andrea cecilia ramal - histórias de gente que ensina e aprende

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Page 1: Andrea Cecilia Ramal - Histórias de Gente que Ensina e Aprende
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HISTÓRIAS DE GENTE QUE ENSINA

E APRENDE

Page 3: Andrea Cecilia Ramal - Histórias de Gente que Ensina e Aprende

Coordenação EditorialIrmã Jacinta Turolo Garcia

Assessoria AdministrativaIrmã Teresa Ana Sofiatti

Assessoria ComercialIrmã Áurea de Almeida Nascimento

Coordenação da Coleção EducarLuiz Eugênio Véscio

Editora da Universidade do Sagrado Coração

EDUSC

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HISTÓRIAS DE GENTE QUE ENSINA

E APRENDE

Andrea Cecilia Ramal

Page 5: Andrea Cecilia Ramal - Histórias de Gente que Ensina e Aprende

Editora da Universidade do Sagrado Coração

EDUSC

EDITORA DA UNIVERSIDADE DO SAGRADO CORAÇÃORua Irmã Arminda, 10-50

CEP 17044-160 - Bauru - SPFone (014) 235-7111 - Fax (014) 235-7219

e-mail: [email protected]

Copyright © 1999 EDUSC

Ramal, Andrea Cecilia.Histórias de gente que ensina e aprende / Andrea,

Cecilia Ramal. -- Bauru, SP: EDUSC, 1999.102 p.; 21 cm. -- (Educar)

ISBN 85-86259-80-2

1. Educação. I. Título. II. Série.

CDD - 370

R1656h

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Apresentação 7

À procura do Santo Graal 11

Era uma vez uma escola 23

O Menino e a caixa 27

O Arquivo de gavetinhas 29

A Escola dos macacos e dos papagaios 31

A História da avaliação 37

A Professorinha e os especialistas 47

A Caminho da escola 61

A Aula de pesca 73

O Perfil de um mestre 79

Os pássaros 91

A Aula de Leitura 93

sumário

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“Histórias de gente que ensina e aprende são nossashistórias”, foi o que pensei quando terminei de ler o li-vro pela primeira vez.Nossas porque falam de coisas vivi-das por nós que, um dia, entramos devagarinho na esco-la como alunos e nela continuamos até hoje (10, 15, 20anos depois, tantos!), como professores, coordenadoresou diretores:doces conquistas,momentos delicados,pro-blemas mais ou menos difícieis,desafios,encontros.E sãohistórias contadas de um modo que convidam à reflexão,partilham a crítica,propõem a generosidade,exigem queum olhar sensível e informado seja dirigido às mais dife-rentes situações da escola.

Escritas com suavidade, ironia e poesia, produzidascom a firmeza de quem, como Andrea, domina a teoria enão abre mão da ética e da utopia, nessas histórias vocêirá encontrar, leitor,sobretudo lições que apostam no mo-vimento,na mudança,na tentativa de fazer de outro jeito.

apresentação

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Escritas com meiguice e bom humor,as histórias fa-lam para além das palavras;o pensamento,a partir delas,voa, transita, se inquieta. Desde “À Procura do SantoGraal”, a questão é a procura de si, do outro e da espe-rança.Mas indo “A Caminho da Escola”encontramos me-ninos,caixas,arquivos,gavetinhas,macacos e papagaios,histórias de avaliação, professores e especialistas. Nestetrajeto, Andrea surpreende a própria escola com seusmodismos; denuncia o preconceito que se manifestanos íntimos momentos da vida escolar, mas os com-preende,contesta o autoritarismo mas afirma que é pos-sível superá-lo.Assim, caminhando com a autora, temos“Aula de pesca”, conhecemos o “Perfil de um mestre” –e nele nos reconhecemos –, vemos pássaros (poema emprosa) e entramos na “Aula de Leitura”. Ao longo do per-curso, as histórias se referem ao dia a dia mas, ao mes-mo tempo,nos transportam,puxam e empurram,provo-cam a emoção, o riso, a indignação e a vontade de en-tender, de debater, de refazer, desfazer, transformar. An-drea diz no poema “Era uma vez na escola…” que ele éuma homenagem a Paulo Freire; para mim, o livro intei-ro é uma homenagem ao mestre, por nos oferecer apossibilidade de tecer uma leitura do mundo crítica ecriativa, indignada e resistente, firme e suave.

Walter Benjamim – um filósofo com quem apren-do muito – ensina que um acontecimento vivido é fini-to, se esgota nele mesmo, na vivência imediata, enquan-to um acontecimento contado se torna infinito por seentregar a muitas possibilidades de compreensão, porentrar numa corrente da história para além do cotidia-no, tornando-se verdadeira experiência. É dessa forma

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que vejo as histórias aqui apresentadas por Andrea:como experiências contadas de um modo que o mundoda escola e seus problemas se revelam a partir de umaperspectiva mais coletiva e, acima de tudo, humana,onde os elos de solidariedade são esboçados, traçados,firmados.

A publicação deste livro vem atender, do meu pon-to de vista, a uma necessidade existente no campo edu-cacional. Temos aqui textos que tratam de situações daprática pedagógica, articulando cognição e afeto, di-mensão individual e coletiva,conteúdo e forma, teoria eação educativa, cotidiano e história, fazendo isso comgraça, simplicidade, seriedade, açúcar e afeto, aliás umamaneira competente e eficiente de falar da escola sequeremos compreendê-la nas suas contradições e nasua complexidade.

Os contos, poemas e crônicas incluídos neste livrointeressam aos profissionais que trabalham com crian-ças, jovens e adultos, e também aos estudantes das es-colas de formação de professores, dos cursos de peda-gogia e das licenciaturas, a todos que se importam comas questões educacionais, aos professores e aos alunosque, passando tanto tempo dentro da escola precisamaprender a vê-la com outros olhos,a buscar outros enre-dos, a ouvir e contar mais…

Sonia Kramer

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Por mais que se esforçasse, seus alunos não gosta-vam de estudar.

Preparava cuidadosamente as aulas, cumprindo to-dos os passos que haviam lhe ensinado, durante quatroanos de formação superior, acerca da elaboração deplanos de ensino e da escolha de caminhos metodoló-gicos. A cada conteúdo a ser trabalhado, pensava e re-digia de modo muito preciso e completo os objetivos aserem alcançados; depois, calculava as melhores estra-tégias: aula expositiva, música, filme, trabalho escrito,estudo dirigido, criação de textos... Tudo com o tempominuciosamente cronometrado e, é claro, uma margemde flexibilidade que,devido à sua experiência, raramen-te precisava ser utilizada.

No entanto, seus alunos não gostavam de estudar.Nas aulas expositivas, mantinham-se apáticos, to-

talmente desinteressados,como que sem vontade de vi-ver. Nem pareciam as mesmas crianças que, no recreio,

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à procura do santo graal

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ela via disputando a bola com a gana de quem daria opróprio sangue para alcançar a vitória naquele jogo dequinze minutos.

Quando preparava uma aula com música, o entu-siasmo durava apenas até saber quem era o cantor ouqual era a canção proposta. Nem pareciam as mesmascrianças que ela contemplava, mais tarde, submersasnum mundo próprio, com o fone do walkman nos ou-vidos, e às vezes, para seu estranhamento, ouvindo amesma melodia que há instantes haviam rejeitado.

E assim por diante, qualquer que fosse a atividadeproposta para cada dia.

Como a professora era muito preocupada com umensino de qualidade, e rejeitava as velhas posturas tra-dicionais, de culpar apenas a falta de estudo dos alunosdiante do fracasso da aprendizagem, e como tambémconsiderava já ter esgotado todos os próprios recursos,pensou em procurar ajuda e recorrer aos conselhos deum sábio.

Decidiu visitar um ancião que era famoso por ha-ver sido um excelente educador em outros tempos.“Ele saberá me ajudar”, pensou,confiante.E foi até o lu-gar em que esperava poder encontrá-lo.

Para sua decepção, o velho já não tinha muita pa-ciência para conversar sobre as coisas que ela querialhe falar. Ouviu sem muito interesse a descrição de to-das as atividades que a professora costumava propor àsua turma.Apenas folheou os planos de curso e de aulaque ela levara, cuidadosamente encadernados paraaquela ocasião. E chegou a bocejar enquanto ela falava

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de sua frustração por, apesar de cumprir à risca todasas inovações metodológicas das teorias pedagógicasmais atualizadas, não conseguir motivar os alunos.

“O que o senhor me aconselha fazer?”, inquiriu elafinalmente, ávida pela resposta.

O sábio, então, falou:- Existe uma lenda que tu, como professora, de-

ves conhecer: a lenda do Santo Graal. Lembras-tedela?

- Sim, lembro-me muito bem - respondeu ela, cu-riosa pelo sentido desta referência, e satisfeita peloancião lhe falar de modo enigmático, como imagina-va que todo sábio devia fazer. E continuou - O SantoGraal era o cálice sagrado, pelo qual muitos cavalei-ros medievais procuraram e que, para muitos, seconstituiu na razão de ser e no sentido da sua exis-tência.

- Pois bem -, replicou o sábio, agora mais paciente- digo-te que em verdade, para cada profissão, há umSanto Graal a ser buscado. Para muitos, como na lenda,ele sequer existe, e não vale a pena perder tempo comtal idéia. Para outros, porém - e nesse momento olhoupara ela com cumplicidade e certo mistério - ele existee pode ser encontrado.

O sábio prosseguiu:- Quando o profissional encontra esse Santo Graal,

ele descobre que não é só o trabalho, mas a própriavida, que ganha um novo sentido.

A professora ouvia, atenta, sem desviar os olhos domestre.

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- Tudo é acessório, pouco é essencial. Isso é o queeu tenho a te dizer: busca onde deves buscar, e encon-tra, então, o teu Santo Graal.

Depois desta frase, apesar da perplexidade da pro-fessora, o sábio encaminhou logo a conversa para asdespedidas e os desejos de boa sorte.

Nos dias que se seguiram a este encontro,a profes-sora se via taciturna e pensativa. “Que Santo Graal éesse?”;“Como e onde poderei encontrá-lo?”, pergunta-va a si mesma.

E, enquanto isso, como não vislumbrava aindaqualquer outra possibilidade, continuava desenvolven-do as suas aulas com métodos criativos e realizando ex-periências didáticas inovadoras, porém sem observarqualquer modificação no comportamento indiferentedos alunos.

Assessorou-se com a coordenadora do setor de in-formática e levou a turma para estudar nos microcom-putadores: novo insucesso, pois os alunos simplesmen-te se esqueceram de sua própria presença na sala, tãoinebriados ficaram com as maravilhosas máquinas. Aoinvés de prestar atenção aos conteúdos, fascinavam-secom a forma como estes eram apresentados nos moni-tores. Foi difícil avisá-los do avançado da hora e conse-guir que voltassem para sua sala, a fim de receberem oprofessor da matéria seguinte.

Obteve a aprovação da diretora da escola parauma excursão para o estudo da natureza da região ser-rana; contratou ônibus, solicitou autorizações dos res-ponsáveis, fez o passeio. Novo fracasso: os alunos con-versavam o tempo todo entre si mesmos, usando gírias

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e vocabulários específicos do grupo, e raramente inter-rompiam a alegria do passeio para ouvir suas explica-ções sobre a vegetação ou a fauna dos locais por ondepassavam.

E assim ia crescendo a indagação que a professora fa-zia a si mesma,e a ansiedade por encontrar alguma saída.Buscava em livros de teóricos renomados alguma chavepara o que podia vir a ser o seu Santo Graal, de que o sá-bio lhe falara. A cada nova teoria pedagógica que lia, acada experiência didática diferente que ouvia contar, ti-nha a sensação de que aquela,exatamente aquela,daria adireção para o seu Santo Graal a ser alcançado. Mas tudoera em vão,bastava colocar as idéias em prática para queo velho cotidiano se repetisse e a professora voltasse paracasa, mais uma vez, desestimulada e frustrada.

Mesmo assim, a coisa não lhe saía da cabeça:- Como chegarei até o Santo Graal?

Muito tempo se passou, e sempre do mesmomodo, até que a professora teve, finalmente, a sensaçãode que sua busca não tinha mais razão de ser.

Tentara de tudo: ninguém mais do que ela, em suaescola, havia lido tanto e feito tantas experiências detransformação do ensino. Entretanto, o resultado espe-rado não chegara.

“Tenho que me conformar”, pensou. “Os temposmudaram, não devo mais estar preparada para lidarcom estas gerações”. Embora fosse ainda bem jovem,reconhecia que a distância entre as idades aumentavacada vez com maior rapidez, e sentia-se ela mesma umavítima desse fenômeno.

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“Não vou abrir mão dos meus métodos moder-nos”, assegurou a si mesma;“mas vou tentar esqueceressa obsessão de querer que meus alunos gostem do es-tudo e da sala de aula”.

- Um dia, já quando adultos, eles lembrarão das au-las e valorizarão o meu trabalho - consolou-se, triste-mente.

E decidiu parar de se incomodar com a indiferen-ça de seus estudantes.

Sem que a professora se desse conta,porém,aqueladesistência abalou profundamente o seu interior.Depoisdaquela decisão radical,à medida que os dias iam passan-do, um estranho fenômeno começou a acontecer: a vozda professora foi ficando mais fraca, e cada vez mais fra-ca, até que acabou por desaparecer definitivamente.

Suspeitou de um calo nas cordas vocais, problemacomum entre seus colegas de profissão: os examesnada indicaram.

O médico receitou-lhe descanso de uma semana,ficando em casa e evitando emitir qualquer tipo desom. Depois dessa licença, voltou à escola da mesmamaneira: sua voz não reaparecera.

Agora a professora sentia-se envergonhada de ir àsala de aula. “Como explicarei as coisas aos alunos?”,perguntou-se.“Como apresentarei a matéria?”

A direção acompanhava o caso com toda a bene-volência. Aquela professora era das mais esforçadasda escola, não era justo demiti-la ou afastá-la do cargonum momento daqueles. Sua busca de renovaçãoconstante era um exemplo para todos, havia até

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quem invejasse sua motivação, risse de seu “furor pe-dagógico” e se referisse a ela com escárnio quando avia, de lá para cá, com gravador numa das mãos, fitade vídeo na outra.

Mas diante daquela situação, todos estavam mobi-lizados.“O que estaria acontecendo?”, perguntavam-seos colegas, com pena e, ao mesmo tempo, com receiode que aquele mal os atingisse em algum momento desuas carreiras.

Sentindo que o impasse se prolongava, a professo-ra ofereceu, por escrito, seu pedido de demissão à dire-toria.“Não tenho condição de dar aulas deste modo”,alegava,“e quero deixar a direção à vontade para deci-dir sobre um substituto para meu trabalho”.

A direção chamou-a e negou veementementeaquela idéia.“De nenhuma maneira!”, insistiu a dire-tora,“tu és uma professora exemplar; estudiosa, moti-vada, preocupada com a qualidade do processo deensino-aprendizagem”. Garantiu que a escola nãoabriria mão de sua presença sem antes ter certeza so-bre a irreversibilidade daquele mal que a acometera.“É muito cedo para dizer algo sobre isso”, assegurou.E terminou o encontro sugerindo que a professoravoltasse à sala, e continuasse as aulas durante mais al-gum período.

- Afinal, - argumentou a diretora - tuas lições sãotão bem preparadas que a turma vai sempre ter o quefazer. Confia em mim - pediu-lhe, mas sem ter, inte-riormente, ela própria, muita certeza sobre o que su-cederia.

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Foi-se a professora, muito envergonhada, para suasala de aula. Ao entrar, foi logo escrevendo no alto doquadro-negro, em letras grandes: “Ainda continuo semvoz”. Sob esta frase traçou, depois, as orientações para odia: fazer a ficha de estudos, página 4, exercícios 1 a 5.Era um trecho que se referia a um desenho animado aque os alunos haviam assistido. Como ela não podia ex-plicar, decidiu confiar na capacidade e na autonomia decada um para pesquisar e se recordar do que havia visto.Como o tempo da aula seria longo e precisava ser todopreenchido,não podendo ela falar nada, teve a idéia, ain-da, de escrever:“Observação: discutir com o colega sem-pre que necessário as respostas que serão colocadas”.

E, resignada, sentou em sua cadeira de professorae dedicou-se a observar a turma, enquanto folheava opróprio plano de curso para recalcular o tempo do bi-mestre.

Naquele momento, sentada atrás da mesa, embai-xo do tablado, ouviu um som que lhe pareceu insólito,até então desconhecido.

Aguçou os ouvidos para escutar melhor: novamen-te veio o som - lindo, musical, enchendo a sala de aula,como que encantando o ambiente, e crescendo cadavez mais.

Era um som com palavras? Sim, parece que sim...O que dizia? Procurou ouvir, colocando todos os senti-dos nessa escuta.

Então conseguiu distinguir de onde vinha aquelemurmúrio fascinante: eram as vozes das crianças, quehaviam começado a se pronunciar, primeiro timida-mente, depois com maior desenvoltura, mais leveza, e

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agora já preenchiam todo o espaço da sala, como umaorquestra que chega, na sua harmonia encantadora, aomomento em que todos os instrumentos participam.

Assim, calada, não mais por força maior, mas porvontade própria, como que por um encantamento, elaficou durante vários minutos, ouvindo maravilhadaaquele som inebriante, que não era bem um ruído,eram quarenta vozes afinadas pronunciando, cadauma, pensamentos, opiniões, criações, sentimentos.Não podia tirar os olhos das crianças, extasiada ao verque muitas das coisas que ela havia lhes ensinado es-tavam, agora, saindo nas palavras delas, transformadas,ditas em outra linguagem, mais simples mas tambémmais bonita, convertendo-se em argumentos própriospara que o grupo optasse por uma ou outra respostaao exercício.

Sorriu com uma satisfação que nunca sentira den-tro daquela sala. Sorriu pelo prazer que aquela músicafalada lhe proporcionava, aquela melodia que pareciatocar dentro dela mesma, ou que talvez fosse vinda docéu, mais linda que um coral de pássaros e sinos deigreja do entardecer das cidades do interior.

A melodia era tão doce, suave e contagiante queela não pôde permanecer sentada - num ímpeto, deci-diu andar pela sala, e sentar em meio aos grupos, paraouvir de perto o que diziam. De repente, lá se viu elaprópria, sentada numa daquelas mesinhas especial-mente feitas para crianças,desequilibrada e ao mesmotempo segura numa das cadeirinhas bambas, amare-las, que havia na sala. Sentou junto com um grupo e,

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entusiasmada com a discussão de uns e outros, não seconteve: falou também.

Sua voz havia voltado.As crianças, no início, se espantaram com o fato,

já que a professora dissera que estava sem poder fa-lar. Mas logo reagiram naturalmente, esquecendo dis-so. Não sabiam bem por quê, naquele dia ela não pa-recia a professora de sempre, não estava querendoexplicar como se respondia, o que tinha que ser es-crito, nem dizendo que palavras eram mais adequa-das para preencher aquelas linhas. Naquele dia, a pro-fessora parecia mais interessada em saber, para sur-presa deles, o que eles pensavam, como se expressa-vam, o que tinham a dizer. No início, tiveram a tenta-ção de perguntar-lhe logo:“está certo assim, professo-ra?”; ou “pode responder assim, professora?”. Porém,acabaram deixando de lado essa intenção. E começa-ram então todos a discutir, como num só grupo dealunos, o que seria colocado naquele exercício, queidéia era mais apropriada, e até quando um deles fezuma brincadeira, a professora riu, e chegou a comple-tar com um gracejo ainda mais divertido, que levoutodos a rirem como nunca - muito embora, curiosa-mente, aquele fosse o trabalho mais sério que jamaishaviam realizado.

Em meio àquela inusitada sinfonia em que to-das as vozes soavam junto com a sua, numa harmo-nia que a ela parecia tão bela, uma das criançasmais novas, muito pequenina, aproximou-se e lheperguntou:

- Posso ir beber água?

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A professora respondeu:“Pode!”, contendo-se paranão gritar, sufocando a própria euforia, aquela alegriaque lhe explodia no peito, com vontade de abraçaraquela menininha e lhe dizer:“Que voz bonita que tutens, que palavras lindas pronuncias, como é que eununca conversei contigo antes para me contares tantascoisas sobre ti...”

E a menina saiu satisfeita, indo até o bebedouroque ficava logo na porta da sala.

Na volta, trouxe um copo para a professora:- Eu trouxe água para a senhora também - disse a

menina,no que era seu primeiro movimento de aproxi-mação afetiva em tanto tempo de conteúdo trabalhadoe tantas páginas de plano de curso cumprido.

A professora sorriu, agradeceu e bebeu aquelaágua deliciosa e refrescante.

Não precisava mais desse sinal, e mesmo assim eleainda veio, pensou consigo mesma. Somente ela com-preendia que aquele copo d’água era a própria mensa-gem, vinda não saberia jamais dizer de onde, de que elaencontrara, finalmente, o cálice que podia saciar a suasede e outras tantas.

Encontrara, por fim, o seu Santo Graal...

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Era uma vez uma escolaonde trabalhava um mestreque ensinava diferentede tudo o que conheceste.

Em sua aula, não dizia“nada sabes, só eu sei”,nem falava assim:“copiemtudo isso que expliquei”.

Disse que não era elesó quem tinha que ensinare falou que todo mundotinha algo para dar.

“Ninguém educa ninguém”Ninguém “dá” educação:“os homens é que se educam,um ao outro, em comunhão”.

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era uma vez uma escola

(homenagem a Paulo Freire)

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Ensinando o alfabetonão pediu, como já viprá escrever “uva”,“vovó”,“asa”,“ema” ou “siri”:

pediu prá escrever “tijolo”,“enxada”,“trabalhador”,ensinou a escrever “salário”,“justiça”,“direito”,“amor”.

Depois ele então pediaprá falar nossa opiniãopois essas belas palavrasestavam nas nossas mãos.

Nós sentados sempre em rodaíamos tendo consciênciade que toda a teoriade que toda a ciência

só têm valor para o mundose ajudam a transformarSe ajudam o homem pobreaos problemas superar.

Naquela sala de aula se formava todo diaem nossa humilde cabeçauma linda utopia

Podemos mudar o mundo!Prá isso serve aprender!

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Prá construir a sociedadenossa enxada é o saber!

Era assim como se davacada aula deste mestree no fim não tinha notanem tinha prova, nem teste:

Cada um ia falandose se sentia aprovadoporque percebia em sicomo ele tinha mudado.

Tu também vais hoje à escola?Tu também tens o teu mestre?E tu, como te avaliasNo fim de cada bimestre?

Quanto é que tu mudasteem razão e sentimento?O que deste tu ao mundocom o teu conhecimento?

Não te esqueças de uma coisa:se acaso o teu professornão te vê como pessoa,não procura teu valor

Se contigo nada aprendese não pode te escutare apenas nas suas provasé que podes te expressar

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Se não fala de justiçase não quer transformaçãose não vê na aprendizagem um instrumento da ação

Se ele nunca põe afetona sua aula exemplare é só ele quem escolhea matéria que vai dar

Fala a ele desse mestreque acabei de te falar;conta a ele dessa escolaonde se pode sonhar.

Quem sabe ele te escutee juntos possam vivera fascinante aventuraque se chama aprender.

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Todos os dias ele sentava na mesma sala e, comode costume, abria a sua caixa.

Quando o entregador de objetos chegava, cumpri-mentava-o e começava a lançar-lhe as coisas preparadaspara aquele dia. À medida que estas eram lançadas, eleas guardava, indiscriminadamente, dentro da caixa.

No início tentara dividir o espaço em compartimen-tos, e cada objeto ia para seu lugar, de acordo com seugênero e função. Depois as coisas foram ficando confu-sas: havia objetos sem função aparente, e era difícil en-tendê-los ou catalogá-los. Havia também compartimen-tos totalmente cheios, enquanto outros permaneciamquase vazios,e como os objetos se acumulavam teve quecomeçar a sobrepor os elementos.Assim,com uns sobreos outros, e sobre estes os novos que chegavam a cadadia,quase não sobrava espaço livre,e os objetos se amas-savam e se achatavam no fundo e pelos lados da caixa,inutilizados e esquecidos, deformando-a toda.

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o menino e a caixa

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Não havia mais lugar, mas os objetos não paravamde ser jogados pelo entregador para dentro da caixa,que ficava aberta especialmente com esse fim. Algunsnovos, outros muito parecidos com coisas que já haviadentro dela. Mesmo que fossem totalmente idênticos,ele os guardava.

Quando o entregador de objetos terminava sua ro-tineira tarefa, ele então fechava mecanicamente sua cai-xa, amassava e espremia como podia os objetos sobre-postos, como numa mala em que não cabem as coisasde volta da viagem. Depois saía da sala, esquecendo-sedeles até o dia seguinte.

Mas houve um dia em que os lados da caixa come-çaram a ceder.O entregador de objetos ficou atento:pen-sou que de dentro dela,vazando pelos lados,talvez pudes-sem sair objetos novos, frutos de uma combinação criati-va de tudo o que jogara durante todo aquele tempo.

Mas não:eram apenas peças soltas,desconexas,pe-daços das velhas coisas amassadas que haviam se que-brado, partidas dentro da caixa apertada.

Os objetos vazavam e a caixa estremecia, comoum vulcão que se preparasse para entrar em erupção.E assim aconteceu o inevitável:depois de se sacudir emestranhos movimentos sem nenhum ritmo, a caixa sim-plesmente se rompeu numa explosão que lançou osobjetos em múltiplas direções, fragmentos de mil co-res, pela sala e pelo espaço.

Foi quando ele, olhando com expectativa para aprópria caixa esvaziada, viu de seu fundo nascendo,pe-quena, uma coisa nova, estranha e desengonçada, massurpreendentemente linda.

Era, muito tímida e despretensiosa, a sua primeiraidéia.

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Era uma menina muito organizada: achava que játinha nascido assim. Mas na escola aperfeiçoara suaprópria técnica.

Tinha decidido, desde muito criança, organizar aprópria cabeça em gavetinhas, como num arquivo.

Visualizava mentalmente as pastas, com as respec-tivas saliências e os papéis caprichados que indicavamo conteúdo da cada uma: sonhos, projetos, sentimen-tos, lembranças...

A cada dia de aula, conforme fossem a matéria e oprofessor, abria apenas a gavetinha necessária.

Às vezes, em alguma redação ou numa pecinhateatral de fim de ano, tirava certas coisas da gavetinhados sentimentos e da pasta das lembranças. Outras ve-zes (bem menos) das pastas de projetos e de sonhos.Usava, e depois guardava tudo intacto, sem qualqueracréscimo ou modificação.

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o arquivo de gavetinhas

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Mas a maior parte das vezes quase nem usava es-sas gavetas, pediam-lhe que abrisse apenas as pastas dalógica, do cálculo e do pensamento organizado.

Um dia, preparando o material, decidiu não levarmais para a escola a chave das outras gavetinhas.

Não precisava...

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Argumentando a favor da idéia de que a linguagemarticulada seria uma capacidade exclusivamente huma-na, John Locke relata um caso bizarro, sobre o qual elemesmo levanta dúvida.

Diz o filósofo que, para alguns pensadores antigos,além do homem, também os papagaios teriam a facul-dade do raciocínio associado à linguagem.A prova seriauma certa ave daquela espécie que, segundo conta opovo,quando inquirida sobre o lugar de onde vinha, te-ria respondido:“Venho do Brasil”.

- E de onde, no Brasil? - continuara o diálogo.- De Fortaleza - situara melhor, por sua vez, a pró-

pria ave.Locke não deixa de tratar o caso com a seriedade

que lhe era peculiar e diz que não há, entretanto,dadosmais precisos que possam comprovar o referido fatoou a teoria que ele poderia vir a sustentar.

Isso me lembra, de todo modo, o caso de um paísque conheci,onde se acreditava realmente numa teoriaparecida com a que Locke rebatia.Pensavam as pessoas

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a escola dos macacos dos papagaios

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daquele lugar que, na verdade, a primazia da naturezaera dos animais.Afinal, eles já nasciam sabendo as coi-sas fundamentais e não precisavam que alguém lhes en-sinasse. Já o homem, atrasado, deficitário, não nasciacom essas qualidades, e por isso tinha que adquiri-laslenta e gradativamente, num processo que demandavamuito esforço para vencer sua preguiça, única condi-ção inata da natureza humana.

Em função disso, naquele país as crianças freqüen-tavam a escola junto com macacos e papagaios - sendoos professores, evidentemente, representantes destasduas espécies animais.Com os macacos-guias,macaqui-nhos e crianças aprendiam a fazer os movimentos cor-porais. Gesto que o macaco-guia fizesse, gesto que erarepetido à exaustão pelos aprendizes, até que a imita-ção ficasse perfeita e fosse impossível distinguir quemfora o modelo e quem era a réplica.

Com os papagaios-mestres, todos aprendiam a fa-lar elegante e articuladamente. Frase enunciada pelomestre, frase que devia ser aprendida, primeiro apenasbalbuciando os sons,desconhecendo a fonética dos ter-mos, para depois ir ganhando forma, até ficar idêntica àfala inicial.

No final de cada período, havia uma avaliação úni-ca à qual todos eram submetidos. Macaquinhos, papa-gaios-filhotes e crianças passavam por um teste que ti-nha o objetivo de verificar se eles haviam realmente es-tudado e aprendido todos aqueles conteúdos. A cadaaluno era atribuído um número,de acordo com uma es-cala estabelecida previamente, segundo o critério demaior ou menor perfeição na repetição do que os guias

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e os mestres haviam feito ou pronunciado. Em geral, asnotas dos macaquinhos e dos papagaios-filhotes erammelhores do que as dos humanos, e em suas reuniõesde avaliação os macacos-guias e os papagaios-mestrescomentavam que as crianças humanas eram realmentemuito preguiçosas, tinham muitas limitações e logoperdiam o interesse pelas atividades propostas.

Embora algumas crianças abandonassem as esco-las dos macacos e dos papagaios, aquelas que se forma-vam garantiam à sociedade a manutenção de sua cultu-ra, de suas estruturas básicas e de seus valores funda-mentais. Estas, por sua vez, quando ficavam adultas e ti-nham filhos, também os enviavam às escolas em quehaviam estudado,para não deixar que a longa cadeia serompesse.

E assim se fazia a tradição e a história daquele país.Ocorreu, porém, que certa vez apareceu uma

criança diferente das que freqüentavam as escolas dosmacacos e dos papagaios. Era tida como rebelde: nãoqueria fazer nada do que era pedido nas repetições.

Gesto que o macaco-guia fazia, gesto que ele trans-formava, dizendo:“assim ficaria mais bonito”, ou “esteoutro movimento me parece melhor”, e fazia piruetascomo num balé, mexendo com todo o corpo, de ummodo que parecia muito gracioso aos meninos e meni-nas da turma, mas totalmente desengonçado para omacaco-guia e para os macaquinhos.

O mesmo se dava na aula do papagaio-mestre.Aosom pronunciado na frente da sala,antes que os demaiso repetissem, ele contrapunha uma nova possibilidade:às vezes cantando, às vezes em forma de poemas, com

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metáforas e outras variadas figuras de linguagem.Ele di-zia: - o senhor não acha que assim é melhor, professor?

Se o professor sequer compreendia o que o estu-dante propunha, que dizer dos papagaios-filhotes...

Mas as outras crianças da turma, admiradas, em-bora sem coragem de admitir, pensavam:“que bonitaessa frase diferente que ele falou”; “que melodia en-cantadora”.

Quase que naturalmente, aos poucos o estranhomenino foi sendo motivo de uma divisão nas tur-mas. Tanto na aula dos macacos como na dos papa-gaios, as crianças humanas o procuravam, pediamque ele também lhes ensinasse aqueles gestos e mo-vimentos, que ele lhes dissesse como é que se fala-va sem repetir.

Ele respondia sempre:- É só você criar.E explicava:- Eu acho que a vida foi feita para cada um criar as

suas idéias, os seus movimentos... E não para ficar ape-nas repetindo.

As crianças estavam extasiadas. Como aquele pen-samento não lhes ocorrera antes? Como haviam se sub-metido a ficar durante anos e anos de escolaridade ape-nas repetindo, das estruturas simples às mais comple-xas, mas sem nunca pleitear o direito de criarem seuspróprios enunciados, suas próprias danças e seus movi-mentos?

A partir daquela descoberta, ficou praticamenteimpossível assistir às aulas. Os gestos do macaco-guiapareciam às crianças movimentos animalescos, sem

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qualquer estética, perto das piruetas que elas ensaia-vam por si mesmas, nos recreios e fora da escola.As pa-lavras dos papagaio-mestre lhes soavam banais, repro-duções da mesmice do dia anterior e das semanas ante-riores, perto das idéias novas que elas criavam em suasconversas,e que o menino rebelde lhes sugeria aprimo-rar transformando em poesias, em diálogos teatrais, emcanções de amor.

Depois de muita repressão sem sucesso, a direçãoe os professores da escola tomaram uma decisão: erapreciso criar escolas separadas.

Hoje, passados muitos anos, naquele país as crian-ças humanas já têm a sua própria escola.

Lá elas podem criar, reinventar as próprias idéias,descobrir coisas novas sempre que sentem vontade.

Não há um currículo pronto: os conhecimentos aserem estudados vão sendo escolhidos por elas mes-mas, com a ajuda do professor, à medida que vão avan-çando nas descobertas, ao passo que vão desenvolven-do as próprias aptidões, num leque muito amplo depossibilidades que se chama “Mundo”.

Nas provas não vale mais a repetição do que omestre falou, mas sim a criatividade, a originalidade decada aluno, unida à capacidade que se percebe que elefoi desenvolvendo em cada uma de suas faculdades eaptidões, e à profundidade das idéias e das próprias re-flexões.

Parece que nenhum outro humano abandonou asaulas depois desta divisão. Ao contrário, todos traba-lham juntos, com alegria, e os conhecimentos construí-

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dos na escola são logo aplicados na comunidade, paramelhorar a vida de todos.

É claro que ainda existe a escola dos macacos edos papagaios.

Lá continua tudo do mesmo modo,e contam inclu-sive que não se perceberia mudança nenhuma se al-guém a visitasse, depois de tanto tempo.

O que parece incrível é que ainda há algumascrianças humanas que são matriculadas nesta escola.Seus pais e, por sua influência, talvez elas próprias,acreditam mais no método de ensino tradicional dosmacacos-guias e dos papagaios-mestres.

Dizem que suas provas rigorosas e exigentes criammais disciplina.

Dizem que a outra escola é uma bagunça.Dizem que as crianças da outra escola ficam rebel-

des e mal-educadas.Que as crianças da outra escola sequer sabem se

comportar bem.E, por isso, entregam seus filhos para os macacos e

papagaios, a fim de que se formem,contra a própria na-tureza, na arte da repetição...

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Terminado seu domingo,de tanto ter estudado,o aluno se sentiatotalmente preparadopara realizar o testeque o respectivo mestrejá havia planejado.

Entretanto, ao iniciaro exame programado,percebeu que se anunciavaum vexame inesperado,pois a complexa questãoexigia uma equaçãode grau muito elevado.

Com a prova à sua frenteo aluno, apavorado,constatava não captaro estranho enunciado,

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a história da avaliação

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já que aquela operaçãonivelava a avaliaçãode um curso aprofundado.

Entregando ele de voltao exame incompletodecidiu que não seriadesta vez já tão discreto:conhecendo seu valorfoi falar com o professorde um modo bem direto.

O mestre compreendeua veemente reaçãoe também lhe confirmouque era absurda tal questão.Mas bem se justificou:quem tudo isso estipuloufoi a coordenação.

O aluno procuroupelo coordenadore de novo ponderoucomo fez com o professor ;mas ouviu como argumentoque todo o planejamentocabia ao supervisor.

O aluno, obstinado,procurou a supervisãoe apresentou o problemafazendo a indagação:

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se era justo requerero impossível de entendersem qualquer explicação.

Ao que o supervisorigualmente deu razão,pois nem ele desconfiavaa resposta da equação.Mas falou que o diagramado que estava no programavinha lá da direção.

Na curiosa via sacraque ele até sem perceberjá havia começado,foi pedir o parecerda própria diretoria:por que é que se pediaesse complexo saber.

A senhora diretorasem ver nisso muito malrespondeu-lhe calmamentecomo fosse natural:“Quem envia tal programaé o organismo que se chamaSecretaria Estadual”.

Quase sem acreditaro aluno já angustiadoperguntava-se até ondeele seria enviado

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até que por fim chegassealguém que lhe explicasseo porquê tão perguntado.

Naquela Secretariaà qual fora encaminhadorecebeu nova respostasobre a causa do estudado:“Tu tens que considerarque ao fazer vestibularé assim que isso é cobrado”.

O aluno esperavater alguma novidadequando questionou o gruporesponsável na cidadepor dirigir o processodeterminante do ingressoa cada universidade.

Disse o chefe do projeto:não me falta consciênciade que um conteúdo dessesvai além da tua experiência.Quem quer tal complexidadeé a universidadeque pede ênfase na ciência.

O aluno foi entãoprocurar a reitoriae pediu para saberqual a regra que dizia

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que sem tal profundidade,numa universidadeo aluno não entraria.

O reitor lhe explicouque o complexo se enfatizaquando sobre todo o restosó a razão se valoriza.“Mas quem diz se é relevanteo saber do estudanteé o comitê de pesquisa”.

Vai e pergunta o aluno atentopara o dito comitêpor que eles antecipamum só lado do saber- e um saber já tão difícilque transforma em sacrifícioo que pode ser prazer.

Ao que o comitê lhe explicaque isso já preparariaos alunos para as áreasque o governo financiaPois o seu próprio sustentovirá do financiamentoque o Poder Público envia.

O aluno, intrigado,dirige o requerimentopara o comitê gestorque dita o financiamento.Um dos membros dá o recado:nada disso é motivadopor nosso planejamento.

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O fato de que a ciênciaganhe sempre mais valora ponto de numa provadaquele teu professorTu teres que respondero complicado saberseja do modo que for

tem um motivo social:não só na universidadeo modelo racionalé o modelo da verdade.Isso é apenas a expressãodos valores da Razãopara toda a sociedade.

O aluno se inquietou:se o problema era socialquem é que lhe explicariao contexto estrutural?Que fenômeno geravaa importância colocadasobre o mundo racional?

Então lhe veio a intuição:para ler o pensamentode toda a sociedadenaquele exato momentoSomente se poderia ir até a filosofiapara obter um argumento.

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O aluno procurouum filósofo entendidoe a ele, então, expôs,o que havia ocorrido.Perguntou sua opinião:o que explica que a Razãotenha no mundo vencido?

O filósofo explicouque o problema era antigo;para não ir muito longe,nem entediar o amigo,explicou que há muitos anoso modelo cartesianoneste mundo teve abrigo.

Foi Descartes quem separoua razão da emoção?Mas não foi ele quem dissenuma certa ocasiãoque o seu tempo mais prezadoera aquele dedicadoa viver uma paixão?

O filósofo assentiue deixou bem explicadoque às vezes um pensamentoé entendido todo errado:esse esquema cartesianono senso comum mundanonão foi bem interpretado.

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O mesmo já aconteceucom o lema da igualdadecolocado lá na Françaao lado da liberdadenuma bela trilogiaque aos dois valores uniatambém a fraternidade.

“Liberdade” originouo sistema liberal,que trocou a igualdadepor um mundo desigual.E a razão, que era o troféuque punha o homem no céugerou um mundo instrumental,

onde é mais valorizadonum frio materialismoo concreto e o objetivo.Por cair em tal abismosem valer mais um centavo,o homem virou escravode seu próprio pragmatismo.

- A culpa não é da idéia,mas do uso que é feito.Muita gente se aproprioudo que se disse de um jeito,dando a interpretaçãoque justifica uma açãodiferente do conceito.

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Observe, pois, amigo,quanto ocorre deste engano:Platão não era platônicoe nem Kant era kantiano;São Tomás não era tomista,como Marx não foi marxistanem Descartes, cartesiano.

Depois dessa explicaçãovista da filosofiao aluno encerrouo caminho que empreendiasem querer seguir viagemmas feliz com a aprendizagemque obtivera nesse dia.

Quer dizer que ao mal se lero ideário cartesianoe outros tantos pensamentos,deturpando-lhes o plano,uma das conseqüênciasera o abuso das ciênciasnas provas do fim do ano.

Só que se o aluno entendeu,não pegou a explicaçãoquando ao pai foi entregara nota da avaliação.Fim da história: chineladae um corte de mesadaprá deixar de vadiação.

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Conheci uma escola que ficava numa pequena ci-dade bem distante da capital. Lá trabalhava uma humil-de professorinha,que cumpria seu papel de modo mui-to simples e despretensioso.

Na escola havia duas turmas: uma estudava na par-te da manhã, e outra à tarde.

Em ambos os grupos encontravam-se alunos de va-riadas idades.A menor era Juliana, de seis anos, que es-tava iniciando seu processo de alfabetização.O mais ve-lho era Roberto, tinha dezoito anos e ainda estava maisatrasado que algumas crianças mais novas, porque ti-nha parado os estudos duas vezes, em períodos de co-lheita, quando o pai pedira sua ajuda.

Dona Inês, a professorinha, era uma mulher muitobaixa, o rosto enrugado em parte pelo início da velhi-ce, em parte pelo excesso de sol nas caminhadas de vá-rios quilômetros até chegar à escola. Não era tão vi-brante como se imaginaria ao conhecer todo o traba-lho que realizava; mas não era apática nem boba, comocostuma pensar muita gente a respeito das professoras

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a professorinha e os especialistas

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desses lugarejos, sem conhecer bem o povo do in-terior.

Num único caderno que servia para dois anos - àsvezes até três - Dona Inês fazia anotações sobre o pro-cesso de aprendizagem dos seus meninos. A turma damanhã era a mais cheia, tinha quarenta e sete alunos.Por isso todas as informações eram anotadas a canetaazul, que era a mais fácil de conseguir por lá.

Os dados sobre os alunos da tarde iam em pretoe, quando não dispunha desse tipo de caneta, usava olápis ou um resto de tinta do velho tinteiro, lembran-ça da mãe.

A mãe, sim, fora uma verdadeira educadora, naopinião de dona Inês. Organizada, limpa, clara nasidéias.Toda a cidade a respeitava - era até conhecidado prefeito, e quando lá se hospedava uma autoridadede um município ou cidade vizinha, logo ia ela organi-zar a festa de recepção e até fazer discurso de boas-vindas.

Dona Inês pensava sempre na mãe com grandeadmiração, e propusera-se seguir seu exemplo na es-cola. Recebia hoje os filhos dos meninos que a mãeeducara. Pensava, com certa culpa, que não herdara aliderança da mãe. Na cidade, era querida, mas não re-cebia papel especial nas solenidades importantes. Àsvezes reprovava-se por isso, reparava insatisfeita oquão pouco exigia dela mesma como forma de auto-superação.

Mas isso terminava por não incomodá-la mais doque alguns instantes: seja porque o trabalho de cor-reção dos cadernos não lhe deixava muito tempo

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nem para pensar em si mesma, seja porque ela pró-pria se respondia que ela gostava mesmo era daque-le contato com as crianças na sala de aula: separaruma ou outra briga, ralhar com os mais velhos quan-do não respeitavam os pequenos, consolar um choroe comover-se com os olhares arrependidos suplican-do-lhe perdão, ir para casa com o rosto melado dosbeijos que, uma a uma, cada criança fazia questão delhe dar. E, é claro, falar na sala sobre coisas de que ameninada sequer suspeitava, acompanhar comovidaos seus olhares fascinados com os primeiros conta-tos com o conhecimento, e construir diariamenteuma busca que ela esperava que fosse a grande com-panheira da vida de cada um deles, pois para issolhes acendia a curiosidade e lhes tentava despertar ogosto por saber e por descobrir as coisas novas e di-ferentes.

Nas reuniões de pais, as crianças apresentavam al-guns de seus trabalhos: uma pecinha teatral, uma músi-ca ensaiada em duas vozes,uma aula dada por eles mes-mos, explicando conteúdos estudados. Os pais ficavamencantados com o trabalho, sabiam que aquela escoli-nha, a única das redondezas, era boa e confiável.

Às vezes aparecia algum pai de aluno novo, que-rendo saber dos programas,pedindo uma cópia do cur-rículo. Dona Inês, na sua simplicidade, mas com toda afirmeza, respondia:

- O último currículo que essa escola recebeu é dedez anos atrás. Se o senhor quiser, pode levar para a ci-dade vizinha e tirar cópia,mas desde já eu lhe aviso quenão é seguido à risca.

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E, como notasse o pai já meio ressabiado, expli-cava:

- Aqui o nosso currículo é feito a partir da vida edas necessidades do dia-a-dia. Talvez isso não seja oideal - dizia Inês, e completava, decidida: - mas é o me-lhor dentro do possível.

E, para sossegar o pai, garantia:- Pode esperar, que seus filhos vão se sentir bem

e vão aprender, tenha certeza. E o que é mais impor-tante: vão sair daqui com vontade de continuaraprendendo.

- Isso eu duvido! - respondeu-lhe certa vez umadas mães de dois irmãos que acabavam de ser incor-porados ao grupo. - Esses dois não querem nada, foisempre assim. Se derem um valorzinho para o estudo,eu lhe confesso que fico até satisfeita. Mas, a senhorasabe... Gostando ou não gostando, a gente tem queaprender. Principalmente quando se trata de homem,que vai sustentar casa. Não é nem aprender, é enfiarmesmo,goela abaixo! - entusiasmou-se a mãe,como sefalasse de um cavalo que não quer entrar na cocheira,e só vai no laço.

Dona Inês sorriu, condescendente. Como se adi-vinhasse a comparação, discordou, com muito res-peito:

- Criança não é cavalo,e por isso não precisa de es-tribo e nem rédea curta. E conhecimento não pode serigual a alfafa seca... - completou, gracejando com bon-dade.

Aproximando-se da mãe dos meninos, como sefosse contar um segredo muito divertido, disse:

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- Aprender é uma aventura...! E, ficando séria, continuou, para a mãe ainda sur-

presa:- E além de ser uma aventura, aprender com gos-

to é um direito.Também para as mulheres, lembre-sesempre disso, mesmo a senhora que só tem filhos ho-mens.

Assim falava dona Inês, misturando conforme ne-cessário um pouco de firmeza e um pouco de doçura,traduzida sempre num olhar muito tranqüilo, que diri-gia às crianças junto com um sorriso cheio daquela ter-nura pouco conhecida no mundo das salas de aula. Eterminava as reuniões assegurando, orgulhosa, como sefalasse dos próprios filhos:

- Desta escola só sai rapaz e moça inteligente.

Contaram-me que certa vez chegou à cidadezinhaum grupo importante, causando grande alvoroço, rece-bido pelo prefeito com honras de parlamentar. Comen-tou-se que eram do governo. Mais tarde se soube: eramespecialistas do Ministério, do departamento ligado àEducação Básica, que vinham fazer uma pesquisa sobreo ensino justamente na escola de dona Inês, e propu-nham-se verificar a aplicação das chamadas “teorias epráticas pedagógicas modernas”.

A professorinha adorou saber da proposta e atécomemorou: “Até que enfim alguém lembra de nós!”No dia da visita ao estabelecimento, ela vestiu sua me-lhor roupa, que na verdade nem era muito diferentedos outros três conjuntos que costumava usar, só quemais nova, e saiu para sua caminhada sentindo aquele

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esquecido ânimo de seu tempo de aluna, também elana escola indo fazer prova com aquele nervoso bom,vindo da certeza de que saberia quase tudo na pontada língua.

Controlando sua ansiedade,dona Inês esperou ain-da duas horas pelo grupo de especialistas, que se per-dera na viagem,por não saber que os quilômetros finaisdo trecho de acesso à escola só podiam ser feitos a péou a cavalo.

- Bom dia, professora - cumprimentou a que pare-cia ser a coordenadora da equipe,com a respiração ain-da entrecortada devido ao cansaço da caminhada na-quele dia de calor. Em seguida, fez as apresentações:

- Meu nome é Lúcia Blanco, sou uma das repre-sentantes do CAREP, Comitê de Avaliação e Reformado Ensino do País. Esta é a professora doutora CássiaBenja, especialista em Informática Educacional, eaquele é o professor doutor Cipriano Mendonça, pós-graduado na universidade de Harvard e doutor hono-ris causa de Oxford. A senhora sabe onde ficam Ox-ford e Harvard, não é?

- É claro que sim - respondeu prontamentedona Inês, com certo estranhamento, imaginandose aquela pergunta tão fácil já seria a primeira daavaliação, e esperando que a qualquer momento umdeles pegasse um caderninho e anotasse:“Disse quesabia”.

A representante do CAREP sorriu com cordiali-dade, e enquanto entravam na sala de aula (naqueledia sem os estudantes, que haviam sido dispensadosa pedido dos avaliadores) continuou uma conversa

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que iniciara com os colegas durante a caminhada, so-bre a necessidade de dona Inês elaborar uma petiçãoformal exigindo uma estrada pavimentada de acessoà escola.

- Nas nossas cidades, aqui no interior, todas as es-colas são mais ou menos assim. Nós já tentamos de-nunciar a situação ao Poder Público, mas não tem ha-vido resposta - disse-lhe dona Inês, e continuou: -Uma das mães dos meninos, que é muito simples deestudo mas bastante consciente como pessoa, vivecomentando que os políticos só passam aqui em épo-ca de eleições, para fazer promessas que nunca serãocumpridas...

Os membros do Comitê se entreolharam, numacumplicidade cuja mensagem dona Inês não conseguiudecifrar. “Devem me achar conformista”, suspeitou.Lembrou-se da própria mãe e sentiu aquela ponta deculpa, achando que ela teria conseguido uma estradapara a escola, e agora receberia aqueles especialistascom todo o orgulho.

- Bem, vamos fazer algumas perguntinhas, donaInês, coisa rápida e simples, não se preocupe. Antesde mais nada, nós queremos dizer que esta pesquisanão é para colocar em dúvida a sua competência,nem para ameaçar o seu cargo. O país precisa do seutrabalho aqui, justamente aqui neste fim de... quer di-zer, nesta cidade tão pitoresca do nosso querido in-terior.

Dona Inês achou que os outros dois iam dar umarisadinha de escárnio, mas estes se mantinham impassí-veis e levando muito a sério aquela conversa.

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- Estou à sua disposição - disse Inês, e temeu que afrase tivesse soado meio desafiadora -. Pergunte o quequiser.

Somente a coordenadora falava, enquanto os doisfaziam, agora sim, as anotações em seus caderninhos -dois avançados notebooks de última geração.

- Primeiro, sobre sua experiência, digamos as-sim, de vida. Com que idade a senhora começou adar aula?

- Quando me formei, aqui na escola, estudandocom a minha mãe - respondeu ela, orgulhosa.

- Então a sua formação é só de primeiro grau?- Não, eu dava aula e fazia o curso normal de noi-

te, ao mesmo tempo, em Vendinha Verde, aqui no muni-cípio vizinho.

- Sua mãe é professora.- Era.- E seu pai?- Meu pai trabalhou sempre na roça, não tem

muito estudo formal, mas sabe das coisas, já leu bas-tante e é um grande contador de histórias. Hoje emdia ele já não pode ir para o campo, mora comigo ecuida da casa para mim. Eu casei nova, mas meu ma-rido morreu cedo, de pneumonia.Agora somos só osdois, mesmo.

- Por que a senhora escolheu essa profissão?- Nem sei se eu escolhi, acho que a vida me levou

um pouco... Mas se tiver que colocar aí uma razão,pode escrever que é porque eu gosto.

- Gosta de quê?- De ser professora, não é disso que estamos falando?

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- Mas como a senhora definiria o trabalho de umprofessor?

- Gostar de estudar, de aprender e também de en-sinar. Gostar de criança, de jovens, querer que o alunofique todo o tempo que ele quiser do seu dia na esco-la. E ajudar para que ele fique menos tempo da sua vidana mesma sala de aula.

- É uma maneira peculiar de falar sobre a questãoda repetência.

- É só o meu modo de ver, se a senhora achar ina-dequado, talvez seja melhor não anotar isso.

Os outros dois ignoraram o pedido de Inês e, im-passíveis, continuaram digitando as respostas.

- Agora me diga algo sobre seus métodos de ensino- continuou a coordenadora do grupo. - A senhora utili-za o construtivismo?

Inês sentiu que naquele momento a situação secomplicava. Ela simplesmente sequer desconfiava oque era isso. Vacilou para responder, tentando se sairdaquela com alguma idéia que não lhe vinha.Os exami-nadores perceberam.

- É o método baseado nas teorias psicológicas pia-getianas.A senhora não conhece?

Inês permanecia em silêncio, envergonhada.- Nunca ouviu nem falar em Piaget? - Admirou-se o

professor doutor que até aquele momento não se pro-nunciara. - E Vigotsky?

- Vou dizer a verdade a vocês - assumiu Inês -. Real-mente, não conheço esses nomes.

- Mas que método a senhora usa? - inquiriu a outraprofessora doutora - .Talvez montessoriano...? Ou críti-co-social dos conteúdos...?

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Inês sorriu meio sem jeito, já entrando em deses-pero, mas sem demonstrar.

- Também não, eu confesso que não conheço.A essa resposta seguiu-se uma pausa e um silêncio

ameaçador.Os três trocaram o mesmo olhar de cumpli-cidade indecifrável do início, e levantaram.

- Muito bem, dona... Inês, não é? Não se preocupe,nós compreendemos a situação, é justamente por issoque estamos aqui. Agora vamos conhecer a escolinha.Mas antes, mostre-me o banheiro, por favor.

- Professora Lúcia,banheiro aqui na escola nós nãotemos, só lá fora, a uns cinqüenta metros.

- Mas como?? E cada vez que as crianças querem irao banheiro, têm que ir até lá?

- Não tem outro jeito.- E para beber água?- Ah, para beber água são mais cento e cinqüenta

metros, no poço da rua lá de baixo.- A escola não tem água potável? - escandalizou-se

novamente o pós-graduado de Harvard.- Não senhor, professor doutor Mendonça.- Lamentável - concluiu ele secamente, como se a

culpa fosse da própria dona Inês.- Bem, então vamos ver a sala de aula.A esta altura,

já imagino que deve ser uma só, não é?- Exatamente! - assentiu dona Inês, feliz por, pelo

menos desta vez, ter correspondido à expectativa dogrupo.

Abriu a portinha de madeira, construída apro-veitando uma porteira velha de uma fazenda aban-donada.

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Não é preciso dizer que os examinadores do Minis-tério novamente se surpreenderam: com a falta de car-teiras, com a ausência de uma mesa para a professora,e mesmo ao depararem com um tipo de quadro-negroque eles pensavam que já nem se usasse mais. Mas nãodeixaram de registrar também, para consolo de Inês, omapa-mundi pregado na parede, que ela mesma haviacomprado,cansada de esperar pela prefeitura, sentindoa necessidade de explicar às crianças os novos contor-nos do mundo no novo milênio.

A equipe saiu, sempre ciceroneada pela professo-rinha, e já no gramado do lado de fora, exatamente nomesmo local em que se realizavam as reuniões de pais,se despediram.

- Vocês não vão voltar para ver as crianças traba-lhando? - indagou a professora.

- Não é necessário - respondeu Lúcia Blanco -. Seusdados foram suficientes e serão de extrema relevânciapara nossa pesquisa.

Inês não conseguia evitar o pensamento de que,ao ouvir esses elogios, os outros dois membros do Co-mitê dessem uma risadinha. Mas isso não ocorreu.

- E a que conclusão vocês chegaram... Se é que euposso saber, é claro.

A coordenadora deu-se o direito de demorar al-guns instantes para responder, criando a expectativanecessária nessas ocasiões. E finalmente disse:

- Não temos nada claro por enquanto, precisa-mos confrontar os dados com os de outros pesquisa-dores. Mas uma coisa é certa - garantiu, impostando avoz - : a informática chegará até vocês. Não tarda mui-to, estaremos cumprindo o novo projeto do Ministé-

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rio, de dotar as salas de aula com computadores paraseus alunos.

- Que bom... - comentou dona Inês,não muito con-vencida -. E cadeiras, vocês também vão mandar?

- Cadeiras eu não sei - respondeu a coordenadoracom ar bastante cético -. Não está no projeto. Mas comos computadores, a senhora já pode até contar.

E assim se despediram, meio apressados, temendoque escurecesse e eles a pé, naquele mato.

- Só uma pergunta - gritou a professora, fazen-do com que se voltassem -. Desculpem perguntar,mas fiquei interessada... O que é, afinal, o construti-vismo?

- Mandaremos umas cartilhas para a senhora. Basi-camente, trata-se do aluno construir, ele próprio, o seucaminho para a aprendizagem. O ensino tem que serpersonalizado,considerando a heterogeneidade de gos-tos e aptidões. É mais ou menos por aí.

- Ah... - Exclamou suavemente dona Inês, sentindouma suspeita de alívio.

- Até breve! - Despediu-se Lúcia Blanco, sabendoque na verdade não se veriam novamente.

- Até breve! - imitou-a dona Inês, com a mesma cer-teza.

Daquela visita já se passou algum tempo. Não sesabe quando os equipamentos que foram enviados pelacomissão do CAREP serão instalados na sala de aula dedona Inês, pois isso depende de alguns terminais elétri-cos que ainda não puderam ser colocados por falta deverbas.

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O que agora, depois de alguns meses transcorri-dos, me veio como notícia é que Juliana já está lendo eque Roberto organizou, com ajuda de outros dois cole-gas, um mutirão para construir um poço na parte detrás da escolinha. Contaram-me ainda que dona Inês es-pera com ansiedade pelas cartilhas do Ministério.E nãome lembro quem comentou que certa vez, depois deuma aula em que ela e as crianças haviam se sentidomuito felizes,e tinham aprendido muito uns com os ou-tros, enquanto arrumava seu material para a caminhadade volta para casa, dona Inês disse a si mesma, comoque pensando alto:

- Será que eu já não aplico esse tal de “construtivis-mo”?

Mas reprovou-se em seguida pela própria arrogân-cia, e afastou logo da cabeça aquele pensamento tãoousado.

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Era seu primeiro dia de aula.Até então,não pudera nem pensar em estudos,aju-

dava a mãe e os irmãos no sustento da casa. Por isso, amaioria das crianças daquela turma eram mais novas doque ele. Aliviava-o apenas o fato dele ser, fisicamente,menor do que o comum para sua idade, e realmentenão seria possível notar qualquer diferença, exceto sealguém visse sua certidão de nascimento.

Seus irmãos já haviam tentado freqüentar aquelaescola, a única instituição pública relativamente próxi-ma do morro em que viviam. Mas não haviam se saídobem, e em parte pelas notas fracas, em parte pela ne-cessidade de mais braços para trabalhar pela família,ha-viam terminado por abandonar o curso.

Ele ouvira da mãe que seu caso seria diferente.“OAparecido tem outra cabeça”, vivia repetindo,com vee-mência, mesmo na frente dos outros filhos, o que o dei-xava um pouco encabulado.“Esse vai conseguir com-

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a caminho da escola

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pletar o primário”, garantia a todos e a si mesma.A expectativa era grande e, já nas semanas anterio-

res ao início do curso, ele tentara colher alguns dadoscom os mais velhos.

- Como é que é lá? - perguntou ao Toninho, que jácompletara quinze anos.

- Ih,cara,é “barra” - respondeu este. - Não dá prá en-tender nada do que a professora fala.

- Mas tem gente que entende? - continuou Apa-recido.

- É, tem gente que entende -, afirmou o irmão, jácom ar de superioridade, por possuir uma informa-ção cobiçada. E, num tom mais enigmático, falandomuito baixo e devagar, revelou: - Mas é porque elesvem de outros lugares, onde se fala do jeito que a pro-fessora fala.

Aparecido coçava a cabeça, curioso, ainda semconseguir sentir preocupação. Dera conta de tudo oque haviam lhe pedido até aquele momento: venderbala, engraxar sapato, mendigar lanches na padariapara completar os suprimentos da casa. Era considera-do esperto, admirado até por muitos de sua idade, quenão tinham a mesma desenvoltura. Sabia que era sim-pático, e por isso usava às vezes, com certa malandra-gem, seu sorriso de dentes muito brancos para con-quistar as pessoas.

Por tudo isso, confiava em si mesmo. Sem falar namatemática, pensava, pois ele já sabia dar troco até denota de cem, com centavos ou não.“Eu vou tirar de le-tra”: foi seu último pensamento, antes de adormecer nanoite da véspera.

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Poucos instantes depois dele entrar na sala, antesmesmo de que pudesse percorrer com a vista todos osseus colegas, chegou a professora.

Era uma mulher alta, de meia idade, bonita.“Ela é branca”, foi a primeira impressão que lhe

veio, confirmando uma hipótese que havia traçado aoimaginar o mundo da escola.

A professora deu bom dia, apresentou-se (chama-va-se Tia Cíntia), e começou a falar.

Aparecido arregalou os olhos, sem acredi-tar no que estava acontecendo. Um arrepio cor-reu-lhe na espinha. “Não é que o Toninho faloucerto, não dá para entender nada do que elafala?”

A professora, sem atentar para o desespero do me-nino, explicava:

A maioria das crianças assentava com a cabeça,sorrindo, com sinal de entendimento.

- continua ela.Aparecido ouvia aquilo atônito, cada vez mais

preocupado.“Se ela mandar fazer alguma coisa agora, o que é

que eu vou fazer!!??”, apavorava-se.

- continuava ainda sem interrupção a professora, comose todos falassem aquela língua.

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- O que ela está falando? - perguntou Aparecido, emvoz bem baixa,a um menino que estava sentado a seu lado.

- Ela falou que daqui a pouco cada um vai dizer oseu nome, e ela vai aprendendo. - O menino deu umapausa, esperando que a professora olhasse para outrolado, para continuar - E falou também que é para quan-do tiver dificuldade, chamar ela.

- Que língua é essa que ela fala?- É a nossa, você não está entendendo não?“Nossa? Nossa língua?”, perguntou-se ele.- Não...- Presta mais atenção que você entende - assegu-

rou o menino, já sem muita paciência.Ele grudou os olhos na professora,sem perder um de

seus movimentos. No entanto, mesmo assim, era impossí-vel compreender e, em decorrência disso, era difícil nãoabstrair-se,ao menos momentaneamente,das explicações.

Enquanto ele pensava na sua tia Zica, de quemlembrara porque uma menina tinha alguns traços dorosto muito parecidos, o colega o cutucou:

- Acorda, ela está te chamando!- Hã? O quê? Hã? Chamou, professora?

- Desculpa, professora, eu estava tentando prestaratenção,só que eu não estava entendendo direito o quea senhora estava falando. Meu irmão já estudou aqui e

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disse que era difícil mesmo, mas a gente estamos nosesforçando. Quase ninguém lá do morro onde eu moroconsegue entender o que as professoras fala.

Sem jeito, percebendo que levava bronca, o meni-no se calou. Quando a professora tornou a se virar paraescrever no quadro, perguntou ao colega:

- Ela falou algo de mim?- Não liga não, ela é muito nervosa.- Pode falar, eu não fico chateado.- Ela disse que não sabe por que é que tudo quan-

to é criança que mora no morro é desatenta.Aparecido levou um golpe com a frase,parecia um

banho de água fria. Fingiu não ligar, até deu um sorrisoamarelo enquanto respondia:

- Ela é que fala estranho, como é que eu vou ficarprestando atenção?

Mas a voz saiu com gosto de choro.O quase amigo consolou:- Não liga.Por dentro, a raiva era enorme.“Vou fazer bagunça

a aula inteira”, planejou.“Hoje, amanhã, e todos os diasdessa semana. Ela fala estranho e eu é que levo a pior?Tem até graça!”

E praguejava internamente, ansioso para que o si-nal tocasse e ele pudesse voltar para casa, para contartudo ao irmão.

- Você tem razão, mano - ia lhe falar -. Não dá paraentender nada mesmo, e a professora ainda por cima

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não gosta da gente. Eu estava tão animado prá estu-dar, mas agora... agora eu odeio, quero mais é voltarpara a rua.

A única razão que o segurava eram as falas da mãe,que também lhe vinham à mente, como num diálogoentre bem e mal, entre anjo e diabo.“Se comporta, me-nino; seja o que for que a professora falar, ela está sem-pre certa, entendeu bem?”

Danação. O que ia fazer?Ainda por cima, sentia-se já incômodo na mes-

ma posição. No seu barraco não havia cadeiras da-quele estilo. Todos sentavam em caixotes para co-mer ou, na época em que os irmãos estudavam,para fazer as lições. Ele mesmo estava acostumadoa sentar no chão.

“Devia ter um treinamento prá que a gente fossese acostumando aos poucos, igual aos jogadores de fu-tebol quando voltam das férias”, pensou, massageandoirrequieto a região dos rins.

Nova bronca.“Eu vou é deixar essa mulher de lado, ela está é de

marcação” - resignou-se.Um outro menino, do fundo da sala, olhava para

ele sorridente, com ar de cumplicidade.“Pelo menos alguém está do meu lado” - consolou-

se, mas ainda repleto de sentimentos maliciosos, esfor-çando-se por ter alguma idéia sobre como atrapalharaquela aula confusa.

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Finalmente, apesar do relógio parecer mais vagaro-so que nunca, ouviu-se a campainha da saída.A profes-sora anunciou algo e se despediu. Houve rumores. Jáimaginando que ele não ouvira ou não entendera, oamigo avisou:

- Olha, ela disse que amanhã vai ter uma prova oralsobre a aula de hoje.

- Prova!!!???E, antes que ele pudesse comentar qualquer coisa,

o grupo de meninos e meninas se desfazia, correndoansiosos cada um para seu lado, como uma boiada quetivesse estado presa num cubículo e, de repente, abris-sem a porteira e lhes permitissem ganhar a imensidãodo pasto todo verde e plano.

Aparecido chega em casa num estado de espíritototalmente diferente daquele com que saíra. Desola-do, a raiva inicial substituída por uma preocupaçãoaté então desconhecida. Não conseguia falar quasenada, respondia apenas monossilabicamente às per-guntas dos irmãos sobre o seu dia. No fundo, sentiavergonha de confessar que com ele acontecera o mes-mo, era igual aos outros, também não tinha cabeçapara o estudo, apesar de todas as expectativas sobreele colocadas.

- Vem almoçar, menino.- Não estou com fome não, mãe.Ao contrário do que poderia ocorrer em outras fa-

mílias, em que os pais se preocupam se o filho nãocome, a mãe de Aparecido sentia alívio: “Vai dar prátodo mundo”, calculava, pois se todos almoçavam issojá não era uma garantia.

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Passou a tarde cabisbaixo e calado, o olhar perdidosem fixar qualquer ponto. Pensava:“Isso é injustiça. Darprova sobre algo que ela não sabe se todo mundo enten-deu.Aliás, ela sabe que nem todo mundo entendeu”.

A raiva voltava, e ele, remoendo, continuava:“Ela sabe que eu não entendi, e pensa que é por-

que eu estava conversando.Ou porque não estava pres-tando atenção. Mentira! Eu tentei, mas como é que euvou ficar ligado sem entender aquelas palavras de outralíngua?”

E o sentimento de injustiça crescia.A mãe, vendo o garoto assim, ainda interpretou ao

contrário. Enquanto lavava roupa numa tina e conver-sava com a vizinha da janela, contou:

- O Aparecido, você precisa ver, que gracinha.Vol-tou da escola todo pensativo. Já deve estar estudandotudo o que aprendeu. Esse sim, dá valor ao estudo, estátodo sério, está levando com seriedade. Que diferençados outros, que chegavam aqui, parece que nem tinhahavido aula!

“Estou frito”, concluiu Aparecido, ouvindo as pala-vras da mãe.“Entre a cruz e a espada”, como dizem.

O fato de ter ficado só com o café da manhã atéaquele fim de tarde já causava os seus efeitos.Apareci-do começou a sentir uma fraqueza, uma moleza só.“Vou ficar é doente”, pensou, encontrando um motivode esperança.“Quem sabe eu consigo passar mal e mi-nha mãe não deixa eu ir à escola?”

Deitou na esteira que, à noite, dividia com o irmãomais velho.Assim, sem o companheiro, ela ficava bemmais espaçosa,quase confortável. Sem perceber que fu-

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gia pela primeira vez da própria sorte, foi-lhe chegandoaquela sonolência branda, as pálpebras pesando...

Abstraiu-se de tudo e, naquele calor que vinha doteto de zinco, o sol ainda forte sobre ele, dormiu pro-fundamente...

- Menino,você vai perder a hora,quer fazer o favorde levantar AGORA?????

Ele abriu os olhos,como emergindo aos poucos deum abismo.

- Já é a terceira vez que estou chamando!Olhou para fora. Pela cor do céu e pelos passari-

nhos que cantavam, calculou que deviam ser cinco epouco da manhã. Espreguiçou-se, ainda sem saber mui-to bem o que estava acontecendo.

- Você não vai querer chegar atrasado no seu pri-meiro dia de aula, vai? - inquiriu a mãe, já ralhando.

“Primeiro dia? Primeiro?”Depois de pensar alguns instantes, descobriu: tive-

ra um sonho! Tudo não passara de um terrível pesade-lo! Impressionado pelo que o irmão lhe contara, inven-tara dormindo toda aquela história da estranha línguafalada pela professora, do seu jeito rabugento e impa-ciente, da prova no dia seguinte.

Levantou sentindo-se bem melhor do que no sonho,embora aquele gosto de angústia ainda permanecesse.Foi até a escola sem poder esquecer aquela história.

“Pode ter sido um pressentimento”, foi a idéia queo aterrorizou.“E se for?”

Criança, ainda encontrou pontos positivos na pos-sibilidade do sonho ter sido profecia:“Posso ganhar a

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vida como mágico” - e se imaginava, adulto, vestidocom roupas exóticas e com uma bola de cristal sobre amesa, dizendo a um grupo de meninos assustados e ad-mirados com seus poderes:“Na prova vai cair essa ma-téria... Podem anotar as respostas que eu vou dizer...”

Mas ele mesmo não acreditava naquela possibilida-de.Tanto que, ao entrar na sala de aula, levou um gran-de susto ao perceber que não só a disposição das me-sas e cadeiras, como os próprios coleguinhas, eram osmesmos, literalmente iguais aos que ele vira no sonho.

- Ou pelo menos muito parecidos - comparou, en-golindo em seco.

Não havia muita algazarra porque poucos se co-nheciam. Por isso, quando a professora entrou, foi qua-se que natural o silêncio que se seguiu.

O de Aparecido, não, era forçado. O sangue lhe ge-lara nas veias.

A professora era igual, exatamente idêntica à mu-lher de seu pesadelo.

“Estou perdido”, concluiu para si mesmo, deso-lado.

Entretanto,ao contrário de suas previsões,quando aprofessora começou a falar,Aparecido ficou encantado.Era uma voz suave, branda, quase doce, mas ao mesmotempo firme, segura.As frases saíam de sua boca comouma leve melodia. E o que era melhor, muito melhor:

- Eu estou entendendo!!!Todos riram. Sem querer, Aparecido falara alto.

Olhou assustado para a mestra: mas ela também sorria,até satisfeita com a frase. Perguntou seu nome, ele res-pondeu.

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- Aparecido -,disse ela - eu quero é isso mesmo,quevocês entendam tudo o que acontece aqui. Se não forassim, não está certo, não está bom.

Aparecido não cabia em si de felicidade. Ninguémadivinhava por quê,mas para ele não tinha importância.

- Obrigado,professora.É porque eu pensei que nósia ficar sem saber direito como é que era prá fazer ascoisas aqui.

Um ou outro menino riu do modo de Aparecido fa-lar. “Nós ia”, hahaha. Um outro parodiou: “A gente ía-mos...”, hahaha.

Só aí a professora brigou. Mas com os outros.- Aqui ninguém pode rir do que o colega falar.Todo

mundo está aqui para aprender. Até eu, vocês achamque eu não aprendo? Todo dia eu posso aprender algu-ma coisa, é só saber pesquisar.

Virou-se para Aparecido.- E você, menininho - num tom carinhoso -, tem

que saber de uma coisa: a maneira como você falou ébonita, mas para viver na sociedade, no mundo em quea gente vive, você vai ter que aprender a falar tambémde um outro jeito, que não foi o que você falou atéhoje, mas que eu vou te ajudar a ir descobrindo...

- Eu quero saber como é que é, professora, eu que-ro aprender - garantiu Aparecido, ansioso por saber danovidade, certo de que com aquela professora não te-ria mais problemas, nem angústias, mesmo que tivesseque estudar muito.

A aula acabou sem que Aparecido pudesse acredi-tar que haviam se passado quatro horas. Queria ficarmais, pediu.A professora sorriu de novo:

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- Amanhã nós nos encontramos de novo -, respon-deu. Acho melhor você ir para casa, que tem uma liçãopara preparar...

Aparecido concordou e começou a arrumar as coi-sas, recolhendo lápis e papéis. A professora permitiriaque ficasse trabalhando sentado no chão, como na suacasa.“Aos poucos você vai se acostumando a estudar namesa”, disse-lhe na despedida.

- Eu vou voltar, sim, professora - garantiu ele, rindoda estranha possibilidade.

Na rua, ainda ria sozinho daquele diálogo, do pró-prio jeito maroto. Sentia-se confiante, segura de simesmo. Simplesmente feliz.

No dia seguinte,não pôde evitar que,por uma últi-ma vez, o sonho lhe voltasse à cabeça.

- Já pensou se a escola fosse daquele jeito? - falouconsigo mesmo. Que injustiça...!

- Ainda bem que não é assim! - respirou, aliviado,afastando aquelas idéias absurdas.

E, voltando à sua alegria, começou a subir o cami-nho para a casa, mochila nas costas, saltitando nos de-graus do morro, às vezes até pulando de dois em dois,assobiando melodias puras e simples, transbordantesde uma esperança menina.

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Gostava de inovar em suas aulas. Fazer semprealgo diferente, para motivar os alunos.

Quando ia falar da pesca como atividade comer-cial, por exemplo, teve a idéia: vou levá-los para a beirade um rio, e ensinar-lhes a pescar.

A excursão foi divertida, todos encantados com aspaisagens da serra, cantando músicas dos grupos damoda.

Finalmente chegaram: a aula seria num córregoque atravessava um vale entre duas cidades. Parece queera cheio de traíras, lambaris e tilápias.

- Primeira parte da aula - disse a professora -:aprender a segurar a vara de pesca. Cada um peguea sua.

Os alunos, sem conter a ansiedade, correram até oporta-malas do ônibus que os trouxera e começaram adisputar as varas.

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a aula de pesca

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- Mas... e a linha, professora? - perguntou umaluno.

- E o anzol? - continuou outro.A professora explicou:- Linha e anzol para vocês não precisa, basta a

vara. Depois eu mostro a vocês com o meu, que temtudo.

Os alunos começaram a ficar decepcionados.- Vamos lá, segurem a vara de pesca.Assim, com

as duas mãos, nem muito firme, nem muito frouxo,para poder sentir o beliscão do peixe... Assim, estãovendo?

Os alunos repetiam seus gestos nas próprias varassem linha nem anzol, com pouco entusiasmo.

- Agora vou colocar a isca... Isso se faz cobrindobem o anzol, viram? Não ficou nada sobrando. Entãovou mostrar como é que se joga a linha. Como é numrio, e nós estamos com vara de bambu, basta puxar oanzol aqui para a frente e... - ia fazendo os movimentos,concentrada, até que num impulso jogou o anzol paraa água, bem distante da margem - ... e jogar para bemlonge!

Observou, curiosa, em local em que o anzolcaíra.

- Viram? Perfeito! Caiu bem no meio do rio!- Posso fazer também, professora?- Primeiro eu! - pediam os alunos.- Agora não, o anzol está pronto para a pesca, e nós

vamos pegar um peixão!- “Nós?” - comentou um dos alunos com o colega,

em voz baixa.

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- Silêncio, turma! Falando desse jeito vocês espan-tam os peixes!

E a professora se mantinha, de pé, concentrada na-quele ponto de água cortado pela linha, à espera deuma fisgada.

Nada acontecia e os alunos começavam a se dis-persar.

- Olha que campo enorme! Você trouxe a bola? - Trouxe, vamos jogar futebol!- Mas o que é isso? - espantou-se a professora -.Vo-

cês não entenderam que isso aqui é uma aula normal,só que fora do colégio? Quero a mesma seriedade detodos! Senão, não saio mais.

Todos se aquietaram: embora não pudessem parti-cipar da pesca,pelo menos ir para lá era melhor do queficar na sala de aula, e não queriam nem pensar em per-der a chance de voltar outras vezes.

Ao perceber o silêncio, a professora disse consigomesma:“Que bom, eles estão gostando de estar aqui.Aaula está sendo um sucesso”.

Mas seus pensamentos foram interrompidos porum forte puxão na vara.

- Oh! Acho que é... Será...? Estão sentindo?Os alunos não falavam nada, sequer sabendo a que

se referia a professora.- É o puxão inconfundível! Vejam, a linha está an-

dando! Estão sentindo? Dá para sentir que o peixe égrande.

Os alunos conversavam entre si, baixinho, ape-nas um ou outro continuava olhando para a água epara ela.

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- Hora de puxar! - exclamou, e lançou a vara paracima,com decisão.O bambu,agitando-se todo, trazia nofinal da linha uma boa traíra de uns dois quilos.

- Pegamos! Pegamos! - agitava-se a professora, en-quanto soltava a vara sobre o capim, e preparava-separa tirar o peixe do anzol.

A traíra custava a se render, pulou ainda várias ve-zes dentro do balde antes de ficar definitivamente quie-ta.

- Viram que beleza? Pescar é muito bom! Que delí-cia que é a pescaria! - exclamava para si mesma, semperceber que alguns alunos sorriam com desdém, ou-tros sequer a ouviam.

- Posso tentar agora, professora?- Eu também vou querer!- Vamos sortear de quem é a vez! - inquietaram-se

os meninos.- Agora não, pessoal - respondeu a professora -.

Já está ficando tarde e, de qualquer forma, não dariamesmo para todos pescarem.

Um “Aaaaah...” prolongado, que parecia um coroensaiado, foi a expressão da decepção de todos.

A viagem de volta pareceu mais rápida, não haviamais a expectativa nem a alegria do primeiro momen-to.A professora, satisfeita, levava o peixe para mostrarna escola “o que os alunos pescaram”. Lembrou-se deavisar:

- Turma, não esqueçam de que, como sempre, de-pois que houve um estudo de um conteúdo, teremos anossa provinha.

- Ah, não... - mais uma expressão de desânimo.

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- Não reclamem! - pediu carinhosamente -. Será fá-cil, é só vocês contarem o que sentiram na pescaria.

- Mas eu não pesquei nada - comentou um dos alu-nos com um colega, sem que a professora ouvisse -. Oque é que eu vou colocar?

- Inventa - aconselhou o outro,solução que lhes pa-receu muito satisfatória e fez com que os dois se esque-cessem definitivamente do problema.

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As aulas haviam sido suspensas para uma jornadade formação docente. O tema da reunião do dia era “operfil do professor”.

Josefina escrevia bem e foi logo escolhida para sera redatora de seu grupo. Papel em branco na mão, asidéias soltas na cabeça de todos.

- Creio que deveríamos tentar sair daquele lugar-comum de todas as reuniões, em que ficamos registran-do nossos pensamentos só no nível dos ideais. Destavez, queria propor uma ação concreta – disse Maria,num determinado momento do encontro.

E qual seria essa ação? – perguntaram alguns doscolegas.

- Penso em algo diferente, revolucionário. Minhaidéia é a seguinte: em vez de ficar escrevendo sobre operfil ideal de um professor, por que não encontramosessa figura e a trazemos para cá?

Poucos entendiam o propósito de Maria.Ela continuou:

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o perfil de um mestre

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- Vamos traçar o perfil do professor que quere-mos e, ao invés de entregar um documento escrito àcomunidade, procuraremos e traremos o próprio paratrabalhar aqui. Se a minha idéia funcionar, ele saberáir contagiando o trabalho de todos com a sua manei-ra de ser.

Parecia uma possibilidade interessante. Josefina re-gistrou tudo em ata. Enquanto escrevia, outros já toma-vam a palavra:

- Bem, de qualquer forma temos que encontrar al-guns critérios que vão nos ajudar a distinguir esse pro-fessor. Proponho que comecemos a pensar numa listade características.

Todos concordaram e se dispuseram a trabalharnaquela primeira etapa do projeto.

- Na minha opinião,deve ser uma pessoa muito hu-mana – começou o professor de Ciências, dando ênfa-se à palavra “humana”. – Quero dizer, uma pessoa queveja a vida com a razão, sim, mas também com a emo-ção, que aprecie os sentimentos humanos, o sentidohumanitário da vida,e não apenas um profissional com-petente, dotado somente de uma boa técnica.

Josefina gostou da explicação.Anotou tudo, subli-nhando as expressões “emoção” e “sentido humanitá-rio”.

- Daí eu penso que decorre outra coisa, ligada dire-tamente a isso – continuou o professor de História - :que seja uma pessoa interessada no bom relacionamen-to com seus alunos. Que o aluno seja alguém comquem ele realmente se importe, alguém que ele vejacomo um parceiro de trabalho.

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- Exatamente – animou-se a professora de Geogra-fia, e completou: - Que se coloque na disposição de umpossível amigo,para ouvir o aluno,e ajudá-lo no que forpreciso.

Josefina anotava tudo, muito atenta.Arriscou tam-bém um palpite:

- Deve ser também uma pessoa interessada no pró-prio desenvolvimento. Manter uma atitude de estudo,de aprendizagem e aperfeiçoamento constante – ex-pressou, esperando pela aprovação dos demais.

- Isso aí, é por aí mesmo – reforçaram vários, fazen-do com que ela colocasse as próprias palavras no rela-tório do grupo.

E assim foi a reunião se desenvolvendo, até que nofim do tempo combinado havia duas páginas de carac-terísticas que compunham o perfil do professor ideal, eque iriam orientar a busca daquela figura: competente,que aliasse o saber profissional com o lado humano,aberto ao conhecimento, solidário com os demais, do-tado de espírito de equipe, pronto para aprender juntocom o aluno, capaz de criticar o próprio trabalho, quenão se colocasse numa posição superior, em afinidadecom a proposta da escola, visão aberta e atual da edu-cação, pronto para aprender a partir da experiência co-tidiana, crítico, politicamente consciente, participantedas atividades extra-curriculares, disponível, engajadoem algum projeto social.

Saíram todos para a reunião seguinte com uma ta-refa: tentar encontrar aquele professor. Existiria alguémassim? Tinha que existir, não aceitavam a idéia de quetudo fosse uma grande utopia.

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Júlio, professor de Literatura, muito interessadonas novas tecnologias, sorria para si mesmo e pensava:eu o encontrarei,com meu método infalível.Vou me co-nectar na Internet,nos sites de “busca”e, através das ca-racterísticas indicadas, encontrarei uma foto desse su-jeito. Em algum lugar do mundo ele se encontra. Ire-mos, então, procurá-lo.

Já Sofia, professora de Português, pensou num ou-tro caminho possível.“Tenho cópia de muitas das reda-ções que meus colegas fizeram no curso de formaçãode professores”, lembrou. Quem sabe se naquele tema“Os meus sonhos pedagógicos” aparece uma redaçãoque revele esse perfil? Esse professor deve estar em al-gum lugar,hoje em dia,dando aula”, assegurou a si mes-ma.

Josefina também tinha a sua idéia. Ia consultar umaantiga professora do Instituto de Educação e perguntar-lhe se,em toda a sua história,havia conhecido uma pes-soa assim. Ela, ao contrário dos outros, estava bastantecética quanto à existência daquele que haviam denomi-nado de “professor ideal”. Na verdade, não sabia seaquele tipo era um ser perfeito ou um verdadeiro idio-ta, por continuar pensando daquela forma apesar dasdificuldades do magistério.Mas queria ficar bem com ogrupo e imaginava que, se ela o encontrasse, sua ima-gem no colégio seria valorizada.

Marcou entrevista para aquela mesma semanacom a professora Conceição,de quem tinha muito boaslembranças.

Foi ao encontro com certo receio.Pensava que po-dia ficar chocada ao ver a antiga professora, assustar-se

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com a passagem aparentemente repentina do tempo.“Ela já não era nova quando eu assistia às suas aulas, noprimeiro ano do curso de formação de professores...Imagine agora,como estará, se hoje em dia meus alunosé que me consideram uma senhora...”

A suspeita se confirmou de um outro modo.Dona Conceição envelhecera, mas não fisicamente.Faltava-lhe apenas, na maneira de falar e de andar,aquela jovialidade dinâmica, aquela força de persona-lidade que fazia outrora com que todos os estudantesa admirassem e alguns deles até procurassem imitaros seus modos.

“Teria sido ela a professora ideal, a que reunisse to-das aquelas qualidades?” – perguntou-se Josefina. Maslogo voltou atrás na análise.

A antiga professora, a propósito da pergunta sobreum possível professor ideal de que ela se lembrasse, jácomeçava a falar-lhe das dificuldades do magistério, desuas descrenças, suas desilusões.Tudo devido à políticado país, da qual, aliás, já tinha desistido de participar. Aescola lhe parecia ultrapassada em seus métodos parao mundo de hoje, mas... ninguém conseguia mudar asexigências das Secretarias, dos exames para o ensinosuperior... Isso fazia com que procurasse atalhos, comoum ensino mais objetivo, para dar conta dos progra-mas...

- Eu acho que já não dou mais para isso, mesmo –arrematou a velha professora.

“Como ela mudou”, admirava-se cada vez mais a ex-aluna Josefina. Não é pela idade, é pela perda de todasas suas crenças, de tudo o que animava seu trabalho.

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Lembrava-se como se fosse hoje de algumas redaçõesque ela devolvia aos alunos com nota máxima e comum brilho no olhar:“Parabéns,como melhoraste teu tex-to!”, dizia, e todos sentiam que ela própria estava seemocionando com aquilo. Participava, muitas vezes, dasexcursões programadas pelo Instituto, abrindo mão atédos finais de semana.“Depois eu me arrependo, corri-gindo as redações na segunda-feira à noite, mas... vale apena”, contava às alunas, rindo de si mesma.

Josefina percebia nas frases amargas de dona Con-ceição que tudo aquilo terminara, ficara perdido notempo, em algum lugar entre a sua turma de curso nor-mal e o dia de hoje. Onde seria...?

- Mas talvez eu ainda possa ajudar-te, menina – dis-se Conceição à Josefina, num tom de professora paraaluna, como se não tivessem transcorrido trinta anosdesde o último encontro e não fossem, agora, duas se-nhoras adultas. E continuou:

- Eu conheci uma mocinha que parecia pensar as-sim, como tu me descreveste. Eu lia seus textos e pensa-va sempre comigo mesma que aquela seria, ela sim, umagrande professora. Livre, sonhadora, parecia-lhe que ti-nha o mundo pela frente e que,uma vez entrando na salade aula, iria conseguir mudar todas as coisas: as injusti-ças, os problemas do mundo, a miséria, a ignorância...

- Pois é justamente essa pessoa que eu preciso en-contrar! – interrompeu Josefina, com ansiedade. Con-ceição pareceu nem ouvir, mergulhada nas própriaslembranças felizes.

- Essa moça era bem nova, mas de muita maturida-de, nas suas idéias.Ao mesmo tempo, idealista. Eu sen-

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tia que ela seria uma grande professora. Participava dogrêmio, colaborava no jornal da escola, assumia muitasvezes até tarefas que seriam da coordenação, organi-zando eventos no Instituto. E tu sabes de uma coisa? Ti-nha algo que é tão difícil encontrar... Ela acreditava namudança, ela acreditava que era possível fazer algumacoisa... Sonhava em mudar a escola, em propor novosprogramas, currículos diferentes, com atividades liga-das à arte, ao humano...

E assim, encantada com o próprio mundo de lem-branças, suspirou, sorrindo carinhosamente:

- Ah, essas crianças...!“Que perfeita idiota, isso sim...” , pensou consigo

mesma Josefina. Com certeza já desistiu de tudo isso.Idealismo ingênuo...!

- Onde estará ela hoje, dona Conceição? Preciso en-contrá-la, é muito importante. Disso pode depender a re-forma total da escola em que trabalho – e completou parasi mesma, interiormente:“e talvez a minha promoção”.

- Eu não sei onde ela estará agora... – respondeu aprofessora, como que voltando aos poucos de um so-nho, de uma visita que há muito não fazia ao própriopassado -. Mas acho que devo ter alguma foto de finalde ano em que ela apareça. Devo ter até alguma dedi-catória feita por ela, no meio das demais assinaturas. Seesperas, eu vou procurar.

Josefina concordou e dona Conceição foi até seuquarto, onde tinha um armário grande, todo de madei-ra escura, desses que hoje não se fabricam mais. Da ga-veta inferior retirou uma caixa que continha fotografiassoltas, um álbum de retratos e alguns papéis amarela-

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dos, com dedicatórias de alunos e declarações de afetoe admiração.

- Sei que está aqui no álbum...Vamos ver o ano...será esta turma...? Talvez... sim, acho que sim...Ah, aquiestá, é isso mesmo – disse finalmente Conceição, e re-tornou à sala.

- Vou descolar a foto para tu levares. Mas peço queme devolvas depois, só tenho essa.

- Não quero estragar seu álbum, dona Conceição –preocupou-se Josefina,mas no fundo desejando que elarealmente descolasse a imagem.

- Não há problema, não te preocupes. Não sou des-sas velhas apegadas aos objetos... – brincou. Josefinariu. – Pode levar, minha filha. Ah, aqui está ela – mos-trou, apontando para uma das moças da foto com odedo um pouco entortado pela artrite.

Josefina aproximou-se bem do retrato, sem óculosnão enxergava naquela distância. Quando fitou a talmenina, arregalou o olhar, sentiu o sangue gelar.

- Q... Que... Quem é essa, do-dona Conceição..? –perguntou, mas conhecendo a resposta.

- Ora, já te falei, é a tal “professora ideal”, que tuprocuras. Vamos ver a dedicatória atrás da foto – pro-pôs, parecendo não perceber a perturbação de Josefi-na.

- Veja aqui, que graça:“Com muita admiração, o ca-rinho da Jô”.

- Mas... eu... não estou entendendo... – disse Jose-fina, já meio em desespero, assustada, olhando paraseu próprio retrato, sua face adolescente sorrindopara a câmera através do tempo. Aquilo parecia-lhe

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um pesadelo, uma espécie de brincadeira macabra dodestino.

- Sim,é a tua foto, Josefina – disse dona Conceição,condescendente, carinhosa, chamando-a pela primeiravez em tantos anos pelo nome, como nas suas aulas. Éstu esta menina que eu te conto que sonhava, que acre-ditava em outro mundo, que eu sabia que seria umagrande professora.

- Não pode ser... eu... eu... – balbuciava Josefina,sem ter o que dizer.

- Eu é que te pergunto agora, Josefina. O mundotambém pôde contra ti, assim como pôde comigo? De-sististe de tudo ? Aceitaste a escola pronta, a aula fácil,o aluno distante, a matéria pura?

Josefina não dizia nada.- Mas quero te dizer que em algum lugar, entre a

nossa aula de Português há trinta anos, e o dia de hoje,esses sonhos ficaram. Eles existem ainda, estão em al-gum outro espaço que não é uma sala de aula nem umcorredor de colégio, Josefina. Eles ficaram esquecidosem algum canto, dentro de ti.

Josefina ouvia quieta, os olhos úmidos, a gargantadoendo.

- Eu te entrego hoje esta foto, e te faço um desafio,Josefina, a ti que tanto gostavas dos difíceis desafios.Por que tu não vais procurar essa professora? Por quetu não procuras a nossa Jô?

Naquele final de tarde, ao se despedirem, DonaConceição insistiu no pedido: faze isso que te disse,por nós duas. Se tu conseguires encontrá-la, estarásnos resgatando, e estarás redimindo através disso

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muitas outras histórias que tentaram também serconstruídas e que o mundo, com suas penas, nãodeixou.

Josefina voltou ao colégio no dia marcado para areunião seguinte com sua foto no bolso. Não sabiacomo fazer. O que diria? Sentia-se, de qualquer modo,incrivelmente leve, estranhamente outra.

Na reunião, todos estavam muito bem humorados,apesar de não terem conseguido nada.

Contaram pouco sobre suas buscas,pareciam maisentusiasmados com uma nova idéia que alguém trouxe-ra: fazer um grande encontro com todos os professores,para estudo e convivência.

Josefina novamente foi a relatora. Mas, desta vez,olhava para o papel de modo diferente, sem a descren-ça conhecida. Parecia-lhe que as idéias eram mais viá-veis. Mesmo quando alguém da reunião comentou -como ela mesma em outro tempo teria também comen-tado - que pelo fato de tal encontro ser realizado num fi-nal de semana, poucos do colégio iriam participar.

“Eu vou”, contrariou-a interiormente Josefina, sor-rindo sem que os outros soubessem por quê.

Naquele dia, antes de entrar na sala de aula, pôs-sea conversar no corredor com seus alunos. Ao ver queum ou dois estavam com ela, outros se aproximaram.Eram todos crianças de dez ou onze anos, na quinta sé-rie. Josefina sorria sem parar, achando tudo tão bonito:seus cabelos desalinhados, sua agitação, aquela vidatoda em torno dela.

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- Estás feliz, hein, professora? - brincou um dos alu-nos, com um tom malicioso.

- Estou, sim - respondeu ela. - E sabes por quê?- Não...- Conta, professora!!- É porque as provas foram boas???Josefina riu com o palpite e contou:- É porque gosto de ser professora, e gosto de que

sejam meus alunos.Os alunos se entreolharam e alguns sorriram tam-

bém, meio sem entender.- Eu estou meio boba hoje, não?- Tá não, professora.- A gente também gosta da senhora. - garantiu um

deles, com aprovação dos demais.- Vai gostar mais ainda se não tiver mais prova!!! -

arriscou José Maurício,um dos mais brincalhões da tur-ma.

- É, isso mesmo! Boa idéia! - aprovaram outros,que-rendo dar corda na brincadeira.

- E todo mundo tirar dez!!! - novo grito, com aindamaior apoio.

Josefina ria, achando muita graça daquela infantili-dade ingênua, daquelas brincadeiras bobas e carinho-sas das crianças, ela que tantas vezes chegara tão sérianaquela mesma turma, sem tempo para conversas.

Depois de entrar na sala, abriu o caderno de pro-gramação de aulas, retomou os conteúdos que planeja-ra para o dia. Era gramática. Nada muito adequado paraseu propósito de encontrar a Jô, pensou. Mas garantiua si mesma: é hoje, a partir desta mesma aula de gramá-

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tica, que vou começar a redimir esse passado, cons-truindo uma outra história para ser narrada.

Pegou no bolso, sem que ninguém notasse, a velhafoto amarelada, para dar mais uma pequena olhadela,lembrando das palavras de dona Conceição. Olhoubem nos olhos da moça do retrato e sorriu-lhe comcumplicidade.

Naquele momento, todas as outras salas estavamem aula.

O que Josefina não sabia é que, por uma estranhacoincidência, uma dessas ironias que só ao destino po-dem se atribuir, naquele exato instante, todos os outrosmembros do seu grupo de trabalho estavam tambémretirando algo do bolso: uma foto envelhecida, um re-corte amarelado, uma redação velha...

Nenhum deles sabia do que acontecera com os de-mais; mas se por acaso houvesse alguém que de longevisse a cena, certamente também se encantaria, vendotanta luz nos olhos daqueles mestres, e quem sabe dis-sesse, tal como fizera dona Conceição, suspirando en-ternecida, sorrindo carinhosamente:

- Ah, essas crianças...!

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Era uma vez uma longínqua terra em que, paraeducar os pássaros, decidiu-se colocá-los em gaiolas.

Mas eles recusavam-se a aprender.Bater as asas, nada.Cantar, muito menos.E passavam todo o dia de aula olhando para fora

das grades, esperando a hora da saída.Quando saíam, punham-se a voar e a cantar.O professor não chegava a ouvir aquelas melodias

e nem a ver aqueles vôos:pensava que eles não sabiam.E, no dia seguinte, trazia novas lições, com novos

métodos, para os passarinhos novamente engaiola-dos.

Decidiu enfeitar toda a gaiola, para que já não pa-recesse: muraizinhos, flores, quadro de gizes coloridos.Tanto enfeitou o ambiente que quase não sobrava espa-ço livre para olhar para fora. Só uma fresta, numa das

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os pássaros

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traves da gaiola, deixava entrever o sonhado espaçomulticolorido e arejado. Nela os pássaros se ajuntavam,com seu olhar aflito, deliciando-se apenas quando umresto de brisa penetrava pela fresta, surpreendendo-osrisonhamente.

Um dia, o professor resolveu sair com os alunos,deixá-los finalmente livres por alguns instantes.

E, espantado, percebeu que imediatamente pu-nham-se a voar, mal se abria a porta, cantando mil gor-jeios por ele nunca imaginados. E o vôo parecia-lhe deestranha beleza: cadenciado, equilibrado, um bater deasas vigoroso e jovem, como numa dança.

Decidiu então abandonar a gaiola e embrenhar-secom eles nos jardins,em meio aos bosques,na mata sel-vagem do desconhecido.“Mostrem-me o que vocês sa-bem”, pediu. E deixou-se encantar.

Hoje, professor e passarinhos aprendem juntos,numa grande floresta em que podem experimentar me-lodias novas e saltos por sobre árvores e lagos.

E juntos riem daquele tempo distante e tão estra-nho, em que passavam em gaiolas o tempo das manhãsensolaradas...

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O pedagogo escolhera cuidadosamente a lista delivros que seriam estudados no semestre. Um clássico,de autor renomado, verdadeiro símbolo da cultura uni-versal. Outro, de autor nacional, que certamente seriacobrado nos exames de admissão ao ensino superior.Os outros dois, balanceara, direcionados meramentepara o prazer da leitura: um policial e um romance deaventuras. Desta vez, imaginou, os alunos iriam ler. Masisso novamente não ocorreu.

Há tempos enfrentava um problema sério com aleitura em suas turmas.Ao contrário do que ocorria emsua época de estudante, quando Homero e Dante eramautores lidos e discutidos, e chegavam a se apresentarpeças de Shakespeare nas reuniões de pais no final doano, os alunos de hoje não gostavam mais de ler.

Cada vez que anunciava uma leitura extra-classe,seu ânimo decrescia. Chegava à sala entusiasmado parafalar do contexto do autor, do estilo literário que seria

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a aula de leitura

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estudado, dos valores que a crítica atribuíra ao volumeescolhido. Quando revelava o título do livro, as únicasperguntas que a turma lhe fazia eram: “É grande?”;“Quantas páginas tem?”. E, quando mostrava a obra,logo tinha que conter a revolta dos mais exaltados, quereclamavam da grossura da lombada.

Ele não entendia tal reação.“Nem é tão grande”,argumentava. “São cento e poucas páginas...” Mas oque para o pedagogo podia servir como atenuantedas reações negativas, acabava funcionando até aocontrário. “Mais de cem páginas!!??”; “Não é possí-vel!!!”;“Tenha pena de nós!!!”, continuavam as excla-mações, transformando-se em seguida em súplicaspor uma ampliação do prazo estipulado para o térmi-no da leitura.

“Na minha época era tão diferente”, lembrava opedagogo.“É claro que nem sempre nós entendíamostudo... Havia trechos de obras que para mim eram ver-dadeiras incógnitas... Mas, pelo menos, líamos os maio-res clássicos da história literária universal...”

Chamava-lhe a atenção, sobretudo, o fato de nemsequer causarem sucesso os livros do final da lista, es-colhidos pelos critérios do prazer e da distração.“Como uma história policial tão interessante não animaesses jovens?”,não cansava de se perguntar.“E o roman-ce de ação, que eu tinha certeza de que deixaria os ra-pazes ávidos pelo desvendar da história? Pensei quenão largariam o livro, e alguns sequer passaram dos pri-meiros capítulos...”, desconsolava-se.

O pior era que, às vezes, quando o livro já haviasido transformado em roteiro e adaptado para o cine-

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ma, muitos assistiam ao filme e mal abriam as páginasda história original.

Outros, ainda, pediam que um amigo mais estudio-so lhes contasse o enredo. Preocupados apenas com aavaliação, pensavam que o fato de saber da trama e co-nhecer os personagens pudesse substituir a leituracompleta do volume, as descrições do ambiente, as re-flexões do autor.

Chegou o dia em que, completamente extenuado,o pedagogo decidiu desistir da idéia de transformarseus alunos em leitores de qualidade.“Não posso maisme desgastar nem perder tempo por causa disso”, pon-derou.“Um dia eles descobrirão a boa leitura, mas eunada mais posso fazer”.

Entretanto, como a avaliação de livros estava naprogramação, algo devia ser pensado. Já não tinha âni-mo para escolher os títulos mais adequados. Recusava-se também a ler os últimos lançamentos para indicar omelhor.

Agendou, então, uma espécie de excursão à bi-blioteca da escola, e mais outra a um centro culturalque ficava nas proximidades. Levou os alunos e, semquerer mais se inquietar com nada, largou-os nomeio do amplo salão repleto de estantes e lhes dis-se:“Aqui estamos.Agora, escolham vocês o que dese-jam ler”.

Num primeiro momento, os alunos ficaram atôni-tos, sem saber muito bem o que fazer. Não saíam do lu-gar,esperando que o pedagogo lhes indicasse algo mais- por onde procurar, a que estante se dirigir, quantos li-vros separar, de que tipo, qual a cor da capa.

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Mas o pedagogo nada dizia.Até que,aos poucos,osalunos foram se movimentando, embrenhando-se noenorme labirinto daquela sala de leitura. Retiravam li-vros das estantes e os tomavam nas mãos. Alguns fo-lheavam as obras, outros cheiravam as páginas amarela-das,outros ainda buscavam na estante dos lançamentoso fascínio dos livros novos, recém catalogados.

- Pode escolher esse aqui? - perguntou uma alunaao pedagogo, com um livro minúsculo nas mãos, e umjeito maroto de quem queria se salvar das centenas depáginas dos demais volumes.

- Pode - respondeu o pedagogo, indiferente.- E esse aqui,professor,eu posso ficar com ele? - in-

quiriu outro aluno, trazendo uma publicação de contossobre robótica.

- Não perguntem se pode ou não - avisou a todos -. Quero que a partir de agora vocês mesmos escolham,independentemente de minha vontade.

Por alguns momentos, entretanto, o pedagogo -que inicialmente decidira permanecer impassível - nãopôde deixar de se maravilhar com o que ocorria.Alu-nos que normalmente se recusavam a ler pareciamagora absortos, em meio às prateleiras, encantadoscom inúmeros volumes e indecisos quanto ao que le-variam para suas casas. Outros já haviam começado aler as primeiras páginas, sentados numa das mesinhasde leitura, e alguns faziam isso mesmo de pé, com o li-vro nas mãos, levemente reclinados sobre as estantesde madeira.

E mais ainda se admirou quando, terminado o tem-po destinado ao passeio, teve dificuldade para reunir a

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todos e retornar à escola.Alguns queriam permanecer,não haviam ainda decidido,ou queriam terminar de veras demais estantes. Outros perguntavam quando volta-riam a fazer uma excursão daquelas.Todos, sem exce-ção, carregavam um ou dois livros escolhidos.

Para a surpresa e a satisfação do pedagogo,entre asobras que levavam não havia apenas livros finos.Aliás,quase não havia. Os gostos eram variados: contos, ro-mances, até novelas de cavalaria.E mesmo um ou outroclássico chegou a passar sob seus olhos, enquanto con-tava os estudantes na fila de saída, para conferir se esta-vam todos.

Não houve prazo marcado para a leitura; apenasfoi combinado que todos devolvessem à biblioteca osvolumes emprestados dentro do período acertado, ouadiassem quando necessário. E assim se fez.

Semanas depois, uma idéia não saía da cabeça dopedagogo, apesar da decisão tão radical que já tomara.Queria saber se algum dos alunos solicitara novo em-préstimo.

“Não devo fazer isso”, censurava-se.“Para que fazê-lo, se na certa irei me decepcionar?” - tentava conven-cer-se. No entanto, aquela idéia lhe voltava, a curiosida-de era maior.Talvez houvesse descoberto o Método.Tal-vez houvesse chegado, intuitivamente que fosse, à me-todologia ideal para a iniciação dos jovens na leitura.

Até que, sem poder mais resistir, foi conversar coma bibliotecária.

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Caro leitor, tu que lês estas páginas, se és tam-bém um pedagogo, ou se alguma vez já te perguntas-te sobre como fazer para que os estudantes descu-bram o gosto pela leitura, deves estar ansioso por sa-ber os resultados da consulta.Algo cético, deves estardesconfiado da resposta, pronto para verificar queeste conto é inverossímil, distante da realidade, casoseja dito que aquela simples tentativa docente des-pertou o prazer de ler.

Bem, se por acaso é assim, tens razão, não omitireios fatos de ti. Com efeito, ocorreu que o pedagogo sou-be da bibliotecária que apenas quatro estudantes, dostrinta e cinco que levara, haviam retornado para retirarnovos volumes.

Mas eram quatro alunos que,segundo sabia,até en-tão não haviam lido quase nada além das obras solicita-das em sala de aula.

O que sei da história termina aqui. Desconheço in-clusive qual foi a lição que o pedagogo retirou daqueleepisódio.

Em todo caso, tu e eu, caro leitor, podemos arris-car algum palpite. Eu, pessoalmente, creio que o peda-gogo deve ter concluído que não havia receitas paraensinar a ler, nem para cativar para a leitura. Podia ha-ver, sim, formas diferentes para cada um. E um dos pa-péis do pedagogo, ou do orientador de estudos, ou doeducador, como quisermos chamar, será sempre tentardescobrir quais são as formas que podem despertaresse desejo em cada indivíduo. Os jovens estão aindase aproximando da própria vida; a escola tem o gran-

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de e sublime papel de fazer com que venham a se fas-cinar com as coisas.

Falo-te sobre isto, caro leitor, porque imagino quetu já deves ter experimentado o sentir-te deliciado comum romance a ponto de desejar que as páginas não pas-sassem tão rapidamente, e que a história continuasseum pouco mais.Acaso já viveste a experiência de deter-te numa mesma página um,dois,ou mesmo vários dias,sem que te voltasse a intenção de continuar, mas sen-tindo os dizeres de certos trechos presentes em teupróprio pensamento, voltando ao longo de teu dia demaneira cíclica? Já ficaste até a mais avançada madruga-da acordado, sem poder fechar o livro apesar de teresque acordar bem cedo na manhã seguinte, sem poderparar de ler antes de desvendares os enigmas que o au-tor escondeu de ti secretamente?

Se já passaste por alguma dessas situações, ami-go leitor, estamos irmanados no grande universo doshomens e mulheres que amam a leitura porque, de al-gum modo, deixaram-se capturar por ela, por seu en-cantamento que nos transporta, por um instante, des-te mundo. Imagino, então, que concordas tambémcom a idéia de que cada um terá sempre a sua pró-pria trajetória de leitura e a sua própria experiênciade leitor.

Sem ir mais longe, conta-me de ti, leitor, como foique começaste a ler? Aprendeste a aproximar-te do li-vro como um pesquisador que busca, entre pedras evestígios antigos, alguma marca que venha a fascinar-te,que te fale de costumes distantes, que conte sobre ho-

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mens e culturas que passam a fazer parte também detua vida e de tua cultura?

Percebeste, acaso, que não há tempo para o livro?Seja qual for a época da publicação, uma vez escrita, aobra já não mais pertence nem ao autor,nem a seu tem-po, transformando-se numa possibilidade de encontroentre os homens de todas as épocas e de todas as cultu-ras.Ou acaso,quando lês,não ouves as vozes de autoresque jamais te viram, e no entanto escreveram para ti?

Penso muito nisso porque eu já fui como aquelepedagogo de que te falava ainda há pouco,e pude cons-tatar também, nos encantos e desencantos das muitassalas de aula por onde andei, que nosso papel será tãobem cumprido quanto mais formos capazes de instigar,de questionar, de apresentar o desconhecido, sem su-por que seja exatamente naquele momento que o alu-no deverá se aproximar do novo.

Mas, assim como pode ter ocorrido com o pedago-go de que te falei, algumas idéias me ficaram muito cla-ras: primeiro, que não se desperta o gosto pela leituraobrigando a ler.Segundo,que seria ideal se cada um pu-desse escolher a sua própria leitura, mesmo que paraisso o professor não precisasse ser tão radical como foinosso protagonista, e se dispusesse a prestar certasorientações sobre autores, ou épocas, ou períodos lite-rários e seus contextos.Terceiro, que a leitura tem seupróprio tempo, e é pouco natural estabelecer prazosiguais para todas as pessoas.

Bem vês, apenas disso pude dar-me conta, nestesanos de sala de aula. Que conclusões mais simples... E,

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no entanto, talvez te surpreendesses, leitor amigo, se tecontasse que nem todos assim pensam,e que muitos jo-vens ainda hoje são obrigados a ler na escola o que nãoquerem,que os prazos já lhes vêm estipulados,e que in-clusive suas leituras são por outros definidas...

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Sobre o livro

Formato: 14x21cmMancha: 16.5x34 paicas

Tipologia: Garamond Book (texto)Gill Sans (encabeçamento)

Equipe de realização

Assistente de Produção GráficaLuzia Bianchi

RevisãoJosé Romão

Sérgio F.Torres de Freitas

Projeto GráficoCássia Letícia Carrara Domiciano

Criação da CapaMarcos Horta

DiagramaçãoOsmarina Lucinéia Buzzola Ambrósio

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