    sem uma dinmica, ou anlise das foras (p. 90), afirma Didi-Huberman; toda a proble-mtica da sobrevivncia passa, fenomeno-logicamente falando, por um problema de movimento orgnico (p. 167). O segundo conceito central daquilo que o autor chama de lucidez warburguiana a respeito do ca-rter das imagens responderia a este proble-ma: de que modo as formas dinmicas do tempo sobrevivente se manifestam como movimentos dos corpos?

    A questo conduziu o historiador a uma antropologia das formas do gesto in-tensificadas por sua recorrncia em tempos histricos e modos de representao dspa-res, da Antiguidade ao sculo XX europeu, passando pelos hopis na Amrica do Norte. Warburg reconheceu essas formas recorren-tes como frmulas, modos de operao da tragicidade do tempo. Chamou-as de Pa-thosformeln, ou frmulas de pthos. O con-flito no resolvido estaria contido em uma memria do gesto, em uma tenso corpo-ral que se repete deslocada, transformada ou convertida em seu contrrio, como as mnades pags que reaparecem nos an-jos renascentistas. Graas a sua ateno s imagens, Warburg teria encontrado vncu-los entre o problema do tempo histrico e o tempo psquico nos corpos agitados por afetos. As contores, inclinaes e textu-ras da forma humana, sua fora pattica, fornecem a matria das imagens fantasma. A pesquisa sobre as frmulas primitivas ou sobreviventes do movimento corporal era um caminho para compreender o que esse primitivo ou antigo queria dizer no presente (p. 193).

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    Lies do olhar

    Ao explorar os conceitos de sobrevi-vncia e frmula de pthos construdos por Warburg, Didi-Huberman desenvolve a que talvez seja a proposio central de A imagem sobrevivente: a complexidade das imagens tal como tratada por Warburg de natureza sintomal. Do entrelaamento entre o pre-sente do pthos, o passado da sobrevivncia e a imagem do corpo, ele dir: Que afinal esse momento seno o do sintoma (...) no qual s permite pensar a psicanlise freudia-na, contempornea de Warburg? (p. 229).

    O sintoma freudiano o modelo que Didi-Huberman utilizou para demonstrar a atualidade das tenses que o olhar de War-burg destacava nas imagens e extrapolar esse olhar, desenvolver como formulaes mais gerais seus modelos temporais e semiticos. Como sintoma, segundo o autor, que as imagens se tornam uma via de acesso aos processos invisveis e formas paradoxais da cultura: a imagem nesse sentido um retor-no do conflito recalcado sob uma forma des-locada, uma formao de compromisso. A clnica da histeria teria fornecido ao prprio Warburg um modelo sintomatolgico para interpretar as frmulas expressivas e encon-trar nas imagens a temporalidade latente dos traumas.

    No entanto, ao contrrio do mdico que busca reduzir a mobilidade de corpos atra-vessados por crises a um quadro de regula-ridades, Warburg teria buscado preservar e incorporar em sua leitura da histria da arte as descontinuidades, diferenas e incon-gruncias entre manifestaes das mesmas

    frmulas. Segundo o autor, a epistemologia de Warburg definida pelo procedimento de montagem. Na criao de Mnemosyne o atlas aberto em que Warburg criava e recriava composies de imagens em busca de uma interpretao das frmulas de pthos e de sua prpria biblioteca, Warburg teria antecipado a ideia de montagem de Walter Benjamin, que aproxima a construo cine-matogrfica contempornea das operaes de quebra e recomposio prprias dos pro-cessos mnemnicos (p. 419).

    Didi-Huberman encontra assim lies do olhar ensinadas por Freud e Benjamin como chaves para a compreenso e o des-dobramento de uma abordagem warbur-guiana das imagens em geral e, mais alm, de todo objeto da cultura como tenso em ato (p. 162). A leitura do movimento, a descrio da estrutura contraditria dos ges-tos e a dialtica das relaes entre imagens, apreendida por seu incessante deslocamento combinatrio, por uma atitude interpretati-va que recusa a se fechar: Warburg havia compreendido que devia renunciar a fixar as imagens, afirma o autor (p. 389).

    Warburg sintoma

    O sintoma como categoria crtica, dir Didi-Huberman, e a montagem como ope-rao investigativa e interpretativa seriam portanto definidores de um modo de estar diante das imagens que encontra atualmente novos desenvolvimentos, como ramos resse-cados que inesperadamente se pem a brotar fora de estao (p. 428). No esse o tema

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    warburguiano por excelncia, o das coisas que rebentam fora de seu tempo natural? tambm por meio da descrio freudia-na da formao dos sintomas psquicos que Didi-Huberman apresenta ao leitor o funda-mento anacrnico desse olhar sobre a cul-tura: assim como uma lembrana recalcada s ganha dimenso de trauma a posteriori, na medida em que reemerge distorcida na forma do sintoma, as fontes primitivas da imagem s se constituem no processo de seu reaparecimento (p. 289).

    Para Didi-Huberman, esse movimento estrutura a maneira warburguiana de pers-crutar o antigo a partir de suas reconfigu-raes contemporneas. A conferncia de 1923 sobre o ritual da serpente, que War-burg apresenta no sanatrio onde se encon-trava internado em grave crise psictica, considerada por Didi-Huberman uma sn-tese epistemolgica. A um s tempo uma regresso e uma inveno: no momento da crise, o retorno ao priplo passado a via-gem ao territrio hopi realizada trinta anos antes possibilita a produo de um novo conhecimento, que tirou do fato de estar em perigo os fundamentos de sua eficcia (p. 318).

    Como terico e curador, Didi-Huber-man no deixa de mimetizar os procedimen-tos que identifica em Warburg, buscando apresentar ideias e imagens em seu carter estruturalmente dbio e parcialmente ina-cessvel, sujeitando-as de modo explcito a deslocamentos ou desvios. As formas de montagem caleidoscpica que apresenta em seus textos e nas exposies que tem or-ganizado fornecem, hoje, provavelmente, o

    paradigma mais visvel e persuasivo para a recepo dos trabalhos de Warburg que se torna mais presente no Brasil com a pu-blicao.

    Parece pertinente dirigir a essas formas a pergunta que nos ensinam: a que responde, no presente, o emprego das figuras da sin-tomatologia e da montagem modernista na narrativa historiogrfica ou antropolgica? A aspirao por uma anticincia, que am-biciona dar a ver as instncias obscuras ou recalcadas da histria, no deixa de ser uma das frmulas patticas que habitam nossas prticas de pesquisa e modas intelectuais. Seria desejvel nesse sentido interpretar os conflitos persistentes e novos compromis-sos que se manifestam no destaque que vem recebendo a obra de Warburg e nas propo-sies sobre essa obra feitas por Didi-Hu-berman. Nas aproximaes sempre frteis entre histria e antropologia, sob inspirao do prprio autor, devemos estar dispostos a ler tais proposies e seus modos de difuso como sintomas, observar atentamente sua forma e temporalidade.

    Em grande medida, o Warburg que vemos surgir no livro de Didi-Huberman fortemente freudiano e benjaminiano, deleuziano em algumas passagens , ele mesmo, uma imagem: fantasma, montagem e sintoma. O Warburg pescador de pro-las (p. 423), mestre dos procedimentos in-telectuais que nos parecem indispensveis para a decifrao do tempo presente (este tempo em que as imagens se multiplicam to vertiginosamente a ponto de no mais as vermos), no nos precede cronologicamente apenas, como uma forma original resolvida,

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    transmitida por imitao. Ele se constitui no prprio processo de deslocamento graas ao qual (re)aparece ao nosso interesse, uma origem que s se constitui no atraso de sua manifestao (p. 289).

    * Doutora em antropologia social pela Universidade de So Paulo. So Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected].