história do baixo amazonas

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CARTILHA DO SEMINÁRIO “A MORTE ANUNCIADA DO TAPAJÓS” PRIMEIRA PARTE A HISTÓRIA DA AMAZÔNIA COLONIAL Podemos dividir a história da Amazônia em quatro grandes períodos: 1. Período Exploratório que compreende o século XVI 2. O período colonial Português, que pode ser compreendido entre o ano de fundação de Belém(1616) e o início do império (1822) 3. O período de vinculação às economias capitalistas hegemónicas do século XIX em diante. 4. O período recente. Todos estes períodos refletem a atitude que a colonização sempre guardou em relação à Amazônia, entendendo-a, desde o primeiro momento, como mero espaço de saque. 1. O SÉCULO XVI: O PERÍODO EXPLORATÓRIO O período exploratório incorpora um intervalo de tempo em que a Amazônia ainda permaneceu aparentemente resguardada. Ainda no século XV, mais precisamente em 1499, Pizón toca a foz do Amazonas. Permaneceu aí por pouco tempo, logo abandonando o local. No entanto levou consigo trinta e seis indígenas para vender como escravos em Espanha. Este episódio inaugura o primeiro contacto com a região por parte dos europeus e o primeiro saque sobre ela. Durante mais de um século a Amazônia foi alvo de expedições de portugueses e espanhóis que foram derrotadas pelo rio e a floresta e foi deixada em segundo plano no processo de ocupação e colonização do Brasil. 2. O PERÍODO COLONIAL PORTUGUÊS Este segundo período começa ainda no século XVI. Ingleses e holandeses começam a convergir sobre a Amazônia procurando penetrar e assentar-se nela. Em 1599 os holandeses se

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historia, amazonia, ciclos economicos, religião hidrelétricas, tapajós, igreja

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CARTILHA DO SEMINÁRIO “A MORTE ANUNCIADA DO TAPAJÓS”

PRIMEIRA PARTE

A HISTÓRIA DA AMAZÔNIA COLONIAL

Podemos dividir a história da Amazônia em quatro grandes períodos:1. Período Exploratório que compreende o século XVI2. O período colonial Português, que pode ser compreendido entre o ano de

fundação de Belém(1616) e o início do império (1822)3. O período de vinculação às economias capitalistas hegemónicas do século

XIX em diante.4. O período recente.

Todos estes períodos refletem a atitude que a colonização sempre guardou em relação à Amazônia, entendendo-a, desde o primeiro momento, como mero espaço de saque.

1. O SÉCULO XVI: O PERÍODO EXPLORATÓRIO

O período exploratório incorpora um intervalo de tempo em que a Amazônia ainda permaneceu aparentemente resguardada. Ainda no século XV, mais precisamente em 1499, Pizón toca a foz do Amazonas. Permaneceu aí por pouco tempo, logo abandonando o local. No entanto levou consigo trinta e seis indígenas para vender como escravos em Espanha. Este episódio inaugura o primeiro contacto com a região por parte dos europeus e o primeiro saque sobre ela.Durante mais de um século a Amazônia foi alvo de expedições de portugueses e espanhóis que foram derrotadas pelo rio e a floresta e foi deixada em segundo plano no processo de ocupação e colonização do Brasil.

2. O PERÍODO COLONIAL PORTUGUÊS

Este segundo período começa ainda no século XVI. Ingleses e holandeses começam a convergir sobre a Amazônia procurando penetrar e assentar-se nela. Em 1599 os holandeses se estabelecem no Xingu, com as feitorias de Orange e Nassau. Essas atividades alertaram os portugueses, fazendo-os correr e fundar Belém em 1616.

Assim, os portugueses fundaram Belém como estratégia de assentamento de uma base para expulsão dos concorrentes. Os holandeses já dominavam o território entre Oyapoc e o Paru e haviam estabelecido desenvolvidas relações mercantis com os indígenas.

Esta retomada territorial foi acompanhada de um brutal etnocídio sobre o nativo. Etnocídio cultural e religioso concretizado pelo estado, com a ajuda da igreja, em muitos momentos da história. Na verdade o cristianismo chegou no continente americano com a conquista colonial e até hoje o continente sofre as consequências dessa aliança. Durante a histórica do cristianismo na AL , podemos dizer, que pouco se dialogou com as culturas. O continente foi conquistado e não evangelizado.

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O cristianismo europeu não soube dialogar com os valores culturais aqui existentes e continuou importando tudo durante séculos: sacerdotes, religiosos e religiosas, métodos pastorais, calendário e até arquitetura para as igrejas.

O MODELO PRODUTIVO PORTUGUÊS

Como na Amazônia não foi encontrado ouro ou prata, então se partiu para a exploração dos recursos da natureza amazónica de modo rudimentar, iniciando assim, a exploração dos recursos da natureza amazónica, iniciando a “vocação” extrativista da região e a coleta das drogas do sertão. Iniciou-se também o processo de exploração desumana do trabalho indígena e a sua subsequente escravização.

O resultado acabou por ser a eliminação violenta pela ação militar de captura, ao lado de sua morte cultural pelo “amansamento” pela catequese. O estilo colonial português associou o extrativismo e o extermínio genocida dos indígenas. A história da Amazônia nesse período representa o próprio marco histórico inicial do genocídio sistemático do nativo.O sistema de organização do trabalho indígena, instituído por lei em 1611 (sistema dos capitães de aldeia), não só criou a escravidão legal dos indígenas, como entregou aos colonos o controlo do seu processo de captura e facilitou a sua destruição cultural e o devassamento da natureza na Amazônia.

O Indígena foi tratado sob todas as formas de brutalidade e usado como objeto de disputa de interesses associados ao regime colonial. A própria Igreja entrou nesta disputa e, por vezes, a ação missionária foi um estágio e complemento próprio do processo militar de usurpação e ocupação do território e deflagrou , por vezes, uma disputa entre colonos religiosos e civis, na disputa pelo uso do indígena como força de trabalho e mercadoria. Isto não invalida a ação de tantos missionários e missionárias que lutaram pelos direitos dos povos indígenas e os salvaram de seu aniquilamento total.

Basta escutar o que dizia o Pe. António Vieira no seu sermão no 1º Domingo da Quaresma em 1653 na cidade de São luíz do Maranhão sobre a escravidão dos negros e indígenas:”Nenhuma feira tem o demónio no mundo, onde lhe saiam mais baratas as almas: no nosso Evangelho ofereceu todos os reinos do mundo por uma alma (de Jesus); no Maranhão não é necessário ao demónio tanta bolsa para comprar todas; não é necessário oferecer mundos; não é necessário oferecer reinos; não é necessário oferecer cidades, nem vilas, nem aldeias. Basta acenar o diabo com um tujupar de pindoba, e dois tapuias; e logo está adorado com ambos os joelhos. Oh que feira tão barata! Negro por alma; e mais negra ela que ele! Esse negro será teu escravo esses poucos dias que viver, e a tua alma será escrava por toda a eternidade… Este é o contrato que o diabo faz convosco… sabeis cristãos, sabeis nobreza e povo do Maranhão, qual o jejum que Deus quer de vós: nesta quaresma que solteis as ataduras da injustiça, e que deixeis ir livres os que tendes cativos e oprimidos…” (vieira, A. Sermões escolhidos, ed. Martin Clarete, SP 2003).

Podemos dizer que na Amazônia se conjugaram a exploração dos recursos e o desaparecimento dos nativos. O minguamento das tribos esturianas – Tupinanbás e Aruns – e das tribos do Baixo Amazonas, levou os portugueses a penetrarem o Rio em busca de novos territórios abundantes em indígenas que pudessem ser escravizados. A penetração dos rios foi revelando outros recursos abundantes e valiosos, que

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imediatamente espicaçaram a cobiça do colonizador, como é o caso do cacau, encontrado no Madeira. Os colonizadores começaram a subir esses rios fartos de recursos, ignorando a existência de tribos para as quais essas áreas significavam espaço imemorial de domínio, passando a se repetir o mesmo processo trágico, que marcou a colonização desde o primeiro momento.À resistência dos indígenas à invasão o invasor respondia com a pronta ação de um aparelho institucional de repressão muito bem articulado. Assim, as tribos aguerridas, como os Mura, que se tornaram um símbolo de resistência heróica do amazônida contra a agressão ao seu espaço vital, foram impiedosamente exterminados no curso deste processo, onde os líderes nativos, caso do Cacique de Ajuricaba, da tribo Manaó, eram mortos e seus filhos e parentes vendidos como escravos.

O genocídio era tamanho que o cónego Manoel Teixeira, irmão de Pedro Teixeira e vigário de Belém, escreveu, no seu leito de morte em 05 de Janeiro de 1654, que “no espaço de 32 anos que há, que se começou começou a conquistar este estado, são extintos a trabalho e a ferro, segundo a conta dos que o ouvirão, mais de 2.000.000 (dois milhões) de índios de mais de quatrocentas aldeias, ou pra melhor dizer, cidades muito populosas.” Tirando certo exagero, esta afirmação mostra quão brutalmente, na Amazônia colonial, o dono da terra foi condenado ao extermínio. Um crime histórico monstruoso, onde também a Igreja colonial tem a sua culpa, porque unida ao poder colonial português.

Durante o período que corresponde ao Século XVII e parte do século XVIII, a produção gerada por este sistema foi basicamente composta pelos produtos naturais da região: cacau, salsaparrilha, canela do mato, urucú, copaíba… E de produtos agrícolas gerados à custa da imposição do trabalho escravo: algodão, tabaco, açúcar e café.

O PROJETO DO MARQUÊS DE POMBAL

O Marquês de Pombal – Sebastião José de Carvalho e Melo – assume o poder em Portugal em 1750 iniciou uma reforma no sistema colonial português. Para fazer isso teve o cuidado de colocar nos postos estratégicos da administração colonial parentes ou gente de irrestrita confiança. Ele sabia da enorme importância da Amazônia para o império colonial português e iniciou todo um programa de modernização que deveria assegurar a possibilidade de um desenvolvimento metropolitano português assentado sobre uma poderosa estrutura produtiva colonial.

Fazendo parte deste plano promoveu a divisão política da Amazônia, cirando a capitania de São José do Rio Negro, cujo governo entregou ao seu sobrinho Joaquim de Melo e Póvoa, colocando no governo do Pará seu meio irmão Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Criou a Companhia do Grão Pará e Maranhão, atacou os privilégios dos jesuítas que detinham o poder sobre uma significativa parcela da estrutura produtiva regional, expropriando-os e redistribuindo as suas propriedades.

Para poder converter os indígenas numa eficiente massa de estoque de força de trabalho, era necessário integrá-los aos padrões culturais europeus, o que significava descaracterizá-los culturalmente. Passou-se então a regular as relações entre o império português e os indígenas. Proibiu-se o uso do Nheengatu como idioma nativo, obrigou-

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se o uso do português nas escolas, o uso de nomes portugueses e estimulou-se o casamento entre brancos e índias.

Estas medidas pareciam reconhecer os indígenas de modo digno, mas na verdade introduziam mudanças que redefiniriam os indígenas como um exército de produção de excedentes sob condições mais avançadas de exploração de trabalho.

Assim, dois séculos se passaram com a progressiva e incessante extinção dos indígenas na Amazônia: primeiro com o morticínio direto decorrente da sua expropriação e escravização. Depois com o processo de descaracterização total de sua cultura e consequente “caboquização”, até que deles apenas restasse uma lembrança vaga e remota como objeto de curiosidade cultural. Este período se caracteriza, portanto, pela destruição ambiental e o extermínio genocida.

3. O PERÍODO DA VINCULAÇÃO AO CAPITALISMO HEGEMÔNICO.

No século XVIII assistimos ao irreversível declínio da Espanha e de Portugal e a consolidação da Inglaterra como potência industrial e sede da liderança capitalista a nível mundial. A consolidação do Capitalismo como modo de produção, desarticulou o poder das sociedades assentadas sobre concepções arcaicas da organização produtiva, casos de Portugal e Espanha.

O predomínio da burguesia como classe dominante implicava a estruturação de todo o processo de produção científica e tecnológica voltado aos objetivos da acumulação. Isso vai-se refletir na atenção da comunidade científica sobre toda e qualquer possibilidade de contribuição da Natureza para a acumulação capitalista, através do suprimento de novos materiais capazes de serem aproveitados pela indústria.

A Amazônia passou a ser uma dessas áreas para onde se voltou o interesse científico burguês, justamente por ser uma área desconhecida. Para a Amazônia se deslocaram algumas expedições científicas: La Condamine em 1742, que corrigiu o mapa do jesuíta Samuel Fritz, que até então era o único documento cartográfico sobre o Amazonas. Mediu a largura e profundidade dele e de vários de seus afluentes, descreveu flora e fauna e deram a conhecer cientificamente ao mundo o curare e a borracha. Em 1799 segue-se a expedição de Humboldt e Bonpland e outras que se seguiram.

O EXEMPLO HISTÓRICO DOS CABANOS

Os resquícios do colonialismo arcaico acabaram por provocar uma reação tardia que se manifestou no movimento cabano (1835-1840). Durante a regência um segmento português existente na Amazônia tentou manter para si os privilégios do colonizador, o que levou segmentos da classe dominante nativa a se tornarem adversários e até inimigos dos portugueses, numa luta política que opôs de um lado os nativos e do outro os portugueses, representantes locais do poder imperial e segmento burguês atrelado ao poder. A diferença de classes neste acontecimento histórico se revestiu de uma aparência de verdadeira luta racial, em que as massas despossuidas nativas, embora lideradas por representantes nativos do segmento dominante, tomaram para si o cobro de uma vingança histórica contra a opressão secular dos portugueses.

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A Cabanagem, embora sendo um movimento liderado por proprietários nativos discriminados pelo poder imperial, foi, por outro lado, uma revolta dos despossuídos contra o poder opressor secular. A Cabanagem foi resultado histórico da expropriação do nativo e da sua conversão em força de trabalho explorada pelos que se converteram em proprietários à custa da sua expropriação e exploração. Ela é o marco da passagem da Amazônia a uma outra etapa da sua história, quando o poder secular do colonizador foi questionado e esmigalhado pela força do colonizado. Não significou a libertação dos segmentos amazônidas explorados, mas marcou a falência do domínio português sobre a região.

A vitória da Cabanagem e a sua derrota, são o testemunho mais sólido da força do poder popular na Amazônia, bem como da importância histórica da consciência política para a libertação popular.

A BORRACHA

Na segunda metade do século XIX a borracha emerge como a grande matéria-prima para o Capitalismo (1870). Com a descoberta do processo de vulcanização que ampliava as propriedades e aplicações da borracha (1839), a borracha, como recurso da natureza, dava uma extraordinária contribuição ao desenvolvimento e ao avanço das forças produtivas.

É fácil compreender o valor extraordinário que a Amazônia abrigava em si, por abrigar gigantescos estoques naturais dessa riqueza, pois embora a borracha existisse em outras áreas do planeta, era na Amazônia que ela se encontrava em quantidades e qualidade incomparáveis. A partir de 187 começa a ser produzida na escala em que exigia a acumulação capitalista. É aqui que se inicia o primeiro grande período expressivo da contribuição da Amazônia à acumulação mundial.

Este período provoca também uma das maiores transformações históricas da região. Podemos dizer que os aspectos mais significativos destas mudanças foram:

Inaugura-se de fato, para a Amazônia, a passagem da condição de mero exportador de produtos de consumo, para exportador de matérias-primas e passa a integrar diretamente o circuito internacional do capitalismo.

Ocupam-se as últimas áreas remotas da Região que estavam ainda livres da presença direta do colonizador.

Essa ocupação do território regional é facilitada pela estrutura social que se havia desenvolvido com a colonização e ao mesmo tempo passa a facilitar a consolidação dela, já que são frações do segmento dominante já existente( fazendeiros, comerciantes, negociantes…) que passam a organizar os fluxos dessa ocupação produtiva e consolidam o poder segundo as novas regras de produção.

A natureza da sociedade que esse processo ajuda a criar delineia definitivamente (a situação já existia em processo, porém agora se consolida) uma burguesia regional servidora, a nível internacional, do capitalismo. Ela vai cumprir o papel

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de agente das medidas da organização da produção a nível mundial reproduzindo-as aqui na região.

A rede de controle regional para a produção de borracha, distribuída por Belém, Manaus e Iquitos – as duas primeiras no Brasil e a última no Peru – sediavam essa burguesia, que passou a controlar diretamente todo o sistema de produção que reproduziu uma vez mais as relações de trabalho e exploração profundamente desumanas.

O sistema de aviamento criou vínculos sociais de dependência, ao nível da sociedade regional, que agudizaram ainda mais a miséria social formada nos períodos anteriores da colonização. Era um sistema de financiamento no qual cada degrau, no sentido descendente, significava um grau de dureza a mais para quem estivesse situado na parte inferior.

Em cada degrau intermediário o seu ocupante era, ao mesmo tempo, aviado e aviador, reproduzindo, ao degrau financeiro que lhe estava abaixo, as condições que lhe haviam sido impostas pelo degrau superior. Os custos, para essa escala toda, se subordinavam à lógica das necessidades da Acumulação e esse repasse sucessivo resultava na imposição de condições duríssimas aos únicos que não podiam repassá-las a mais ninguém – os produtores diretos, os que estavam na base inferior da escala – os seringueiros. Isto os amarrava a um endividamento antecipado, para que pudessem se suprir do estritamente necessário para internarem-se na mata e lá ficarem, extraindo borracha. O aviamento era o meio necessário para escravizá-los para o sistema que exigia a borracha.

O grande obstáculo era – além da floresta – a falta de trabalhadores e a impossibilidade de obtê-los, quer por importação, como assalariados (pelo custo proibitivo), quer entre os índios, já que a extração da goma – como atividade produtiva regular – era incompatível com a sua cultura.

A solução do problema foi a transferência de grandes contingentes de população excedente do Nordeste, onde as secas retiravam da terra a capacidade de suporte dessas populações que, migrando em busca de condições de sobrevivência, integravam-se, por essa necessidade, a esse esquema de trabalho. Essas hordas de desesperados se tornavam a força de trabalho fácil e útil para esse sistema produtivo.

Desta maneira, valendo-se da miséria social pré-existente, o capitalismo mundial inseriu a Amazônia no processo produtivo mundial, reproduzindo o modelo de exploração da força de trabalho internacional, com toques próprios e característicos da Amazônia. Assim, este esquema de aviamento viabilizou a produção de enormes quantidades de borracha, que num período de quarenta anos, subsidiou uma expressiva parcela do capitalismo mundial.

Outro problema foi o do transporte através da floresta amazónica e das cachoeiras intransponíveis. Assim se iniciou a construção da estrada de ferro do Madeira – Mamoré. Esta estrada foi construída às custas de uma quantidade enorme de vidas

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humanas, sob o comando do aventureiro americano Percival Farquhar, que seria protagonista de outras negociatas associadas à exploração da Amazônia.

A AMAZÔNIA PÓS-BORRACHA.

Terminado este período a sociedade regional adquirira um perfil diferente. Consolidara-se a camada da burguesia local totalmente atrelada ao capitalismo internacional: comerciantes, industriais regionais de pequena expressão, profissionais liberais, fazendeiros. Empresários extrativistas, todos de carácter urbano, mas fortemente ligados e associados à exploração do interior. Criou-se também um corpo intermediário de funcionários públicos de toda a ordem: federais, estaduais e municipais, além de pequenos proprietários, fazendeiros do interior, pequenos comerciantes.

Na base encontrava-se a massa dos deserdados: o contingente de seringueiros, de origem nordestina, transplantados para a Amazônia dos altos rios, amarrados à miséria; os de etnia e cultura nativa, não mais “índios”, exterminados como raça no final do século XIX, mas os “Caboclos” que passam a ser o elemento social nativo característico a partir desse período.

Estes filhos nativos da região passaram a compor a enorme massa de deserdados sobre cujo trabalho a classe dominante regional conseguiu se manter na floresta e nos rios: remadores, pescadores, castanheiros, balateiros, caçadores, canoeiros; no espaço urbano: a massa de braçais, trabalhadores domésticos, prostitutas. O CICLO DA BORRACHA consolida também a imposição, pelo capitalismo internacional, da “vocação extrativista da Amazônia”.

Como o meio regional era um obstáculo ao aumento da produtividade da borracha, esse problema foi contornado com o contrabando de sementes da seringa para as possessões asiáticas da Inglaterra. Assim, a plantação ordenada e planejada da borracha permite um grau de produção muito mais alta que a da exploração amazónica. Permitia ainda um controle direto dessa produção pelo segmento capitalista organizador da produção industrial e reforçava a imposição de estratégias imperialistas conduzidas pela Grã-bretanha.

Esta manobra descartava a Amazônia como região de produção de borracha e, em 1911, o sistema extrativista entra em crise e desarticula o sistema sobre o qual se apoiava a burguesia local, que como burguesia subsidiária do capital, foi despachado para ela o ónus dessa crise.

A região destroçada financeiramente inicia um plano para atrair capital estrangeiro. A região sofreu o impacto de várias investidas e foi feito um estudo pormenorizado de seu território a partir de 1924 para avaliar sua diversidade mineral. Além disso se iniciou a concessão de terras a sociedades colonizadoras ou empreendedores privados para o assentamentos de colonos, que nalguns casos, chegavam a somar milhões de hectares.

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A partir de 1927 se inaugura a entrada do Japão em cena. Ele avança sobre a Amazônia procurando também participar na exploração dos seus recursos naturais e no assentamento de colonos. Entre as concessões negociadas pelo Amazonas estavam duas sociedades japonesas, uma delas somando um milhão de hectares. Dessa experiência só restaram os núcleos coloniais de Monte Alegre e Tomé Açú, no Pará.

Em 1926, o governo do Amazonas dividiu o Estado em oito zonas para exploração mineral, entregando nada menos de seis delas a três empresas – a American Brazilian Co., a Canadian Co. e a The Amazon Co., todas três pertencentes ao mesmo grupo financeiro.

Em 1927 o Estado do Pará entregou a um aventureiro e especulador americano, W.Reeves Blakeley, uma concessão que ele negociou com o capitalista Henry Ford: um milhão de hectares à beira do Tapajós, que acabou por se converter na primeira experiência histórica de plantagem em grande escala na Amazônia. A partir da década de 1930 – a experiência de Fordlândia, que foi uma tentativa de Ford romper em seu favor o monopólio britânico da produção de borracha, foi à falência.

4. A OCUPAÇÃO RECENTE E A ATUALIDADE.

A substituição da borracha nativa pela borracha cultivada acabou com este primeiro período histórico de integração da Amazônia à acumulação mundial. O capitalismo passou de novo a olhar para ela como uma imensa área estratégica capaz de ser apropriada para o controle de enormes riquezas naturais pelos grandes grupos de capital que se consolidavam na primeira metade do século XX.

Restou à Amazônia, nesta fase, o regresso à miséria social, a uma letargia económica que só foi interrompida de modo efémero durante a 2ª guerra mundial, quando o suprimento amazónico da borracha ajudou a coalizão comandada pelos Estados Unidos a derrotar a coalizão comandada pela Alemanha.

Com a inclusão do Brasil ao capitalismo internacional pós guerra, desenvolveram-se condições que facilitaram o acesso à ocupação da Amazônia e à exploração dos seus recursos pelo Capital, agora em circunstâncias completamente diferentes. Em ordem cronológica essas condições foram: a ligação rodoviária da Região com o Centro - Sul, através da Belém - Brasília; a mudança do regime político ocorrida com o golpe militar de 1964, que atendia às aspirações da burguesia internacional e da burguesia nacional associada, no sentido de ampliar espaço à ação do projeto capitalista.

A HISTÓRIA RECENTE

A ligação terrestre da Amazônia com o Centro-Sul permitiu o apossamento das terras no Sudeste da Região, ao longo da rodovia, por oportunistas, investidores e aventureiros

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do Centro e do Sul. Também as consequências do golpe militar foram muito amplas. As medidas institucionais que a mentalidade política dos militares concebeu foram geradas pela mesma raiz ideológica presente nas aspirações da burguesia. Tinham, como meta facilitar a livre apropriação e exploração privada de territórios e riquezas naturais que, na sua maior parte, estavam na Amazônia. Entre as decisões podem-se citar a reforma do estatuto agrário, que se materializou no Estatuto da Terra, a reforma do Código Brasileiro de Mineração e a criação dos Incentivos Fiscais, que permitiu uma desbragada orgia de expropriações, apossamento violento de terras, e dissipação dos recursos sociais e a concentração absoluta da propriedade de recursos naturais por grandes grupos ou corporações do Capital.

Neste plano de ocupação da Amazônia nasce o projeto do GRANDE LAGO AMAZÔNICO, um esquema integrado, que consistia em barrar inteiramente a rede hidrográfica do Amazonas, e interligá-la com a do Orinoco e a do Paraguay. O plano previa a construção de oito grandes lagos, sendo o maior de todos o que deveria ser formado pelo barramento do Amazonas à altura de Monte Alegre.

A criação do Estatuto da Terra resultou em um imenso problema fundiário na Amazônia atual, que passou a ser não só espaço de assentamento de empreendimentos predadores da Natureza e comprometedores das condições ambientais, como também área de produção de pequenos fundiários expropriados, e rumo natural das levas de migrantes deslocados ou expropriados em outras regiões.

O resultado direto da criação do Estatuto da Terra conjugada com os Incentivos Fiscais foi o surgimento dos chamados empreendimentos agropecuários e agroflorestais, que foram o instrumento para a sucção dos recursos doados pelos programas de Incentivos Fiscais, apropriação de território, exploração de recursos naturais e formação de Capital, através da corrupção e favorecimento.

O resultado disso foi a criação de uma capacidade produtiva regional voltada quase que integralmente para a exportação, como é o caso das empresas do ramo madeireiro ,de cuja produção quase nada fica na Região. No caso particular das fazendas e “reflorestadoras”,o resultado foi a pilhagem dos incentivos, a devastação de imensos espaços naturais, a formação concentrada de enormes patrimônios individuais.

O outro caso é o do ramo mineral. O Código de Mineração de 1967 abriu espaço irrestrito à ação privada sobre o patrimônio mineral brasileiro, o que significou o apossamento das mais importantes jazidas minerais pelos grandes grupos de capital estrangeiros envolvendo os grandes cartéis dos diversos ramos industriais, controladores das fontes estratégicas de matéria prima, como são os casos da ALCAN, ALCOA, Kaiser, Omnium, NALCO, Azevedo Antunes, Lacombe e outros, que controlam – explorando ou mantendo cativas – importantes jazidas e/ou empreendimentos metalúrgicos ligados à exploração delas.

O livre esquadrinhamento dos recursos naturais da Região, permitido pelo novo Código Mineral, deu às multinacionais, de presente, duas extraordinárias ocorrências minerais:

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as jazidas de bauxita do Rio Trombetas, e o complexo mineralógico da Serra dos Carajás.

Derivado da descoberta da bauxita no Trombetas, após muita disputa entre os grandes grupos transnacionais, a NALCO, japonesa, conseguiu a parceria subsidiária da Vale do Rio Dôce, como sócia suportadora dos custos – o mesmo papel que ela cumpre no Trombetas para a ALCAN e seus sócios privados – para um complexo metalúrgico destinado a produzir alumina e alumínio – a ALBRÁS/ALUNORTE. Para tornar viável o projeto, o regime militar criou a ELETRONORTE, cujo primeiro objetivo era construir a hidroelétrica do Tucuruy, totalmente custeada pelo dinheiro público, indispensável para suprir a energia necessária às duas usinas me talúrgicas, energia essa que ainda viria a ser fornecida a 1/3 da tarifa real – isto é, com um subsídio de ao redor de 15 milhões de dólares anuais adicionais, à empresa.

Dos grandes projetos em operação hoje, na Amazônia, o mais acabado como instrumento de saque é a JARY, que nasceu de um entendimento direto entre o primeiro marechal-presidente do período da ditadura militar, Castello Branco, e o capitalista americano Daniel Ludwig. Valendo-se das facilidades criadas pelo regime, este aventureiro adquiriu todas as terras de um antigo coronel da borracha, que estavam nas mãos de uma sociedade de comerciantes portugueses, e implantou um verdadeiro complexo agrícola, pecuário, florestal, mineiro e industrial, valendo-se sobretudo de isenções alfandegárias e da concessão de incentivos fiscais.

Assim, a Amazônia hoje é um espaço onde ou se gera uma produção supérflua, ou onde se produz um saque modernizado e eficiente dos recursos naturais necessários ao capital internacional controlado pelas grandes corporações capitalistas.

Madeira, minérios, hidroenergia, são alguns desses recursos empacotados em massa e exportados a preços aviltados e cuja receita, por maior que seja, é inexpressiva ante a magnitude da descapitalização ecológica e de riquezas naturais que provoca. Mais uma vez, a grande maioria da sociedade regional está à margem dos benefícios que esse processo gera. Quem os apropria regionalmente é uma reduzidíssima minoria de privilegiados, que controla a exploração dos recursos naturais e a exploração da força de trabalho da Região.

A outra face desta realidade é o extraordinário potencial produtivo agregado à Região durante todos estes períodos da sua história. A capacidade produtiva social da Amazônia, faz dela um espaço de enormes possibilidades de desenvolvimento. Os Grandes Projetos representam um segmento moderno e importante de intervenção sobre a Natureza e obtenção de recursos naturais, que, se usados sob a orientação do bem-estar e interesse social, podem converter-se em agentes do desenvolvimento, e não do saque. Os projetos mineiros, como a mineração Rio do Norte ou os Carajás, projetos metalúrgicos como a ALBRAS e ALUMAR, complexos produtivos como a JARY, gigantescas fontes de energia como o Tucuruy, incorporam uma dimensão concreta e de grande tamanho às perspectivas do desenvolvimento real. Uma coisa é certa, porém: toda essa massa de possibilidades produtivas só o será assim, se comandada por

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propósitos produtivos que tenham, na sua base, o objetivo real do bem-estar social, e não a mera intenção exclusiva do Lucro.

A BR 163 – SANTARÉM – CUIABÁ

O governo pretende asfaltar os 784 quilómetros que faltam para concluir a BR 163, consolidando a ligação entre Cuiabá e Santarém. A estrada agora se torna “necessária" para os produtores de soja e a exportação da mesma para os mercados internacionais. A Cargil, maior produtora desse grão, construiu, à revelia da lei, um porto especializado na exportação de grãos.

As consequências negativas da má destribuição e de usos distorcidos das terras na área de influência da estrada, têm se multiplicado, avolumando as tensões sociais e tornando urgente a reformulação na sua estrutura fundiária. As disputas por terra se apresenta particularmente grave e se transformam, frequentemente, em palco de luta armada, em torno de posses discutíveis.

A maioria das áreas não protegidas legalmente (unidades de Conservação e Terras Indígenas) especialmente no Pará e Amazonas, são terras públicas ou devolutas. A mera expectativa do asfaltamento da BR 163 tem ocasionado uma onda de especulações e grilagem dessas terras com prejuízo ao patrimônio público e agravamento das tensões e violência no campo” diz o estudo oficial feito pelo governo (EIA/RIMA). Diz também que “a grilagem tem se beneficiado dos seguintes fatores: a) reconhecimento do desmatamento, mesmo utilizado em áreas públicas, como benfeitorias, para fins de regularização fundiária; b)fragilidade de processos discriminatórios e de averiguação da legitimidade de títulos; c) falta de supervisão dos cartórios de títulos e notas; d) baixo preço da terra e elevado retorno das atividades econômicas predatórias; e) Interesses políticos que incentivam ocupações de terra por posseiros; e f) especulação relacionada com expectativas de desapropriações e/ou instalação de infra-estrutura. Frequentemente, a grilagem se relaciona a outros atos ilícitos, como o trabalho escravo e outras violações dos direitos humanos e trabalhista, evasão de impostos, extração ilegal de madeira e lavagem de dinheiro do narcotráfico.

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CONCLUINDO

O mal da colonização

Olhando para trás, se vê claramente que havia erros graves de juízo embutidos naquela estratégia de ocupação da Amazônia. Havia, sim, homens naquela terra sem homens. Havia povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e caboclos que viviam da caça, da pesca, do extrativismo, e botavam suas roças ao longo dos rios e igarapés, sem saber que teriam que mostrar um documento para comprovar que eram donos da terra.

Na abertura da rodovia Transamazônica dezenas de Povos Indígenas foram massacrados. A construção das estradas novas trouxe consigo todo tipo de efeito inesperado, começando com as grandes levas de migrantes à procura da terra prometida. Apesar dos bonitos planos de colonização feitos pelos funcionários públicos e por empreendedores particulares, não demorou muito até os migrantes entrarem em choque com os povos indígenas cujas terras nunca tinham sido demarcadas. Havia mortes dos dois lados e instalou-se um clima de desconfiança e medo que persiste até hoje.

Mas não eram somente os pobres que corriam à Amazônia à procura de uma vida nova. O governo sonhou também em transformar as terras supostamente ociosas em grandes fazendas de gado de corte, oferecendo empréstimos milionários para aquelas pessoas dispostas a se aventurarem na nova fronteira. Dinheiro jorrava em todo lado, atraindo paulistas, mineiros, goianos, até estrangeiros a desbravarem a mata.

A terra, que antes não tinha tanto valor econômico, transformou-se repentinamente em mercadoria. Não importava se produzia ou não, na onda de inflação que seguiu a terra tornou-se objeto de especulação. A grilagem se instalou em uma escala nunca vista antes, os conflitos pela posse da terra estouraram e sem o controle do governo, a violência se tornou rotineira.

O ritmo frenético de ocupação deixou o governo perplexo tentando correr atrás. Os projetos de colonização na Transamazônica e em Rondônia atraíram milhares de migrantes do nordeste e do sul, chegando numa velocidade da qual era impossível dar conta.

Enquanto colonos tentavam fazer suas vidas nas terras hostis e isoladas, sem a prometida infra-estrutura, sem estrada, sem energia, em condições precaríssimas convivendo com o medo, a malária e a lama, os pecuaristas tomavam financiamentos graúdos, queimaram áreas enormes para reforçar a posse das terras reivindicadas, usavam mão de obra barata e às vezes escrava e não raramente nem criavam sequer uma cabeça de boi.

A Amazônia não tinha infra-estrutura física nem governamental para lidar com tantas mudanças tão drásticas em tão curto espaço de tempo. A presença de um número pequeno de guerrilheiros nas margens do Rio Araguaia levou à militarização da

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Amazônia que continua até hoje. Como muitas áreas fronteiriças de fronteira a Amazônia virou uma terra de bandidos e forasteiros, terra de ninguém, terra sem lei.

O governo militar cedeu nos anos 80 deixando uma herança de grandes projetos falidos e uma dívida externa enorme. A década dos 80 fora conhecida tanto coma a década de destruição e a década perdida. O avanço implacável dos madeireiros, grileiros e pecuaristas continuou, abastecida por fartos financiamentos da Sudam. Transformações e conflitos fomentados pelo próprio Estado na Amazônia

Durante as décadas de 1960 e 70, os principais obstáculos ao desenvolvimento dos países periféricos e de regiões atrasadas economicamente como a Amazônia eram atribuídos a dois problemas básicos: à insuficiência de capitais produtivos e de infra-estruturas capazes de pôr em marcha novos investimentos.

Na época, essas e outras teorias com enfoques semelhantes entendiam que seria possível atrair capitais produtivos, organizados sob a forma de conglomerados econômicos, vindos de outros pontos do Brasil e do exterior, desde que fossem oferecidas vantagens capazes de atrair esses capitais para a região.

Assim, o novo modelo de desenvolvimento para a Amazônia – posto em prática pelos governos militares pós-1964 para desenvolver e integrar a região ao mercado nacional e internacional – inspirava-se nessas concepções teóricas, feitas as adaptações que os militares e a tecno-burocracia julgaram conveniente fazer para aquele momento da ditadura.

A proposta baseava-se em oferecer inúmeras vantagens fiscais a grandes empresários e grupos econômicos nacionais e internacionais que quisessem investir novos capitais nos empreendimentos que viessem a se instalar na região. Seu principal instrumento eram os incentivos fiscais, reorientados legalmente em 1967, principalmente para a pecuária, a extração madeireira, a mineração, atividades que, simultaneamente, requerem grandes quantidades de terra, destinam-se à exploração de produtos primários ou semi-elaborados e geram poucos empregos.

Eram concedidos (via Sudam e Basa) aos empresários por longos períodos (dez a quinze anos). Por meio dos incentivos fiscais, as grandes empresas beneficiadas poderiam destinar uma parte ou até a totalidade do imposto de renda que deveriam pagar ao governo, para criar com aqueles recursos novas empresas na região.

Além disso, o governo ainda disponibilizava recursos financeiros a juros muito baixos e até negativos e concedia um sem-número de outras facilidades. Dessa forma, o Governo Federal abriu mão do dinheiro com o qual poderia modernizar as atividades tradicionais dos pequenos e médios produtores da região ou para investimentos sociais, como escolas, hospitais etc.; preferiu transferir esses recursos para grandes empresas.

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Muitos empresários não investiram os recursos em novas empresas na região, mas sim na compra de terras para simples especulação futura; alguns aplicaram-nos em suas empresas situadas noutras regiões do país; e várias empresas foram criadas de forma fictícia.

Outras (como a Volkswagen, o Bamerindus etc.) devastaram grandes extensões de terras cobertas por ricas florestas e transformaram essas áreas em pasto para a criação de gado, desprezando a enorme disponibilidade de pastos e campos naturais; enfim, trouxeram grandes prejuízos ecológicos, desperdiçaram ou desviaram os recursos públicos colocados à sua disposição, criaram poucos empregos e não trouxeram o prometido desenvolvimento para a região. Ainda assim, o modelo permanece até hoje sem grandes alterações, apesar do fracasso notório dessa política, seja do ponto de vista ambiental, econômico ou social.

As facilidades legais concebidas para atrair empresários estimulavam o acesso a grandes extensões de terra e à natureza em geral. Para transferir a terra pública para os grandes grupos econômicos e garantir a propriedade da terra aos pretensos investidores futuros, o governo alterou a legislação existente e criou dispositivos legais extraordinários e de exceção.

Além disso, o Governo Federal oferecia garantia de infra-estruturas para os novos projetos (estradas, portos, aeroportos e outros). Às margens das estradas, a devastação florestal foi rápida e a disputa de terras privilegiadas às margens delas gerou, desde o fim dos anos de 1960, conflitos de toda ordem, que só foram aumentando nas décadas seguintes, à medida que o modelo de desenvolvimento se estruturava.

Comprometeu-se ainda o Governo Federal em trazer mão-de-obra barata de outros pontos do Brasil (nordestinos que fugiam da seca, em especial), para atuar nas frentes de trabalho (abertura de estradas, desmatamento, construção de portos, aeroportos etc.). Esses milhares de trabalhadores, depois de concluídas as obras, ficaram na região em busca de terra e das oportunidades de trabalho que, de qualquer forma, lhes pareciam ser – na Amazônia –, mais promissoras do que aquelas que já conheciam e haviam enfrentado em suas terras de origem. A população da Amazônia, que era de 2.601.519 habitantes em 1960, havia ascendido a 4.197.038 em 1970.

Grilagem e conflito convertem-se em práticas no cotidiano da região

Se a concentração de renda provocada pela política de incentivos era por si só danosa para a região (já que beneficiava apenas os grandes grupos econômicos nacionais e estrangeiros), o dano maior, entretanto, estava ligado à questão da terra.

Nos anos de 1970 e 1980, a terra pública, habitada secularmente por colonos, ribeirinhos, índios, caboclos em geral, foi sendo colocada à venda em lotes de grandes dimensões para os novos investidores, que as adquiriam diretamente dos órgãos fundiários do governo ou de particulares (que, em grande parte, re-vendiam a terra

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pública como se ela fosse própria). Em ambos os casos, era freqüente que as terras adquiridas fossem demarcadas pelos novos proprietários numa extensão muito maior do que a dos lotes que originalmente haviam adquirido.

Desde os anos de 1960, tornaram-se comuns certas práticas que ainda hoje ocorrem objetivando a grilagem de terras, tais como: a venda de uma mesma terra a compradores diversos; a revenda de títulos de terras públicas a terceiros como se elas tivessem sido postas legalmente à venda através de processos licitatórios; a falsificação e a demarcação da terra comprada por alguém numa extensão muito maior do que a que foi originalmente adquirida, com os devidos documentos ampliando-a; a confecção ou adulteração de títulos de propriedade e certidões diversas; a incorporação de terra pública a terras particulares; a venda de títulos de terra atribuídos a áreas que não correspondem aos mesmos; a venda de terra pública, inclusive indígena e em áreas de conservação ambiental, por particulares a terceiros; o remembramento de terras às margens das grandes estradas federais, que em anos anteriores haviam sido distribuídas em pequenos lotes para fins de reforma agrária a agricultores e a posterior venda dos lotes, já remembrados, transformando-os em grandes fazendas de gado; e ainda, mais recentemente, a venda de terra pública pela internet como se os vendedores fossem seus reais proprietários, com base em documentação forjada.

Como nos anos de 1970 e 1980 não estavam ainda disponíveis imagens de satélite para demarcar mais precisamente os limites ou identificar a existência de famílias dentro das áreas a serem adquiridas pelos novos compradores, os lotes eram demarcados e cercados com os antigos moradores dentro deles.

Os órgãos fundiários também não solicitavam do pretendente à compra qualquer documento da prefeitura, dos sindicatos de trabalhadores rurais, das igrejas ou de qualquer outra fonte para comprovar a inexistência de antigos moradores nas terras postas à venda. Assim, foram vendidas terras com moradores seculares habitando nelas. E a concentração da terra na Amazônia alcançou níveis intoleráveis que foram sendo revidados, cada vez mais, sob a forma de conflitos. No Mato Grosso, por exemplo, uma única empresa, a Suiá Missu consegue adquirir 695.843 ha; no Pará somente oito grupos econômicos possuíam quase seis milhões de hectares.

Somente quando os novos proprietários começavam a queimar a mata para formar pastos ou derrubá-la para vender a madeira, os antigos moradores se deparavam com o fato de que as terras em que moravam haviam sido vendidas, em geral para grandes sociedades anônimas, cujos proprietários habitavam fora da região.

A expulsão dos moradores tornava o conflito uma prática cotidiana. Como as terras pertenciam, por posse imemorial aos antigos moradores, o governo encontrou um mecanismo para regularizá-las e criou condições que permitiam ao novo proprietário se apropriar da terra numa extensão muito maior do que aquela que fora realmente adquirida. A concentração fundiária daquelas décadas permaneceu praticamente inalterada até hoje. Da mesma forma, a maior parte da terra grilada transformou-se em situações consolidadas.

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Os novos empresários, especuladores e aventureiros, procedentes de diversos rincões do país e do exterior, adquiriram imensas áreas. Surge aí a figura do "grande posseiro", como se auto-intitula o "grileiro". No Pará, por exemplo, a grilagem de grandes áreas é contestada pelo Ministério Público ou por entidades diversas que, na Justiça, tentam reverter o quadro originado nos anos anteriores e que persiste até os dias atuais.

Na Amazônia, os direitos humanos, durante décadas, estiveram subordinados aos direitos do capital e muitas situações acabaram se cristalizando. Durante mais de vinte anos esses problemas acumularam-se sem solução, a não ser em casos pontuais e após conflito seguido de morte. Nesse período, a terra pública transformou-se, por meios legais, fraude ou grilagem, em terra privada.

Nos anos de 1990, devido às políticas neoliberais implantadas no país e à conseqüente contenção dos orçamentos dos órgãos fundiários, as ações discriminatórias de terra tornaram-se raras na Amazônia. A terra pública continuou confundindo-se, por meios lícitos ou não, com a terra privada, aumentando o caos fundiário das décadas anteriores e tornando cada vez mais difícil reconhecer e separar a terra pública da privada.

Interessado em privatizar a terra pública, o Estado aceitou conviver com a grilagem

Como o Estado permitiu a legitimação e a legalização da grilagem de terras na Amazônia? Para tornar legal a aquisição de terra demarcada ou comprada fraudulentamente, muitas delas já aquinhoadas com incentivos fiscais, o Governo Federal regularizou (por meio das Medidas Provisórias 005 e 006, de 6/6/1976 da Casa Militar da Presidência da República) as terras griladas e deu à Justiça os instrumentos legais de que esta precisava para legalizá-las e, posteriormente, promover a expulsão dos antigos moradores.

Diz o texto legal "permite-se a regularização de propriedades de até 60 mil ha que tenham sido adquiridas irregularmente mas com boa fé". A Exposição de Motivos assim justifica a criação das medidas: "Esses projetos, mesmo à revelia da lei e da ordem se redimem por seus resultados, na medida em que promoverão o desenvolvimento da região".

Portanto, o próprio Estado autorizou a grilagem na região e instituiu-a como uma prática tolerável, não só legitimando-a como legalizando-a; e reforçou-a ao conceder empréstimos e financiamentos para investir nas terras. Os diversos estados da região amazônica acompanharam a medida federal criando leis estaduais que também legitimaram a compra de terras griladas ou adquiridas de forma irregular. E as conseqüências desses atos permanecem até hoje.

Esta ação nefasta com medidas provisórias continua hoje com a MP 458 que legaliza as terras griladas na Amazônia.

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2ª PARTE

A MORTE ANUNCIADA DO TAPAJÓS

HIDRELÉTRICAS NA AMAZÔNIA

As Usina hidrelétrica de Belo Monte e São Luíz do Tapajós, projetadas para funcionar no Rio Xingu e Tapajós no Pará, não vão trazer os benefícios que a Eletronorte anuncia: pior, vão trazer muitos prejuízos, para o meio ambiente e para o bolso dos brasileiros, que são aqueles que pagam a conta das obras governamentais. Esta é a conclusão de um estudo feito por Wilson Cabral de Sousa Júnior, do Instituto Tecnológico de Aeronáutica, o ITA, John Reid da organização não-governamental Conservação Leitão(ITA). Estratégica - CSF e Neidja Cristine Silvestre.Para entender como os pesquisadores chegaram a essa conclusão (o que reforça a voz dos movimentos sociais contrários às hidrelétricas) vamos resumir algumas idéias importantes a respeito de hidrelétricas, a partir de um texto de Lúcio Flávio Pinto, “hidrelétricas na Amazónia: quando a razão as iluminará?”

Rios da Amazônia: hidrelétricas combinam? Os defensores das hidrelétricas costumam alegar que a Amazônia é o lugar ideal para a construção de barragens: tem um vasto território, muitos rios e um grande volume de água. Em todo o mundo, nenhum outro país tem tantos rios assim. Mas também é verdade que, sendo a Amazônia uma planície, com poucos desníveis de terreno, seria mais certo que as hidrelétricas fossem adaptadas a essa característica geográfica, diferentemente de outros lugares, onde se aproveitam as quedas d’água naturais.

Outra característica da região é que a quantidade de água que corre nos rios não é a mesma o ano todo: se no período de chuvas o volume de água chega a ser assustador, provocando enchentes nas cidades ribeirinhas, na estiagem esse volume diminui muito. E com o desequilíbrio ambiental provocado pela ocupação desordenada da região, essa diferença tende a aumentar, como se viu na enchente de 2009, uma verdadeira catástrofe ambiental.

Um sistema movido a água A ciência já comprovou que a Amazônia é um sistema em que a vida gira em torno das águas: não é à toa que a tradução de floresta tropical para o inglês é “rain Forest = floresta chuvosa”. Sem a chuva e sem a mata, a Amazônia nada seria, pois o solo é pobre, e as plantas se alimentam da camada de folhas mortas que se acumula no chão. Ali, os seres vivos, animais, plantas, fungos, formam um sistema delicado, onde cada criatura tem a sua função. Ao longo

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dos rios, povos indígenas e outras comunidades tradicionais construíram seu modo de vida, produzindo seu sustento, organizando seu mundo.

Hidrelétricas para quem? O jornalista Lúcio Flávio Pinto lembra que os grandes projetos hidrelétricos para a Amazônia começaram não para atender a demanda regional ,mas a indústria de alumínio, justamente aquela que tem um altíssimo consumo de eletricidade. Assim, a UHE de Tucuruí, foi um verdadeiro presente do governo brasileiro para a indústria japonesa. Diz o jornalista: Tucuruí só começou a ser construída porque o Brasil, associado ao Japão, decidira instalar às proximidades de Belém um pólo industrial de alumínio, do tamanho de outro empreendimento que a Alcoa, a maior empresa do setor, estava montando na ilha de São Luís, no Maranhão. Na época do estudo de viabilidade da hidrelétrica de Tucuruí, a Albrás ia produzir 600 mil toneladas e a Alumar, 350 mil toneladas de metal. Juntas, necessitariam de quase 2 mil MW, quase sete vezes mais do que toda necessidade energética de todo Pará. Ou seja: não é que precisasse de uma hidrelétrica desse porte, afinal, uma única turbina de Tucuruí já alimentaria Belém. O governo militar nem pensou duas vezes, quando viu que poderia agradar os grupos empresariais, nem que isso custasse a enorme devastação que ocorreu na área do lago de Tucuruí. A pergunta “para quem?” também pode ser respondida de outra maneira, quando sabemos que o dinheiro gasto com a construção de Tucuruí foi muito mais do que o previsto no orçamento. Foram dez bilhões de dólares, para uma obra que diziam que custaria dois bilhões. O próprio ex-presidente da Vale do Rio Doce afirmou: se não tivesse havido corrupção na obra, ela teria sido 4 bilhões mais barata.

ELETRONORTE: O PREÇO DE AJUSTAR A REALIDADE À FANTASIA

Talvez um dia, a humanidade seja forçada a reconhecer o quanto é pequena e frágil, depois de destruir o planeta, assinando a própria condenação. O exemplo desse mau caminho está na Eletronorte, em seu modo de ver os rios da região que lhe dá o nome. A empresa age o tempo todo como se a natureza em torno tivesse a obrigação de se ajustar às barragens, e não o contrário. É por isso que os Complexos Hidrelétricos de São Luís e de Belo Monte recebem críticas dos movimentos sociais, das instituições científicas e do Ministério Público Federal.

1. SÃO LUÍS DO TAPAJÓS – A MORTE ANUCIADA DO TAPAJÓS

A Eletrobrás apresentou ao Ministério de Minas e Energia um projeto estimado em R$ 31 bilhões para a construção do Complexo Tapajós que possui uma previsão de

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capacidade instalada para a geração de 10.682 mil megawatts (MW). O estudo de inventário, que identificou a viabilidade de cinco aproveitamentos ao longo dos rios Tapajós e Jamanxim, foi finalizado recentemente, em parceria com a CNEC, empresa de engenharia pertencente ao grupo Camargo Corrêa. As empresas realizam atualmente o estudo de viabilidade do projeto que prevê a instalação de cinco usinas, todas dentro do mesmo plano de investimentos.

No estudo de inventário de Tapajós teriam sido identificados um potencial de 14 mil MW a ser explorado, mas a Eletrobrás acabou optando por preparar um plano que exclua áreas habitadas por índios e parte do parque nacional da Amazônia. Com isso “objetiva-se reduzir impactos ambientais e sociais” e facilitar a aprovação do projeto, tendo em vista os inúmeros obstáculos que a construção das usinas na região amazônica - como as do Rio Madeira - vêm enfrentando para sair do papel. O Rio Tapajós nasce no estado de Mato Grosso, banha parte do Pará e desagua no rio Amazonas ainda em terras paraenses. O Jamanxim tem sua nascente na região próxima a Serra do Cachimbo, e é o principal afluente do Tapajós.

Estimativas da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) apontam que após a aprovação desse estudo de viabilidade e inventário, o Complexo Tapajós levaria cerca de três anos até ser leiloado. Antes disso, outros projetos têm prioridade nos grandes leilões de energia. Além da usina Belo Monte - que o ministro Edison Lobão (Minas e Energia) anunciou que será leiloada em 2009 - com capacidade de 11 mil MW, outros dois grandes projetos hidrelétricos com previsão de venda nos próximos anos são os de Teles Pires e Marabá, com capacidade média de produção de 2 mil MW cada um.

Para Rogério Paulo Hon, da Coordenação Nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a construção desse complexo serve apenas para dar viabilidade a um conjunto de obras para reservar água suficiente para a demanda local. ‘Em Juruti está sendo construído outro complexo, de alumínio, pela Alcoa, e esse complexo do Tapajós tem relação estreita com isso, pela proximidade geográfica. Irá atender basicamente ao consumo da mineradora’, diz.

As empresas envolvidas alegam que entre os parques nacionais na Amazônia, região onde se pretende instalar o complexo, existem áreas sem donos e que a ideia seria fazer uma espécie de ‘cinturão’ nessas áreas. Outra das ideias é realizar o projeto com base em plataformas, semelhante às petrolíferas, sem que haja a necessidade de que as pessoas morem no entorno das usinas, evitando o impacto ambiental gerado pela ocupação desordenada da área.

Hon não acredita nisso. Para ele, ‘qualquer metro de água que seja levantado em um rio da região amazônica afeta a população ribeirinha, que representa grande parte da gente que lá vive. “Essa alegação deles me parece mais discurso para encantar do que de fato uma questão técnica comprovada’

O dirigente do movimento disse ainda que a tarefa deles agora é aproveitar a boa articulação que possuem na região para levar o debate à sociedade, para que ela tome conhecimento das questões que envolvem um projeto desse e referende ou não a opção do governo pela construção das usinas. O projeto de Tapajós deve ficar dentro dos planos de investimentos do PAC Eletrobrás, que prevê investimentos de R$ 93 bilhões.

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LEIA COM ATENÇÃO E TIRE AS SUAS CONCLUSÕES

AE - Agência Estado - SP

23/09/2008 - 15:29

Wellington Bahnemann e Leonardo Goy

Eletrobrás identifica capacidade do complexo do Tapajós

Empresas, em parceria, mapeiam a Bacia do Tapajós há mais de três anos. Inicialmente, o potencial identificado para a região foi de 14 mil MW.

Após as usinas do rio Madeira e de Belo Monte, a Eletrobrás já prepara o terreno para que o governo federal possa levar futuramente a leilão o próximo grande bloco de energia hídrica da Região Norte, o Complexo do Tapajós. O estudo de inventário produzido pela estatal, pela Eletronorte e pela CNEC, empresa de engenharia da Camargo Corrêa, identificou a viabilidade de cinco aproveitamentos ao longo dos rios Tapajós e Jamanxim, que totalizam 10,682 mil MW de capacidade instalada.

"Os estudos indicaram, neste momento, que o investimento do complexo é de R$ 31 bilhões", disse o presidente da Eletrobrás, José Antonio Muniz Lopes.

As empresas, em parceria, mapeiam a Bacia do Tapajós há mais de três anos. Inicialmente, o potencial identificado para a região foi de 14 mil MW. De acordo com o diretor-presidente da CNEC Engenharia, José Ayres de Campos, o consórcio empreendedor desenvolveu 14 hipóteses de projetos para a bacia, identificando 16 aproveitamentos hídricos.

"Dessa possibilidade, escolhemos a configuração que continha três usinas no rio Tapajós e seis usinas no rio Jamanxim", disse o executivo. Para reduzir o número de aproveitamentos, as companhias tomaram como principal critério de avaliação o menor impacto ao meio ambiente da região.

Mesmo dentro dessa configuração, a proposta da Eletrobrás, que será apresentada em breve aos membros da área energética do governo federal, entre eles o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, é que se construam cinco hidrelétricas, sendo duas no rio Tapajós e três no rio Jamanxim.

Em evento promovido pela CNEC, o executivo da empresa da Camargo Corrêa mostrou que as cinco usinas estão cercadas por extensas áreas de preservação ambiental. Reflexo dessa preocupação ambiental é o que ocorreu com o principal empreendimento da bacia, a hidrelétrica São Luiz do Tapajós.

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Originalmente, a usina foi planejada para ter 9 mil MW de capacidade instalada. "Esse modelo gerava impactos na rodovia Transamazônica e nos parques nacionais ao redor", afirmou De Campos. Por isso, a proposta que será apresentada pela Eletrobrás prevê a divisão do projeto em duas usinas: São Luiz do Tapajós, com 6,133 mil MW de potência, e Jatobá, 2,338 mil MW, detalhou Muniz. "Nessa nova configuração, São Luiz do Tapajós terá um reservatório de 722,2 quilômetros quadrados e uma queda d' água de 35,9 metros", explicou.

Além dessas duas usinas no rio Tapajós, também integram o complexo as hidrelétricas: Cachoeira dos Patos, com 528 MW de capacidade instalada; Cachoeira do Caí, com 802 MW; e Jamanxim, com 881 MW, no rio Jamanxim.

Segundo o presidente da Eletrobrás, o custo de instalação para os cincos empreendimentos varia entre R$ 52 a R$ 74 por MW instalado. "A energia assegurada do Complexo do Tapajós totaliza 5,816 mil MW médios", revelou Muniz. Atualmente, o estudo de inventário do complexo está em análise na Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

"Não acreditamos que teremos algum tipo de problema dentro da Aneel. Esperamos que o regulador aprove o trabalho dentro de seis a oito meses", projetou De Campos (CAMARGO CORREIA). Após aprovação do trabalho pelo regulador, as empresas poderão dar início ao estudo de viabilidade e ao Estudo e Relatório de Impacto Ambiental. "Com isso, o leilão das usinas do complexo pode ocorrer dentro de três anos", disse o executivo da CNEC Engenharia (CAMARGO CORREIA) O presidente da Eletrobrás foi mais otimista e comentou que a sua expectativa é que o processo de licitação ocorra ainda dentro do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Além da Aneel, Muniz disse que o projeto já foi apresentado ao ministro de Meio Ambiente, Carlos Minc. De acordo com executivo, ficou acertado nesse encontro que, assim como já ocorreu em Itaipu e será aplicada para as usinas do rio Madeira, os ganhadores das concessões das hidrelétricas do rio Tapajós terão que administrar os parques nacionais da região.

Outro fator que demonstra a preocupação ambiental do consórcio é que os projetos aplicarão o conceito de "usinas plataformas", ou seja, pouquíssimas pessoas trabalharão dentro das usinas para evitar que a migração populacional provoque grandes impactos ambientais.

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CAMARGO CORRÊA TEM FINANCIAMENTO PARA ESTUDO DE POTENCIAL DO RIO TAPAJÓS. AMBIENTALISTA JÁ PREVÊ NOVO FOCO DE TENSÃO, COMO OCORRE COM A LICENÇA AMBIENTAL DO RIO MADEIRA, UMA DAS PRIORIDADES DO PAC.

Janaína Leite da reportagem local Claudio Angelo editor de ciência ( AE – São Paulo)

Antes mesmo do desfecho do caso rio Madeira, governo e empreiteiros já preparam o terreno para uma nova grande hidrelétrica na Amazônia. O próximo alvo é o Tapajós, um dos últimos grandes rios da região ainda sem represas planejadas.

A construtora Camargo Corrêa deve concluir ainda neste semestre o levantamento do potencial hidráulico do Tapajós e do Jamanxim, seu afluente, na região de Itaituba, Pará. Para isso, conta com um financiamento de R$ 13,6 milhões da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia.

A primeira parcela do empréstimo foi liberada em fevereiro. A empreiteira informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que ainda não há uma estimativa que possa ser divulgada do potencial de geração de energia dos dois rios. Mas estudos anteriores da Eletronorte, parceira da Camargo Corrêa no empreendimento, identificaram ali, no local conhecido como cachoeira de São Luís, um potencial de 11 mil megawatts (9.000 no Tapajós e 2.000 no Jamanxim).

É quase o dobro da capacidade instalada somada das polêmicas usinas de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira (Rondônia). E o equivalente à de Belo Monte, no rio Xingu. Uma fonte graduada do setor elétrico afirma que a hidrelétrica -ou as hidrelétricas, já que não se sabe ainda qual seria a melhor forma de aproveitar as corredeiras do Tapajós- de São Luís não deve servir como "plano B" às usinas do Madeira, uma das mais importantes obras do PAC (Programa de Aceleração de Crescimento) e ainda sem licença ambiental do Ibama, apesar da forte pressão do próprio governo.

Mas que o novo projeto será a "próxima e última" grande hidrelétrica do país, já que potenciais hidráulicos dessa monta já foram mapeados e esgotados.

Assim como Santo Antônio e Jirau, a futura obra, se for levada adiante, tem tudo para causar polêmica com o setor ambiental. Os ambientalistas são contra grandes hidrelétricas por definição,

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já que na esteira dessas obras na Amazônia costumam vir inundações de floresta, surtos de grilagem de terras e desmatamento.

No caso de São Luís, há mais uma coisa a acrescentar à lista. O ponto onde o Tapajós forma suas corredeiras, perto da interseção com a rodovia Transamazônica, é cercado de unidades de conservação, como o Parque Nacional da Amazônia, e a Flona (Floresta Nacional de Itaituba).

Além disso, há diversos assentamentos de reforma agrária na área, palco de conflitos no passado recente entre madeireiros e Ibama. "Tem muito pouco espaço fora de unidades de conservação e assentamentos", diz Roberto Smeraldi, diretor da ONG Amigos da Terra Amazônia Brasileira. "Você tem um parque nacional, duas áreas de produção de madeira e uma área de intensa colonização." Smeraldi reconhece, no entanto, que um dos maiores nós ambientais do rio Madeira, a questão dos sedimentos, não se coloca no rio Tapajós, que é de águas claras.

O financiamento da Finep à Camargo Corrêa é reembolsável e funciona da seguinte maneira: se dentro de dois anos não sair um edital de concorrência para a construção da usina (ou das usinas), a empreiteira paga o governo e banca o custo do estudo até que aconteça a licitação. No eventual processo de concorrência, no entanto, esse custo será transferido ao vencedor do leilão.

Se for levada a cabo, São Luís consolidará um plano de ocupação da Amazônia que começou no regime militar com a Transamazônica. A estrada cruza três grandes rios (Tocantins, Xingu e Tapajós) em três pontos onde há grandes quedas d'água: uma delas, Tucuruí, já foi construída. A segunda, Belo Monte, sobre a qual se arrastava disputa com o Ministério Público, teve recentemente autorização para ter seu estudo de impacto ambiental. A usina do Tapajós é a última do trio.

O diretor econômico- financeiro da Eletronorte, Astrogildo Fraguglia Quental, afirmou que a usina de São Luís tem capacidade para substituir as obras planejadas para o rio Madeira, cuja entrada em operação é esperada para 2012.

Para ele e outros técnicos do setor, no entanto, o governo deveria voltar os olhos para Belo Monte, cuja estimativa de produção média de energia é de cerca de 5.000 megawatts (embora o potencial

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instalado seja de quase 11 mil megawatts, a grande diferença de vazão do rio na cheia e na seca reduz a energia "firme", ou seja, o que a usina vale de fato, à metade).

"Não tenho dúvidas de que Belo Monte é muito melhor do que qualquer uma delas", disse Quental. "Não só pela proximidade de grandes mercados [cidades do litoral nordestino], mas pela melhor relação custo -benefício no que diz respeito às finanças e ao ambiente, pois haveria menos inundações."

(INFORMAÇÃO IMPORTANTE: Formado por 16 empresas, o Grupo Camargo Corrêa possui mais de 30 mil funcionários e atua principalmente nas áreas de engenharia e construção; cimento; energia; transporte; gestão ambiental; calçados; siderurgia; e têxtil. Até 2003, o setor de engenharia e construção era o principal responsável pelos lucros do Grupo. “Agora, a tendência é de que a liderança se alterne entre os segmentos. Em 2005, a área de energia foi a principal responsável pelos lucros, com 18,4% do total arrecadado”.)

RIOS TAPAJÓS E ARAPIUNS

HIDRELÉTRICA VAI PÔR O TAPAJÓS EM RISCO

Pesquisador garante que a prometida usina de São Luiz do Tapajós pode ser fatal para o rio.

O pesquisador da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) Wallice Paxiúba Duncan, doutorando em Ecologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), afirma que a construção de uma hidrelétrica na comunidade de São Luíz, em Itaituba, anunciada pelo governo federal, será um golpe fatal no rio Tapajós. Duncan passou a semana na região em que deve ser instalada a usina, que por coincidência também é sua terra natal. Ele afirma que a Itaituba vive eufórica com um novo momento, mas que, na verdade, trata-se de um outro ciclo tradicional. 'O município cresceu com o extrativismo, quer seja orgânico, quer seja mineral. Em muitos casos, atividades que provocam fortes impactos ambientais. Mal a febre do eldorado

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acabou, já se inicia o aquecimento pela construção da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós'.

O maior prejudicado com a instalação da hidrelétrica seria o próprio rio Tapajós, que já passou por sérios problemas durante o auge do ciclo do ouro naquela região do oeste paraense. 'Se levada adiante, do ponto de vista ambiental a hidrelétrica no rio Tapajós poderá ser considerada como o golpe final no rio que lentamente morre envenenado com o mercúrio e assoreado pela atividade caótica das centenas de minas de garimpo que ainda hoje dragam seus afluentes', afirma Duncan.

O mercúrio castigou o rio e a população ribeirinha, que até hoje tem sequela da contaminação. É um metal pesado que se acumula no corpo e provoca lesões neurológicas e hepáticas. 'Ao longo de quase quatro décadas, o rio Tapajós recebeu uma enorme carga de mercúrio, que certamente está bioacumulada nos peixes e nas populações ribeirinhas', diz o pesquisador, acrescentando que até cor da água do rio Tapajós mudou. 'Hoje relembro, com certo saudosismo, que na década de 70 minha avó Hilarita Paxiúba me levava para tomar banho nas águas límpidas na ilha da Loritana, em frente à vila São Luís. Hoje, retorno de São Luís do Tapajós e revejo com profunda tristeza a cor barrenta do rio Tapajós, que em alguns trechos se assemelha às águas do rio Amazonas', emendou.

Para o pesquisador, é o preço que se paga pelo desenvolvimento a qualquer custo e sem planejamento. Ele alerta ainda que os mesmos erros não podem se repetir. 'O rio, agora, não deve pagar mais uma vez por deslizar sobre um declive que por capricho do homem poderá gerar energia para alimentar as máquinas das mineradoras, das madeireiras e potencializar o avanço do arco do desmatamento em direção ao coração da Amazônia, além de fornecer energia para o progresso do Centro-Oeste e Sudeste ampliando ainda mais o abismo entre o Norte e o resto do País'.

IMPACTOS

O pesquisador informou que, recentemente, uma equipe de pesquisadores da UFAM concluiu um estudo sobre os impactos da construção da Usina Hidrelétrica de Balbina sobre a ecologia dos peixes que vivem no rio Uatumã, no Estado do Amazonas. A construção da barragem criou um imenso lago, do mesmo modo que aconteceu nas hidrelétricas de Tucuruí e Curuá-Una. Certas espécies

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de peixes desapareceram e outras se estabeleceram desordenadamente. 'O tucunaré é um peixe que se adapta muito bem em sistemas lacustres. Porém, a pirapitinga e o peixe-cachorro, que dependem de uma água bem oxigenada e de habitat de corredeiras, podem desaparecer', alerta.

Outra condição adversa apontada por Duncan é a barragem que poderá impedir a piracema. Peixes migradores que desovam nas cabeceiras dos rios poderão desaparecer daquele local. Os prejuízos deverão ultrapassar a pesca e o comércio do pescado, principal fonte de renda das populações tradicionais do rio Tapajós. 'Para a ciência, a perda ainda será maior. Existem indícios de duas espécies novas de arraias de água doce no local da hidrelétrica. O consumo de arraia como peixe comestível seja desprezível, mas há um mercado em potencial como peixe ornamental. Já é conhecido pela comunidade científica que a vila de Pimental é berçário de uma espécie de arraia valiosa. Vale ressaltar que este local poderá desaparecer com a inundação da hidrelétrica. Após a formação do grande lago, as águas paradas estarão envenenadas com gás sulfrídrico proveniente da decomposição da vegetação submersa', explica.

A conclusão é de que os danos ambientais vão se entrelaçar aos danos econômicos. 'As cachoeiras que existem entre São Luís e Pimental são cenários naturais que encantam qualquer turista. Portanto, a região possui um enorme potencial para o ecoturismo. O que a região precisa é de uma política de incentivos para o estabelecimento de empresas na região', diz o pesquisador.

Para finalizar, Duncan explica que os impactos da hidrelétrica de São Luís avançam além dos danos ambientais e podem provocar epidemias. 'Normalmente, as larvas de mosquitos vetores da malária e da febre amarela se proliferam em ambientes de água parada, portanto é de esperar surtos de malária e febre amarela. Além disso, grandes empreendimentos costumam atrair imigrantes para a região em busca de emprego. Nesse contexto, é obvio que serão usados como mão-de-obra bruta e que, certamente, do início ao final do processo poderão inflar as periferias das vilas próximas à hidrelétrica e de Itaituba, criando bolsões de pobreza. Um bom observador já pode notar indícios de especulação imobiliária e grilagem de terras naquele local por causa dos rumores da construção da hidrelétrica', alerta Duncan.

Alailson Muniz

Fonte: O Liberal

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Documento do II Seminário de Debates Sobre o Projeto Governamental das Hidrelétricas na Bacia do Tapajós

CARTA ABERTA ÀS AUTORIDADES E À POPULAÇÃO BRASILEIRA

Frente aos planos governamentais, nacionais e internacionais, de destruição dos povos, meio ambiente e do próprio Rio Tapajós, não vamos continuar passivos. O governo brasileiro NÃO TEM O DIREITO de violentar nossa dignidade, criando hidrelétricas sem dialogar com as populações que sofrerão os impactos negativos. O governo brasileiro NÃO PODE descumprir a Constituição Federal ou modificá-la para beneficiar as grandes empresas e as imposições do capital internacional.

Temos clareza de que os impactos ambientais, econômicos, sociais e culturais, na bacia do Rio Tapajós comprometem a vida humana, animal e vegetal, sem respeitar fronteiras geopolíticas, nem acordos governamentais. Assim, denunciamos a conivência passiva e ativa do governo e seus órgãos, diante dos crimes cometidos pelas empresas construtoras de barragens (Andrade Gutierrez, Odebrecht, Camargo Corrêa, etc.) e empresas eletro-intensivas (Albras, Alunorte, VALE, Pará Pigmento, Alcoa, Itacimpasa, Imerys Rio Capim Caulim, etc.) que consomem muita energia, geram pouco emprego, saqueiam nossos recursos naturais, contaminam nossos rios, terra, floresta, ar e destroem e violam os direitos das comunidades locais e comunidades indígenas.

Diversas Unidades de Conservação na região do Tapajós foram criadas no âmbito do Sistema Nacional de Ucs, incluindo algumas inseridas na categoria de proteção integral, dentre as quais o Parque Nacional da Amazônia, com mais de 1 milhão de hectares e sob a zona de impacto imediato do complexo de hidrelétricas proposto, com perda considerável para a biodiversidade ali existente; sem contar de outras: Flonas Itaituba I e II, Flona Amana, Flona Jamanxim, Flona do Crepori, Flona do Trairão, APA Tapajós, PARNA Jamanxim, PARNA Rio Novo.

Diante do desrespeito das autoridades para com nossos povos, nós, ribeirinhos, agricultores familiares, pescadores, indígenas, sócio-ambientalistas, educadores populares, jovens, homens e mulheres atingidos e ameaçados pelo Complexo do Tapajós, e por outras obras, decidimos que: Não aceitamos e declaramos que somos contrários ao

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Complexo Hidrelétrico do Tapajós que, além de prejudicar nossa cultura e meio ambiente, não nos trará benefícios, beneficiando apenas o grande capital e empresas nacionais e estrangeiras.

Não admitimos ser tratados como entraves ao crescimento econômico do Brasil, pois somos brasileiros e brasileiras e sofreremos todas as conseqüências destes projetos hidrelétricos.

Declaramos nossa luta incansável em defesa dos direitos dos povos ribeirinhos, agricultores familiares, pescadores, quilombolas, indígenas e populações tradicionais atingidas e ameaçadas pelo Complexo do Tapajós.

Nós, aproximadamente 415 homens e mulheres presentes no Parque de Exposições Hélio da Mota Gueiros na cidade de Itaituba, populações indígenas e não indígenas da Bacia do Rio Tapajós, sabemos o que queremos e precisamos para desenvolver nossa região, pois isso já fazemos ao longo dos anos. Queremos ser respeitados e respeitadas pelas políticas governamentais.

Queremos investimentos nas políticas públicas de saúde, educação, moradia, agricultura familiar, pesca, estradas e vicinais e tudo o mais que precisamos para viver com dignidade e conservar o meio ambiente e a cultura para as presentes e futuras gerações.

Por fim, manifestamos nosso apoio e solidariedade aos companheiros e companheiras criminalizados (MAB, MST, FETAGRI, STTR, CPT) vítimas das conseqüências da barragem de Tucuruí, após 30 anos de sua construção.

QUEREMOS OS RIOS VIVOS PARA AS PRESENTES E FUTURAS GERAÇÕES!

O POVO QUER SER RESPEITADO!

Itaituba, 30 de abril de 2009

COMUNIDADE DE SÃO LUIZ DO TAPAJÓS

COMUNIDADE DO PIMENTAL

FÓRUM DOS MOVIMENTOS SOCIAIS DA BR 163

FRENTE EM DEFESA DA AMAZÔNIA - FDA

COMUNIDADE DE BARREIRAS

COMUNIDADE DE CAMPO VERDE (KM 30 DA TRANSAMAZÔNICA)

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COMUNIDADE INDÍGENA ALDEIA NOVA

COMUNIDADE INDÍGENA PRAIA DO MANGUE

COMUNIDADE INDÍGENA PRAIA DO ÍNDIO

COMUNIDADE DO CURI

COMUNIDADE DE BARREIRAS

COMUNIDADE DE FORDLÂNDIA

COMUNIDADE DO JURUTI

MOVIMENTO XINGU VIVO PARA SEMPRE

ARTICULAÇÃO PANAMAZÔNICA – APAN/FSM

INTERNATIONAL RIVERS

RÁDIO RURAL DE SANTARÉM

IAMAS - INSTITUTO AMAZÔNIA SOLIDÁRIA E SUSTENTÁVEL

FASE Amazônia (Federação de Órgãos para assistência social e educacional)

FUNDO DEMA

FAOR

COLÔNIA DE PESCADORES DE ITAITUBA

COLÔNIA DE PESCADORES DE JACAREACANGA

CPT (COMISSÃO PASTORAL DA TERRA de Santarém)

FVPP (FUNDAÇÃO VIVER PRODUZIR E PRESERVAR)

MMCC BR 163-PARÁ

MMCC de Altamira

MMCC-PARÁ (MOVIMENTO DE MULHERES DO CAMPO E DA CIDADE)

ASFITA (Associação dos Filhos de Itaituba)

STTR- Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Itaituba

AMIPARNA – Organização amigos do Parque Nacional da Amazônia

Comissão Justiça e Paz de Itaituba

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Companhia Ecológica e Cultural Amazônia Viva

Associação de Mulheres Domésticas de Santarém – AMDS

COMOPEBAM – Comissão do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais do Oeste Pará e Baixo Amazonas

EETEPA – Escola Estadual Tecnológica do Pará – Itaituba

Sindicato da Construção Civil de Itaituba

Associação AICOTTACC do PAE Curuá II Santarém

Pastoral Social da Diocese de Santarém

3. ESPIRITUALIDADE ECOLÓGICA

Introdução

Desde que o homem se tornou protagonista da História, o progresso tecnológico e o desenvolvimento económico não têm poupado a Natureza. Particularmente desde a Revolução Industrial, no século XVIII, a sociedade humana tornou-se um grave factor de desequilíbrio ambiental. Fábricas, automóveis, frigoríficos - por um lado, servem-nos; por outro, são uma ameaça à nossa saúde e à nossa sobrevivência. Porque a Terra é só uma, os seus recursos são finitos e todos nós - homens, animais e plantas - dependemos dela.

O panorama não é brilhante. Os homens adoecem; animais e plantas desaparecem. A poluição e os resíduos tóxicos contaminam mares, rios e solos. A acumulação de gases na atmosfera está a provocar o aquecimento do clima, que por sua vez é responsável pelo degelo nas regiões polares, pela subida do nível dos mares e por danos incalculáveis nas culturas agrícolas e nos recursos marinhos.

Quando a Natureza se revolta, surgem as catástrofes: secas, cheias, tufões, inundações. No seu desespero, o homem queixa-se de Deus, mas esquece que, qual aprendiz de feiticeiro, está a interferir num sistema infinitamente complexo, que não domina nem sequer conhece.

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A ecologia é uma questão de sobrevivência. Os padrões actuais de produção e consumo são incomportáveis e põem em perigo as maravilhas da Criação e o futuro do planeta. As diversas formas de vida são interdependentes. Por isso, a comunidade humana e o mundo natural ou caminham juntos numa fraternidade cósmica, ou perecerão em conjunto.

A justiça ecológica - ou seja, uma relação correcta com o meio ambiente que nos sustenta - não é possível num mundo injusto. Um esforço concertado para proteger a natureza e promover um desenvolvimento saudável não pode ignorar as formas estruturais de pobreza. Não é possível salvar um navio em que dois terços da tripulação não se podem mexer por causa da subnutrição e o outro terço não consegue agir por sofrer de indigestão.

O equilíbrio ecológico depende do empenho de todos nós, da nossa disposição para vivermos em harmonia com os outros e a natureza, mas também de um mundo globalmente mais justo. Eis algumas pistas para a mudança:

Contentar-se com o indispensável. A actual ordem económica, que promove a cobiça, o desperdício, a acumulação, agrava as injustiças sociais e ambientais. O esbanjador estilo de vida de uma minoria destrói o planeta e a vida da grande maioria. Por isso, não haverá soluções ecológicas sem rever seriamente o estilo de vida no sentido da simplicidade, moderação e disciplina, em fraternidade com os povos e a Criação.

Cultivar a não-violência. A paz implica o respeito pela natureza. Os conflitos bélicos devastam os povos e o ambiente. A violência económica ameaça o planeta. A monocultura e os transgénicos afectam a nossa saúde e a biodiversidade. A degradação ambiental agrava o sofrimento dos mais pobres, sobretudo os do Sul do mundo, que lutam arduamente pela sobrevivência.

Exercitar a solidariedade. As pessoas e a natureza devem estar acima do lucro e da tecnologia. A nossa generosidade é a medida da nossa humanidade. O mundo tem que mudar a partir de nós, da nossa capacidade de partilha.  

A justiça social e a eco justiça estão profundamente interligadas e constituem um desafio para todos, a começar por quem tem qualquer convicção religiosa. Os missionários sentem que a salvação das pessoas e da natureza é parte integrante da sua missão e promovem-

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na como um modo de vida. Com base numa espiritualidade centrada na Criação e no bem das pessoas e dos povos.

1. Ecologia e ética

A crise ecológica leva a perceber que a criatura humana se acha em condições de explorar, danificar e mesmo destruir o mundo que lhe serve de base. Leva a reconhecer dramaticamente que o ser humano está inevitavelmente inserido nas tramas de sequências, processos e ordenações da natureza.

Esta crise não permite considerar o ser humano como finalidade última simplesmente superior à criação, como criatura que habita a terra e a faz serviçal de suas necessidades e possibilidades.

Exige, ao contrário, que o ser humano conceba o seu ser a partir também de suas influências recíprocas com estados das coisas, sistemas, processos, equilíbrios, ritmos e recursos limitados da natureza. O ser humano não apenas tem um mundo ambiental natural, senão que ele próprio o é, na medida que é parte da natureza que por sua vez o acolhe, marca e também ameaça como mundo ambiente. A natureza enquanto mundo ambiente é parte integrante e prolongamento de sua corporalidade.

A reformulação ecológica da antropologia alberga consequências incisivas para a relação de cultura e para a ética. A cultura não pode ser definida somente na linha da elaboração e superação da natureza, mas abarca também as maneiras de proteger, cuidar, reconstituir, deixar repousar e integrar.

A Ética além da preocupação por uma vida boa, deverá doravante envolver o cuidado de conservar a CRIAÇÃO. O mundo ambiente não é mais apenas constitutivo antropológico, mas também objeto do agir moralmente responsável.

Por causa das relações de interdependência ecológico podem-se acumular, porém sem se notar, prejuízos e estragos que vêm a se tornarem ativos somente em futuro remoto. Por isso evitar os efeitos negativos indesejáveis no futuro, exige hoje um agir correto que constitui postulado fundamental da ética ecológica.

A responsabilidade do nosso agir no presente mede-se não só pelo funcionamento momentâneo, mas também por sua capacidade de possibilitar sobrevivência e existência significativa para todos também no futuro.

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A Ética, visando o bem comum do mundo, não mais se ocupa apenas com o ser humano como indivíduo e com formas comunitárias inter-humanas e políticas, mas também com a natureza não humana em suas partes constitutivas e em suas regularidades, porque o ser humano se reconhece como inserido numa sociedade natural mais ampla, precisando insubstitutivelmente dela.

A ética é chamada a transferir princípios da ética tradicional para as relações entre todos os seres viventes, as plantas, as paisagens: “irmandade”, “parceria”, “cooperação”, “solidariedade”, “compaixão”, “paz”, “direitos próprios dos animais”.

Deve também prolongar os direitos sociais com base na limitação dos bens naturais da vida (proteção das águas, do ar, da fauna e flora, paisagens). Deve olhar também para bens não divisíveis individualmente, o dever social da propriedade da natureza, justiça para com as gerações futuras, direitos humanos quanto aos bens naturais necessários à vida, etc.

A crise ecológica continuará agravando-se se não forem parte constitutiva da ética valores positivos que integrem entre si os seres humanos e a natureza. Para isso temos de derrubar o mito antropocêntrico, que faz do homo faber o prisioneiro da torre de marfim que ele construiu para si. Diante da terra, o ser humano tem uma atitude ptolomaica. O ser humano deve deixar de se conceber como imóvel no centro com a natureza a seus pés. O ser humano e a natureza devem tomar juntos o sol como ponto de referência para a grande aventura da vida. Ao tratar a natureza como parceira, o ser humano será beneficiado por uma compreensão mais profunda da mesma natureza. Pois só se pode compreender o que se leva a sério.

ESPIRITUALIDADE ECOLÓGICA AMAZÔNICA

Pe. Ricardo G. Castro

O que significa falar de uma espiritualidade própria para a Amazônia? Nossa busca ocorre dentro de um contexto histórico que exige uma retrospectiva não somente para compreender o tempo em que estamos, mas também para nos imbuirmos de um “espírito” para os desafios do tempo presente e do futuro que pairam sobre essa realidade.

Espiritualidade Amazônica é contextual. É um retorno ao próprio poço ou aos poços (cacimbas) de nossas culturas para daí, no diálogo com os elementos espirituais dos povos da Amazônia, saber como discernir, ser, viver e celebrar a fé neste chão. Este é um percurso longo

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que exige paradas obrigatórias, disciplina e um senso de liberdade. Se nossa busca se norteia pelo contextual, nada mais importante que retomar a questão sobre fé e cultura, sobre espiritualidade e religião. Distinções próprias para nossa discussão, mas nem sempre possível de distinguir na realidade da vida de nossos povos.

Uma primeira afirmação importante é que no contexto Amazônico somos chamados a elaborar e viver uma Espiritualidade da criação.

• Na espiritualidade, centrada na criação, o mundo criado é sacramental. É o lugar onde Deus revela sua divindade.

• A revelação se dá na vida diária, com palavras ordinárias, através de pessoas comuns de nosso dia-a-dia.

• A vida é vivida com espírito e imaginação analógica, que vê uma continuidade entre a existência humana e a realidade divina.

• Deus está presente na natureza e suas pegadas são visíveis na nossa história.

Espiritualidade Amazônica é vida no Espírito em nossa corporeidade. Centra-se na experiência do Espírito na Criação. Tudo o que é, existe, vive graças ao constante fluxo de energias e possibilidades do Espírito Cósmico. Por isso, toda realidade criada tem de ser compreendida de forma energética e entendida como possibilidade realizada do Espírito divino. Através das energias e possibilidades do Espírito, o próprio criador está presente na sua criação. Ele não está somente contraposto a ela de uma forma transcendente, mas entra nela e nela está de forma imanente.

Numa espiritualidade integradora da criação, somos chamados a passar de uma fé cristã apenas interior e subjetiva para uma fé engajada não só social, mas também ecologicamente. Leva-se em conta os resultados de uma nova imagem da natureza e do universo desde as diversas ciências – a física, a biologia, a cosmologia, a psicanálise.

O caminho do encontro com Deus inclui toda a criação: o mundo mineral, o mundo vivo e o mundo dos humanos. O mundo todo é graça, é sinal da gratuidade, da fidelidade e da ternura de Deus. Todas as coisas, amáveis e gostosas por si mesmas, são caminhos para a contemplação de Deus. São um dom de Deus que tem como horizonte último não a finalidade econômica, mas a gratuidade do doador. Atrás da gratuidade das coisas existe a gratuidade de quem oferece. Essa é a dimensão da fé. É também o caminho da espiritualidade: saber descobrir a substância espiritual de toda a criação.

É ler a Palavra de Deus a partir da chave da criação. Criação compreendida de forma interdisciplinar. Valorizando nos textos, os contextos históricos e a língua em que o texto foi escrito para o bem interpretar a sua intenção e o seu sentido.

Na construção de uma espiritualidade da criação, queremos compreender e viver a criação em sua inteireza, com uma metodologia integradora, mais na forma de relação do que distinção: integrando à criação as realidades “visíveis e invisíveis”, como professa o Credo. Por exemplo, considerar a unidade entre cérebro e espírito, sem reducionismo de um ao outro, de tal forma que as emoções ou o conhecimento não decorram simplesmente do cérebro como base do que nós chamamos de espírito, nem do espírito humano independente do cérebro,

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mas do “casamento” e da unidade de ambos, como na aplicação da física quântica aos estudos da mente humana. Nesse sentido, uma boa compreensão não desliza nem para um “cerebrismo” físico nem para um “espiritualismo” a respeito da mente humana.

Espiritualidade da criação é retorno a compreensão e vivência de que a natureza como criação é originariamente boa, mesmo em suas turbulências e mortes naturais; é compreender o que significa a afirmação de que toda a criação está ferida pelo mal e pelo pecado humano, aguardando com esperança a libertação de toda corrupção. A existência do mistério do mal deve ser encarnada em suas diferentes manifestações, desde o seu mistério jamais inteiramente compreensível e justificável, até as responsabilidades humanas diante dos males.

Na espiritualidade da criação compreendemos e vivemos a conexão comunicativa entre a natureza ambiental e o corpo humano, a relação de dom recíproco entre o espírito humano e seu ser-no-mundo como “naturalização do humano e humanização da natureza”, como afirmava Marx, mas não simplesmente na relação de trabalho. Antes, na forma sabática de repouso e gozo da criação na presença do Criador, e na atitude de Francisco de Assis. Ele compreender que mesmo o lobo, o fogo e a pedra, como o muçulmano, o Papa, o Rei e o bandido, eram realmente seus irmãos. 1

Rios, florestas, terra e corporeidade

A terra-mãe. Antiqüíssima e muito espalhada é a idéia da terra como mãe. A terra não produz apenas as plantas, mas também os animais e até o ser humano: não é no ventre da mãe que o feto é formado, mas no da terra, onde é transferido de modo misterioso para o ventre da mãe. O símbolo da mãe-mundo está na base da concepção do mundo como sendo a grande pessoa humana, e a pessoa humana como sendo um pequeno mundo: o mundo é um macroantropos – a pessoa humana é um microcosmos. Toda a vida humana vem da mãe e é nutrida por ela. Por isso também o mundo tem, no seu todo, a forma materna. Todos os seres vivos são nascidos da mãe e por ela alimentados. Ela é pessoa cósmica original.

A terra é a mãe de todas as pessoas, dela elas provem e a ela retornam para, a partir desse ventre materno, nascer para uma outra vida. O círculo vital do “morrer e renascer” desenvolve-se sobre a “mãe-terra” que recebe e faz nascer novamente. A relação entre pessoa e terra também está presente nas tradições bíblicas: Adão foi feito da terra”. Ele é a “criatura terrestre” original, anterior à diferenciação entre homem e mulher (Gn 2,7). Mas aqui, a terra não é mais a “mãe do ser humano”, mas somente a matéria-prima para a obra do criador.

O monoteísmo patriarcal da religião javista desmantelou o panteísmo matriarcal da terra através de um conceito de criação masculino. A simbologia da “mãe-terra” foi quase integralmente transposta para a “mãe-igreja”: O ventre materno da Igreja, o qual exclusivamente torna santo, faz a pessoa crente nascer para uma nova vida, e isso de forma virginal.2

CORPO

1 Susin, A criação de Deus. p. 15-16.2 MOLTMANN, J., Doutrina ecológica da criação, p. 426-427.

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Conforme as tradições bíblicas, corporeidade é o fim das obras da criação de Deus. A terra é o objeto e o palco do amor criativo do criador. Deus criou as pessoas físicas, corporais para serem sua imagem, e seu primeiro mandamento diz: “sede fecundos e multiplicai-vos...” (Gn 1,28).

É no seu corpo que a pessoa se conscientiza de si mesma como sendo criatura e imagem de Deus. Corporeidade é seu objetivo. Todos os caminhos do seu espírito e todas as palavras da sua linguagem findam na forma viva de seu corpo. Corporeidade é também o fim da obra conciliadora de Deus: “A palavra se fez carne...” Tornando-se carne, o Deus conciliador aceita a carne pecadora, doente e mortal da pessoa e a cura na sua comunhão. Em sua encarnação, os corpos explorados, doentes e destruídos experimentam sua salvação e sua dignidade indestrutível.

Corporeidade é também o fim da salvação do mundo para ser Reino da glória e da paz. A nova terra completa a salvação (Ap 21), e a nova corporeidade transfigurada, é a realização da saudade do Espírito (Rm 8). A salvação começa com a dádiva do Espírito e finaliza com a transfiguração do corpo. Ela começa com a nova justiça do coração e finda no mundo novo e justo. Ela começa na fé e termina na nova experiência física de Deus que é chamada de olhar.

RIOS

Os habitantes da Amazônia vivem sob os ciclos dos rios e igarapés. As enchentes é fase mais prolongada indo de dezembro a abril. As cheias são mais curtas, entre Maio e Junho, período mais rico na produção de vida desta região. As vazantes é um momento intermediário e a seca que é a etapa mais curta destes ciclos, etapa preocupante para muitas formas de vida ameaçada tanto pelas secas prolongadas, como pela predação. Todos esses aspectos exigem uma compreensão cada vez mais profunda e interdisciplinar da questão. Fala-se muito de desenvolvimento sustentável como a possibilidade de salvar a Amazônia e todas as suas formas de vida.

Na Amazônia não há como não lembrar que somos água, rios. Que nossa vida segue sob os ritmos das enchentes e vazantes. Que parte de nossa alimentação típica brota dos rios com uma variedade imensa de peixes e frutos das águas. Nosso sentido de estética, do belo está ligado às águas. Para nossos antepassados indígenas e negros os deuses, as divindades moram no fundo das águas – como para refletir de modo analógico o mais profundo de nosso interior – as forças das águas inconscientes. Navegando sobre os rios, o modo mais típico de viagens na Amazônia, aprendemos a ser contemplativos. Olhar por horas a imensidão dos rios, das águas. Somos água em nossa composição bioquímica e principalmente em nossa elaboração espiritual. Como princípio de maternidade, passamos nela nove meses mergulhados nas entranhas maternas para compreender fundamentalmente que água é vida. Somos banhados na fonte da vida eterna em nosso batismo para morrer e renascer em Cristo para a vida de filiação, dependentes agora do Deus Abbá-mãe-pai.      Ser amazônida é compreender a dimensão hídrica de nossa vida, adquirir as sabedorias e fertilidade dos rios que no seu caminho rumo ao mar, nos aponta para a meta fundamental de nossa vida – O mar infinito do amor de Deus. Ser amazônida é aprender navegar, descobrir o caminho a seguir, aprender a paciência da pesca, aprender a contemplação que se renova em cada fluxo de água do grande rio. É banhar-se,

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purificar-se constantemente do calor cansativo da vida, da sujeira material e espiritual que se gruda em nós nas labutas e desmandos da vida. 

Mitologia da criação, fonte da espiritualidade Amazônica

Há pelos menos duas formas, em nossa cultura ocidental, nos últimos 50 anos, de interpretar o mito. Uma advinda da herança cultural da filosofia grega, onde o mito é sinônimo de mistificação e falsidade, e outra advinda de diversas tradições orientais e de culturas consideradas arcaicas, nas quais se incluem as indígenas, em que os mitos encerram verdades.

Em cada narrativa, encontra-se um aspecto, um núcleo que encerra uma verdade estrutural, um arquétipo. Os mitos são de alguma forma o modo como projetamos nossa relação com a natureza e compreendemos suas múltiplas funções: nascimento, vida, morte, ódio, amor, maternidade, paternidade, relacionamentos, saúde, doença, guerra e paz, enfim, tudo que é típico do ser humano em qualquer tempo e lugar. Os conteúdos mantém sua forma básica, o que varia é a roupagem que caracteriza cada época e lugar. Nesses termos a mitologia é universal, comunga entre si os mesmos conteúdos. Mitos são forças arquetípicas naturais e espontâneas, que emergem em nós, sempre que faz necessário. Se prestarmos atenção em nós mesmos, veremos que o mito não é algo do passado, encontra-se de forma viva e atuante nos sonhos, nas fantasias, imagem, visões, nas artes em geral. Nascem espontaneamente. Mitos são individuais e coletivos. O mito não se opõe ao científico, ao contrário, este seria sua própria mãe. O objetivo do mito, assim como da ciência é a explicação do micro e do macrocosmo, tornar os fenômenos da vida compreensíveis. Dar sentido e finalidade aos elementos do universo.

Nessa concepção, através de uma linguagem simbólica, o mito leva as pessoas a um centramento, a um eixo, a recuperar sua sacralidade, sua integralidade, ao conhecimento de verdades sobrenaturais e essenciais. É, pois, o mito, como as imagens simbólicas, uma linguagem da alma e, portanto, de um tempo não linear, não histórico, mas que corresponde a uma história primordial, anterior e além da história, e da criação no sentido cosmogônico.

Ora, essa parte não contemplada, e que está de alguma forma em todos nós amazonenses, pede realização. Independente de sermos indígenas ou caboclos, em lugares recônditos de nossa alma está aquilo que somos, mesmo que negado. No contexto amazônico, os mitos possuem a força de dirigir as ações, moldar comportamentos, fundar os costumes e exigir respeito e atenção. Sua função está diretamente ligada ao cuidado com a natureza e a sobrevivência da diversidade das espécies que aqui vivem. Na fundação de uma cosmovisão, os mitos vão impregnar o cotidiano das pessoas com as crenças no sobrenatural, em seres animais ou semi-humanos que se colocam como protetores das matas.

O prejuízo de negar aquilo que somos ficamos com a pior parte. Dos povos indígenas perdemos a ligação com a natureza e a possibilidade de sacralizá-la e de conservar um dos bens maiores que temos - a terra; perdemos também seus mitos e suas verdades. Dos africanos perdemos a energia exuberante, a vitalidade, a força de expansão, o orgulho da raça e sua riqueza mitológica; dos portugueses perdemos uma de suas melhores partes, o lirismo.

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A mitologia amazônica é formada não somente por mitos, mas por lendas, contos, crenças, etc. A diferença entre lenda e mito é que a primeira se distancia pela função e confronto. A lenda é um episodio heróico ou sentimental com elemento maravilhosos ou sobre-humano, transmitido e conservado na tradição oral popular localizável no espaço e no tempo.3 As lendas não narram fatos fundantes ou originais como faz o mito. Lendas narram fatos do cotidiano da história quando os elementos do mundo já estavam constituídos.

Na grande maioria dos mitos amazônicos existe um fundo comum que trata do desequilíbrio das relações de poder, e da necessidade de compensação. Como a natureza, tudo precisa conviver com seu oposto, em equilíbrio. Luz demais acarreta problemas e necessidade da noite e da sombra. O dia precisa da noite e vice-versa. A sombra ou a noite não contém somente o que é mau, o incontrolável e desconhecido, mas saindo do fundo do rio a noite pode conter elementos preciosos que compensa aquilo que está desequilibrado.

Os mitos querem trazer a irrupção de uma agressividade sadia. Precisamos resgatar a parte aguerrida de nossos ancestrais índios, que além de dividirem terras brasileiras com brancos e negros, moram também em nós, no fundo de nossa estrutura antropológica. O resgate mitológico deve nos levar à luta pelos direitos em todos os âmbitos da realidade amazônica. É necessário começarmos a aprender e vivenciar a força, a vitalidade e a agressividade sadia das culturas indígenas e afro-brasileiras, que estão em todos nós. A mitologia Amazônica denuncia e recorre às nossas origens, se encontra com as necessidades históricas amazônicas e exige realização. Que a mitologia nos ilumine e que a nos revitalize no equilíbrio nas relações de poder com a natureza e com nossos semelhantes.

Mitos indígena

Seus mitos expressam a idéia fundamental de que o universo deve estar em equilíbrio, uma vez que essa é a razão da existência, conviver o universo em harmonia. As partes mais importantes da natureza são habitadas por seres sobrenaturais. Estes aspectos levam à luta pela sobrevivência, na conservação de suas culturas, no sustento e na resistência a todas as formas destruidoras que lhes são infligidas, desde o extermínio dos séculos passados, até a manipulação de seu saber e até mesmo de suas vidas, pelas sociedades pós-modernas.

Mitos ribeirinhos

Os mitos ribeirinhos estão diretamente ligados a situações que envolvem a relação do ser humano com a natureza. O mito se funda sobre uma experiência concreta que transforma o agir, o modo de pensar e sua postura frente a vida. Os fatos relatados são verdades vividas pelos narradores. Entre os muitos Seres das florestas e das águas, são registrados os curupiras, descritos à semelhança de caboclinhos que habitam a mata; os anhangás, “visagens”, na linguagem regional, que ora surgem sob a forma de um pássaro, ora como veados de olhos de fogo, ou como simples aparição sem aspecto definido; a cobra grande, que aparece comumente como uma sucuriju de grande porte, mas que também pode aparecer sob a forma de um “navio encantado”; as matintas-perera, outra “visagem” que se identifica por um pássaro negro, seu xerimbabo (bicho de estimação); os botos, que acredita sejam encantados e possam se transformar em seres humanos. Embora tenham fama de sedutores de mulheres,

3 CASCUDO, L.C. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Melhoramentos, 1980, p. 434.

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os botos são particularmente temidos por seu poder maligno; os companheiros de fundo, “encantados” que habitam o fundo dos rios e igarapés; e as mães de bicho, entidades protetoras da vida animal e vegetal.

Existem também as visagens. Em geral, estão associados a determinados lugares da natureza: rio, igarapé, ou um trecho da mata. A malineza resulta do fato de que as visagens dominam ou controlam uma área do ambiente natural, a mata e os rios. Essas entidades protegem os animais da floresta e das águas e também os seres humanos, sendo conhecidos pelas suas proezas e aparições.

Pressupostos para uma espiritualidade ecológica inculturada na Amazônia

Resgate de elementos integradores das relações perdidas com a terra, como o Eu, com os outros. Resgate da relação com o mundo natural.

Para os amazônidas Deus é miscigenado (indígena, ribeirinho, caboclo, negro)

Uma espiritualidade como resgate da cultura e da alma amazônica. Valorizar nossa maneira de ser. Os e as amazônidas são de poucas palavras,

silenciosos, tímidos, difíceis de dizer não. A estrutura antropológica segue o ritmo do rio O tempo não é cronos é lunar (kairos), é cíclico, assim como os rituais da

vida. Busca de harmonia e integração com a natureza/terra/ água Valorizar a festa: celebrar o sagrado da vida Valorização de lugares sagrados da natureza (celebrar ao ar livre, junto a

rios, florestas, pedras montanhas) Valorização e resgate dos sábios: pajés, xamãs, benzedeiras, avós, idosos,

pais, mães e padrinhos e madrinhas Aprender a fazer e receber um benzimento: abençoar todos os aspectos da

vida. Deus é pai e mãe, homem e mulher, masculino e feminino. Valorizar a cozinha e a medicina tradicional, natural, holística. A contemplação integrada na natureza, aberta, cotidiana; Harmonizar o ser com a natureza, corpo com a terra, com os ciclos da vida Afirmar a própria identidade para dialogar com o Outro Afirmar a não-violência como um modo de ser amazônida Viver resolver os conflitos na conversa dos terreiros, nos apadrinhamentos,

na interdependência solidária Não confundir a lezeira cabôca como passividade, mas como forma de

resistência Valorizar e viver no corpo. Não acumular, viver do suficiente A experiência de Deus engloba toda a vida Natureza como reino dos encantes, natureza antropomorfizada Atravessar e navegar nos rios da Amazônia como paradigma de vida Fazer memória de nossos antepassados indígenas, mártires da fé e

8. Espiritualidade amazônica

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1. Uma imersão na cosmologia, tradição espiritual da criação e libertação dos pobres.

2. O contexto espiritual e científico do qual se pode adquirir uma visão marcante da Amazônia

3. Os princípios da espiritualidade da criação e da libertação.4. Aprendizado da arte de meditar, de dançar, de tecer, de fazer comida.

9. Tarefas, Práticas, Ensaios

1. Releitura (dogmas, doutrinas) da Bíblia na ótica amazônica;2. Novas práticas litúrgicas aproveitando elementos culturais;3. Recuperar a dimensão do sagrado na natureza 4. Religiosidade popular da libertação (indígena, cabocla e negra)5. Outros ritos além do ritual Romano6. Reconstruir os mitos e vivenciá-los

MEDITAÇÃO –DINÂMICA

A TEIA 

     1. Parte – Exercício de relaxamento

      - Relaxe o corpo. Tome consciência de sua respiração, siga sua respiração, sem forçá-la... Se você encontrar alguma tensão em seu corpo enquanto você respira, dirija sua atenção para esta parte enquanto você, expira... colocando para fora esse mal estar... Permita de se sentir pesado, firmemente, solidamente no solo ou onde você está se apoiando...

      - Sinta o ar sendo absorvido pelo seu pulmão, preenchendo, inflando, expandindo-os... dentro... fora. Permita a respiração acontecer, permita que ar – doador de vida possa fluir para dentro de seu corpo, para alimenta-lo e sustenta-lo... O ar que você respira é partilhado pelas pessoas nesta sala. O sopro em seus pulmões neste momento está também no pulmão de seus vizinhos a alguns minutos atrás. Ontem este mesmo ar poderia ter sido respirado na semana passada por um refugiado no Sudão, por uma criança desnutrida no nordeste, por um soldado no Paquistão... Este ar sustenta a vida em cada um de nós, o dom da vida que nenhum de nós comprou...

      - Visualize o ar entrando em seus pulmões... imagine cada molécula de oxigênio penetrando em sua corrente sanguínea... veja como ela neste processo explode uma nova vida e energia. Procure imaginar milhares dessas pequenas explosões de energia tomando lugar em seu pulmão a cada segundo. Veja-as como centelhas de luzes, cada uma delas que se tornam um fluxo de luz. Veja-as como filamentos ou linhas de luz circulando na corrente sanguínea, trazendo para você o dom da vida a cada momento...

      2. Parte – partilhando energia

      - Veja agora este fluxo de energia se expandindo para além de seu corpo, formando uma áurea ao redor de você. Imagine esta áurea de energia de vida composta de milhões de filamentos de luz se espalhando para fora de você e se entrelaçando com a áurea daqueles que estão ao redor de você. Juntos, se forma uma delicada teia de luz, de

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energia. Através dessa teia você está ligado com aqueles que estão ao seu redor... com as pessoas com as quais você trabalha... você se liga a mulheres e a homens, a crianças de todas as partes do mundo. Esta teia de filamentos de luz, carregam e transmitem amor e cuidado... carregam e transmitem também dor e sofrimento... esperança e alegria. Abra-se para essas energias que estão fluindo, circulando nesta teia de vida.

Esta teia na qual vivemos além da energia espiritual, ela também é feita de material da terra – impulsos elétricos, ondas de luz, gravidade... todas as interações de átomos e moléculas, e as energias que cada ser vivo emana. Esta teia liga você aos animais, pois eles também são feitos do mesmo material que constituem os humanos, respiram o mesmo ar. Nossas vida muitas vezes é alimentada pela sua carne... fazemos de suas carnes a nossa própria.

A teia da vida nos enlaça com as plantas também. O pão que comemos pela manhã foi feito de trigo que se alimentou da terra; o trigo cresceu na terra, foi colhido, feito grão e se tornou massa para se tornar pão. As plantas retiram da natureza os nutrientes e as energias do solo que são emitidos pelo sol e captado pela terra. E quando chegar o momento nós também retornaremos o nosso corpo a terra, para se tornar alimentos para outros seres vivos que em troca também darão sua vida para que a vida continue. Nós viemos do útero da vida... e nós retornaremos nossos corpos para ser remodelados neste útero e passado para outros.

A teia da vida existiu antes de você; nós nascemos nela. Esta se estendeu através do tempo, ligando você aos seus pais, avós e outros parentes... Essa ligação nos leva através de milhões de anos, voltando as primeiras comunidades de homens e mulheres... e aos mais remotos ancestrais que moravam nas florestas e savanas. E além delas as criaturas que primeiramente se arrastaram para fora dos mares... as primeiras formas de vida... a teia da vida nos liga com irmãos e irmãs que evoluíram para diferentes formas: pássaros no ar, os peixes na profundidades das águas, os insetos que vivem em diferentes ambientes da terra...

Neste momento procure experimentar as ameaças das armas nucleares que se escondem nos mares ou que giram na atmosfera da terra... as ameaças das queimadas, do agronegócio, da destruição de biomas e populações nativas... as ameaças das grandes cidades que desumanizam e destroem a natureza e poluem os ares... Deixe que a dor, o perigo seja uma realidade para você para que não se torne um bloqueio ou uma ferida interna... Se está fluir, talvez ela toque nosso coração e produza em nós amor e poder criativo que vai se espalhar pela teia... Talvez a dor e o perigo possa ser transformado, pois a terra tem sua própria maneira de se regenerar, se recriar, de ser fonte de vida e esperança... Nós acreditamos que um poder providencial está presente no mundo e além do mundo, um poder transformador que transforma morte em vida, que violência e agressão em prática da paz, reconciliação e misericórdia.

Nós que somos parte dessa teia neste momento crítico, somos chamados a sermos agentes de cura e esperança... agentes de providencia que faz nascer a esperança onde tudo parece escuridão.. Abrimos nosso coração e nossa vida para todas nossas irmãs e irmãos que partilham conosco da teia... queremos captar as lágrimas e seus sorrisos de toda a humanidade... o movimento nos mares dos grandes peixes... a força das tempestades... as energias das profundezas da terra... os movimentos da crosta terrestre e dos continentes... a energia molecular e quântica em nós e na natureza...

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Abrir-nos para a providencia amorosa que trabalha em todas essas realidades do mundo e da vida.

Este é um tempo de escuridão, de duvidas, de impotência diante dos grandes desafios... tempo de medo do futuro... Mas é também um tempo de esperança... um tempo para enfrentar a escuridão e acreditar no poder e na força da vida... Enfrentamos juntos, não estamos sozinhos... somos parte de uma teia e de dentro dela alimentamos nossa força... Nos rendemos a ela, vamos deixar que ela cuide de nós, nos alimente e sustente e nos conduza ao futuro.

Ainda sentido essa ligação energética com os outros e com a teia do mundo, retornamos a este espaço... nos alongamos e quando nos sentirmos prontos, calmamente vamos abrindo nossos olhos.