história intelectual e a história de um intelectual da educação brasileira
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PANIZZOLO, C. A Revista ponto-e-vírgula, n. 10, 2011, p. 74- 88.TRANSCRIPT
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; ponto-e-vrgula, 10: 74-88, 2011.
A Histria Intelectual e a histria de um intelectual da educao brasileira
Claudia Panizzolo*
ResumoA Academia de Direito de So Paulo funcionou, desde sua criao, como laboratrio em que os jovens das elites econmicas e polticas eram convertidos em aprendizes do poder. Este texto focaliza o perodo, entre as dcadas de 60 e 70 do sc. XIX, com destaque para um de seus membros: Joo Kpke que se notabilizou na cena nacional por meio do uso competente, das sociedades, da imprensa estudantil, bem como da criao de escolas e de impressos de destinao pedaggica. A pesquisa aponta como resultado, que tanto nas relaes institucionais, como nas formaes sociais, a Academia se converteu em celeiro para os intelectuais.Palavras-chave: histria intelectual; academia de direito; Joo Kpke.
AbstractSo Paulos Law Academy has worked since its foundation as a laboratory where young people from political and economic elites were converted to learners of power. This article focuses on the period between the 60 and 70 decades of the XIX century, especially on one of its members: Joo Kpke who distinguished himself on the national scene by the competent use of students organizations and media, the mainstream press as well as the establishment of schools and educational press. The research results indicate that both institutional relations, as in the social groups, the Law Academy became a fertile place to intellectuals.Keywords: intellectual history; law academy; Joo Kpke.
* Professora adjunta da Universidade Federal de So Paulo Unifesp. Doutorado e Mestrado em Histria da Educao pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo PUC-SP. Graduao em Pedagogia pela Universidade de So Paulo USP. E-mail: [email protected]
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A Histria Intelectual e a histria de um intelectual da educao brasileira
Sob a histria, a lembrana e o esquecimento. Sob a lembrana e o esquecimento, a vida. Mas escrever a vida outra histria. Uma histria inacabada. (Paul Ricoeur)
Campo de estudo novo e pouco definido, a Histria Intelectual tem
se constitudo, nas ltimas trs dcadas, em estimulante objeto de
estudo e de investigao. Muitas vezes confundida com a histria
das ideias, com a histria cultural e com a histria dos intelectuais,
indistintamente associada Histoire Intellectuelle praticada na Frana e
Intellectual History dos Estados Unidos.
De acordo com Darnton (1990), a histria intelectual, por no
apresentar uma problemtica norteadora, no se configura como um
todo e seus praticantes no compartilham nenhum sentimento de terem
temas, mtodos e estratgias conceituais em comum (p. 188). Mas como
ento definir Histria Intelectual, essa nova rea que oscila entre ser
uma disciplina em formao e um procedimento de anlise? Ainda que
se reconhea que toda definio traga consigo o risco da impreciso e da
ambiguidade,1 toma-se de emprstimo do prprio Darnton a definio
formulada na obra O beijo de Lamourette. Esta definio, a que mais
circulou no Brasil, distingue quatro reas da Histria Intelectual,
escalonadas ao longo de um eixo imaginrio, em que as posies referem-
se aos nveis de cultura onde se situam os objetos de investigao. De
acordo com o renomado autor, a Histria Intelectual se apresenta como:
[...] a histria das ideias (estudo do pensamento sistemtico, geralmente em tratados filosficos), a histria intelectual propriamente dita (o estudo do pensamento informal, os climas de opinio e os movimentos literrios), a histria social das ideias (o estudo das ideologias e da difuso das ideias) e a histria cultural (o estudo da cultura no sentido antropolgico, incluindo concepes de mundo e mentalits coletivas). (Darnton, 1990, p. 188)
Pensar a Histria Intelectual a partir destes quatro nveis implica
considerar o seu domnio pluridisciplinar, ou seja, reconhecer os
diferentes enfoques, como o dos agentes socioprofissionais, o das correntes
de pensamento, o dos contextos de produo de ideias e, portanto, a
1 A respeito da impreciso e ambiguidade da definio de Darnton consultar Lacerda e Kirschner (2003).
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A Histria Intelectual e a histria de um intelectual da educao brasileira
interseco de diferentes disciplinas (Histria, Sociologia, Filosofia, etc).
Cada uma dessas disciplinas propicia uma forma de elucidao do objeto.
A histrica aborda prioritariamente a histria poltica dos intelectuais,
sobretudo os manifestos e as manifestaes dos sujeitos histricos. A
sociolgica enfatiza notadamente a cartografia dos intelectuais, as
geraes intelectuais, as redes de sociabilidades e os modos de filiao
dos sujeitos no campo intelectual. A filosfica referencia uma anlise das
obras e da ideias dos sujeitos, como uma possvel verso da histria da
filosofia.
A Histria Intelectual visa, portanto, dois polos de anlise, de um lado
o funcionamento do campo, suas prticas, suas regras de legitimao,
seus habitus e suas estratgias, e de outro lado as caractersticas de um
momento histrico e os modos de funcionamento e atuao da comunidade
intelectual.
Este texto tem por objetivo apresentar uma investigao que buscou,
por um lado, a articulao entre a anlise externa dos acontecimentos
histricos, polticos e sociais e a anlise interna das obras estudadas, e
por outro lado, a articulao entre a abordagem da dimenso diacrnica
dos eventos vividos ao longo da histria, e a abordagem sincrnica dos
diferentes aspectos de um determinado conjunto.
Este trabalho focaliza o perodo, entre as dcadas de 60 e 70 do
sculo XIX, em que, na plena vigncia do regime imperial e da escravatura,
se forma e se organiza uma gerao de intelectuais que converteu a
instruo pblica na arma privilegiada de luta republicana e liberal.
Daquela gerao, destaca-se um dos seus membros, Joo Kpke, que se
distinguiu na cena nacional por meio do uso competente, primeiramente,
das sociedades e da imprensa estudantis, depois da grande imprensa,
bem como na criao de escolas e de impressos de destinao pedaggica.
O retrato de uma poca
Corre o ano de 1871 quando o jovem Joo Kpke chega a So Paulo,
transferido da Faculdade de Direito de Recife, para continuar seus estudos
na Academia do Largo. Encontra uma provncia em efervescncia, que j
sonha com a modernidade.
Os anos compreendidos entre 1870 e 1890 comportaram intensos
contrastes e debates. Tem-se a crise da economia mercantil-escravista
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A Histria Intelectual e a histria de um intelectual da educao brasileira
e a substituio do trabalhador escravo pelo livre. A decadncia das
lavouras tradicionais e o desenvolvimento paralelo do caf durante a
segunda metade do sculo XIX deslocam a primazia econmica do pas
do Nordeste para o Centro-Sul. O Oeste Paulista, regio mais recente das
plantaes, comea a substituir em importncia o Vale do Paraba, regio
ocupada na primeira fase da expanso cafeeira, agora em decadncia,
entre outros motivos, pela diminuio da oferta de mo de obra e pelo uso
imprprio do solo.
Em 1872, com a nomeao para a presidncia de So Paulo de
Joo Theodoro Xavier de Mattos, ex-acadmico, professor concursado de
Direito Civil da Faculdade de Direito e jurista conceituado, a provncia
comea a sofrer as primeiras transformaes em sua imagem urbana,
passando, ainda nesse ano, a dispor de iluminao a gs. Logo no incio
de seu governo, novas ruas foram abertas, velhas estradas prolongadas,
largos ampliados, jardins pblicos foram criados, mudando a paisagem
da provncia de So Paulo.
Em 1875, com a aprovao do Cdigo de Posturas da Cmara
Municipal da Imperial Cidade de So Paulo, a provncia, que crescera
e se desenvolvera at ento de acordo com as imposies da geografia e
dos interesses pessoais, passou a ter um planejamento que direcionava
sua ordenao. Assim, em meio a disposies que incidiam sobre higiene,
salubridade, ordem e segurana, o paulista, geralmente desconfiado, e
algumas vezes pouco socivel (Zaluar, 1975, p. 124), teve que se adequar
a uma nova mentalidade, que previa, por exemplo, alm da proibio do
uso de rtulas e sacadas de madeira e a exigncia de pintar as frentes, ou
outes, portas, janelas e batentes durante o segundo trimestre de cada
ano.
No entanto, alm das mudanas fsicas da provncia e
comportamentais de seus habitantes, as ideias tambm esto em plena
ebulio. H uma intensa circulao de novas tendncias de pensamento2
imortalizadas pela clebre frase de Silvio Romero: um bando de ideias
2 Hilsdorf (2003) indicou a existncia de trs tendncias em circulao. Uma delas era o positivismo, que, de acordo com a autora, teve uma ampla aceitao na sociedade brasileira, devido unio de uma proposta de cultivo das cincias modernas, como esteio para o progresso, tica cvica de respeito lei e ao princpio do bem comum (p. 58). Outra era a do industrialismo cosmopolita presente desde a ltima dcada do sculo XIX e que promovia iniciativas econmicas e educacionais voltadas aos interesses dos industriais. Na direo oposta viria a terceira tendncia, denominada de ruralismo, que defendia a vida campesina como o ambiente ideal para a formao de homens perfeitos (p. 58).
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novas , nascidas na Europa e nos Estados Unidos, que atravessaram o
Atlntico e aqui aportaram.
Esse perodo foi palco ainda de mais uma importante transformao:
a mudana do regime poltico-administrativo de Imprio para Repblica.
Embora o marco da Proclamao esteja fincado em 15 de novembro de
1889, importante retroceder a 1870 para flagrar a diacronia republicana
em momentos j de coexistncia, ora de cooperao ora de conflito com a
instituio monarquista. Por outro lado, necessrio avanar em direo
s duas primeiras dcadas ps-Proclamao para verificar as lutas e
disputas, sobretudo as resistncias expressas pelos adeptos do antigo
regime.
Os republicanos defendiam o modelo federativo, preservando assim
as foras regionais e locais. No entanto, no havia um projeto nico, pelo
contrrio, existiam diferenas significativas entre os projetos dos vrios
partidos republicanos do pas. Na provncia de So Paulo, o Partido
Republicano Paulista (PRP) congregava, alm de advogados, jornalistas,
engenheiros, mdicos e comerciantes (que constituam o ncleo mais
importante do Partido nas outras regies do pas), tambm numerosos
fazendeiros do Oeste Paulista.
Ainda que unidos no combate monarquia, os republicanos se
dividiam quanto aos mtodos a serem empregados para a conquista
do poder. Havia duas tendncias: a revolucionria e a evolucionista.
Os defensores da primeira preconizam a revoluo popular; os outros
confiavam que a Repblica seria alcanada pelo controle pacfico do poder.
A opo pela forma evolutiva de conquista do poder poltico j havia sido
anunciada desde dezembro de 1870 com o Manifesto Republicano, mas,
em So Paulo, venceu oficialmente no Congresso de maio de 1889. Com
essa vitria, os republicanos sinalizavam ainda que fariam uma reforma
pacfica das instituies, ao invs de uma radical revoluo social (...), e
que sua mentalidade era predominantemente liberal moderada, com uma
viso conservadora da democracia (Hilsdorf, 2003, p. 60).
Ao longo da dcada de 1870, os republicanos paulistas investiram
na configurao do campo doutrinrio dessa pedagogia republicana que
se fez signo do progresso. De fato, foi preciso redesenhar e recriar todo o
sistema de ensino pblico paulista, atravs da realizao de uma educao
que atendesse as diversas camadas sociais e que definisse a pedagogia
a ser praticada. Nesse sentido, alm de leis, decretos e regulamentos
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definidores de polticas a serem adotadas e de estratgias institucionais a
serem implementadas, os republicanos paulistas necessitaram configurar,
consolidar e divulgar o seu modelo escolar por meio de conferncias,
artigos e livros didticos, todos dirigidos aos professores com inteno de
prescrever o que e como ensinar.
Joo Kpke pertenceu a um grupo de intelectuais que, alm de defender
a reforma social pela reforma da educao, empreendia experincias de
escolarizao apropriando-se dos referenciais norte-americanos, tendo
atuado incansavelmente na abertura e na manuteno de escolas, na
difuso de prticas consideradas modernas e cientficas, e, sobretudo, na
definio e na criao de um novo campo pedaggico, alicerado em um
ensino cientfico, racional, leigo e seriado e em uma educao primria e
secundria, popular e feminina.
A trajetria intelectual de Joo Kpke
Escrever a histria envolve sempre o desejo de conhecer, desvendar,
desvelar e reconstruir o passado atravs da mobilizao de testemunhos
que buscam dar vida narrativa que se produz. Uma questo que se
levanta diz respeito escrita da histria de Kpke. Que gnero de histria
esse que possibilita a reconstruo da trajetria pessoal e profissional
de Joo Kpke sua atuao e produo pelos lugares por onde passou
ao longo de uma vida dedicada em grande parte a assuntos, polmicas,
empreendimentos e eventos da vida educacional do perodo?
A princpio, a escrita da histria de Joo Kpke parece tratar-se de
uma biografia, gnero que passou a ser revisitado desde 1980 a partir
de um balano amplo e detalhado do itinerrio da historiografia e pelo
alargamento temtico, que tem suscitado a constituio de novos objetos e
a reconfigurao de antigos temas, articulados na frtil interlocuo entre
os historiadores da educao e a produo historiogrfica contempornea.
Entretanto a histria biogrfica no se reduz histria de vida, o
que resultaria em uma armadilha, que Bourdieu (2003c) denominou
de iluso biogrfica (p. 74). Para o autor, a histria de vida pressupe
um conjunto coerente e orientado, que pode e deve ser apreendido como
expresso unitria de uma inteno subjetiva, de um projeto (p. 74), como
se o percurso da vida da pessoa fosse constitudo por um deslocamento
linear, unidirecional e cronolgico, marcado por uma viso de vida como
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existncia dotada de significao e de direo.
Em termos cronolgicos, de fato, uma vida possui finitude: apresenta
um comeo e um fim. Mas apenas nesse sentido que pode lhe ser atribuda
unidade e totalidade, porque, quando se trata de vivncias, uma vida um
sem-nmero de possibilidades, muitas vezes discrepantes, incoerentes,
desordenadas e desprovidas de sentido. Tal como apresenta Bourdieu
(2003c), a vida real constituda por possibilidades concretizadas e no
concretizadas, formadas por elementos justapostos e sem razo, em
mltiplos tempos e espaos, sendo, no entanto, cada elemento nico e
imprescindvel, portanto uma vida impossvel de ser apreendida como
totalidade.
Escrever uma biografia significa, pois, narrar uma trajetria,
compreendida aqui no no senso comum do termo, que a torna sinnimo
de caminho, percurso, estrada a ser percorrida, tendo j sido dada de
antemo, restando ao indivduo apenas uma sucesso de eventos num
espao determinado. A noo de trajetria que sustenta esta investigao,
ao mesmo tempo em que procura no sucumbir armadilha da iluso
biogrfica, parte do pressuposto de que os acontecimentos se definem
como alocao e deslocamentos no espao social, ou seja, se desdobram
tanto no tempo e no espao quanto participam de sua construo (cf.
Bourdieu, 2003c, pp. 81-82).
Escrever sobre Joo Kpke tentar reconstruir sua trajetria,
considerando-o como um personagem intelectual. Nesse sentido, busca-se
em Sirinelli (1996) uma melhor compreenso acerca do termo intelectual.
Em artigo intitulado Os intelectuais, o autor apresenta tanto o carter
polissmico da definio quanto o aspecto polimorfo do meio intelectual,
que acaba por gerar impreciso no estabelecimento de critrios definidores
da palavra, alm, claro, da evoluo gerada pelas prprias mutaes
societrias. Assim defende uma definio de geometria-varivel, mas
baseada em invariantes (Sirinelli, 1996, p. 242), apresentando para tal
duas acepes do termo intelectual.
A primeira, de carter mais amplo e sociocultural, abrange os
criadores, ou seja, todos os que participam na criao artstica e
literria, ou no progresso do saber (Sirinelli, 1998, p. 261) e tambm
os mediadores culturais, categoria composta pelos que contribuem para
difundir e vulgarizar os conhecimentos dessa criao e desse saber
(Sirinelli, 1998, p. 261). A segunda acepo, de carter mais restrito,
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refere-se noo de engajamento na vida da cidade como autor, atravs
da interveno do intelectual em questes que lhe legitime ou privilegie,
tomando-as a servio das causas que defende.
possvel pensar Joo Kpke como um intelectual em consonncia
com essas duas acepes aqui descritas. Com relao primeira acepo,
Kpke pode ser definido como um criador, se levarmos em conta critrios
como notoriedade e reconhecimento dos contemporneos. Logo nas suas
primeiras atividades como professor, adquiriu fama de talentoso mestre
de reconhecida cultura (Meneses, 1984, p. 30) e, segundo Dvila (1943),
tornou-se ainda no sculo XIX o mais apercebido mestre da Provncia (p.
162). Outro critrio que tambm precisa ser considerado o da extenso
de sua obra. Kpke escreveu, alm de cartilhas e livros de leitura, peas
de teatro, fbulas e livros infantis que circularam predominantemente
em So Paulo e no Rio de Janeiro.
Mas, alm de criador, Kpke tambm pode ser definido como
um mediador cultural, na medida em que tanto a sua atuao como
educador, caracterizada pelo esprito bravo e retilneo (Dvila, 1943,
p. 163), quanto o seu envolvimento com a causa republicana foram
marcados pelo pioneirismo na divulgao de modernas ideias e prticas
pedaggicas (Mortatti, 2002, p. 548).
No que diz respeito segunda acepo, Kpke bacharelou-se em
Direito em 1875, tendo sido nomeado promotor pblico nesse mesmo ano,
carreira que logo abandonaria para dedicar-se ao magistrio. Dentre as
preocupaes com a educao, Kpke e seus coetneos republicanos
conferiam grande importncia ao ensino da leitura e da escrita, que passou
a ser considerado fundamental para a viabilizao do regime republicano,
atravs do ensino de contedos morais e instrutivos necessrios para a
formao do novo cidado.
provavelmente no ambiente efervescente da Academia de Direito,
um verdadeiro ninho de republicanos histricos (Martins e Barbuy,
1998, p. 62), que Joo Kpke tenha entrado em contato com as ideias
republicanas, que devem ter sido discutidas e esclarecidas nas conversas
com o amigo Francisco Rangel Pestana. A amizade slida e duradoura
entre os dois possivelmente se iniciou na poca em que Kpke, ainda
quintanista de Direito, trabalhava no jornal A Provncia de So Paulo,
fazendo tradues do ingls, onde Rangel Pestana era o redator.
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A Histria Intelectual e a histria de um intelectual da educao brasileira
Alm de Rangel Pestana, Kpke manteve vnculos de amizade, ou
ao menos de convvio profissional, com outros republicanos paulistas,
como Antnio Caetano de Campos, Elias Fausto Pacheco Jordo, Amrico
Brasiliense, Julio Ribeiro, Henrique de Barcellos, Joo Vieira dAlmeida,
Herz Wichdorff, Campos de Paz, entre outros. interessante esclarecer
que esses homens, alm de republicanos, eram maons.
O tratamento das fontes primrias, bem como o estudo da bibliografia
pesquisada, no permite afirmar se Joo Kpke era ou no membro da
maonaria, no entanto tudo indica que era bastante estimado, tendo
inclusive recebido o ttulo de Benemrito. Esse dado deve ser cotejado
em relao posio pessoal e profissional de Kpke, considerando-se
as regras de pertena e legitimidade social dos lugares por ele ocupado,
como, por exemplo, seu cargo de professor no Colgio Culto Cincia
cujas nomeaes saam do seio da maonaria, ou ainda sua meterica
nomeao para a magistratura, ou a nomeao para o cartrio do Rio de
Janeiro, que recebeu do Presidente Campos Salles, tambm membro da
maonaria.
Kpke foi diretor e professor de vrias matrias do ensino primrio
e secundrio, dedicou-se a uma profcua produo intelectual escrita
voltada a temas relativos educao e ao ensino, alm de ter participado
dos principais eventos da vida educacional do perodo, proferindo
conferncias pedaggicas e participando como crtico e polemista sempre
a servio da santa causa republicana.
Para Sirinelli (1988), a trajetria dos intelectuais remete
obrigatoriamente histria poltica, por isso defende que o termo
intelectual no seja depurado de sua conotao poltica, posto que, nas
sociedades contemporneas, a condio poltica inerente ao intelectual,
seja por uma insero direta, como testemunha de uma poca, seja em
sua ao indireta, como homem portador da conscincia de seu tempo.
Com relao a esse segundo aspecto, o autor afirma que, ainda que o
engajamento no seja em sentido estrito, o intelectual um agente da
circulao das massas de ar culturais que determinam a instalao
das grandes zonas ideolgicas de uma poca (p. 9) podendo imprimir
marcas na classe qual pertence com sua viso de mundo alm de sua
interveno poltica.
Pensar o poder de ressonncia do intelectual revelou-se instrumento
eficaz. Joo Kpke no era um homem do Partido, no sentido estrito,
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e, ainda que comungasse dos ideais republicanos, no se converteu em
porta voz ou liderana desse grupo. Joo Kpke foi um pedagogista, um
homem que dedicou parte significativa de sua vida criao de teorias,
prticas e instrumentos que fossem capazes de educar os cidados
que um dia guiariam a Repblica. Expressou seu pensamento poltico-
pedaggico pondo em circulao, na imprensa, nas escolas, nos livros
para crianas e nas conferncias que proferiu uma pedagogia moderna,
que, ao mesmo tempo, tornou-se sinnimo de cientfica e republicana.
Alm de membro do estrato intermedirio dos intelectuais, Kpke exerceu
papel fundamental para a formao de homens que anos depois viriam se
consagrar sob a insgnia de escolanovistas.
De acordo com Sirinelli (1996), os processos de transmisso cultural
so essenciais para se pensar o intelectual, na medida em que ele se
define sempre por referncia a uma herana, como legatrio ou como
filho prdigo (p. 255), ora atravs de um fenmeno de intermediao,
ora por um processo de ruptura, mas de qualquer forma o patrimnio
herdado dos mais velhos elemento de referncia explcita ou implcita
(p. 255).
Analisar o itinerrio de um intelectual remete tambm ao conceito
de gerao de Mannheim (1982). Esse conceito apresenta basicamente
duas interpretaes. A primeira refere-se sequncia das geraes,
que demanda uma relao de domnio dos predecessores, dos
contemporneos e dos sucessores, o que implica, ao mesmo tempo, a
ideia de aquisio e de transmisso. A segunda interpretao, por sua
vez, diz respeito ao pertencimento a uma mesma gerao, ou seja,
considera como pertencentes a uma mesma gerao contemporneos
que viveram determinados acontecimentos e foram expostos s mesmas
transformaes. No entanto, viver em um mesmo espao de tempo no
significa a necessidade de partilhar as mesmas experincias de vida e a
mesma forma de pensar preciso mais.
Mannheim (1982), ao lado de critrios biolgicos de pertencimento a
uma mesma gerao, j havia acrescentado a necessidade de existncia
de um lao de gerao, que dependeria de um conjunto de sensibilidades
e afinidades comuns, herdadas e vivenciadas com a capacidade de criar
um sentimento de partilha de um mesmo destino.
Portanto, mais do que gerao, interessa aqui a unidade de gerao,
posto seu efeito formador e modelador do grupo. partindo da adoo
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da unidade de gerao como categoria de anlise que se pode entender
Joo Kpke como membro de um grupo, definido desde o convvio
acadmico, e ao qual se manteve unido em diferentes espaos, quer seja
no jornal A Provncia de So Paulo, pela impresso de uma linha comum
de argumentao, quer seja pela atuao no ramo educacional atravs
da iniciativa particular, concretizando a crena no poder do ensino como
elemento transformador da sociedade.
Sirinelli (1996) tambm destaca a organizao do grupo de
intelectuais em torno de uma sensibilidade ideolgica ou cultural, criadora
de uma vontade e um prazer pela convivncia, denominada estrutura de
sociabilidade. Para o autor, em verdade, o termo comumente utilizado
para referir-se a essa estrutura o de redes, que pode ser compreendido
de duas formas. Ao mesmo tempo em que redes estruturantes do espao
intelectual, tambm como microclima caracterstico de um microcosmo
intelectual bastante especfico.
A trajetria ou o itinerrio de formao de Joo Kpke foi crivada
pelas experincias vivenciadas em So Paulo, fundamentalmente em
torno da Academia de Direito. Quando Kpke chegou em 1871, encontrou
uma So Paulo dos bacharis envolta em nvoas e povoada pelas ideias
liberais, democrticas, republicanas e positivistas. No encontrou apenas
ideias, mas participou dos grupos e das redes onde elas eram criadas,
formuladas, debatidas e difundidas.
Entender a unio de um grupo e os laos e elos construdos por
seus membros remete anlise da singularidade das regras que regem
as redes intelectuais, que, se por um lado, no so leis impostas aos
indivduos, por outro tambm no so dadas ao acaso, fruto do imprevisto
e do casual, mas ao contrrio, se constituem pelo sentimento de partilha,
pertena e incluso a determinados ideais comuns.
Com esse referencial que se analisou o envolvimento do grupo em
diversas atividades ligadas educao. Assim, por exemplo, encontra-se
Joo Kpke lecionando com Francisco Rangel Pestana, Julio Ribeiro e
com o Engenheiro Campos da Paz no Colgio Culto Sciencia e no Colgio
Florence, ambos em Campinas. Kpke trabalhou com Antonio Caetano de
Campos, Elias Fausto Pacheco Jordo, Amrico Brasiliense, Amrico de
Campos e Jos Rubino de Oliveira no Colgio Pestana, de propriedade de
Rangel Pestana, e na Escola Primria Neutralidade, criada e dirigida por
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Kpke e Antonio da Silva Jardim, lecionaram Rangel Pestana, Antonio
Caetano de Campos e Narciso Figueiredo.
A compreenso da participao de alguns membros do grupo nos
mesmos colgios ganha clareza medida que se presta ateno a mais
de uma dimenso da rede, quer seja, a de se converter em um coletivo
articulado de agncias e agentes (Sirinelli, 1996, p. 150), que atua como
veculo de acesso a um determinado conjunto de ferramentas mentais, ou
seja, os pensamentos e as ideias socialmente determinados, das quais o
indivduo portador e que instrumentam seu pensar e agir.
Ainda nesse sentido, a rede, ao mesmo tempo em que valida e
legitima as ferramentas mentais, tambm apresenta objees a outros
conjuntos de ferramentas. Assim, funciona tanto como base de apoio
para as iniciativas individuais de seus membros como filtro regulador e
inibidor de novas investidas e arranjos morfolgicos.
Aliado a esse quadro terico e ao entendimento de que Joo Kpke,
unido pelo sentimento de partilha e pertena, participou efetivamente
da rede intelectual e poltica que, em fins do sculo XIX, comungava os
mesmos ideais liberais, democrticos, republicanos e maons, escrever
sobre a trajetria de Joo Kpke remete discusso acerca de sua
singularidade biogrfica. Nesse sentido, caberia interrogar se Joo Kpke
seria um sujeito mecanicamente determinado pelas condies objetivas,
como, por exemplo, o contexto familiar, ou, ao contrrio, se sua trajetria
seria fruto exclusivo de seu talento pessoal.
Para responder a essa questo, recorreu-se a Bourdieu (1990; 2003c),
que afirma, com absoluta pertinncia, que o trabalho biogrfico deve ser
investigado como resultado e produto de uma estrutura social, ou seja,
atravs da mediao entre indivduo e sociedade.
Parte-se, portanto, do princpio de que todo e qualquer indivduo
constitudo por uma bagagem socialmente herdada. Essa bagagem inclui
alguns componentes objetivos, que so externos ao indivduo e que podem
vir a ser postos a servio do sucesso escolar. Constituem essa bagagem o
capital econmico, o capital social e o capital cultural institucionalizado.
Enquanto o capital econmico refere-se especificamente s
propriedades e aos bens, o capital social diz respeito ao conjunto de
relacionamentos sociais mantidos, nesse caso, pela famlia. Alm dos
bens e propriedades e da extenso da rede de relaes, h ainda o capital
cultural institucionalizado, constitudo basicamente pelos certificados,
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A Histria Intelectual e a histria de um intelectual da educao brasileira
diplomas e ttulos escolares, outro componente que, por seu carter
objetivo, mantm relativa autonomia em relao ao seu portador.
Contudo, o patrimnio transmitido pela famlia inclui, alm desses
componentes objetivos, certos elementos que so adicionados prpria
subjetividade do indivduo, como o capital cultural em seu estado
incorporado e objetivado. Os elementos constitutivos do capital cultural
incorporado que merecem destaque aqui so os saberes voltados
formao de uma cultura geral; o domnio em maior ou menor grau da
lngua culta; o gosto por assuntos voltados arte, msica, ao lazer, ao
vesturio, aos esportes, ao paladar, etc., alm, claro, das informaes
sobre o mundo escolar.
Joo Kpke, filho de uma famlia da elite intelectual, conviveu e
aprendeu a conviver desde a mais tenra idade, e enquanto residiu em
Petrpolis, com crianas tambm oriundas de famlias como a sua,
legtimos representantes da elite, fosse intelectual, econmica ou
poltica. Provavelmente acompanhou seus pais a festas e comemoraes
importantes da localidade, alm de ter convivido na sua prpria casa com
pessoas, parentes, amigos e visitas tambm pertencentes a sua classe
social, ou melhor, a sua frao de classe. A partir dessa convivncia, ao
longo de sua infncia e mesmo na adolescncia, estabeleceu um conjunto
de relacionamentos sociais influentes mantidos na esfera de ligaes de
sua famlia.
Esses relacionamentos trazidos desde o bero e acumulados ao longo
de sua trajetria social se converteram em capital social, e se tornaram
fundamentais no sentido de assegurar determinada posio no espao
social. (cf. Bourdieu, 2003a, 2003b). No entanto, o capital cultural,
sobretudo no seu estado incorporado, constituiria o elemento da herana
familiar a produzir maior impacto na definio do destino escolar.
Pode-se afirmar que a posse de capital cultural herdado de sua
famlia favoreceu o desempenho escolar de Joo Kpke, de modo a facilitar
a aprendizagem tanto dos contedos curriculares quanto dos cdigos
lingusticos, intelectuais e mesmo disciplinares veiculados e sancionados
pela escola, alm de ter sido fundamental para a criao de certos
esquemas mentais ou modos de pensar o mundo, que possibilitaram a
criao de referncias culturais e, sobretudo, o domnio da lngua culta.
Cabe destacar que, ao referir-se ao capital cultural, Bourdieu (2003b)
o define como um ter que se tornou ser, uma propriedade que se fez corpo
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A Histria Intelectual e a histria de um intelectual da educao brasileira
e tornou-se parte integrante da pessoa, um habitus (pp. 74-75). Nesse
sentido, Joo Kpke no seria de maneira alguma um ser autnomo e
autoconsciente, mas tambm, de forma alguma, um ser mecanicamente
determinado por foras objetivas. Joo Kpke, pelo contrrio, agiria
orientado por uma estrutura incorporada, denominada habitus, que,
seguramente, refletiria as caractersticas da realidade social na qual
foram socializados.
Consideraes finais
A crena generalizada na instruo e na educao fez com que
homens das dcadas de 1860 e 1870, como Joo Kpke e seus coetneos
se propusessem a ilustrar, investindo e definindo acerca dos assuntos
educacionais, tomando a escolarizao elementar como uma de suas
mais fundamentais bandeiras de luta. Assim, essa gerao de intelectuais
esteve frente das iniciativas no mbito da imprensa republicana, onde,
como redatores ou colaboradores, escreveram, defenderam e propuseram
medidas relativas s questes educacionais. Esses homens exerceram
tambm liderana e destaque nas associaes literrias e cientficas,
proferindo conferncias, palestras, inaugurando gabinetes de leitura e
lecionando em cursos noturnos. Dedicaram-se ao ensino privado, atravs
da criao, direo, apoio e docncia em escolas de carter inovador e
cientfico.
Em especial, Joo Kpke nas mltiplas atividades que realizou ao
longo de mais de setenta anos de vida, mostrou-se movido por um projeto
poltico-intelectual bastante caracterstico, garantia de uma unidade de
sentido, presente em suas atitudes e em seus escritos. Joo Kpke a todo
tempo demonstrou-se preocupado com problemas e temas relativos
organizao poltico-educacional do Brasil, do que resultou a elaborao
de uma metodologia especialmente voltada para o ensino da leitura e da
escrita com base nos ideais republicanos.
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A Histria Intelectual e a histria de um intelectual da educao brasileira
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