histórias de fantasmas para adultos as imagens segundo georges didi-huberman

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117 Histórias de fantasmas para adultos: as imagens segundo Georges Didi-Huberman Eduardo Jorge (CAPES/UFMG/L’ENS) Resumo: Georges Didi-Huberman retoma, a partir de Aby Warburg, toda uma concepção de Atlas para ler por um viés anacrônico a questão das imagens. Assim, a proposta deste trabalho é ler uma “vizinhança” de artistas, escritores e pensadores elaborada por Didi-Huberman para constituir uma operação crítica de diante das idas e vindas das imagens. Enfim, da suas zonas de intermitência entre as noções de “detalhe” e de “montagem”, na expansões do ethos apolíneo no pathos dionisíaco. Palavras-chave: Filosofia contemporânea, Literatura, História da Arte, Crítica das imagens. Abstract: Georges Didi-Huberman resumes, from Aby Warburg, a whole conception of Atlas in order to read through an anachronistic bias the image subject. Therefore, the proposition of this paper is to read a "neighborhood" of artists, writers and thinkers prepared by Didi-Huberman in order to compose a criticism operation on the comings and goings of images. Ultimately, of its intermittence zones between the notions of "detail" and of "montage", in the expansions of the Apollonian ethos into the Dionysian pathos. Keywords: Contemporary Philosophy, Literature, History of Art, Images Criticism.

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Georges Didi-Huberman retoma, a partir de Aby Warburg, toda uma concepção de Atlas para ler por um viés anacrônico a questão das imagens. Assim, a proposta deste trabalho é ler uma “vizinhança” de artistas, escritores e pensadores elaborada por Didi-Huberman para constituir uma operação crítica de diante das idas e vindas das imagens. Enfim, da suas zonas de intermitência entre as noções de “detalhe” e de “montagem”, na expansões do ethos apolíneo no pathos dionisíaco.

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  • 117

    Histrias de fantasmas para adultos: as imagens

    segundo Georges Didi-Huberman

    Eduardo Jorge (CAPES/UFMG/LENS)

    Resumo:

    Georges Didi-Huberman retoma, a partir de Aby Warburg, toda uma

    concepo de Atlas para ler por um vis anacrnico a questo das imagens.

    Assim, a proposta deste trabalho ler uma vizinhana de artistas,

    escritores e pensadores elaborada por Didi-Huberman para constituir uma

    operao crtica de diante das idas e vindas das imagens. Enfim, da suas

    zonas de intermitncia entre as noes de detalhe e de montagem, na

    expanses do ethos apolneo no pathos dionisaco.

    Palavras-chave: Filosofia contempornea, Literatura, Histria da Arte,

    Crtica das imagens.

    Abstract:

    Georges Didi-Huberman resumes, from Aby Warburg, a whole conception

    of Atlas in order to read through an anachronistic bias the image subject.

    Therefore, the proposition of this paper is to read a "neighborhood" of

    artists, writers and thinkers prepared by Didi-Huberman in order to

    compose a criticism operation on the comings and goings of images.

    Ultimately, of its intermittence zones between the notions of "detail" and of

    "montage", in the expansions of the Apollonian ethos into the Dionysian

    pathos.

    Keywords: Contemporary Philosophy, Literature, History of Art, Images

    Criticism.

  • 118

    1. Saber pelo sofrimento, saber alegre

    A partir de Aby Warburg (1866 1929), o filsofo e historiador da

    arte Georges Didi-Huberman (1953) afirma que a histria das imagens

    uma histria de fantasmas para adultos. Alis, tomando o legado do

    pensamento de Warburg que Didi-Huberman produz um encontro

    heterogneo de objetos, de saberes, de imagens produzindo reflexes que

    problematizam o vis de uma perspectiva estritamente historiogrfica da

    arte.

    Amparado na noo de Atlas, sobretudo no Atlas Mnemosyne, de

    Aby Warburg, Didi-Huberman encontra nesta forma visual do saber um

    percurso que aborda o saber pelo sofrimento (pathei mathos)1, de

    squilo, passando pela reinveno warburguiana do gnero Atlas, onde as

    imagens situam-se entre a fantasia vibrante e a razo apaziguadora2 at o

    sabiamente catico3 atlas de Jorge Luis Borges. Parece existir uma tarefa

    inquietante de ler as imagens como um gesto, considerando seus restos e

    fantasmas.

    Tocar em uma nica imagem, ater-se a sua articulao contnua de

    ethos e de pathos, ainda entrar em contato com a fina pelcula do

    fantasma primitivo, explorada por Sigmund Freud quando este refletia

    sobre a guerra, e de modo intenso ser tocado pelos gestos e expresses

    prprios de uma corporeidade que assombra a imagem, seja como matriz,

    seja como expresso ou encarnao, termos que fazem parte do

    vocabulrio crtico de Georges Didi-Huberman.

    Em Atlas Cmo llevar el mundo a cuestas?, Georges Didi-

    Huberman aborda a condio de abrir a histria presente pelo vis do atlas,

    1 DIDI-HUBERMAN, 2010a, p. 68.

    2 WARBURG, 2010b, p. 3.

    3 BORGES, 2010c, p. 9.

  • 119

    que traz tona, se no um mtodo, pelo menos uma atitude genealgica e

    arqueolgica:

    Ao decompor a histria presente, surgem do atlas

    espectros, fantasmas, seres ou coisas anacrnicas: o

    impensado da repetio, o ignoto das represses e dos

    retornos do reprimido. Talvez no exista reflexo nem contestao poltica acerca da histria contempornea sem uma atitude genealgica e

    arqueolgica que revele seus sintomas, seus

    movimentos inconscientes (DIDI-HUBERMAN,

    2010a, p. 396).

    O atlas, condensado em uma forma visual do saber, rene tanto o

    paradigma esttico quanto o epistmico. Para Georges Didi-Huberman, a

    contribuio do Atlas Mnemosyne para o campo das imagens rearticula a

    episteme da prpria histria da arte pelo que nela h de sensvel. Na

    introduo de Atlas Mnemosyne, Warburg imagtico ao afirmar que a

    cincia que abre caminho conserva e d curso a uma estrutura rtmica na

    qual os monstros da fantasia se transformam em guias da vida que decidem

    o futuro.4 A fantasia vibrante, portanto, ao entrar em movimento com a

    razo apaziguadora, cria um ritmo condutor de sobrevivncias.

    Em termos de organizao do conhecimento, no existe uma

    separao clara entre fantasia e razo. As imagens, sob essa reflexo,

    eclodiro em um risco ou na dinmica que ocorre a partir desse risco, onde

    a teoria do conhecimento est exposta ao perigo do sensvel.5 Note-se que

    esse sensvel profundamente ligado ao sintoma, um evento metamrfico

    por excelncia6, est deslocado de seu vocabulrio clnico para um

    pensamento crtico. Nesse sentido, o sintoma ainda tomado pelo vis de

    4 WARBURG, 2010b, p. 3.

    5 DIDI-HUBERMAN, 2010a, p. 15.

    6 DIDI-HUBERMAN, 2007a, p. 28.

  • 120

    seu timo grego, isto , o da queda, da catstrofe, do acidente7, at alcanar,

    enfim, um saber alegre (un gai savoir) ou sua expanso em um no-saber

    (le non-savoir).

    Existe, portanto, algumas linhas de fora que corroboram para uma

    arqueologia do saber em Aby Warburg. Na articulao warburguiana feita

    por Didi-Huberman, existem algumas foras operatrias que fazem parte de

    sua tarefa arqueolgica. Uma dessas foras (informes) pode ser chamada de

    Georges Bataille (1897 1962). O escritor e pensador francs possui uma

    obra ficcional e ensastica que aborda a questo do sintoma, do informe, da

    metamorfose, alm de ter editado, entre outras, uma revista importante para

    a abordagem de tais aspectos, a Documents (1929-1930).

    por isso que o no-saber batailliano no est distante do gai savoir

    de Friedrich Nietzsche (1844 1900), mas evoca-o, onde um atua como

    mecanismo interno do outro.8 Georges Didi-Huberman leva em

    considerao ambos, o no-saber, o saber alegre, como aqueles que

    assombram o logos de uma teoria do conhecimento que soberanamente

    paira sobre o sensvel. Aqui, encontra-se uma primeira interferncia que

    acontece pelo assombro, pois o espao do desejo assombra o espao do

    pensamento.

    2. Diante da aporia do detalhe

    Dessa interferncia existe ainda uma ateno para o detalhe, talvez

    aquele que conjugue a histria de fantasmas para adultos de Aby

    7 Como Georges Didi-Huberman escreveu em La ressemblance informe: A riqueza semntica do sintoma,

    seu entendimento conceitual singular que se rene em dois pontos de vista geralmente pensados como

    antitticos, o ponto de vista fenomenolgico e o ponto de vista semitico (DIDI-HUBERMAN, 1995, p.

    359).

    8 O no-saber que assombrar Georges Bataille pode ser lido no texto-prefcio Pensamentos sobre o

    futuro de nossos institutos de formao, de Friedrich Nietzsche: ento lhe seria permitido abandonar-se com total confiana conduo do escritor que, justamente, s ousa falar do no-saber e do saber do no-

    saber (NIETZSCHE, 2007, p. 35).

  • 121

    Warburg com o Prlogo Epistemolgico-crtico, de Walter Benjamin,

    mais precisamente no seguinte excerto de A origem do drama trgico

    alemo:

    A relao entre a elaborao microlgica e a escala do

    todo, de um ponto de vista plstico e mental,

    demonstra que o contedo de verdade

    (Wahrheitsgehalt) se deixa apreender apenas atravs da

    mais exata descida ao nvel dos pormenores de um

    contedo material (Sachgehalt) (BENJAMIN, 2004, p.

    15).

    Talvez seja por essa conjugao que Devant limage contenha como

    apndice um texto intitulado Laporie du dtail.9 Nele Didi-Huberman

    fala do estatuto material, referindo-se matria pintura, na qual a

    quantidade de coisas, muitas vezes indistinguveis no quadro, confusa, e

    nisso reside a capacidade de dissimulao da prpria pintura. Ver no

    detalhe seria ento o pequeno organon de toda a cincia da arte, escreve o

    filsofo.10

    Em um primeiro momento, esse olhar para o detalhe seria a

    desconfiana do tom e da retrica de certeza contida na histria da arte.11

    Desconfiando de sua condio epistemolgica, a suspeita recai sobre seu

    objeto, como a prpria noo de quadro. A utilizao dessa noo em uma

    literatura cientfica, como quadros clnicos ou em uma perspectiva

    historiogrfica de quadros histricos ou a histria enquanto quadro de

    acontecimentos, por exemplo, mostra que tanto a cincia quanto a histria,

    9 O ttulo original do referido texto era Lart de ne pas dcrire. Une aporie du dtail chez Vermeer. Uma

    obra de Georges Didi-Huberman inteiramente dedicada ao aspecto do detalhe (pan) intitula-se La

    peinture incarne, que toca a novela de Honor Balzac, A obra-prima ignorada (Le Chef-duvre inconnu). No Brasil, existem duas leituras a esse propsito feitas por Stphane Huchet que se encontram

    no prefcio edio brasileira de O que vemos, o que nos olha, Passos e caminhos de uma teoria da arte e em Linguagens do no-saber: teoria da arte francesa e psicanlise, contida no livro A inveno da vida (TESSLER, SOUSA, SLAVUTZKY, Artes e Ofcios, 2001). 10

    DIDI-HUBERMAN, 1990, p. 273. 11

    DIDI-HUBERMAN, 1990, p. 11.

  • 122

    para se estabilizarem enquanto quadros, sustentam uma continuidade

    sequencial que lhes inerente. O enfoque do ponto de vista da histria

    manifestado na leitura de Georges Didi-Huberman, pelo vis do

    anacronismo, toma como dmarche uma srie de complexidades dentro da

    prpria histria porque seriam suas descontinuidades que ameaam a

    exploso do quadro.12

    Nas operaes crticas em torno da imagem, a

    exploso desse quadro acontece pelo menos em dois aspectos na operao

    crtica de Georges Didi-Huberman: pela ampliao do detalhe e pelo vis

    da montagem.

    Em um primeiro momento, l-se em Devant limage que: o detalhe

    seria proximidade, partilha e ordenao que fazem dele uma grande fortuna

    no domnio das interpretaes de obras de arte.13 Didi-Huberman atua

    tambm em um pensamento pela montagem, onde o saber nesse caso no

    significa saber detalhadamente, mas implica no detalhe como um ponto

    sensvel de deriva que desarticula um saber prvio, reorganizando-o.14

    O detalhe, para Didi-Huberman, intermitente. Seja no compasso

    corpreo sstole-distole, seja no bater de asas de uma mariposa ou na

    bioluminescncia dos vaga-lumes, ele tambm aquilo que foge do

    controle, sintoma, mais uma vez, queda, acidente. ainda uma economia

    fantasmtica do gesto e, ainda, fissura, resto, poeira. Sendo a imagem

    pouca coisa: resto ou fissura, enfim, ela se apoiaria em um acidente de

    tempo que a tornaria visvel ou legvel.15 diante de tal economia que

    12

    DIDI-HUBERMAN, 2010a, p. 136. 13

    DIDI-HUBERMAN, 1990, p. 274. 14

    Assim, outro ponto legvel para a dialtica provocada por Georges Didi-Huberman, em Devant limage, talvez isso possa ser compreendido como um ponto cego entre saber e detalhe est no embate do entendimento positivista com o mal-entendido freudiano. O primeiro seria justamente a aplicabilidade de tudo aquilo que compreende o visvel resumido na sua capacidade de descrio. Nesse

    ato de descrever existiria aquilo que pode ser verificado, legitimado. J o mal-entendido freudiano situa-se no carter interpretativo do sonho, enfim, uma estrada real (voie royale) que abre a Interpretao dos Sonhos (Traumdeutung), cuja abertura citada por Didi-Huberman: a interpretao deve proceder em detalhe, escrevia Freud, no em massa (DIDI-HUBERMAN, 1990, p. 275). 15

    DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 87

  • 123

    Georges Didi-Huberman lida com a ordenao dos gestos, dos fantasmas e

    da poeira prprios das imagens.

    Em Limage survivante, Georges Didi-Huberman escreve que a

    imagem bate, e nela a cultura tambm bate. Tal seria sua via paradoxal, sua

    Lebensenergie impossvel de fixar-se.16 A imagem vai e vem entre a

    afirmao e a negao da vida. Essa energia vital seria o carter movente

    da imagem que Didi-Huberman operacionaliza a partir de Aby Warburg.

    Esse movimento, esse bater das imagens, se prolonga nas plpebras, no seu

    piscar para ver melhor, ou ainda no movimento dos lbios quando eles

    justamente procuram as palavras.17

    3. A experincia interior do intervalo e as prticas anacrnicas

    diante das imagens

    Alm de um procedimento metafrico, Georges Didi-Huberman

    vale-se de uma experincia interior na imagem que se articula enquanto

    sintoma, isto , com os eventos onde o inconsciente joga com pressupostos

    classificatrios ou dogmticos, de todo o saber que existe previamente

    sua deflagrao corporal.18

    Em meio a tal jogo de detalhes, alm ou aqum

    de quadros, Didi-Huberman enfatiza o intervalo:

    O intervalo o que torna o tempo impuro, esburacado,

    mltiplo, residual. a interface de distintos estratos de

    uma espessura arqueolgica. o meio de movimentos

    fantasmas. a amplitude dos dinamogramas, o desvio criado pelas falhas ssmicas, as fraturas na

    histria. o abismo que o historiador deve aceitar

    escrutar, sua razo deve sofrer. o deslocamento

    criado por rupturas ou por proliferaes genealgicas.

    o contratempo, o gro da diferena na engrenagem

    16

    DIDI-HUBERMAN, 2002, p. 190. 17

    DIDI-HUBERMAN, 2007a, p. 25. 18

    DIDI-HUBERMAN, 2007a, p. 28.

  • 124

    das repeties. o hiato dos anacronismos, a malha

    de buracos da memria. o que intrinca e separa

    alternativamente os fios ou as serpentes da meada dos tempos. o caminho que percorre uma impresso

    para sua encarnao. a falha que separa um smbolo

    de seu sintoma. a matria dos recalcamentos e o

    ritmo aps o fato. o olho do redemoinho, dos

    turbilhes do tempo (DIDI-HUBERMAN, 2002, p.

    505).

    O intervalo, operao warburguiana da imagem, chama a ateno

    para a corporeidade do gesto19

    (Pathosformel, mas tambm Leitfossil) e

    para a temporalidade da sobrevivncia (Nachleben). Tal oscilao talvez

    seja movida pelo que Didi-Huberman retoma estrategicamente de Warburg,

    os dinamogramas da imagem. Possivelmente prximo do que Walter

    Benjamin chamar de imagem dialtica, o dinamograma

    (Dynamogramm) atua em um duplo regime da imagem, aproxima o pathos

    de uma frmula, conhecida por frmulas de pathos (Pathosformeln). A

    frmula de pathos, mais que um novo quadro esquemtico, um modo

    heurstico de articular detalhes, de ler as permanncias de gestos, de pensar

    morfologicamente a imagem. Se antes a perspectiva estritamente

    historiogrfica da arte havia sido problematizada, agora observa-se que em

    decorrncia dessa crtica est um modo de atingir o problema da

    iconografia, pois no projeto de Georges Didi-Huberman a iconografia cede

    espao a uma heurstica do movimento.20

    19

    Georges Didi-Huberman, em Atlas Cmo llevar el mundo a cuestas?, pontua tanto os gestos quanto os

    Pathosformeln, como mapas mveis das emoes humanas (DIDI-HUBERMAN, 2010a, p. 52). 20

    DIDI-HUBERMAN, 2002a, p. 210. A partir de sua tese, O Nascimento de Vnus e a Primavera de

    Sandro Botticelli, de 1893, Aby Warburg investigar a animao dos acessrios como um ponto de influncia da Antiguidade (WARBURG, 2007, p. 26-27). A primeira aproximao de Warburg com a

    pintura, os esboos e desenhos de Botticelli feita com as ninfas danando, em relevo, em um sarcfago

    romano. Para isso, as anotaes de Warburg tomam como ponto de partida as observaes do pintor,

    arquiteto e paisagista Pirro Ligorio (1510 1583). Ligorio observa as impresses de movimento entre o pano e a dana e, tratando-se de um relevo, as seis mulheres esculpidas, que pareciam danar e agitar o chale, possuam vestes finssimas e transparentes que praticamente as deixavam nuas (LIGORIO apud

    WARBURG, 2007, p. 30). Acrescenta-se s notas de Warburg relatos sobre as ninfas de Filarete, Plnio, o

  • 125

    Em Limage survivante, a crtica que Georges Didi-Huberman faz a

    Erwin Panofsky e a Ernst Gombrich que a histria da arte enquanto

    disciplina exorcizou a corporeidade das frmulas de pathos

    (Pathosformeln) na mesma medida onde ela teria exorcizado a

    temporalidade da sobrevivncia (Nachleben).21 Enfim, as complexidades

    envolvidas e enumeradas por Didi-Huberman anteriormente em uma

    Cincia da Cultura (Kulturwissenschaft) warburguiana foram simplificadas

    em termos epistemolgicos em uma disciplina humanstica. As

    sobrevivncias acontecem nas imagens: isso nos exige algo mais que uma

    simples histria da arte, escreve Didi-Huberman, em Limage

    survivante.22

    A crtica prossegue em um livro complementar ao Devant limage

    que se chama Devant le temps.23

    Existe uma recusa da unidade da histria

    da arte, cuja forma de conduo existe desde Vasari, onde sua referncia

    humanista tambm almeja uma referncia cientfica. Para abrir outros

    regimes temporais da histria-calendrio ou da crnica servil dos

    campees, termos utilizados por Didi-Huberman com um forte teor das

    teses de Walter Benjamin sobre a filosofia da histria, ele instaura o

    paradoxo do anacronismo, provocando um deslocamento da linha (histria)

    e do quadro (da imagem). Mais uma vez, para expor o paradoxo do

    anacronismo, Georges Didi-Huberman traz Warburg e Benjamin:

    O paradoxo do anacronismo comea a se desdobrar do

    objeto histrico analisado como sintoma: reconhece-se

    Velho, um poema de Angelo Poliziano, enfim, vrios elementos que do ao corpo um tremor exterior da vida (WARBURG, 2005, p. 31). 21

    DIDI-HUBERMAN, 2002a, p. 196. 22

    DIDI-HUBERMAN, 2002a, p. 173. 23

    Comentando que Aby Warburg e Walter Benjamin fizeram do tempo uma verdadeira dimenso das

    imagens e reciprocamente da imagem uma verdadeira dimenso de legibilidade da histria, Georges Didi-

    Huberman afirma em entrevista que aps ter escrito Devant limage era preciso complet-lo por um outro livro cujo ttulo Devant le temps. Cf. Lexprience des imagens (Marc Aug, Georges Didi-Huberman, Umberto Eco) Paris: Ina, 2011a. p. 96.

  • 126

    sua apario o presente de seu acontecimento quando se faz aparecer a grande durao de um

    passado latente, o que Warburg chamava de

    sobrevivncia (Nachleben). Quando em seu Passagens,

    Benjamin analisa a Paris do sculo XIX que se tornava antiquada, ele pe precisamente em jogo a noo warburguiana de sobrevivncia (DIDI-

    HUBERMAN, 2008, p. 254).

    O vis temporal no est separado da imagem, e por isso a

    arqueologia do anacronismo est diante da questo do gesto, do pathos,

    fazendo com que expresses mesmo variando permaneam em algumas

    obras. Essa uma complexa rede do sintoma que desdobrado da imagem.

    Aby Warburg e Walter Benjamin so nomes que expuseram as

    complexidades do objeto histrico de modo afim. No entanto, mesmo com

    suas diferenas, o Atlas Mnemosyne e Passagens so obras inacabadas que

    se demoram diante da potncia das imagens, pois nelas existe uma

    experincia histrica que permanece, ou melhor, sobrevive enquanto forma,

    exposta tambm em seus restos e suas falhas.

    4. Uma filologia dos objetos: sismografia e imaginao

    Frente a esse algo mais que uma simples histria da arte, aos

    dinamogramas, s frmulas de pathos, s sobrevivncias, ao sintoma (lido

    aqui como um negativo do smbolo), s proliferaes genealgicas,

    Georges Didi-Huberman reivindica ao historiador da arte o papel de um

    fillogo dos objetos e de suas imagens. Como ele afirma, em Ninfa

    moderna, o historiador da arte mensura as bibliotecas, os catlogos, os

    inventrios, os dicionrios. Ele mergulha nos arquivos, ele faz surgir as

    fontes.24 Aquele que lida com as imagens ento atuaria no intervalo, no

    24

    DIDI-HUBERMAN, 2002b, p. 128.

  • 127

    tempo impuro, esburacado e residual. Esse seria um modo de lidar com as

    falhas ssmicas e com as fraturas da histria. Uma poiesis para lidar com a

    poeira, os restos, os fantasmas da histria em uma mesa de montagem que,

    alis, um termo caro Georges Didi-Huberman. Por isso, em Limage

    survivante, o filsofo especifica o que entende por montagem:

    A montagem pelo menos no sentido que aqui nos interessa no a criao artificial de uma continuidade temporal a partir de planos descontnuos agenciados em sequncias. , pelo

    contrrio, um modo de desdobrar visualmente as

    descontinuidades do tempo da obra em toda a

    sequncia da histria. (DIDI-HUBERMAN, 2002b, p.

    474).

    Montagem que implica uma remontagem ou remontagens. Dentro do

    procedimento heurstico que perscruta a imagem, uma montagem que no

    cessa de se desdobrar, como um tecido, um pano, pois Didi-Huberman

    operacionaliza as lies de Warburg sobre as migraes das imagens e seus

    pontos de conectivos. Em Remontages du temps subi, Georges Didi-

    Huberman afirma que no existe imagem, sem dvida, que no implique

    conjuntamente olhares, gestos e pensamentos.25 Ainda segundo o filsofo

    e historiador da arte, ao nos colocar diante de cada detalhe, de cada

    imagem, preciso se perguntar como ela (nos) olha, como ela (nos) pensa

    e como ela (nos) toca ao mesmo tempo.26

    Do detalhe para a montagem, do gesto para a sobrevivncia ou ainda

    para o sintoma. Enfim, na expanso do ethos apolneo no pathos

    dionisaco, a imagem uma intermitncia, uma zona de intervalos, modo

    de desdobrar visualmente as descontinuidades do tempo da obra em toda a

    sequncia da histria. So intermitncias que invocam da imagem aquilo

    25

    DIDI-HUBERMAN, 2010d, p. 71. 26

    (Ibidem).

  • 128

    que pode ser uma de suas operaes anacrnicas porque toma outras

    temporalidades para alm daquelas que esto inscritas apenas em quadros

    descritivos.

    Assim, um dos deslocamentos epistemolgicos decisivos para

    fundamentar o paradoxo do anacronismo pelo vis do sintoma est no

    resultado de sua tese que Invention de lhystrie Charcot et

    liconographie de la Salptrire, de 1982. H um verdadeiro atlas

    iconogrfico elaborado, sobretudo por Jean-Martin Charcot, na citt

    dolorosa que foi a Salptrire da belle poque que chegou a abrigar quatro

    mil mulheres. Desenhos, fotografia, pintura, teatro, tudo isso foi um

    entorno para a construo descritiva do quadro clnico da histeria. O

    deslocamento epistemolgico est no entrecruzamento da leitura de

    Charcot, da histria, da arte que implica os artifcios histrico, histrico,

    pictural, assinalado tambm no posfcio assinado por Didi-Huberman

    da reedio de Les dmoniaques dans lart, de Jean-Martin Charcot e Paul

    Richer, que tem sua primeira edio em 1887.27

    No referido texto, Georges

    Didi-Huberman l criticamente a justificativa histrica encontrada por

    Charcot na pintura figurativa, onde este provava a existncia de sua

    enfermidade-conceito, a histeria. A arte, para resumir, fornecia a refutao

    decisiva da sustentao do artifcio. Paradoxo. Charcot excomunga o

    demnio da Idade Mdia em nome da existncia nosolgica de um

    conceito.28

    Na obra de Charcot e Richer, por exemplo, h um duplo

    deslocamento. O primeiro deles que essa obra dentro da produo

    cientfica considerada menor; do mesmo modo, na histria da arte, ela

    27

    Note-se que so apenas seis anos de diferena entre a tese de Warburg sobre Boticcelli, de 1893, e Les

    dmoniaques dans lart, de Charcot e Richer, de 1887, o que pode ser um intervalo cronolgico muito

    curto para uma oscilao entre a ninfa e a histrica. Tal oscilao requer uma abertura nesse intervalo

    cronolgico, pois existe no pensamento de Georges Didi-Huberman todo um pathos da figurao crist

    que existe na figura feminina do lamento. Isso ser aprofundado em outro ensaio. 28

    DIDI-HUBERMAN, 1984, p. 126.

  • 129

    irrelevante. Em Les dmoniaques dans lart, encontramos um ponto

    luminoso, um vaga-lume, para o pensamento de Georges Didi-Huberman,

    pois a obra de Charcot produz anacronicamente a sobrevivncia do sintoma

    da histeria que vai das gravuras antigas do sculo V at a produo

    iconogrfica feita por Richer na Salptrire, enfim, dmoniaques

    convulsionnaires de sua atualidade. Assim, gravuras, guas-fortes

    annimas, baixos-relevos, manuscritos, mosaicos, todo o princpio da

    figurao crist retomado, onde os milagres se convertem em cura e as

    possudas se transformam em histricas. Tudo est atravessado pela

    permanncia do gesto. A transformao histrica da linguagem do

    evangelho em linguagem cientfica, da imagem da possesso em imagem

    clnica , sem dvida, uma mudana epistemolgica que no pode ser

    desprezada pela filosofia, pela literatura, pela histria da arte, pela crtica.

    Tomando em considerao esse aspecto morfolgico do conhecimento,

    Didi-Huberman faz uma passagem de Baudelaire a Charcot: Baudelaire

    escreveu que o mais belo artifcio do demnio persuadir que ele no

    existe. O prprio Charcot pensou convictamente que o demnio no existia

    porque existe a histeria.29 De Charcot a Warburg, de Freud a Bataille, de

    Maldiney a Binswanger, de Benjamin a Brecht ou Harun Farocki, da Arte

    Povera a Pasolini, de Fra Angelico a Giacometti, de tienne-Jules Marey a

    Bailly-Matre-Grand ou Duchamp, de Goethe a Borges, de Baudelaire a

    Beckett, Georges Didi-Huberman desloca o objeto artstico pelo

    anacronismo que ele contm, pelas aberturas na histria que ele mesmo

    provoca, pelas armadilhas ou pontos cegos que eles criam para a prpria

    teoria, assim como os desafios para o pensamento. Trata-se, portanto, da

    tarefa sensvel de um sismgrafo.

    Tomando a j clssica imagem do catador, o historiador-sismgrafo

    no um simples descritor dos movimentos visveis: ele , sobretudo,

    29 DIDI-HUBERMAN, 1984, p. 127.

  • 130

    inscritor e transmissor dos movimentos invisveis que sobrevivem, que se

    tramam sob nosso sol, que se cruzam, que esperam o momento por ns

    inesperado de se manifestar de repente.30 Nessa perspectiva, as

    aproximaes antropolgicas (tomando em considerao uma antropologia

    cultural, fsica e comparada) feitas por Georges Didi-Huberman podem

    muito bem estar condensadas, a partir de Rainer Maria Rilke, no gesto

    como um fssil em movimento, no qual por sua vez rastro do presente

    fulgaz, do desejo de onde se forma nosso futuro.31 Enfim, existe um

    Leitfossil nas imagens; elas no esto desarticuladas, mas so um ritmo a

    ser percebido pelo historiador-sismgrafo.

    Desdobrando essa sismografia com a tarefa do historiador da arte (ou

    ainda do historiador da histria da arte) est o trabalho do filsofo. Henri

    Maldiney, autor caro a Georges Didi-Huberman, em Regard, parole,

    espace, mais precisamente em um texto de 1967, Lesthtique des rythmes,

    toma o papel do filsofo como o de um perturbador. Este seria o seu trato

    comum com o artista, pois, segundo Maldiney, o que a cincia faz para

    tranquilizar a arte faz para perturbar.32

    Nota-se aqui um historiador-

    sismgrafo que provoca tremores, ou seja, que intempestivo. Dentro de

    um saber metamrfico, morfolgico, heurstico, Didi-Huberman pensa com

    os artistas Por que a histria da arte sempre est se recompondo:

    Os artistas nem sempre se contentam em fazer obras

    primas, por exemplo, quadros admirveis. Muitas

    vezes preocupam-se em reconstruir, do seu modo, sua

    prpria relao com o tempo, seu prprio lugar na

    histria da arte. Fazem em seguida mais

    modestamente, como meros pesquisadores tabelas,

    esquemas, montagens, diagramas. Eles se convertem

    30

    DIDI-HUBERMAN, 2002b, p. 123 31

    DIDI-HUBERMAN, 2010a, p. 406. 32

    MALDINEY, 1994, p. 147.

  • 131

    de algum modo nos historiadores no mbito da histria

    que pretendem modificar. (DIDI-HUBERMAN, 2010a,

    p. 254).

    pensando com outro limite de obra que Georges Didi-Huberman

    pe em comum o artista e o pesquisador. Os movimentos ssmicos da

    imagem no so apenas um produto final (quadro, tableau), mas um

    processo em movimento que no abre mo de um espao contnuo de

    montagem (mesa, table), espao por excelncia daquilo que est em

    formao, como o que se sustenta em tabelas, esquemas, montagens,

    diagramas. So restos, portanto, imagens que tambm nos fazem imaginar.

    Afinal, justamente isto que Didi-Huberman escreve em Limage ouverte:

    no se desintrinca a imagem da imaginao e esta da economia psquica

    onde ela intervm.33

    Se o princpio, portanto, passa a ser o da imaginao, o saber

    sensvel, o diverso e o lacunar esboroam uma pureza epistmica, se que

    ela existe, mas de todo o modo o mito de um conhecimento sem poeira,

    sem resto, sem fantasma. O verbete Poeira34

    a qual Georges Bataille j se

    referiu na revista Documents e que posteriormente retomado pelo

    pensador, em Gnie du non-lieu, onde a poeira uma forma de pensar o

    mundo.35

    33

    DIDI-HUBERMAN, 2007a, p. 34. 34

    L-se o verbete Poeira, de Bataille, publicado em outubro de 1929 na Revista Documents: Os contadores de histria no imaginaram que a Bela Adormecida despertaria coberta por uma espessa

    camada de poeira; Eles tambm no consideraram as sinistras teias de aranha que seus cabelos ruivos

    teriam estraalhado em um primeiro movimento. No entanto, infelizes camadas de poeira sempre

    invadem as habitaes terrestres e as mancham uniformemente como se se tratassem de dispor os stos e

    os velhos quartos para a prxima entrada dos assombros, dos fantasmas, das larvas, que o odor carcomido

    da velha poeira substancia e embriaga. Quando as jovens gordas, boas para o que der e vier, se armam

    com um grande espanador ou mesmo com um aspirador de p a cada manh, elas talvez nunca ignorem

    sua contribuio assim como a dos sbios mais otimistas em afastar os fantasmas malfeitores que

    intimidaram a adequao e a lgica. Dia ou outro, verdade, a poeira, porque persiste, provavelmente

    comear a alcanar os empregados, invadindo imensos escombros abandonados, docas desertas, e, nesse

    futuro distante, no restar mais nada para salvar dos terrores noturnos: da termos nos tornado to

    grandes contadores (BATAILLE, 1994: p. 109-110). 35

    DIDI-HUBERMAN, 2001, p. 67.

  • 132

    Os intervalos ignoram os axiomas definitivos. O espao do desejo

    assombra o espao do saber. Uma imagem, como j afirmou Didi-

    Huberman a propsito de Beckett, no algo sem ordem: Ela possui uma

    ordem que altera uma ordem de preferncia estabelecida pela percepo

    ou pelos valores culturais pr-existentes. Uma imagem no sem

    organizao, mas esta engana (djoue) o fim que inicialmente lhe foi

    dado.36

    5. O museu, a mariposa

    Georges Didi-Huberman toma o vis da imaginao no como uma

    fantasia pessoal ou gratuita37, mas como algo inerente a uma potncia

    intrnseca da montagem que est nas morfologias de Goethe, nas relaes

    ntimas e secretas das coisas de Baudelaire. Saberes impuros, enfim,

    assombrados pelas intermitncias do desejo e abertos aos espasmos

    prprios do corpo. Claro que problematizar a imagem, seus aspectos

    histricos, sintomticos crnicos e anacrnicos toca em suas formas

    polticas de apresentao e de exposio. aqui que a reflexo em torno da

    histria de fantasmas para adultos tem praticamente na concluso o seu

    era uma vez. Em um prefcio intitulado A la recherche du temps agi,

    do livro La peinture en actes: Gestes et manires dans lItalie de la

    Renaissance, de Bertrand Prvost, Georges Didi-Huberman nos conta uma

    histria de fantasmas para as obras de arte:

    H muito tempo atrs, desde que ns fabricamos esses

    labirintos feitos de vastos corredores chamados

    museus, e nas paredes destes ns cuidadosamente

    arrumamos, uns ao lado dos outros, objetos de vrias

    cores nomeados de pinturas ou quadros. Ns ficamos

    36

    DIDI-HUBERMAN, 2007d, p. 117. 37

    DIDI-HUBERMAN, 2010a, p. 16.

  • 133

    felizes de encontr-los no seu lugar cada vez que ns

    passamos novamente no mesmo corredor. Eles

    formam, uma vez, o mobilirio de igrejas, de palcios aristocrticos ou habitaes burguesas: objetos

    mveis, portanto. Agora, ns os contemplamos presos

    na parede por pesados dispositivos de segurana, mas,

    sobretudo, definitivamente imobilizados na sua

    majestade de monumentos culturais (DIDI-

    HUBERMAN, 2007c, p. 11).

    Este era uma vez do museu que sustenta e legitima diversas obras

    de arte no est distante da histria-calendrio j criticada por Didi-

    Huberman. Parece que o paradoxo do anacronismo incide diretamente no

    espao seguro e imobilizado que tanto pode ser o museu quanto o

    conhecimento. difcil negar a existncia de um assombro frente a esses

    lugares aparentemente tranquilos, museu e conhecimento. O transtorno ,

    inclusive, aquilo que contorna a imagem; seu acontecimento que inquieta

    o artista, pois seus esquemas, esboos, reflexes e escritos no so algo que

    deva ser isolado do que pode ser considerada uma obra-prima, por

    exemplo. Para especificar tal aspecto, Didi-Huberman toma uma carta de

    Vincent van Gogh a Theo na qual o pintor narra ao seu irmo a apario de

    uma mariposa noturna em seu quarto. Van Gogh se recusa a pint-la. Na

    recusa, h a questo: para pint-la teria que mat-la. No entanto, essa

    mariposa, essa imagem permanecer assombrando-o: essa grande

    mariposa noturna, to estranha, que chamam esfinge da morte [tem] uma

    colorao extremamente elegante, negro, cinza, branco matizado com

    reflexos carmim ou rapidamente alterados para o verde oliva.38 Como

    Georges Didi-Huberman j enfatizou em algumas entrevistas, a imagem

    uma mariposa. Para obt-la, fix-la preciso mat-la. Assim como as mais

    simples imagens so uma rede complexa de ligaes, de camadas, de

    energia corporal, de assombro e ainda de restos, de inacabamentos e de

    38

    VAN GOGH apud DIDI-HUBERMAN, 2007c. p. 23.

  • 134

    abandonos, a cultura imprime sua tragdia na regra do domnio de suas

    prprias evolues (na qual, inclusive, se pode ler nessa chave a

    historiografia e a iconologia). Enfim, o que restaria s imagens seriam

    vestgios de experincia e ao mesmo tempo experincias em si. Situao

    paradoxal: aquilo que est morto, mas que porta gestos e que pulsa em

    movimentos vitais que ainda resistem em permanecerem vivos. A partir de

    tais consideraes, fica a pergunta: o olhar no seria um modo de

    desarquivar o gesto, incluindo o prprio fato de desmobilizar a cultura?

    Possivelmente, estar diante da imagem e do tempo, do gesto e da

    permanncia talvez seja reunir imagem, tempo, gesto, permanncia e mais,

    experincia e histria. Dizer agora era uma vez um fantasma, a imagem

    significa no desprezar por completo a semelhana e a representao, mas

    jogar com elas pela diferena que pode ser produzida, pela apresentao da

    imagem e, sobretudo, pela possibilidade de pensar seus intervalos. No

    catlogo Atlas Cmo llevar el mundo a cuestas?, Georges Didi-Huberman

    no faz um apanhado apenas de artistas contemporneos, mas um

    panorama crtico que pensa sua trajetria como filsofo e historiador da

    arte. As questes por ele tratadas e discutidas em seus livros esto na

    exposio. Alterando o papel de curador, o filsofo-arquelogo expe suas

    fontes. Por intermdio de verbetes, existe uma nova vizinhana entre

    artistas, obras, dirios, esquemas, esboos e objetos. Um modo

    intempestivo para pensar a arte no apenas pela histria ou pelo

    contemporneo, mas uma rearticulao de ambos. Aproximar uma

    escultura annima romana de um Atlas (49 d.C.) de outra de Bruce

    Nauman (1970), expor dirios de Jacob Burckhardt, de Meyer Schapiro, de

    Bertold Brecht ou um atlas geogrfico cortado por Rimbaud aos oito anos

    de idade pensar uma heurstica que implica contnuos recomeos.

    Justamente por isso, um dos verbetes que implicam um recomeo intitula-

    se Abecedrios e pedagogias da imaginao.

  • 135

    Voltar a partir do zero: repensar as coisas de A a Z.

    Aprender de novo, sem descanso, comeando pelas

    coisas de aparncia mais simples. Ensaiar sem partir de

    um axioma: ensaiar para ver, inventar novas regras do jogo e adot-las apenas se doam algo, se so

    fecundas (atitude que os eruditos denominam

    heurstica). Seja com a seriedade de uma empresa

    pedaggica, seja com o alvoroo de uma criana que

    lanara as letras do abecedrio pelo ar: essa a atitude

    prpria da gaia cincia, com a qual Nietzsche nos incita

    a subverter a separao secular entre o inteligvel e o

    sensvel (DIDI-HUBERMAN, 2010a, p. 264).

    Enfim, voltar a partir do zero ter em mente que, a cada novo

    trabalho, a cada nova obra ou livro, tudo capaz de se reorganizar. A arte

    tenta se refazer; do mesmo modo, a histria, a filosofia, a literatura, dentro

    da heterocrnia contida na constelao e caos das imagens. Dessa maneira,

    existe uma distncia praticamente ontolgica entre quadro (tableau) e mesa

    (table). Se o quadro ocupa um lugar de conforto em meio aos corredores

    labirnticos do museu, a mesa, por sua vez, o espao do esboo, de

    permanente confronto de experincias onde no se separa forma de

    formao (Bild de Bildung), muito menos imagem de imaginao.

    Possivelmente em uma perspectiva do ttulo e mxima do pintor e

    gravurista espanhol Francisco Jos de Goya y Lucientes El sueo de la

    razn produce monstruos, sem esquecer a potncia existente na

    articulao do que Goya intitulou de Disparates, Caprichos e Desastres,

    Georges Didi-Huberman internamente l em Aby Warburg a arte de

    apresentar (chantillonner) o dispars, o caos no espao (DIDI-

    HUBERMAN, 2011, p. 8). A razo opera com o assombro da imaginao,

    assim como a imagem existe enquanto fantasma. Se em Nietzsche o ethos

    apolneo se expande no pathos dionisaco, em Warburg o pensamento no

  • 136

    plano psico-histrico da tragdia da cultura39 acontece como um conflito

    (disparate) entre os astra e os monstra. Entre ambos (astra e monstra)

    acontecem muitas articulaes que vo da dilacerao dos monstra

    constelao dos astra. Os monstra seriam justamente os poderes da

    imaginao, enquanto que os astra, a capacidade de discernimento da

    razo. Ou, ainda, conceito (astra) e caos (monstra), como ensaia Georges

    Didi-Huberman. Tais articulaes no acontecem sem um processo

    migratrio, o que resulta em uma eterna passagem de fronteiras (espaciais e

    temporais) das imagens. Nessa passagem, as imagens tanto traduzem

    quanto traem, tanto so acessveis quanto incompreensveis.40

    As ideias de constelao e de desastre no esto distantes do

    pensamento de Benjamin, sobretudo se essas afinidades forem pensadas no

    contexto de duas guerras que praticamente assolaram parte do territrio

    europeu. Warburg, que morreu em 1929, no vivenciou as atrocidades da

    Segunda Guerra, embora tenha sido profundamente perturbado pela

    Primeira. Diante do aparato de reproduo fotogrfica, Warburg possua

    uma verdadeira coleo de pesadelos em sua Kriegskartothek, que em

    1918 compreendia 72 caixas, reunindo uma mdia de 90 mil fichas.41

    Nesse

    contexto, Warburg lido por Georges Didi-Huberman:

    Aby Warburg que, lembremos, definia a histria das imagens como uma histria de fantasmas para adultos (Gespentergeschichte f[r] ganz Erwachsene) teria abordado a Grande Guerra como uma luta com as ideias, uma luta com as imagens, mas tambm uma

    luta com fantasmas, luta a qual a civilizao europeia

    39

    O termo tragdia da cultura, utilizado por Georges Didi-Huberman para ler o conflito entre os astra e os monstra vem do ensaio La tragdie de la culture, de Georg Simmel. Na leitura feita em chantillonner le chaos, Georges Didi-Huberman se vale de Simmel justamente para ler em Warburg a questo do desenvolvimento interno dos objetos em uma lgica prpria, que sai do prprio conceito (de

    cultura) do mesmo modo que foge lgica da natureza. A lgica e sua conseqncia criam um desvio de

    direo ou de rota naquilo que poderia ser integrado em uma evoluo psquica individual dos seres

    humanos (SIMMEL, 1993, p. 208). 40

    DIDI-HUBERMAN, 2011b, p. 27. 41

    DIDI-HUBERMAN, 2011b, p. 32.

  • 137

    como um todo tinha empenhado tudo o que ela tinha

    (DIDI-HUBERMAN, 2011b, p. 38).

    nessa chave conflituosa entre astra e monstra que o saber na

    cultura acontece de forma trgica, perturbadora, para trazer uma palavra de

    Henri Maldiney com relao ao filsofo e ao artista frente cincia. Mas

    tambm diante desta cultura e da leitura das imagens h um conflito entre o

    que est fragilmente vivo (a mariposa) e o que est majestosamente exposto

    (o museu).

    A surpresa frente a essa oscilao talvez seja ler a prpria cincia

    como uma profecia, onde se capta as nuances de intuio do conhecimento

    e de uma inteligncia capaz de advinhar. Cincia/ como/ profecia

    (Wissenschaft/ als/ Prophetie), lembra Georges Didi-Huberman

    praticamente esses trs versos de Warburg que estavam em um manuscrito

    que acompanhava a elaborao do Atlas Mnemosyne.42

    A cincia como

    profecia inscreve outra forma de conhecimento (saber pelo sofrimento,

    saber alegre ou ainda no-saber), justamente um saber que existe diante

    dos excessos. Enfim, de modo sucinto, Georges Didi-Huberman l a

    primeira e a ltima prancha de tal Atlas: Como a primeira prancha de

    Mnmosyne sobre a adivinhao, a ltima consagrada histria

    contempornea aparecer facilmente como um exerccio de adivinhao

    ou, pelo menos, de inquietao, de pressentimento poltico.43 Com a

    imaginao assombrando o conhecimento, com imagens que migram e

    atravessam distintas culturas pelo gesto, pela sobrevivncia, as imagens se

    tornam uma atuao contnua (e descontnua) de fantasmas de histrias

    incessantemente contadas.

    42

    DIDI-HUBERMAN, 2010a, p. 191. 43

    DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 39.

  • 138

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