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História econômica e literatura: é possível construir um diálogo virtuoso?
Lucas André Berno Kölln (USP)
Resumo: Essa comunicação foi arquitetada com base nas experiências e nos dilemas surgidos
ao longo de uma pesquisa de doutorado sobre história e literatura estadunidenses, enfocada
sobre um período de transformações profundas, o início do século XX, umbilicalmente ligado
à transição de um capitalismo "liberal" para um de regime monopolista. Diante dessa origem,
seu objetivo é tentar ponderar sobre possíveis formas de articulação e diálogo entre dois
universos que por vezes parecem se repelir: realidade econômica e criação literária. Por mais
que as análises marxistas tenham insistido, há bastante tempo, sobre as formas de consciência
social e as criações artísticas delas resultantes, como em Lukács, Kosik ou Vásquez, nos parece
que ainda há espaço para lapidação, ainda mais diante das metamorfoses contemporâneas da
historiografia. Em nosso caso, a História Social do Trabalho, especialmente na sua tradição
inglesa, oferece novos problemas a serem pensados e novas possibilidades a serem exploradas.
Permanecem perguntas tais como: a observância materialista da realidade histórica modela de
que modo uma pesquisa que toma como fontes obras de literatura? Como o labirinto ficcional
e estético pode ser devassado e dissecado a contento dentro de um escopo de análise
preocupado com questões econômicas como constituintes do processo histórico? De que
maneira a autonomia da criação literária pode ser respeitada, e oferecer olhares novos, no seio
de uma pesquisa em que um dos pressupostos centrais é a relevância da economia como
elemento determinante dos fatos históricos? Levando em conta a ambição monumental de uma
tal investigação, insistiremos num encaminhamento: tomar o trabalho como possível chave
interpretativa, pois em sua anatomia se congrega a materialidade econômica e condições de
sociabilidade, as quais entendemos como fundamentais para ler historicamente a literatura,
podendo assim tratá-la como uma fonte fecunda para a historiografia. A proposta, portanto, é
a de tomar as inquietações de minha pesquisa como pontos de reflexão que, quiçá, possam
oferecer alguma contribuição para esse fascinante diálogo que é o da História com a Literatura.
Palavras-chave: História; Literatura, História Econômica.
Abstract: This text was erected upon the experience and the dilemmas that were born through
my doctorate's research on American History and Literature, especially concerned with a
period of profound changes: the beginning of the twentieth century, deeply connected, as it is,
with the transition from a "liberal" capitalism to a monopolistic one. Considering this origin,
its goal is to try and evaluate possible ways of building articulation and dialogue between two
worlds that sometimes seem to repel each other: economic reality and literary creation. Even
though the Marxist analyses have long time studied the forms of social consciousness and the
artistic creations from them resulting, as in Lukács, Kosik and Vásquez, it seems to us that
there is still room for improvement, especially considering the contemporary metamorphosis
of Historiography. In our case, the Social History of Labor, notably in its British tradition,
offers new questions to be considered and new possibilities to be explored. Questions remain,
though: how does the materialist observation of a certain historical reality shape a research
based on literary sources? How can the fictional and aesthetic labyrinth be scrutinized and
dissected suitably into a scope of analysis concerned with economic questions as constituents
of the historical process? In what ways does the autonomy of literary creation can be respected,
and enable new perspectives, in a research in which one of the main assumptions is the
relevance of economy as a determinant factor of historical facts? Realizing the monumental
ambition of such an investigation, we'll make a proposal: to take labor as a possible key to
interpretation, for in its anatomy economic materiality and sociability conditions meet each
other, both of which we regard as fundamental to read literature in a historical manner, thus
being able to treat it as a rich source for History. The proposal, therefore, is to take the
inquietudes of my research as basis for a reflection that, perhaps, can offer some contribution
to this fascinating relationship between History and Literature.
Keywords: History; Literature; Economic History
Introdução
Economia e literatura não são vizinhas costumeiras.
E assim o é mesmo quando se fala de historiografia, por mais que hajam tentativas de
construir aproximações por meio de certos elementos. Os estudos vinculados a uma abordagem
econômica (sem necessariamente requererem o título de 'História Econômica'), não costumam
reivindicar citações de obras literárias ou indicativos literários senão de forma diletante, seja
para demonstrarem sensibilidade e/ou espirituosidade apesar da aridez de sua costumeira verve
quantitativa (como Ladurie por vezes em seu Os camponeses do Languedoc [1997], ou Braudel
em meio às tabelas e gráficos de seu O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de
Felippe II [1984]); seja para corroborarem alguma hipótese, como o faziam Marx e Engels,
pródigos leitores dos clássicos. Em todas essas ocasiões, a literatura aparece mais com a função
de comprovação ou demonstração, não tendo suas entranhas expostas e dissecadas com
cuidado, algo que deixaria críticos mais sensíveis algo incomodados.
É preciso notar que a delimitação de uma abordagem econômica na historiografia não
tem a ver com a proposição daquilo que Pierre Chaunu, com certa ambição teorizante, chamava
de história serial ou história quantitativa (1987). As abordagens voltadas às estatísticas, à
quantificação ou, numa versão mais sofisticada desse mesmo escopo, à chamada "cliometria"
norte-americana não são nem exclusividade nem sinônimo de História Econômica. O exemplo
mais candente que vêm à mente são os trabalhos vinculados ao marxismo, que se baseiam numa
leitura materialista da história sem que, por conta disso, tenham que se submeter ao estudo da
economia como um sistema quase matemático. Pegue-se O capital de Marx e se verá que no
capítulo sobre a maquinaria alternam-se páginas de uma abordagem rigorosamente teórica da
produção da mais-valia (regadas a cálculos, equações e demonstrações numéricas complexas)
e passagens em que a divisão social do trabalho toma como analogia certa fábula de Esopo em
que as partes do corpo ganham vida própria, precisamente para demonstrar que a gerência
capitalista submete os trabalhadores à maquinaria, tornando-os órgãos desse mecanismo
(2008).
Estudos historiográficos que trazem no seu título uma referência mais explícita à
economia, tais como História econômica e social da Idade Média, do belga Henri Pirenne
(1963), ou, num contexto nacional, História econômica do Brasil (1986), de Caio Prado Jr.,
não deixam de apontar para indícios dessa leitura. Ao longo de sua argumentação voltada a
sustentar a tese sobre o isolamento comercial como pedra angular do feudalismo medieval
europeu, Pirenne cita passagem do filósofo árabe Ibn Khaldoun como indício da solidez da
hipótese. E quantas referências há, ao longo de toda a produção de Caio Prado Jr., aos escritos
do marquês de Lavradio e a um ou outro viajante inglês ou francês, ou parlamentar brasileiro,
quando o assunto são as relações produtivas? Entendo que tanto o filósofo árabe quanto os
cronistas estrangeiros, assim como os parlamentares brasileiros não constituem, em primeira
instância, o que contemporaneamente nos acostumamos a chamar de literatura, vinculado à
ideia de ficção, contudo, não deixa de ser sintomático que as zonas em que o literário (ou quase)
se plasma com o econômico, sendo por ele enformada, tenham sido buscadas por esses
historiadores para dar conta de explicar a complexidade da realidade que analisam.
Como, então, se é possível, construir um diálogo virtuoso?
História econômica
Como demonstra Coggiola no belo levantamento que faz sobre a genealogia da história
econômica (COGGIOLA, 2004, pp. 323-354), a discussão sobre economia e seu papel sócio-
histórico poderiam remontar à Antiguidade se não se adotasse uma perspectiva por demais
ortodoxa. O oïkos grego clássico (partícula formativa do termo "economia", mais tarde),
presente tanto num Aristóteles quanto num Platão, atentava especialmente para a chamada
"economia doméstica", mas guardava também uma importante dimensão semântica que o
ligava tanto a pólis quanto à natureza. Isso aponta para a pertinência social e humana que desde
as origens permeia a ideia de economia, sobrevivendo a despeito do guinada técnica que a
acepção e a disciplina moderna de Economia possuem, pelo menos desde que o debate da
Economia Política, já em fins do século XVIII, se adensou consideravelmente - e isso notando
que o mesmo Adam Smith que escreveu o clássico A riqueza das nações (1776) também
escreveu Teoria dos sentimentos morais (1759), algo que é sintomático acerca do como não
são redutíveis à matemática e à econometria o termo e o campo contemporâneos.
O campo da chamada História Econômica, no entanto, ganha uma formatação mais bem
definida, em conceitos e método, com os trabalhos de história econômica da escola alemã, de
que Friedrich List é, talvez, o representante mais notável nesse sentido. Dele a Marx há um
salto importante, marcado pela incorporação efetiva do elemento histórico como algo mais do
que ilustração ou exemplo, mas sim como fator determinante. O elemento histórico, ou a
preocupação com a corporificação histórica dos fatores econômicos já estava presente desde
os mais antediluvianos tempos da análise econômica (mesmo quando o termo Economia não
havia se dissociado de outros sentidos que o continham), mas foi em Marx que ele ganhou seu
relevo mais robusto, passando a se tornar elemento realmente determinante (COGGIOLA, p.
327).
Acerca disso Hobsbawm afirmou acertadamente que "(...) os historiadores devem partir
da observação de Marx de que a economia é sempre historicamente específica, [e de que] a
produção é sempre 'produção em um determinado estágio de desenvolvimento social, produção
por indivíduos sociais'" (HOBSBAWM, 1998, p. 124) Isso significa, dentre outras coisas,
aceder à posição de Josep Fontana quando este defendia que "(...) a identidade da história
econômica como um campo de conhecimento (...) [e que] não é (...) ramo da economia."
(FONTANA, 2014, p. 9)
A história econômica, seja quando reivindica a pertença a certa tradição historiográfica
do início do século XX (tributária dos estudos de Pirenne, Hauser, Labrousse e Mantoux), seja
quando reivindica uma abordagem mais materialista e mais ancorada sobre elementos ditos
"econômicos" (como nas análises quantitativas ou na "cliometria"), continua estando atrelada
ao objeto de estudo da historiografia, o homem no tempo (para usar os termos de Marc Bloch).
A isso corresponde dizer que mesmo a mais economicamente especializada das abordagens, e
mesmo aquela mais dotada de rigor quantitativo, estatístico ou matemático (econométrico,
enfim), continuam sendo história econômica, e não economia histórica ou afins. A historiadora
inglesa Ellen Wood argumentou, aliás, que conseguir destacar a economia das demais
dimensões econômicas, operando como que uma "tecnificação" do assunto é um dos feitos
mais perversos do capitalismo (WOOD, 2011).
A consideração efetiva das questões acima dá azo a toda uma série de problemas não
apenas historiográficos, mas epistemológicos e filosóficos num sentido mais geral. Diante,
pois, desses breves apontamentos acima, gostaríamos de destacar dois que nos incomodam
especialmente na presente discussão: (1) a subsunção do elemento histórico na generalização
de mecanismos e constructos teóricos econômicos; e (2) a "tematização" do econômico.
Quanto ao ponto (1), creio que seja Hobsbawm aquele que mais nos ajuda a destrinchar
os pontos nodais no espaço de que dispomos aqui. Nos dois artigos em que fala sobre história
econômica reunidos na coletânea Sobre história ("Historiadores e economistas I e II"), o
historiador inglês insiste sobre alguns pontos de cautela, especialmente pelo fato de que, diante
da especialização e "tecnificação" da Economia contemporânea, ela carrega um pendor
fortemente sistemático e teorizante. Pautando-se na "econometria" como seu grande impulso
empírico, as análises propriamente econômicas costumam se cristalizar mais em modelos
explicativos e na criação de grandes análises teóricas do que propriamente nas peculiaridades
desta ou daquela situação históricas. O resultado de um desenvolvimento nessa direção é que
os "comportamentos" regulares, aquilo que pode ser transmutado, pelo padrão e pela
recorrência, em espécie de "lei" (num aspecto fortemente nomotético), acaba ganhando maior
relevo que os pontos de quebra, o imprevisível e mesmo, por vezes, o provável. É muitas vezes
aí que os caminhos da propriamente históricos e os rigidamente econômicos se distanciam.
É sobre isto, de certo modo, que fala Hobsbawm na seguinte passagem:
Meu raciocínio supõe que, divorciada da história, a economia é um navio
desgovernado e os economistas sem a história não tem muita noção de para
onde o navio navega. (...) O estudo estava divorciado do estudo dos fatores
sociais e de outros fatores que condicionam o comportamento dos agentes que
constituem tais mecanismos. (HOBSBAWM, 1998, p. 118).
A distinção entre "agentes" e "mecanismos" é sintomática. A característica técnica,
estatística e demasiadamente formalizante com que muitas vezes a Economia opera acabam
por separá-la da história, uma vez que não somente o sistêmico e sua mecânica regular tomam
o lugar do humano, mas porque os esquemas e modelos explicativos fixam certa constância
que é pouco verossímil. Ainda mais quando o histórico que entra na construção dos modelos
econômicos é majoritariamente estatístico, antes de perguntar-se sobre o sentido ou o
significado deles.
Na medida em que a história, e mesmo a história econômica, tem como objeto de estudo
o homem, algum grau de imprevisibilidade, de criatividade e de responsividade empírica se
impõem ao método que permite dissecá-lo e explicá-lo. Operando pela média, pelo
estatisticamente relevante ou por aqueles comportamentos mais passíveis de generalização, os
modelos econômicos vão tendo suas amarras ao humano fragilizadas, e vai assomando certa
noção maquinal ou demasiadamente formalizante que é prejudicial ao estudo historiográfico.
Hobsbawm sintetiza isto do seguinte modo: "Temos a opção de construir um modelo único
mediante a abstração das peculiaridades das partes constituintes, mas às custas de sacrificar o
realismo (...)" (Idem, p. 135)
Se quisermos usar um termo utilizado por Carlo Ginzburg, diremos que o sublinhar da
relevância técnica, quantitativa e teorizante da Economia faz desenvolver certo conteúdo
"antiantropocêntrico" (GINZBURG, 1990, p. 178) nas análises econômicas, o que secundariza
aquilo que é, para a historiografia e para as ciências humanas, primário: o homem e os
fenômenos humanos. Novamente Hobsbawm oferece a síntese: "(...) uma desvantagem óbvia
da economia como matéria que lida com o mundo real é o fato de que ela seleciona como
'econômicos' alguns e apenas alguns aspectos do comportamento humano e deixa os demais
para outrem." (HOBSBAWM, 1998, p. 122)
Os constructos teóricos, as interpretações e concepções de homem e de humano
oriundas de tais procedimentos econômicos costumam distanciar-se, em graus variáveis, da
particularidade da vivência e da experiência. Assim, ele se enfraquece diante do teste de
realidade, se retrai diante da presença de uma lente de aumento ou de um debruçar mais detido
sobre determinado episódio, comportamento ou processo - individual e coletivo.
A análise econômica, portanto, se por um lado é valiosíssima, pois permite encontrar
âmbitos gerais e (talvez especialmente) dimensionar envergaduras, profundidades e
quantidades, revelando tendências, pressões e estruturas; por outro pode ferir a capacidade
interpretativa, pois pode fazer subsumir o humano em meio ao estatisticamente relevante,
sacrificando o desviante pelo normal, o peculiar pelo recorrente.
Em relação ao ponto (2), Josep Fontana parece ter o argumento certeiro, especialmente
quando escreve que a história econômica não é "uma variedade temática da história" (2014, p.
9) A história econômica não se fia necessariamente por "temas econômicos", como se lhe
coubessem somente temas relacionados à produção, taxa de lucro, oscilação cambial, índices
de produtividade, questões de preço e a organização e dinâmica do comércio. Reiteremos a
afirmação que fizemos acima: o objeto de estudo da história econômica continua sendo o
homem. A característica específica da história econômica diante das demais "histórias" é o fato
de que ela se vale de fatores econômicos, dos mais variados, como indícios, termômetros,
evidências e argumentos a serem costurados e usados em nome da análise historiográfica.
Por esse motivo, por exemplo, que o famoso livro de Ernest Labrousse sobre a oscilação
dos preços de variados gêneros ao longo do século XVIII serve à construção de hipóteses
historiográficas sobre a Revolução Francesa e suas causas. Boa parte da historiografia
construída depois do livro de Labrousse (que é da década de 1930), e a partir de outras fontes,
tem convergido em direção muito similar a dele, desde Georges Lefebvre (contemporâneo dele)
até George Rudé e Albert Soboul. Por motivo muito similar é que um trabalho como o grande
A ética protestante e o "espírito" do capitalismo, de Max Weber (ainda que este seja um
sociólogo) pode ainda hoje sustentar-se como uma interpretação extremamente engenhosa e
perspicaz sobre cultura e relações sociais. Ainda pelo mesmo motivo é que as interpretações
pioneiras de Pirenne e Hauser sobre o declínio do feudalismo e inícios do capitalismo
encontraram acolhida em diversas obras que as sucederam até data muito recente - Bloch se
considerava tributário de Pirenne assim como várias das interpretações de Duby sobre a Alta
Idade Média, laços de dependência e rituais aristocráticos partem de pressupostos econômicos
analisados por aqueles dois historiadores.
O que queremos ressaltar com esses exemplos é de que a história econômica está longe
de se restringir àquilo que se costuma rotular como "econômico". Ainda que, em nome de uma
tradição que fez escola nesses domínios, tenhamos que dizer que as análises quantitativas, a
história serial e a intersecção com a teoria econômica tenham gerado uma fortuna crítica
considerável, não podemos auferir disto sua hegemonia absoluta. Os exemplos que
mencionamos en passant acima demonstram, cada qual a seu modo, o fato de que a análise
econômica não-ortodoxa permite contemplar dimensões da existência histórica que se mostram
extremamente úteis e significativas para historiadores que não reivindicam o qualificativo de
"historiadores econômicos".
Tanto Bloch como Duby, em A sociedade feudal e Guerreiros e camponeses, por
exemplo, insistem sobre o papel histórico que a fraqueza ou ausência de uma economia
monetária desempenhou na construção de laços de dependência de tipo feudal, como parte de
um complexo sistema social, econômico e cultural. Note-se: isso não significa, como certa
obsessão padronizante pode nos levar a crer, que o assim-chamado "renascimento comercial"
a partir do século XII-XIII tenha necessariamente levado à dissolução dos laços feudais, mas
de que a não-predominância de meios ou de uma economia monetária favorecia, como fator e
como produto históricos, certas condições de reciprocidade e relacionamento social. A tese de
Pirenne insistia vivamente na direção de associar, com um laço causal demasiado estreito, o
declínio do comércio com o desenvolvimento de uma economia agrícola medieval: a percepção
(moderna) da relação entre os dois fatores econômicos não nos permite, por conta disso, tirar
conclusões históricas necessárias (isto é, determinísticas). A solução de Pirenne era engenhosa
e, em tempos de positivismo estrito, dotada de grande frescor analítico, mas por vezes padecia
de certa rigidez que trabalhos como o de Bloch e Duby (para não citar o caudaloso debate
marxista sobre a transição do feudalismo ao capitalismo) cuidaram para contrabalançar com a
exegese de outra documentação e consideração de outras variáveis e pressupostos.
Em suma: do mesmo modo que um estudo de história econômica pode lançar luz sobre
pressões e tendências sistêmicas a pesarem sobre os atos humanos, fixando-lhe condições
concretas, esses atos são dotados, se não de nada mais, pelo menos da possível consciência
dessas mesmas pressões - e, diante disso, da potencial adaptabilidade empírica que as contorna
ou delas escapa. Mesmo aquilo que comumente categorizamos como "econômico" é, em
primeira e em última instância, humano, naquilo que implica de determinado e de autônomo.
Afirmar isto significa em grande medida reiterar o argumento de Fontana: a história econômica
"não é uma variedade temática da história", ou seja, é possível usar a abordagem característica
da história econômica para falar sobre fenômenos tais como os motins do pão no pré-1789, os
laços de dependência feudal, as concepções religiosas protestantes e assim por diante.
Diante disto, dessa expansão do "econômico" para um sentido de materialidade menos
imediatamente técnico ou teórico, nos parece que o terreno para a ligação entre história e
literatura encontra-se mais bem sedimentado.
Trabalho e Literatura
Conforme afirmado no resumo, a genealogia desse texto encontra-se enraizada numa
pesquisa de doutorado em andamento, e num dilema surgido ao longo dela. O dilema em
questão era conseguir analisar problemas históricos fortemente atrelados a questões
econômicas (a saber, a consolidação do capitalismo monopolista) tomando como base fontes
literárias. Confrontado com a dificuldade do avizinhamento entre questões econômicas e
literárias é que a presente "solução" se submete ao teste de realidade e à sabatina dos pares:
propõe-se que o trabalho, tomado como categoria analítica tal como lapidada pelos debates da
História Social do Trabalho, pode servir à hercúlea tarefa que se tem em mãos.
Ancorada fortemente numa tradição marxista, e talhada pela tradução, publicação e
disseminação dos agora-famosos Grundrisse de Marx nos anos 1950, os historiadores ingleses
buscaram retomar questões que apareciam nos escritos de Marx e tratá-las mais
sistematicamente, de modo a expandir o escopo de abordagem dessa tradição teórica, filosófica
e, evidentemente, política. Foi nessa esteira que trabalhos como os de Eric Hobsbawm,
Christopher Hill e E.P. Thompson surgiram, e foi nesse ínterim que análises com inflexão
diversas do fôlego sistêmico de Marx permitiram um destrinchar do trabalho como experiência
concreta de determinação histórica.
Sob vários aspectos, Marx (e também Engels) partiam de tais pressupostos acerca do
papel central do trabalho na conformação da consciência social e da cultura, mas, como disse
Thompson, ele ficou preso nas "armadilhas do capital", na sua colossal tarefa de
sistematicamente combater a Economia Política clássica desmontando-a peça a peça, conceito
a conceito. Disso resultou que sua atenção teórica não tenha sido explicitada como tal, embora
possamos encontrá-la operacionalmente em praticamente todos os seus trabalhos, e com um
inebriante estofo filosófico nos Manuscritos de 1844 (ou Manuscritos econômico-filosóficos).
O que se quer argumentar aqui, já acossado pelo limite de espaço que nos constrange, é que
aqueles historiadores ingleses fizeram uma nova e vigorosa leitura das obras de Marx para,
dentre outras coisas, combaterem a esterilidade das leituras estruturalistas que vicejavam
(dentro e fora do marxismo) e assim reabilitar o potencial epistemológico e político dos
conceitos marxistas, expandindo temas, noções e conceitos que, por uma razão ou outra, não
haviam sido desenvolvidos nos alfarrábios e escritos de Marx oriundos do XIX, e que uma
abordagem ampla, profunda e sensível do "trabalho" estava entre essas retomadas.
Nos estudos de Hobsbawm e Thompson, para citar somente dois, o trabalho não é
reduzido à grade estrutural (como era no "marxismo vulgar" e no Estruturalismo), nem estava
centrado sobre a investigação da complexa mecânica da extração da mais-valia (pedra angular
da crítica da Economia Política condensada em O capital). O trabalho constituía-se parte
importante desses sistemas gerais, mas, tanto quanto isto, era momento fundamental da
experiência social e histórica, espraiando-se tanto em domínios materiais e econômicos quanto
em domínios culturais e subjetivos.
Desse modo, trabalho encarnava-se tanto num conceito econômico (vinculado à
produção, circulação monetária, venda de mão-de-obra, extração de mais-valia, como
constituinte das relações sociais de produção e das forças materiais de produção), quanto
naquilo que Thompson chamou de "experiência". Ele compunha a vida daqueles que o
realizavam de uma forma ampla, moldando sua sociabilidade, estabelecendo limites e
exercendo pressões sobre seu modo de vida, sobre seu tempo, sobre seus costumes (dentro e
fora da fábrica e da jornada), dando-lhes ou não condições materiais de sustentar tais ou quais
hábitos e residir em tais ou quais lugares, e, é claro, talhando consideravelmente seu senso de
identidade, de pertença social e também dos antagonismos que compunham as relações sociais
de produção. Mesmo se não se adotar uma concepção mais ampla de trabalho atrelada à ação
concreta sobre o mundo posto, natural ou humano, atendo-se mais à sua dimensão de relação
social de produção, ainda assim se está diante de uma noção complexa o suficiente para dar a
ver grandes domínios da vida humana.
Em tais termos, o trabalho tornava-se muito mais historicamente plasmável, pois
enxergado nessa perspectiva ele trazia em sua anatomia a natureza social e cultural da
existência, e incrustado em seu fazer-se um conjunto de indícios e evidências que podiam
lançar luz muito além de sua concepção como mero índice estrutural (como por vezes em Louis
Althusser) ou como variável econômica (como nas leituras economicistas). Talvez se possa
dizer, com um certo grau de imprecisão conceitual que a argumentação hora ou outra permite,
que encarado na perspectiva dos marxistas britânicos, o trabalho podia dizer tanto sobre o
sujeito que o leva a cabo quanto sobre o sistema econômico ao qual ele se encontra atrelado (e
determinado). Em mais de um aspecto, Thompson, Hobsbawm, Hill, Samuel, Saville (e outros
mais) conseguiram por em funcionamento de maneira prodigiosa as observações de Marx e
Engels sobre o potencial ontológico do trabalho.
No que tange ao propósito da argumentação que aqui se move, essa ampliação e
aprofundamento das possibilidades de análise histórica do trabalho abre uma possível trilha
para soldar questões econômicas e literárias. Na medida em que a literatura exige um cotejo a
um tempo rigoroso e sensível para que possa desabrochar como fonte histórica, é em grande
medida a cultura, a subjetividade, as "coisas do espírito" que urge desvendar em primeira
instância, e operar com a noção de trabalho cultivada pela História Social do Trabalho e pelo
Marxismo Britânico é uma forma de não opor nem muito menos dissociar materialidade e
subjetividade. O próprio Thompson, quando falava da cultura camponesa e da "economia moral
da multidão" do século XVIII, alicerçava-se no pressuposto de que "(...) não existe
desenvolvimento econômico que não seja ao mesmo tempo desenvolvimento ou mudança de
uma cultura." (THOMPSON, 1998, p. 304)
Dentro de um referencial materialista, esses avanços significam uma sofisticação
crucial para que a literatura se torne algo mais do que ilustração ou algo mais do que indício
com mero viés de confirmação histórica. Considerar o trabalho nas suas dimensões ontológicas
fundamentais torna as produções literárias de um determinado escritor cicatrizes e produto de
uma consciência (em seus caracteres sociais, culturais, espirituais, morais etc.) forjada no
cadinho de sua vivência concreta, da qual o trabalho é ponto fundamental, seja como forma de
sustento, seja como relação social. E isso porque além de pedra de toque entre materialidade e
cultura, essa noção de trabalho o torna também pedra de toque entre subjetividade e mundo
social, não encarando-as como essências a priori, mas como produtos dialéticos desse mesmo
processo.
Antes de "mera" produção ou reduzido à condição de dominação, o trabalho é um ponto
privilegiado onde aquele conjunto de determinações se expressa e deixa rastros. Logo, antes de
somente um tema, o trabalho é uma categoria analítica, e uma que, pelo seu papel fundamental
tanto do ponto de vista material geral quanto do ponto de vista cultural e subjetivo específico,
permite que se observe questões históricas em espectro amplo. Através de uma análise bem
curada de seus caracteres e de sua anatomia e "funcionamento" próprios, o trabalho se oferece
como ferramenta de análise que permite dissecar, portanto, tanto realidades econômicas gerais
quanto particularidades subjetivas da literatura.
Quanto ao problema historiográfico na origem da presente reflexão, o encarar do
trabalho como um ponto de observação tem permitido interpretar os romances de Sherwood
Anderson sem descaracterizar a problemática histórica e econômica, nem desrespeitar a
particularidade literária da fonte. E isto em grande medida porque a realidade histórica em que
a hegemonia do capitalismo monopolista se verifica é traduzida (na falta de um verbo mais
adequado) em experiência concreta, social e subjetivamente, sendo nomeada e "lida" de vários
modos pelo escritor em questão através da literatura que produziu.
A Sherwood Anderson, oriundo de uma família de classe média decadente e muito cedo
inserido no mundo do trabalho, a ascensão do capitalismo monopolista alterou brutalmente a
lógica material deste, submetendo-o a uma gerência "científica" e a uma modernização
tecnológica profunda, o que levou o escritor a diagnosticar sua experiência como sujeito
histórico. Filho dos Oitocentos estadunidenses como era, marcado pelo senso industrioso e
moralista presente tanto num Benjamin Franklin como num Ralph Waldo Emerson, a
destruição da estabilidade do trabalho, e com ele de seu modo de vida e de seu senso de
autonomia e auto-confiança, só podia ser lido como um processo de decadência moral
profunda. A "crise espiritual" de que os personagens padecem em seus livros estava
umbilicalmente ligada ao desmoronamento de determinadas certezas materiais e existenciais
que vicejaram num momento passado no qual um capitalismo "liberal", com suas pequenas
unidades econômicas e com sua dispersão sistêmica, prevalecia.
A obstinação que seus personagens têm em relação a trabalhar, buscando fazê-lo com
um fervor que não se reduz à ganância ou ambição, mas que participa de certa moral gestada
na existência concreta do XIX, tem a ver tanto com cultura quanto com economia. E a dura e
gradativa descoberta, seu núcleo de elaboração catártica, que tais valores não conduzem ao
senso de realização que outrora faziam, pois o trabalho de antes era outro diante do de agora, é
onde se interseccionam materialidade e moral, subjetividade e natureza social. Precisamente
naquele ponto privilegiado de onde decidimos tentar entender a complexa dinâmica interna de
sua consciência socio-histórica e sua sensibilidade literária, o trabalho.
Não há descontinuidade entre um e outro, entre trabalho e literatura, embora também
não possamos dizer que haja relação necessária (nem que tal relação seja aplicável a todo o
tipo de literatura, escritor e momento histórico), o que parece seguro dizer é que existe uma
relação dialética cujo cingir é histórico.
Considerações finais
Melindrosa e caprichosa como é, sustentamos aqui que a relação entre história
econômica e literatura é possível e mesmo proveitosa.
Buscamos ao longo desse texto demonstrar que ao tomar o trabalho como categoria
analítica, especialmente a partir da apropriação proposta pela História Social do Trabalho,
abrimos um possível canal de diálogo entre os dois domínios, sendo capazes de satisfazer,
organicamente, tanto os rigores econômicos quanto as afabilidades literárias.
O trabalho é prática produtiva e material integrada a um sistema econômico amplo e
sujeita a seus mecanismos técnicos, que vão desde tecnologias até habilidades práticas, de
gerências administrativas até oscilações salariais e cambiais. O trabalho também é, entretanto,
prática de integração social, nesse sentido pedra de toque entre sujeito e sociedade, elemento
fundamental de localização social e ratificador privilegiado de estratificação social - podendo
funcionar mesmo como elemento fortuito de guindagem social e econômica. Numa e noutra
acepções, o trabalho aparece como importante âmbito e prática sociais, "funcionando" também
como elemento que modela a um tempo trabalhador e mundo do trabalho, sujeito e relações
sociais.
Ao congregar em sua anatomia caracteres estruturais (de natureza frequentemente
econômica) mas também escopos de ação individual (num sentido tanto humano quanto
histórico), o trabalho permite que mesmo se valendo de conceitos e categorias econômicas, tais
como "capitalismo monopolista", se possa penetrar nos domínios mais subjetivos, adequados
ao trato de fontes literários. Diante das proposições da História Social do Trabalho em relação
aos trabalhadores, dando-os maior personalidade e reduzindo-os menos à dicotomia "alienado-
revolucionário" (de forte conteúdo estruturalista), a literatura tornou-se passível de uma
expressividade muito mais interessante, injetando novo vigor mesmo numa abordagem de
história econômica.
Se adotar os conselhos acima implica que tomemos os fatores ditos "econômicos" numa
acepção muito mais heterodoxa, desafiando o rigor dos receituários teóricos da Economia, nos
parece que o preço a se pagar é razoável. E isto porque o preenchimento das categorias
analíticas e dos conceitos da historiografia, dado o seu objeto de estudo, é mais histórico-
empírico do que teórico-econométrico. Suspeitamos estar diante do velho imbróglio sintetizado
por Ginzburg:
As perspectivas quantitativa e antiantropocêntrica das ciências da natureza,
desde Galileu, têm colocado as ciências humanas diante de um desagradável
dilema: ou precisam adotar um padrão científico fraco para poder gerar
resultados significativos, ou um padrão científico forte, que obtém resultados
sem importância. (GINZBURG, 1990, p. 178).
Se estamos corretos em presumir que, nesse ínterim, somos confrontados com o
"desagradável dilema", nos parece que a solução proposta pelo "paradigma indiciário" de
Ginzburg também deva ser a nossa: nosso rigor está melhor posto na dissecação de nossas
fontes e evidências empíricas do que na aplicação conceitual impecável, por mais que a
longevidade do marxismo tenha nos mostrado quão poderosas são as forças econômicas no
curso do processo histórico.
Clio é particularmente exigente nos domínios econômicos, ainda mais arisca quando
acossada pelos pragmatismos e simplificações que o capitalismo tenta-lhe impingir recobrindo
o "econômico" de toda sorte de tecnicismos. No entanto, bem persuadida e sensivelmente
tratada, ela aceita entabular diálogo com Calíope, e foi no sentido de explorar essa persuasão e
essa sensibilidade que o presente texto buscou investir.
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