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História de Israel SUMÁRIO Introdução 1. Noções de Geografia do Antigo Oriente Médio 1.1. O Crescente Fértil 1.2. A Mesopotâmia 1.3. A Palestina e o Egito de 3000 a 1700 a.C. 1.4. A Síria e a Fenícia 1.5. A Palestina 1.5.1. A Transjordânia 1.5.2. O Vale do Jordão 1.5.3. A Região Central da Palestina 1.5.4. A Costa Mediterrânea 2. As Origens de Israel 2.1. A Teoria da Conquista 2.2. A Teoria da Instalação Pacífica 2.3. A Teoria da Revolta 2.4. A Teoria da Evolução Pacífica e Gradual 2.4.1. Retirada Pacífica 2.4.2. Nomadismo Interno 2.4.3. Transição ou Transformação Pacífica 2.4.4. Amálgama Pacífico 3. Os Governos de Saul, Davi e Salomão

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História de Israel

SUMÁRIO

Introdução

1. Noções de Geografia do Antigo Oriente Médio

1.1. O Crescente Fértil

1.2. A Mesopotâmia

1.3. A Palestina e o Egito de 3000 a 1700 a.C.

1.4. A Síria e a Fenícia

1.5. A Palestina

1.5.1. A Transjordânia

1.5.2. O Vale do Jordão

1.5.3. A Região Central da Palestina

1.5.4. A Costa Mediterrânea

2. As Origens de Israel

2.1. A Teoria da Conquista

2.2. A Teoria da Instalação Pacífica

2.3. A Teoria da Revolta

2.4. A Teoria da Evolução Pacífica e Gradual

2.4.1. Retirada Pacífica

2.4.2. Nomadismo Interno

2.4.3. Transição ou Transformação Pacífica

2.4.4. Amálgama Pacífico

3. Os Governos de Saul, Davi e Salomão

Page 2: Historia de Israel

3.1. Ascensão e Queda de Saul

3.2. Davi e a Criação do Estado

3.3. Salomão e a Consolidação do Estado

3.4. A Ruptura do Consenso

3.5. As Fontes: Seu Peso, Seu Uso

3.6. Dois Exemplos de Fontes Primárias: as Estelas de Tel Dan e de Merneptah

3.7. A Questão Teórica: Como Nasce Um Estado Antigo?

3.8. As Soluções de Lemche e de Finkelstein & Silberman

4. O Reino de Israel

4.1. A Rebelião Explode e Divide Israel

4.2. Israel de Jeroboão I a Jeroboão II

4.3. A Assíria Vem aí: para Israel é o Fim

5. O Reino de Judá

5.1. Os Reis de Judá

5.2. A Reforma de Ezequias e a Invasão de Senaquerib

5.3. A Reforma de Josias e o Deuteronômio

5.4. Os Últimos Dias de Judá

5.5. Por que Judá Caiu?

6. A Época Persa e as Conquistas de Alexandre

6.1. A Situação da Grécia e a Política Macedônia

6.2. As Conquistas de Alexandre Magno (356-323 a.C.)

6.3. Quem é Alexandre Magno?

6.4. A Anexação da Judéia por Alexandre

6.5. A Situação da Judéia no Momento da Anexação

7. Os Ptolomeus Governam a Palestina

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A História de Israel no Debate Atual

Este artigo foi publicado, de forma mais resumida, em Cadernos de Teologia n. 9 (maio de 2001), Campinas: FTCR da PUC-Campinas, p. 42-64. Acréscimos ao texto são feitos sempre que surgem novidades.

ABSTRACTThis article surveys some perspectives in the current research of the "History of Israel", the challenges that this poses, and proposes some trajectories for those researching this subject. The scholarly consensus that existed up until the middle seventies of the twentieth century was shattered. The rationalistic paraphrase of the biblical text that constituted the core of the handbooks of the "History of Israel" is no longer acceptable to most scholars. An increasing number of scholars question the use of the biblical text as a source for the “History of Israel”. The implementation of modern literary criticism on the biblical text requires a moving away from issues of historicity, and this allows the "biblical" stories to be evaluated primarily from a literary perspective. The writing of a "History of Israel" using only the archaeological context and non-biblical writings is a controversial undertaking, however, an increasing number of scholars are attempting to do this. It appears a revisionist “History of Syria/Palestine" will compete

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against the traditional "History of Israel" as scholars from both sides continue their research.

Até meados da década de 70 do século XX, havia um razoável consenso na História de Israel. Entre outras coisas, o consenso dizia que a Bíblia Hebraica era guia confiável para a reconstrução da história do antigo Israel. Dos Patriarcas a Esdras, tudo era histórico. Se algum dado arqueológico não combinava com o texto bíblico, arranjava-se uma interpretação diferente que o acomodasse ao testemunho dos textos, como no caso da destruição das (inexistentes) muralhas de Jericó pelo grupo de Josué[1].

Exemplos?

Os patriarcas eram personagens históricos, o que podia ser comprovado pelos textos mesopotâmicos de Nuzi, do século XIV a.C., em seus muitos paralelos, de estruturas sócio-econômicas a tradições legais, com Gn 12-35. E a migração dos amoritas, que ocuparam a Mesopotâmia e a Palestina no final do terceiro milênio a.C., criava as condições ideais para a entrada dos patriarcas na região da Palestina e explicava seus nomes, sua língua e sua religião.

José era personagem historicamente possível, pois havia grande quantidade de evidências egípcias que testemunhava os costumes contados em Gn 37-50. Semitas poderiam ter chegado a altos postos de governo no Egito, incluindo o de grão-vizir, especialmente durante o governo dos invasores asiáticos hicsos.

A escravidão dos hebreus no Egito e o êxodo não podiam ser questionados, pois textos egípcios testemunham que Ramsés II utilizou hapirus (= hebreus) na construção de fortalezas no delta do Nilo em regime de trabalho forçado. A Estela de Merneptah, faraó sucessor de Ramsés II, comprova a existência de israelitas na terra de Canaã na segunda metade do século XIII a.C., o que nos permitia fixar a data do êxodo aí por volta de 1250 a.C.

A conquista da Palestina pelas 12 tribos israelitas sob o comando de Josué, como narrada no livro que leva o seu nome, contava com testemunhos arqueológicos respeitáveis, como a destruição de importantes cidades cananéias na segunda metade do século XIII a.C., embora muitos autores preferissem explicar a entrada na terra de Canaã de outro modo, como pacífica e progressiva infiltração de seminômades pastores a partir da Transjordânia.

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A construção e a consolidação do poderoso império davídico-salomônico eram consideradas como pontos fixos e imutáveis na historiografia israelita, constituindo marco seguro para qualquer manual de História de Israel ou de Introdução à Bíblia quanto às datas dos acontecimentos e às realizações da sociedade israelita.

Os reinos separados de Israel e Judá, após a morte de Salomão, eram bem testemunhados pelos textos assírios e babilônicos, e até pela Estela de Mesha, rei do vizinho país de Moab, sendo tudo, por sua vez, muito bem detalhado nos livros dos Reis, parte da confiável Obra Histórica Deuteronomista.

O exílio babilônico e a volta e reconstrução de Jerusalém durante a época persa, marcando o nascimento do judaísmo baseado no Templo e na Lei que passa a ser lida sistematicamente nas sinagogas, constituíam matéria real e sem maiores problemas, graças à confiabilidade dos textos bíblicos que detalhavam os acontecimentos desta época.

O melhor livro para detalhada exposição e defesa deste consenso é o de John Bright, História de Israel, São Paulo, Paulus, 1978, traduzido da segunda edição inglesa de 1972. Bright pertence à escola americana de historiografia de W. F. Albright e esta sua ‘História de Israel’ foi o manual mais utilizado por nós nos anos 70 e 80 do século passado.

John Bright e sua História de Israel

John Bright lançou uma 3a edição de sua História de Israel em 1981. Poucas mudanças foram feitas. O autor atualizou o livro quanto a algumas descobertas arqueológicas e mostrou-se mais prudente nas afirmações sobre a historicidade de certos acontecimentos e personagens bíblicos. Mas manteve, basicamente, as posições da 2a

edição. Diz o autor, no Prefácio da 3a edição, que, em muitos pontos onde anteriormente havia certo consenso, hoje há um verdadeiro caos de opiniões conflitantes. E cita, como exemplo, a questão das origens de Israel e a data e a historicidade dos patriarcas. Cf. BRIGHT, J., A History of Israel, Philadelphia, Westminster Press, 1981. Uma 4a edição do livro foi lançada, após a sua morte em 1995, com uma Introdução e um Apêndice de William P. Brown, no ano 2000, pela Westminster John Knox Press. A tradução brasileira desta 4a edição foi publicada pela Paulus no final de 2003, como a 7a edição, revista e ampliada a partir da 4a edição original. Bright foi, até a sua morte, Professor de Hebraico e de Interpretação do Antigo Testamento no Union Theological Seminary, Richmond, Virginia, USA. Uma resenha da

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'História de Israel' de Bright, focalizando especialmente a 4a edição, feita por Ludovico Garmus, pode ser lida na revista Estudos Bíblicos n. 69, Petrópolis, Vozes, 2001, pp. 90-93.

É preciso lembrar, porém, que a historiografia alemã, desde W. de Wette, em 1806-7, passando por Julius Wellhausen, em 1894, até Martin Noth, em 1950, não participava integralmente deste consenso, negando, por exemplo, a historicidade dos patriarcas.

Mas, a ‘História de Israel’ está mudando. O consenso foi rompido. A paráfrase racionalista do texto bíblico que constituía a base dos manuais de ‘História de Israel’ não é mais aceita. A seqüência

patriarcas, José do Egito, escravidão, êxodo, conquista da terra, confederação tribal, império davídico-salomônico, divisão entre norte e

sul, exílio e volta para a terra está despedaçada.

O uso dos textos bíblicos como fonte para a ‘História de Israel’ é questionado por muitos. A arqueologia ampliou suas perspectivas e falar de ‘arqueologia bíblica’ hoje é proibido: existe uma ‘arqueologia da Palestina’, ou uma ‘arqueologia da Síria/Palestina’ ou mesmo uma ‘arqueologia do Levante’.

O uso de métodos literários sofisticados para explicar os textos bíblicos, afasta-nos cada vez mais do gênero histórico, e as ‘estórias bíblicas’ são abordadas com outros olhares. A ‘tradição’ herdada dos antepassados e transmitida oralmente até à época da escrita dos textos freqüentemente não consegue provar sua existência.

A construção de uma ‘História de Israel’ feita somente a partir da arqueologia e dos testemunhos escritos extrabíblicos é uma proposta cada vez mais tentadora. Uma ‘História de Israel’, que dispense o pressuposto teológico de Israel como ‘povo escolhido’ ou ‘povo de Deus’ que sempre a sustentou. Uma ‘História de Israel e dos Povos Vizinhos’, melhor, uma ‘História da Síria/Palestina’ ou uma ‘História do Levante’ parece ser o programa para os próximos anos.

E há pesquisadores de renome na área, como Rolf Rendtorff, exegeta alemão, professor em Heidelberg, que já em 1993 afirmava em artigo na revista Biblical Interpretation 1, pp. 34-53, que os problemas da interpretação do Pentateuco estão intimamente ligados aos problemas mais amplos da reconstrução da história de Israel e da história de sua religião.

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Este artigo quer traçar um panorama destas mudanças pelas quais vem passando a ‘História de Israel’ nos últimos vinte e tantos anos, apontar as dificuldades que a crise vem criando e propor algumas pistas de leitura para os interessados no assunto.

1. Patriarcas? Que Patriarcas?Em 1967, o norte-americano Thomas L. Thompson começou sua tese de doutorado na Universidade de Tübingen, na Alemanha. O tema: as narrativas patriarcais. Sua idéia fundamental: se algumas das narrativas sobre os patriarcas hebreus estavam se referindo historicamente ao segundo milênio a.C., como quase todos os arqueólogos e historiadores acreditavam naquela época, então Thompson poderia distinguir nelas as mais antigas histórias bíblicas da tradição posterior mais ampliada[2].

Quando Thompson começou seu trabalho, ele estava tão convencido da historicidade das narrativas sobre os patriarcas no Gênesis, que aceitou, sem questionar, os paralelos feitos entre os costumes patriarcais e os contratos familiares encontrados na cidade de Nuzi, no norte da Mesopotâmia, e datados da época do Bronze Recente (ca. 1500-1200 a.C.)[3].

Dois anos mais tarde, porém, em 1969, Thompson percebeu que os costumes familiares de Nuzi e as leis sobre propriedades não eram exclusivos nem de Nuzi, nem do segundo milênio, mas, mais provavelmente, refletiam práticas típicas do primeiro milênio a.C. Isto quebrava o paralelismo feito pelos autores entre Nuzi e o mundo patriarcal e tirava a garantia de que os costumes patriarcais refletiam práticas do segundo milênio.

Nuzi e os Patriarcas

Um bom exemplo desse paralelismo pode ser lido no comentário de SPEISER, E. A., Genesis, Garden City, New York, Doubleday, 1964, na clássica coleção The Anchor Bible, no qual o autor discute cerca de 20 coincidências entre os costumes patriarcais e os costumes de Nuzi, como os casos da esposa-irmã Sara (Gn 12,10-20 e paralelos), a adoção de um estrangeiro, Eliezer, como herdeiro (Gn 15,2), a mãe de aluguel como Agar (Gn 16,1-6). Estes e outros exemplos podem ser mais facilmente vistos em VOGELS, W., Abraão e sua Lenda. Gênesis 12,1-25,11, São Paulo, Loyola, 2000, pp. 38-45.

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Além do mais, examinando a hipótese amorita, segundo a qual teria havido grande migração de nômades vindos das fronteiras do deserto siro-arábico para a Mesopotâmia e para a Síria-Palestina no final do terceiro milênio, Thompson percebeu que não havia prova alguma para tal pressuposto, pois o que se descobriu nos últimos anos é que os amoritas são sedentários do norte da Mesopotâmia, vivendo da agricultura e da criação de gado. Isto é testemunhado pelas centenas de povoados espalhados do Eufrates até os vales dos rios Khabur e Balikh e datados pelos arqueólogos como existentes desde o Calcolítico. O crescimento populacional dos amoritas deve ter provocado a ampliação de seus territórios e a ocupação de várias cidades da região. Além do que, muitas das mudanças ocorridas em todo o Antigo Oriente Médio que antes eram atribuídas a invasões mal documentadas de povos, podem ser explicadas, hoje, mais cientificamente, pelas mudanças climáticas na região, sujeita a períodos de secas prolongadas e devastadoras.

Thompson passou, então, a defender que as narrativas patriarcais estavam refletindo muito mais o primeiro do que o segundo milênio, e a datação tradicional dos patriarcas e sua historicidade caíram por terra.

O resultado foi academicamente desastroso. Thompson, que terminou a pesquisa em 1971, não pôde defender sua tese na Europa nem publicar seu livro nos Estados Unidos. O livro só foi publicado em 1974 e Thompson conseguiu seu PhD na Temple University, Philadelphia, Estados Unidos, em 1976[4].

John Van Seters, de quem falaremos mais detalhadamente no próximo item a propósito do Javista, pesquisando a historicidade dos patriarcas, independente de Thomas L. Thompson, chegou a conclusões semelhantes, não atribuindo qualquer valor histórico às estórias sobre Abraão.

Em 1987 Thomas L. Thompson começou a trabalhar a questão das origens de Israel, retomando a argumentação publicada em um artigo de 1978, sob o título de “O Background dos Patriarcas”, no Journal for the Study of the Old Testament, da editora Sheffield, Reino Unido. Neste artigo, Thompson localizava as origens de um Israel histórico na região montanhosa ao norte de Jerusalém durante o século IX a.C. Isto implicava a exclusão de qualquer unidade política de Israel que abrangesse toda a Palestina, ou seja, não podia ter existido uma ‘Monarquia Unida’ sob Saul, Davi e Salomão em Jerusalém, no século X a.C.

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O artigo de T. L. Thompson foi relançado em livro: The Background of the Patriarchs: A Reply to William Dever and Malcolm Clark, em ROGERSON, J. W., The Pentateuch. A Sheffield Reader, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1996, pp. 33-74.

O estudo completo resultou no livro Early History of the Israelite People from the Written and Archaeological Sources [Antiga História do Povo Israelita a partir de Fontes Escritas e Arqueológicas], Leiden, Brill, 1992 [19942]. Diz Thompson que a reação a este livro foi pior do que à tese sobre os patriarcas, levando ao afastamento do autor da Marquette University, nos Estados Unidos, onde trabalhava.

Mas, em 1993, Thompson foi convidado para trabalhar no Departamento de Estudos Bíblicos da Universidade de Copenhague, onde até hoje se encontra, e onde encontrou um grupo com idéias avançadas sobre a ‘História de Israel’, os hoje chamados ‘minimalistas’.

2. Van Seters Reinventa o JavistaAinda em 1964, o canadense John Van Seters aceita o desafio de um seu professor e começa a revisão da ‘Hipótese Documentária’ do Pentateuco, examinando as tradições sobre Abraão.

A ‘Hipótese Documentária’ afirmava, desde o século XIX, que o Pentateuco era composto pelas fontes JEDP – Javista, Eloísta, Deuteronômio e Sacerdotal, elaboradas desde o século X a.C. na corte davídico-salomônica até o século V a.C., com Esdras, na Jerusalém pós-exílica.

F. V. Winnet, professor de Van Seters, em conferência feita em 1964, levantou uma série de dúvidas sobre os fundamentos da Hipótese Documentária. Winnet não aceitava a fonte E como um documento independente. Quando muito, admitia o pesquisador, ela poderia ser uma revisão de mais antiga tradição patriarcal e não poderia ser encontrada no Êxodo e Números. Isto porque o desenvolvimento literário do Gênesis teria ocorrido de modo independente de Êxodo e Números até o estágio final da composição do Pentateuco, quando então foram organizados e combinados pelo Sacerdotal (P). Assim, duas diferentes fontes deveriam ser vistas dentro do material J do Gênesis: uma mais antiga e outra da época do exílio. Com um detalhe: estas fontes não seriam documentos independentes, mas complementos de outras mais antigas. O mesmo deveria ser dito do P.

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Embora a proposta de Winnet não tenha causado repercussão, Van Seters, examinando as tradições sobre Abraão, como dissemos, percebeu que episódios paralelos – como a história de Sara “irmã” de Abraão em Gn 12,10-20;20,1-18;26,1-11 – não são documentos independentes agrupados por redatores, mas sua relação é de complementação: Gn 12,1-20 corresponde ao J mais antigo de Winnet, Gn 20, 1-18 ao complemento E e Gn 26,1-11 ao J mais recente da proposta do professor.

Van Seters concluiu também que o material atribuído ao J mais antigo era muito pequeno, que o E consistia de uma única estória e que todo o material não-P pertencia ao javista mais recente.

Percebendo igualmente a forte afinidade do J com o Dêutero-Isaías, e também que a forma da promessa da terra no J era um desenvolvimento posterior daquela encontrada no Deuteronômio e na tradição deuteronomista, Van Seters concluiu que o J deveria ser visto como um autor pós-D, e que a ‘Hipótese Documentária’ deveria ser totalmente revista. Van Seters publicou sua pesquisa em 1975.

Estas conclusões podem ser lidas em VAN SETERS, J., Abraham in History and Tradition, New Haven, Yale University Press, 1975. E também em VAN SETERS, J., The Pentateuch. A Social-Science Commentary, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1999, pp. 59-60.

Em 1976 e em 1977 apareceram os livros de Hans Heinrich Schmid e de Rolf Rendtorff sobre o mesmo assunto. A crise do Pentateuco

explodiu, então, em plena luz do dia e ninguém mais podia escapar da constatação de que a teoria clássica das fontes do Pentateuco, pelo

menos em sua forma mais rígida, era insustentável.

H. H. Schmid, em 1976, contestou a tese de G. Von Rad de um ‘Iluminismo Salomônico’, do qual não se percebia nenhum sinal, como o ambiente no qual o javista teria nascido. Examinando uma série de textos amplamente aceitos como javistas, Schmid procurou mostrar que o J dependia fortemente da tradição profética e estava muito próximo da escola deuteronômica. A conclusão a que se chegou foi de que o Pentateuco era o produto do movimento profético, assim como o era o livro do Deuteronômio, e de que o J deveria ser visto em estreita associação com a escola deuteronômica nos últimos anos da monarquia ou na época do exílio.

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Embora não tenha discutido a datação do J em relação ao D, seu discípulo Martin Rose, em 1981, chegou à conclusão de que o Deuteronômio e a Obra Histórica Deuteronomista eram anteriores ao javista.

Rolf Rendtorff, por sua vez, em 1977, retomando a idéia de M. Noth da formação do Pentateuco a partir de temas independentes, chega à conclusão de que tal independência não deve ser limitada ao período pré-literário, mas o alcança. Rendtorff não vê nenhuma conexão original entre Gênesis e Êxodo-Números, mas sim uma posterior costura deuteronomista ligando estas tradições. Donde se conclui que a idéia de fontes, tal como a J, deve ser abandonada, e que o desenvolvimento dos temas é que deve ser enfocado. Ele defende que cada unidade maior teve seu próprio processo de redação antes de ser colocada em contato com outras unidades. Seu aluno Ehard Blum, mais tarde, confirma as intuições de seu mestre estudando as tradições patriarcais de Gn 12-50.

O Questionamento do Consenso Wellhauseniano em Alemão

Os estudos destes pesquisadores resultaram nas seguintes obras: SCHMID, H. H., Der sogenannte Jahwist, Zürich, Theologischer Verlag, 1976; ROSE, M., Deuteronomist und Jahwist. Untersuchungen zu den Berührungspunkten beider Literaturwerke, Zürich, Theologischer Verlag, 1981; RENDTORFF, R., Das überlieferungsgeschichtliche Problem des Pentateuch, Berlin, Walter de Gruyter, 1977 (tradução inglesa: The Problem of the Process of Transmission in the Pentateuch, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1990); BLUM, E., Die Komposition der Vätergeschichte, Neukirchen-Vluyn, Neukirchener Verlag, 1984; Studien zur Komposition des Pentateuch, Berlin, Walter de Gruyter, 1990.

Uma exposição do pensamento destes autores pode ser vista, em português, em DE PURY, A. (org.), O Pentateuco em questão. As

origens e a composição dos cinco primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes, 2. ed., Petrópolis, Vozes, 2002, pp. 63-70.

Van Seters estendeu seu estudo sobre o J a todo o Tetrateuco e defendeu, em livros publicados em 1992 e 1994, que o Javista compõe uma obra unificada que vai da criação do mundo até a morte de Moisés. O J faz o trabalho de um historiador - semelhante ao trabalho do historiador grego Heródoto - no qual ele se baseia em fontes orais e escritas, dando-lhe, porém um significado teológico próprio.

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O objetivo da obra do J é o de corrigir o nacionalismo e o ritualismo da Obra Histórica Deuteronomista, da qual ela é uma espécie de introdução. Por isso, o Javista é posterior ao Deuteronômio e à Obra Histórica Deuteronomista (Deuteronômio, Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis), sendo contemporâneo do Dêutero-Isaías e tendo afinidades com Jeremias e com Ezequiel. Mas é anterior ao Sacerdotal (P), que, por sua vez, não é uma obra independente, mas uma série de suplementos pós-exílicos ao D+J. O Eloísta (E) não se sustenta como documento independente e desaparece.

Van Seters conclui: “Deste modo, eu procuro resolver o problema existente entre os argumentos de Noth a favor de um Tetrateuco separado do D/OHDtr e a insistência de Von Rad em um Hexateuco, com Josué como o objetivo das promessas patriarcais. Já que o J era posterior ao D/OHDtr, ele ligou as duas grandes obras e acrescentou sua própria conclusão final ao Hexateuco através do segundo discurso de Josué em Js 24" [5].

Só para entendermos por onde pode caminhar a discussão atual, cito aqui a proposta do arqueólogo Israel Finkelstein e do historiador Neil Asher Silberman, no livro The Bible Unearthed. Archaeology's New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts, New York, The Free Press, 2001, sustentando que a arqueologia hoje dá suporte à hipótese de que tanto o Pentateuco quanto a Obra Histórica Deuteronomista foram escritos no século sétimo a.C.

Os autores defendem que boa parte do Pentateuco é uma criação da monarquia da época de Josias, elaborada para defender a ideologia e as necessidades do reino de Judá. E que a Obra Histórica Deuteronomista foi igualmente compilada, em sua maior parte, no tempo do rei Josias, para fornecer suporte ideológico para sua reforma política e religiosa.

E a Crise do Pentateuco Continua...

GERTZ, J. C., SCHMID, K. & WITTE, M. (eds.), Abschied vom Jahwisten: Die Komposition des Hexateuch in der jüngsten Diskussion,

Berlin, Walter de Gruyter, 2002, XII + 345 pp.: esta obra mostra como a crise do Pentateuco continua e como um possível consenso parece

ainda distante. Contribuem, neste volume escrito em alemão e inglês, Jean Louis Ska, Albert de Pury, Joseph Blenkinsopp, Jan Christian

Gertz, Konrad Schmid, Erhard Blum, Hans-Christoph Schmitt, Thomas Dozeman, Uwe Becker, Markus Witte, Graeme Auld, William

Johnstone, Ernst Axel Knauf, Thomas Römer, Reinhard Gregor Kratz... Só gente do ramo, proveniente da Europa, Estados Unidos e

Page 13: Historia de Israel

Israel! E, como observa Robert Gnuse, em resenha do livro na CBQ 65/4, de outubro de 2003, p. 656, os autores concordam em rejeitar a fonte javista e sugerem que a coerência das narrativas do Pentateuco somente foi alcançada no pós-exílio com o D e o P. Para além disso, ninguém concorda com ninguém... Cada um constrói seu próprio

paradigma, cada um mais sugestivo do que o outro. E comenta Gnuse que os ensaios tipificam a natureza variada e caótica da pesquisa do

Pentateuco, no contexto do abandono da teoria das quatro fontes. Leia também artigo de 2006 de Rolf Rendtorff, onde o pesquisador se

pergunta: O que aconteceu com o Javista na atual pesquisa do Pentateuco? E responde: ele desapareceu e levou consigo a Hipótese

Documentária do Pentateuco. Cf. mais aqui.

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[1]. Estou me inspirando no artigo de RENDSBURG, Gary A., Down with History, Up with Reading: The Current State of Biblical Studies, em At the Cutting Edge of Jewish Studies, http://www.arts.mcgill.ca/programs/jewish/30yrs/rendsburg/index.html , no qual o autor lamenta e critica, em conferência pronunciada no Departamento de Estudos Judaicos da McGill University, Canadá, em maio de 1999, a ruptura do consenso que passo a descrever.

[2]. Cf. THOMPSON, T. L., The Mythic Past. Biblical Archaeology and the Myth of Israel, New York, Basic Books, 1999, p. XI.

[3]. Em Nuzi, habitada principalmente por hurritas, foram encontradas cerca de 3.500 tabuinhas cuneiformes, que cobrem a vida da comunidade e de cidades vizinhas ao longo de seis gerações. Especialmente significantes são as informações administrativas, sociais, econômicas e as descrições das práticas e estruturas jurídicas. É um material que ilustra brilhantemente a vida diária de uma comunidade da metade do segundo milênio a.C. Cf. FREEDMAN, D. N. (ed.), The Anchor Bible Dictionary on CD-ROM, New York, Doubleday & Logos Library System, 1992, 1997, verbete Nuzi.

[4]. O livro de Thomas L. Thompson: The Historicity of the Patriarchal Narratives: The Quest for the Historical Abraham, Berlin, Walter de Gruyter, 1974 e Harrisburg, Trinity Press International, 2002.

[5]. Cf. VAN SETERS, J., The Pentateuch. A Social-Science Commentary, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1999, pp. 61-62.

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1. Noções de Geografia do Antigo Oriente Médio1.1. O Crescente Fértil

Se partirmos do Golfo Pérsico e traçarmos uma meia-lua, passando pelas nascentes dos rios Tigre e Eufrates, colocando a outra ponta na foz do Nilo, no Egito, teremos uma região bastante fértil, onde se desenrolaram os acontecimentos narrados na Bíblia. É a chamada "meia-lua fértil" ou "Crescente Fértil", dentro do qual está também a Palestina.

Esta faixa de terra é regada por importantes rios, que condicionavam a vida do oriental antigo. Foram os rios que determinaram o estabelecimento da agricultura, da sedentarização e das rotas comerciais por onde passavam as caravanas que iam desde a Mesopotâmia até o Egito ou a Arábia.

A região é habitada pela raça branca, especialmente semitas e hamitas. No seu conjunto, a raça branca é constituída pelos:

semitas (acádios, amoritas, hebreus, árabes, cananeus, fenícios etc)

hamitas (que habitavam o Egito, a Abissínia e o Magrebe - Marrocos, Argélia e Tunísia atuais)

indo-europeus (eslavos, gregos, itálicos, celtas, iranianos etc)

fineses.

As línguas semíticas constituem um ramo da grande família das línguas afro-asiáticas, anteriormente chamada camito-semítica. A família afro-asiática compreende seis ramos: semítico, egípcio, berbere, cuxita, homótico e chádico.

Quer conhecer as línguas do Oriente Médio? Experimente aqui!

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A família das línguas semíticas é bem antiga, documentada desde a metade do terceiro milênio a.C. com o acádico e o eblaíta, até os dias atuais com o árabe, o amárico e o hebraico.

Nos três quadros a seguir pode-se ver um panorama simplificado das principais línguas semíticas[1].

Page 16: Historia de Israel

Algumas características das línguas semíticas:

A estrutura gramatical:

grande número de guturais muito especiais, mormente na vocalização

raízes ternárias

verbos com apenas dois tempos

dois gêneros

casos oblíquos, pronomes possessivos e objeto pronominal do verbo são anexados como sufixos

ausência de nomes e verbos compostos

pequeno número de partículas e predominância da coordenação sobre a subordinação.

O vocabulário semítico:

quase nenhum contato com o indo-europeu

semelhanças apenas em palavras onomatopaicas

Page 17: Historia de Israel

poucos empréstimos de um grupo lingüístico para o outro.

A escrita semítica:

consonantal

da direita para a esquerda

exceções: escritas da esquerda para a direita são o sabeu, o etíope e o cuneiforme.

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[1]. Cf. Freedman, D. N. (ed.), The Anchor Bible Dictionary, New York, Doubleday & Logos Research Systems, 1992, 1997, verbete Languages.

1.2. A Mesopotâmia

A planície situada nos vales dos rios Tigre e Eufrates é chamada comumente de Mesopotâmia, nome que vem do grego e significa (terra) entre rios, notadamente o Tigre e o Eufrates. A Bíblia chama a esta terra de paddan aram ou aram naharayim (Síria dos dois rios). A Mesopotâmia foi berço de civilizações antiqüíssimas e importantes, como os sumérios, os acádios, os assírios e os babilônios.

Clique na miniatura para ver o mapa da Mesopotâmia!

Os sumérios construíram a sua civilização na Baixa Mesopotâmia entre os anos de 2800 e 2370 a.C., mais ou menos. As escavações feitas em Uruk revelaram o uso da escrita cuneiforme (sinais em forma de cunha) desde o início do III milênio. Foram os sumérios os inventores da escrita.

O chefe da cidade suméria tem o título de En (= senhor), de conotação religiosa. Ele dirige o culto, nas cenas gravadas nos cilindros. As únicas construções oficiais são os templos: as cidades eram dirigidas por senhores eclesiásticos, auxiliados por "anciãos", que formavam uma assembléia.

Page 18: Historia de Israel

Visite a Sumerian Mythology FAQ!

O culto era celebrado para Inanna (a futura Ishtar), deusa da fecundidade e do amor, e para An, deus do céu. O templo era um centro econômico: possuía terras, onde cultivavam-se a cevada e o trigo. Também a horticultura, a vinha e a palmeira eram conhecidas. Usavam arados. Criavam principalmente carneiros e cabras e, mais raros, bois. Aparece o asno e o porco, assim como um carro de 4 rodas e o barco.

Há, no trabalho dos templos, marceneiros, ferreiros, ourives e ceramistas. O metal mais citado é o cobre. Também já conheciam a prata e o ouro. Havia mercadores e um comércio privado.

É impossível saber quando chegaram os sumérios à Baixa Mesopotâmia. Mas, pelo menos pode-se perceber que eles se misturaram às antigas culturas populares locais, talvez subários e populações de língua semítica. Parece que estavam na região na segunda metade do IV milênio a.C.

As cidades mais importantes eram: Adab, Zabalam, Umma, Bad-Tibira, Lagash, Akshak, Kish, Nippur, Shurupak, Uruk e Ur. Permaneceram sempre isoladas, na forma de cidades-estado. Cada uma possuía ao seu redor um cinturão de aldeias e eram separadas por pântanos e desertos, característicos da região.

Avançando um pouco mais no tempo e pesquisando outros lugares além de Uruk, os especialistas descobriram que as cidades organizavam-se ao redor dos templos e palácios reais.

No palácio vivia o rei, que era apenas um administrador do Estado, pertencente, na verdade, ao deus. Lugal (rei) era o seu título ou Ensi (chefe das cidades, governador, vice-rei), que indicava um poder menor do que o primeiro. O rei era sacerdote (mantinha os santuários), era juiz supremo, chefe militar e administrador dos canais de irrigação. Sua residência era mais uma fortaleza do que um palácio. Suas tropas chegavam a uma média de 600 a 700 homens, reforçados, na guerra, por camponeses. Além de uma infantaria armada de lanças, abrigada por grandes escudos e capacetes, havia carros de guerra com 4 rodas compactas, puxados por quadrigas de burros.

Não se sabe quando se formou a monarquia suméria; mas era uma monarquia militar, que entrou em luta com os chefes religiosos pelo controle interno das cidades e com as outras cidades em massacres periódicos. Contudo não permaneceram unificadas por muito tempo. Foi a função guerreira que fez surgir a realeza.

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Esta fase de guerras constantes, a partir de 2800 a.C., mais ou menos, início da idade clássica sumeriana, levou à construção de grandes muralhas nas cidades. Uruk tinha muralhas de 9,5 km de extensão, com mais de 900 torres semicirculares, cobrindo uma superfície de 5 km2.

Lagash e Umma foram duas das cidades que mais dominaram suas vizinhas. Já a cidade de Nippur parecia ser uma espécie de território neutro, centro de uma anfictionia ou confederação.

Os templos podiam ter várias formas, mas a disposição interna era a mesma em qualquer lugar. As estátuas não são muito bonitas, são toscas demais. Revelam-nos o vestuário da época: o mais usado era o Kaunakés, espécie de saia com longas franjas estilizadas, em forma de lingüetas.

Links para o estudo da Mesopotâmia? Confira estes!

Na literatura produziam-se textos sapienciais, hínicos, épicos e mitológicos. A religião tem predominância naturista: os cultos da fertilidade estavam em primeiro plano. No ritual exerciam funções importantes a grã-sacerdotisa e o rei, simbolizando o casamento sagrado entre um deus (Dumuzi?) e uma deusa (Inanna). Em meados do III milênio, porém, deu-se uma transposição da temática naturista para a cósmica (os deuses passam a figurar elementos do cosmos), embora a primeira permanecesse.

Uma classificação possível para as cosmogonias mesopotâmicas pode ser a seguinte, baseada na cronologia e no gênero:

TEXTOS SUMÉRIOS: Cosmogonias do 30 milênio até começo do 20 milênio

a.C.

TEXTOS ACÁDICOS: Cosmogonias da metade

do 20 milênio até o 10

milênio a.C.

Listas de deuses: 3 textos Cosmogonias menores:

1. SLT 122-124 1. Encantamentos: 3 textos

2. TCL XV 10 = lista De Genouillac 2. Textos Namburbi

3. Lista do deus An = Anum

3. Fundações ou refundações de Templos: 4 textos

4. Disputas entre criaturas:

• Disputa entre dois

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insetos

• Disputa entre o Tamarindo e a Palmeira

• Disputa entre o Boi e o Cavalo

5. Prólogos ao Grande Tratado Astrológico: 2 textos

6. VAT 17019

Textos narrativos de Nippur - motivo cósmico: 6

textosCosmogonias antológicas

1. Gilgamesh, Enkidu e o Inferno

Atrahasis

2. Casamento de An e Ki em meio à tempestade

Enuma elish

3. A disputa entre a Árvore e o Junco

4. NBC 11108

5. Hino ao Templo de Eridu

6. Louvor à Enxada

Textos narrativos de Eridu - motivo ctônico: 5 textos

A Teogonia Dunnu

1. Enki e a Ordem do Mundo

2. Enki e Ninhursag (ou Mito do Dilmun)

3. A disputa entre o Pássaro e o Peixe

4. Enki e Ninmah

5. História Suméria do Dilúvio

Page 21: Historia de Israel

Um único texto: KAR 4

* Abreviações:

SLT: CHIERA, E., Sumerian Lexical Texts from the Temple School of Nippur, Chicago, Chicago University Press, 1929.

TCL: Textes cunéiformes - Musée du Louvre, Paris.

De Genouillac: DE Genouillac, H., Grande Liste de noms divins sumériens, RA 20 (1923), pp. 86-106.

DE Genouillac, H., Liste alphabétique des dieux sumériens, RA 25 (1928), pp. 137-139.

NBC: Nies Babylonian Collection, Yale University.

VAT: Vorderasiatische Abteilung Tontafeln - Coleção de tabuinhas cuneiformes do Museu de Berlim.

KAR: EBELING, E. (ed.), Keilschrifttexte aus Assur religiösen Inhalts, Wissenschaftliche Veröffentlichnungen der deutschen Orientgesellschaft XXVIII, XXXIV, Leipzig, 1919,1923.

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Na luta entre os vários grupos observamos que a maioria deles ostenta nome amoritas, conseqüência de grandes migrações que foram uma das causas da queda de Ur. Esta entrada em cena dos amoritas (ou amorreus) assinala um fato fundamental na história da época.

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Em sumério são chamados de MAR.TU, em acádico AMURRU, significando "ocidentais" ou "povo do oeste", chamados também de semitas do oeste.

A caracterização dos amoritas é feita em uma epopéia da época que, descrevendo o mito do casamento do seu deus Amurru, diz: "É um homem que desenterra trufas [espécie de cogumelo comestível] no sopé das montanhas, que não sabe dobrar os joelhos para cultivar a terra, que come carne crua, que não tem casa durante a vida, e não é sepultado após a morte".

Durante muito tempo existiu certo consenso entre os especialistas, baseados em sátiras como esta dos sumérios, citada acima, e em uma visão romântica do nomadismo, típica do século XIX, de que os amoritas eram nômades que invadiram a Mesopotâmia e também a Palestina vindos do deserto siro-arábico.

Hoje, porém, não é mais possível sustentar esta posição, pois o que se descobriu nos últimos anos é que os amoritas são sedentários do norte da Mesopotâmia, vivendo da agricultura e da criação de gado. Isto é testemunhado pelas centenas de povoados espalhados do Eufrates até os vales dos rios Khabur e Balikh e datados pelos arqueólogos como existentes desde o Calcolítico. O crescimento populacional dos amoritas deve ter provocado a ampliação de seus territórios e a ocupação de várias cidades da região mesopotâmica. Além do que, muitas das mudanças ocorridas em todo o Antigo Oriente Médio que eram atribuídas a invasões mal documentadas de povos, podem ser explicadas, hoje, mais cientificamente, pelas mudanças climáticas na região, sujeita a períodos de secas prolongadas e devastadoras[3].

É assim que se chega à luta pela hegemonia na Baixa Mesopotâmia, onde a disputa era entre as dinastias de Isin e Larsa, enquanto na Alta Mesopotâmia a luta se dava entre Assur e Mari, também governadas por amoritas.

Mapa Cronológico do Antigo Oriente Médio II[4]Período

ArqueológicoBronze Médio

Bronze Recente

Ferro AntigoFerro

RecenteMesopotâmia do

NorteAssírio antigo

Assírio médio

Assírio médio

Assírio recente

Shamsi-Adad

Mitani

Cartas de

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Mari

Mesopotâmia do Sul

Isin Larsa Cassita Domínio assírio

Babilônico antigo

Babilônico médio

Babilônico médio

Síria/Palestina

Influências do Egito

Domínio egípcio

Israel Israel

HicsosCartas de

Tell el-Amarna

Povos do mar

Estados fenícios

Israelitas Estados

arameus e neo-hititas

Irã/Golfo Pérsico

Elamita antigo

Elamita médio

Medos

Godin IIITribos

iranianas

Invasões de Urartu

Dilmun Invasões assírias

Anatólia

Comércio da antiga Assíria

Hitita Urartu

Hitita antigo Frígios Frígios Frígios Lídios

Desenvolvimento cultural e técnico

Carros

Rodas com raios

Alfabeto primitivo

Camelos

Galinhas

Vidro

Cerâmica vidrada

Ferro fundido

Cavalaria

Algodão

Moedas

Latão

Aramaico

No final deste período a cidade que emergiu com maior poder foi Babilônia. Sob a III dinastia de Ur fora governada por um ensi e progressivamente seu poder cresceu, tornando-se um principado independente e controlando algumas cidades vizinhas.

Em 1792 Hammurabi (1792-1750 a.C.) subiu ao trono de Babilônia. Consolidou sua posição frente aos vizinhos da Baixa Mesopotâmia e em seguida estendeu seu domínio a Mari, aos elamitas, assírios e gútios. No 31º ano de seu reinado Hammurabi já era senhor da Suméria e de Akkad.

Page 24: Historia de Israel

As terras na Babilônia pertenciam ao Estado, aos templos e a particulares. As terras do Estado eram exploradas por arrendatários, colonos, homens de corvéia e funcionários do Estado que recebiam glebas em troca de serviços prestados.

O comércio era dominado pelos tamkarum, espécie de mercadores itinerantes e corretores, que agiam em nome do Estado, mas acumulando também fortunas particulares. O Estado intervinha em todos os setores da economia, determinando preços, contratos de trabalho, salários etc.

Na Mesopotâmia governada pelos babilônios da época de Hammurabi temos populações que, na sua maioria, falam línguas semíticas, como o assírio, o babilônio e os idiomas semitas do noroeste. No campo viviam agricultores sedentários e nômades. Nas cidades, pequenos artesãos e comerciantes. As regiões

intermediárias eram habitadas também pelos amoritas, além de haver grupos hurritas.

Hammurabi desenvolveu uma legislação que ficou famosa através de seu conhecido código. Através dele podemos conhecer a estrutura social da época. Três classes compunham a sociedade: os ricos (awilum), o povo (mushkenum) e os escravos. Além disso havia os prisioneiros de guerra (asiru) e os deportados, categorias estas sem nenhum estatuto jurídico e que viviam a verdadeira escravidão.

O casamento era monogâmico, mas existia o concubinato, especialmente quando a esposa era estéril. E interessante é observar que a mulher casada tinha certa autonomia, pois podia exercer diversas profissões, demandar em juízo e até assumir cargos públicos.

(Estas são) as sentenças de justiça, que Hammurabi, o rei forte, estabeleceu e que fez o país tomar um caminho seguro e uma direção boa.

Eu (sou) Hammurabi, o rei perfeito. Para com os cabeças-pretas, que Enlil me deu de presente e dos quais Marduk me deu o pastoreio, não fui negligente, nem deixei cair os braços; eu lhes procurei sempre lugares de paz, resolvi dificuldades graves, fiz-lhes aparecer a luz. Com a arma poderosa que Zababa e Ishtar me outorgaram, com a sabedoria que Ea me destinou, com a habilidade que Marduk me deu, aniquilei os

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inimigos em cima e embaixo, acabei com as lutas, promovi o bem-estar do país (...).

Para que o forte não oprima o fraco, para fazer justiça ao órfão e à viúva, para proclamar o direito do país em Babel, a cidade cuja cabeça An e Enlil levantaram, na Esagila, o templo cujos fundamentos são tão firmes como o céu e a terra, para proclamar as leis do país, para fazer direito aos oprimidos, escrevi minhas preciosas palavras em minha estela e coloquei-a diante de minha estátua de rei da justiça (...).

Que o homem oprimido, que está implicado em um processo, venha diante da minha estátua de rei da justiça, leia, atentamente, minha estela escrita e ouça minhas palavras preciosas. Que minha estela resolva sua questão, ele veja o seu direito, o seu coração se dilate! (...)

Que nos dias futuros, para sempre, um rei que surgir no país observe as palavras de justiça que escrevi em minha estela, que ele não mude a lei do país que eu promulguei, as sentenças do país que eu decidi, que ele não altere os meus estatutos!

(Trecho do Epílogo do Código de Hammurabi na tradução de EMANUEL BOUZON, O Código de Hammurabi. Introdução, tradução do texto cuneiforme e comentários, 4a edição totalmente revista e melhorada, Petrópolis, Vozes, 1987, pp. 222-223).

A literatura e as artes alcançaram grande esplendor na época de Hammurabi. Havia muitas escolas de escribas ao redor de palácios e templos. A cultura suméria foi organizada e preservada, a história começou a se desenvolver sob a forma de listas reais e a literatura religiosa cresceu enormemente.

1.3. A Palestina e o Egito de 3000 a 1700 a.C.Começaremos a falar da Palestina na Idade do Bronze Antigo (3200-2050 a.C.), quando houve um notável progresso na vida urbana, na indústria (sobretudo na cerâmica) e um aumento geral da população, provável resultado da sedentarização de grupos novos que se estabeleciam na região.

Muitas das cidades que conhecemos através da história bíblica já existiam, como Jericó, Meguido, Bet-Shan, Gezer, Ai, Laquish. No centro e no norte da Palestina é que se situa a maior parte destas cidades, sendo mais rarefeita a população no sul.

Page 26: Historia de Israel

A agricultura era a atividade básica. Cultivavam, nesta época, o trigo, a cevada, lentilhas, favas. Havia também a cultura da oliveira e da amendoeira. A vinha teria sido ali introduzida nesta época.

O comércio funcionava em direção à Síria do norte e do Egito. Os utensílios de pedra dominavam ainda, embora já se começasse a fabricação de armas de cobre.

Na Síria, a cidade de Biblos conheceu um progresso semelhante e a influência egípcia tornou-se marcante graças ao comércio marítimo.

Podemos chamar convencionalmente estes povos de cananeus. Sua língua era um semítico do noroeste, provavelmente a ascendente do cananeu falado nos tempos israelitas, do qual o hebraico bíblico é uma derivação.

Por volta de 2300 a.C. esta civilização sofreu forte decadência. Até a década de 70 do século XX se acreditava que povos teriam invadido, a partir do norte, seu território e as cidades teriam sido destruídas, algumas bem violentamente. O mesmo aconteceu na Síria. O curioso é que se observa que seus novos habitantes não reconstruíram imediatamente as cidades: ou acamparam sobre as ruínas, ou viveram em cavernas e quando reconstruíram as casas estas eram bastante modestas, e isto depois de alguns séculos de ocupação. Só por volta de 1900 a.C. é que há sinais de nova vida urbana. Dizia-se que possivelmente eram estes povos os mesmos amoritas ou semitas do oeste que invadiram também a Mesopotâmia. Hoje se reconhece que as mudanças ocorridas então se devem muito mais a mudanças climáticas do que a qualquer entrada de povos na região.

A Palestina conheceu a sua fase antiga mais próspera entre os anos de 1800 e 1550 a.C. Cidades populosas e bem guarnecidas, cercadas por poderosas muralhas floresceram, tais como Hazor, Taanak, Meguido, Siquém, Jericó, Jerusalém, Bet-Shemesh, Gezer, Tell Beit Mirsim, Tell el-Duweir, Tell el-Farah do sul etc. Já a Transjordânia não teve civilização sedentária até cerca de 1300 a.C. e o Negueb até o século X a.C.

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[3]. Cf. Freedman, D. N. (ed.), The Anchor Bible Dictionary on CD-ROM, New York, Doubleday & Logos Research Systems, 1992, 1997, verbete Amorites; THOMPSON, T. L., The Mythic Past. Biblical Archaeology and the Myth of Israel, New York, Basic Books, 1999, pp. 101-225.

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[4]. Cf. ROAF, M., Mesopotâmia e o Antigo Médio Oriente I, Coleção Grandes Impérios e Civilizações, Madrid, Edições del Prado, 1996, pp. 6-7.

1.4. A Síria e a FeníciaDe novo, em um salto, vamos ao norte da Palestina, porque estes dois países também nos interessam.

Para falar da Síria, com sua capital Damasco, temos que falar dos arameus. Dizia-se, até pouco atrás, que estes eram nômades semitas que a partir do deserto siro-arábico invadiram a Alta Mesopotâmia, a Anatólia (Ásia Menor) e a Síria. Mas hoje não temos mais tanta certeza disso, por isso seria melhor não falar mais dos arameus desta maneira. Certo é que nunca houve uma união política aramaica, sendo a Síria a sede de vários reinos arameus.

A primeira menção segura dos documentos antigos sobre os arameus data do ano 1110 a.C., mais ou menos, e está em textos cuneiformes do reinado do assírio Tiglat-Pileser I (1115-1077 a.C.). No quarto ano de seu reinado ele combateu os Ahlamu-Arameus no Eufrates e lhes queimou seis acampamentos no Djebel Bishri.

Eis o comunicado real:"Marchei contra os ahlamu-arameus, inimigos do deus Assur, meu senhor. Em um só dia realizei uma incursão desde as proximidades da terra de Suhi até Carquemish da terra de Hatti. Infligi-lhes baixas e trouxe prisioneiros, bens e gado sem conta".

E ainda:"Por vinte e oito vezes, à razão de duas por ano, cruzei o Eufrates em perseguição aos ahlamu-arameus. Da cidade de Tadmor (Palmira) da terra de Amurru, da cidade de Anat da terra de Suhi, até a cidade de Rapigu da terra de Karduniash (Babilônia), sua derrota foi por mim consumada"[13].

Com o tempo, os termos ahlamu e arameu tornaram-se sinônimos, mas é possível que fossem dois grupos diversos, aparentados, contudo.

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O reino de Aram-Damasco era pequeno, mas depois que Davi conquistou todos os outros, segundo os textos bíblicos, Damasco se impôs como principal, dominando todo o território sírio. Foi aniquilado pelos assírios, um pouco antes de Israel do norte. A província síria destacou-se depois, sob o domínio romano.

A Fenícia, a faixa costeira ao norte de Israel e ao lado da Síria, era muito fértil. Seu nome vem da púrpura que era extraída ali de certas conchas. Em fenício-hebraico, "púrpura" se dizia canaan e em grego foinix, donde "Fenícia". Líbano, seu nome atual, é devido à cadeia de montanhas assim chamada e significa "o branco", por causa da neve no pico dos montes.

Começando pelo sul da Fenícia, encontramos a cidade de Tiro, existente desde o III milênio a.C., construída metade sobre uma ilha, metade no continente. Por isso resistiu maravilhosamente a terríveis assédios assírios e babilônicos. Foi tomada por Alexandre Magno após sete meses de cerco. Tiro era famosa por seu comércio e suas naves. Foi quase sempre aliada de Israel.

Sídon, habitada por cananeus, foi famosa por causa de seus navegantes. Os assírios conquistaram-na, mas foi cidade livre sob os romanos. Concorrente de Tiro no comércio e navegação.

Ainda: Ugarit (Ras Shamra), habitada por cananeus. É importante por causa de sua grande literatura, relacionada com a literatura bíblica e sua língua, parente da hebraica. As escavações aí realizadas enriqueceram muito os estudos bíblicos nos últimos tempos. Foi destruída pelos filisteus.

A descoberta

Em março de 1928, um lavrador alauíta, arando sua propriedade a cerca de 12 km ao norte de Latakia, antiga Laodicea ad mare, remove uma pedra na qual seu arado bate e encontra os restos de uma tumba antiga. Colocado a par da descoberta, o Serviço de Antigüidades da Síria e do Líbano, na época sob mandato francês, encarrega um especialista, M. L. Albanese, que imediatamente notifica a presença de uma necrópole e identifica a tumba como sendo do tipo micênico, datável aí pelos séculos XIII ou XII a.C.[14].

Leia: Ugarit and the Bible!

Uma necrópole supõe a existência de uma cidade. Por isso, Albanese e Dussaud prestaram atenção à colina vizinha, chamada Ras Shamra, de uns 20 metros de altitude, que tinha toda a aparência de ser um tell

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arqueológico, ou seja, um acúmulo de ruínas antigas, e que podia corresponder à cidade procurada.

Visite o ERSP - The Edinburgh Ras Shamra Project!

Um ano mais tarde, no dia 2 de abril de 1929, sob o comando de Claude F. A. Schaeffer, começaram as escavações, primeiro da necrópole, e logo em seguida, no dia 8 de maio, no tell, que tem um extensão de uns 25 hectares e se encontra a cerca de 800 metros da costa. Ao norte se vê o Jebel Aqra', "monte pelado", ou Monte Zafon (o monte Casius, dos romanos) que separa a região dos alauítas do vale e da desembocadura do rio Orontes.

Poucos dias mais tarde, foram feitas as primeiras descobertas: tabuinhas de argila escritas em caracteres cuneiformes, objetos de bronze e de pedra... Foi o começo de uma série de descobertas numa escavação que se prolonga até os nossos dias. De 1929 a 1980 foram realizadas 40 campanhas arqueológicas no local, empreendimento só suspenso durante II Guerra Mundial. E as pesquisas ainda continuam.

Os 5 níveis arqueológicos

Os arqueólogos classificaram a seqüência estratigráfica em 5 níveis:

10 : 1500 - 1100 a.C.

20 : 2100 - 1500 a.C.

30 : 3000 - 2100 a.C.

40 : 4000 - 3000 a.C.

50 : ? - 4000 a.C.

O nível 3 (3000-2100 a.C.) apresenta em suas camadas superiores cerâmica cananéia. Isto é interessante, porque, embora do ponto de vista geográfico Ugarit não se encontre em Canaã, do ponto de vista cultural e étnico esta é uma cidade cananéia. Esta época manifesta contato ou influência da cultura contemporânea da Baixa Mesopotâmia.

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O nível 2 (2100-1500 a.C.) nos indica uma cultura tipicamente semita na cidade: cerâmica e templos são de tipo cananeu. Mas há influências estrangeiras, vindas do Egito, da Mesopotâmia e da região do mar Egeu. A invasão dos hicsos não modificou substancialmente esta cultura, que continuou sendo semítica e cananéia. Chama a atenção, neste nível, toda uma necrópole com cerâmica cananéia. Tumbas familiares são feitas debaixo das casas, e guardam muitos utensílios e armas. O testemunho acerca do culto dos mortos na civilização cananéia, encontrado em Ugarit, é de grande importância para se entender a reação israelita ao tema presente na Bíblia Hebraica.

O nível 1 (1500-1100 a.C.) mostra indícios de grande prosperidade no seu começo, refletidos nas construções amplas e nas tumbas da necrópole de Mina' al-bayda'. Construiu-se neste época um bairro marítimo. O estilo da cerâmica encontrada nas tumbas é ródio-cipriota. Um violento incêndio destruiu esta prosperidade, incêndio mencionado em uma das cartas de Tell el-Amarna, e verificado no tell por uma camada de cinzas que divide este nível em duas partes. A reconstrução foi esplêndida e dominada pela arte de estilo micênico. A ruína desta civilização, e com ela a da cidade, ocorre no começo da época do ferro, como conseqüência de um processo de decomposição social interna coincidente com a passagem dos "povos do mar". Os vestígios de ocupação posterior são de menor importância.

A identificação da cidade

A identificação do nome do local não foi difícil, pois os textos descobertos sugeriram imediatamente que se tratava de Ugarit (ú-ga-ri-it), já conhecida por referências da literatura egípcia e mesopotâmica, sobretudo pelas Cartas de Tell el-Amarna, onde se encontram algumas provenientes da própria Ugarit. Entre os textos encontrados aparece o nome da cidade.

Os textos ugaríticos

Os textos foram encontrados todos no primeiro nível, pertencendo, portanto, à última fase da cidade. Estavam principalmente na "Biblioteca" anexada ao templo de Baal e no "Palácio Real" ou "Grande Palácio", que possuía diversas dependências para arquivos. As tabuinhas estão redigidas em sete sistemas diferentes de escrita, correspondente a sete línguas diferentes: em hieróglifos egípcios, em hitita hieroglífico e cuneiforme, em acádico, em hurrita, em micênico linear e cipriota e em ugarítico. Os textos que nos interessam estão em ugarítico, um sistema cuneiforme alfabético, que foi decifrado em poucos meses por H. Bauer, E. Dhorme e Ch. Virolleaud. Nesta língua, que é uma forma do cananeu, foram encontrados cerca de 1300 textos

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O Ciclo de Baal

O Ciclo de Baal (ou Ba'lu)[15] apresenta algumas dificuldades especiais dentro da literatura ugarítica: não é fácil determinar se temos um mito único, com rigorosa unidade de composição, ou se temos um ciclo que engloba diversas composições literárias, com tema e tramas próprios ou se estamos lidando com versões diferentes de um mesmo mito. Apesar do mesmo tom e da mesma concepção mitológica, da coerência e continuidade entre os diversos episódios que compõem o mito total, podemos estar falando de diferentes redações de um mesmo "mitema" ou de "mitemas diferentes". Isto sem contar que, também em Ugarit, há uma "história da tradição e da redação" dos textos, história essa que é dificílima de ser feita...

Outra dificuldade é o número e a ordem das tabuinhas. G. del Olmo Lete, em Mitos y Leyendas de Canaán, exclui os fragmentos que por suas características externas, materiais ou epigráficas não podem constituir unidade editorial com os demais. Diz o autor: "Nos restam assim seis tabuinhas que podem representar uma versão ou redação unitária do ciclo mencionado. Delas, quatro (1.1,3,5,6) possuíam originalmente seis colunas de texto, três de cada lado (...). Suas dimensões eram mais ou menos as mesmas"[16]. As dimensões padrão são 26,5 x 19,5 cm e 26 x 22 cm. A divisão entre as colunas é feita por uma linha dupla profundamente marcada. O número de linhas conservadas por coluna oscila entre 62 e 65. A exceção fica por conta da tabuinha 4, que tem oito colunas e da tabuinha 2 que tem somente quatro colunas.

Como é comum nas tabuinhas cuneiformes, a terceira coluna continua diretamente, ultrapassando a borda inferior, no verso. De modo que, a tabuinha não deve ser virada como uma página de um livro, mas de cima para baixo. Assim, enquanto as colunas do anverso estão dispostas da esquerda para a direita, as do reverso estão dispostas da direita para a esquerda, de modo que a correspondência anverso/reverso das colunas é a seguinte: 1/6, 2/5 e 3/4.

A escrita ugarítica caminha da esquerda para a direita, segundo o uso da epigrafia cuneiforme. E o mais interessante no Ciclo de Baal é que as seis tabuinhas têm a mesma "caligrafia", ou seja, foram escritas pelo mesmo escriba que se identifica como Ilimilku em 1.6 e 1.16, junto com o nome do Sumo Sacerdote, Attanu-Purlianni, para quem trabalhou e que deve ter ditado o texto, e a quem deveremos considerar como o autor, redator ou, quem sabe, apenas o transmissor desta versão tradicional do mito de Baal e o nome do rei, Niqmaddu, que governou Ugarit de 1370 a 1335 a.C.

Page 32: Historia de Israel

KTU 1.6 VI diz, no seu final:

El escriba fue Ilimilku, shubbani,

discípulo de Attanu-Purlianni,

Sumo Sacerdote, Pastor Máximo,

Inspector de Niqmaddu, Rey de Ugarit

Señor Formidable, Provisor de nuestro sustento.

As tabuinhas do Ciclo de Baal foram encontradas todas nas campanhas arqueológicas de 1930, 1931 e 1933 e estão hoje no Museu do Louvre (1.1,2,5,6), Paris, e no Museu de Aleppo (1,3,4), Síria.

Assim, as seis tabuinhas trazem um ciclo mitológico, composto de três mitos ou composições autônomas que giram cada uma em torno de um mitema particular: Luta entre Ba'lu e Yammu (1.1-2), O palácio de Ba'lu (1,3-4) e a Luta entre Ba'lu e Môtu (1.5-6).

O universo mitológico de Ugarit

Entre os muitos deuses que constituem o panteão de Ugarit, apenas uns dez ou doze são ativos em sua literatura, enquanto alguns outros que ali aparecem têm um papel muito impreciso. Destacam-se:

ILU (=EL)deus supremo, criador dos deuses e do homem

BA'LU (=BAAL)chefe dos deuses, deus da chuva e da fertilidade, senhor da terra

YAMMU (=YAM) deus do marKÔTHARU (=KOSHAR-WAHASIS)

deus artesão

'ATHTARU (='ATHTAR) deus do deserto

'ANATU (= 'ANAT)deusa do amor, da guerra e da fertilidade - esposa de Baal

ATIRATU (= 'ASHERAH) esposa de El, deusa mãeMÔTU (= MÔT) deus da morte e da esterilidade

'ATHTARTU (= ASTARTÉ)esposa de Baal, deusa da guerra e da caça

SHAPSHU deusa sol

Page 33: Historia de Israel

Aprenda mais sobre os deuses de Ugarit com a Canaanite/Ugaritic Mythology FAQ!

Abreviações usadas no texto

CTA: A. Herdner, Corpus des tablettes en cunéiformes alphabétiques découvertes à Ras Shamra-Ugarit de 1929 a 1939, Paris, 1963.

KTU: M. Dietrich - O. Loretz - J. Sanmartín, Die keilalphabetische Texte aus Ugarit. Einschliesslich der keilalphabetischen Texte ausserhalb Ugarits. Teil I Transcription, Neukirchen-Vluyn, Neukirchener Verlag, 1976.

UT: C. H. GORDON, Ugaritic Textbook, Roma, Pontifical Biblical Institute, 1965.

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[13]. Cf. PRITCHARD, J. B. (ed.), Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament (ANET), Princeton, Princeton University Press, 19693, 274- 275. Cf. também DONNER, H., História de Israel e dos povos vizinhos. Volume 1: Dos primórdios até a formação do Estado, São Leopoldo, Sinodal/Vozes, 1997 [20043], pp. 48-49.

[14]. Cf. DEL OLMO LETE, G., Mitos y Leyendas de Canaan según la Tradición de Ugarit, Madrid, Institución San Jerónimo & Ediciones Cristiandad, 1981, pp. 23-31; FREEDMAN, D. N. (ed.), The Anchor Bible Dictionary on CD-ROM, New York, Doubleday & Logos Research Systems, 1992, 1997, verbete Ugarit.

[15]. G. del Olmo Lete adotou em sua obra a forma original semita na transcrição do nomes próprios, diferente da convencional que aparece na Bíblia Hebraica. Assim é que Baal é Ba'lu, El é Ilu e assim por diante. Cf., para o que se segue, DEL OLMO LETE, G., o. c., pp. 81-97.

[16]. DEL OLMO LETE, o. c., p. 87. Para a ordem das tabuinhas, cf. a p. 83 da mesma obra, onde são apresentadas as opções de 17 especialistas. Para a posição de G. del Olmo Lete, cf. as pp. 88-89. Para outra hipótese, cf. CLIFFORD, R. J., Creation Accounts in the Ancient Near East and in the Bible, p. 121.

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1.5. A PalestinaPalestina é um nome derivado de "filisteus", em hebraico pelishtim, um povo que habitava a faixa costeira situada entre o Egito e a Fenícia. Os filisteus são de origem egéia, talvez de Creta. Faziam parte dos "povos do mar", que após 1175 a.C., mais ou menos, tentaram invadir o Egito, mas foram vencidos pelo faraó Ramsés III e passaram a viver naquela parte da Palestina.

Canaã, ou terra de Canaã, é outro nome da região usado para designar esta terra, nome proveniente de seus antigos habitantes, os cananeus. Sob os hebreus, passou a ser chamada de terra de Israel, e mais tarde Judá ou Judéia, que era apenas uma parte de seu território.

A superfície da Palestina é de 16.000 km2, sem a Transjordânia. Contando com a Transjordânia, que nem sempre pertenceu a Israel, são 25.000 km2

de território. A superfície da Bélgica, mais ou menos.

Do Mediterrâneo ao Jordão, no norte, são cerca de 48 km de largura e na altura do mar Morto são cerca de 80 km. O comprimento é de 250 km de Dan a Bersheba, ou de 320 km de Dan a Cades-Barnea, incluindo o deserto do Negueb nesta última, que não era propriamente território de Israel.

Israel é uma zona subtropical, com chuvas de novembro a março e seca de abril a outubro. A temperatura vai de -2 a 45 graus Celsius, variando também segundo os lugares graças à topografia. Cai neve em Jerusalém e Jericó é muito quente. Tel-Aviv, Haifa e Tiberíades são quentes e úmidas.

A população foi estimada por W. F. Albright e R. de Vaux, dois renomados biblistas e arqueólogos, em 800 mil habitantes, no período de Davi e Salomão, considerado até meados da década de 70 do século XX como o mais florescente da história de Israel. Mas hoje nem sabemos se houve um monarquia unida, quanto mais um Império davídico-salomômico. Por isso, é melhor não projetarmos a população para este período. Para a época do NT calcula-se: 500 mil habitantes na Palestina e 4 milhões no exterior (diáspora).

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Samaria, quando foi destruída pelos assírios em 722 a.C., teria cerca de 30 mil habitantes e a Jerusalém do tempo de Jesus também não passava de 25 a 30 mil habitantes fixos.

A configuração geográfica é a seguinte: há duas cadeias de montanhas que percorrem a Palestina de norte a sul e são: a continuação do Líbano, Cisjordânia, e a continuação do Antilíbano, a Transjordânia. Entre estas duas cadeias está o vale do Jordão, numa depressão de 390 metros abaixo do nível do mar que vai do lago de Hule, ao norte, até o mar Morto, ao sul.

Assim, podemos descrever a Palestina, quanto ao relevo em quatro faixas verticais, norte-sul: a Transjordânia, o vale jordânico, a Cisjordânia e a costa mediterrânea.

1.5.1. A TransjordâniaAs montanhas da Transjordânia são altas e apresentam profundas gargantas, por onde correm os afluentes ocidentais do Jordão. Do sul para o norte, os afluentes são: Zered, Arnon, Jabbok e Yarmuk.

Na Transjordânia estavam antigamente os seguintes países ou regiões: Edom, Moab, Ammon, Galaad e Bashan.

Edom é o país ocupado por um povo semita do deserto siro-arábico aí por volta de 1300 a.C. O país está ao sul do mar Morto, em um planalto de 1600 metros de altitude, 110 km de comprimento e 25 km de largura. Seu limite ao norte é o rio Zered, ao sul o golfo de Aqaba. Sua capital, Sela. Outras cidades: Teman, uma fortaleza perto de Sela; Bosrah e Tofel, ao norte. A Bíblia costuma unir Teman e Bosrah para designar todo o país de Edom.

Moab está situado entre os vales do Zered e do Arnon, porém levava freqüentemente sua fronteira ao norte do Arnon. Seu território principal está situado em um planalto de 1200 metros de altitude.

As cidades do ano 3000 a.C. foram destruídas e abandonadas. Aí por volta de 1300 a.C. o país foi novamente ocupado por semitas nômades e pastores.

Sua capital era Kir-hareseth (Kir, Kir-heres), a moderna Kerak. Outras cidades: Aroer, Dibon, Medeba e Heshbon. Cerca de oito km a oeste de Medeba está o monte Nebo (para a tradição sacerdotal) ou Pisgah (para a tradição eloísta) de onde Moisés teria contemplado a terra de Canaã e morrido.

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No tempo do NT, a sudoeste do monte Nebo estava a fortaleza de Maqueronte, onde Herodes Antipas mandou matar João Batista. Moab e Israel nunca foram amigos. A tribo de Rubens tentou se estabelecer na parte norte de seu território, mas foi expulsa. Sob Davi e Salomão, Moab foi submetida, mas se libertou logo após a divisão de 931 a.C.

Antes de Israel adotar a monarquia como forma de governo, Moab já o fizera. Seu deus principal era Kemosh, ao qual eles ofereciam sacrifícios humanos. Sua língua se assemelha bastante ao hebraico.

Ammon era uma tribo aramaica que se estabeleceu na região superior do Jabbok. Sua capital era Rabbath-Ammon, a atual Amman, capital da Jordânia. Parece que se estabeleceram aí em 1300 a.C., mais ou menos. Os limites de seu território não são bem definidos, e Ammon foi o mais fraco dos reinos transjordânicos. Esteve freqüentemente submetido a Israel, de quem sempre foi inimigo. Cultuavam os amonitas o deu Moloc (ou Melek), e sacrificavam-lhe crianças. Sua língua se assemelha ao aramaico.

Galaad (ou Gilead) está também na região do Jabbok. Esta região foi conquistada pelos israelitas e habitada pelas tribos de Gad e Manassés. Seu território tem uns 60 km de norte a sul por 40 km leste-oeste e é bastante fértil. Chove bem e era coberta antigamente por densos bosques. Famoso era seu bálsamo e abundantes suas vinhas. Suas cidades principais: Penuel, Mahanaim, Succoth, Jabesh-Galaad, Ramoth-Galaad. No tempo do NT: Gerasa, Gadara, Pella.

Bashan (ou Hauran) é uma região ao norte do Galaad, formada por férteis planícies, boas para o cultivo do trigo e ótimas para pastagens. Seus bosques eram comparáveis aos do Líbano. A região sempre foi objeto de luta entre Israel e Síria, que se revezavam na sua posse. Não possuía cidades de destaque.

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1.5.2. O Vale do JordãoÀ sombra do monte Hermon, sempre coberto de neve, com seus 2750 metros de altitude, nasce o rio Jordão, na confluência de quatro torrentes que descem das montanhas do Líbano. Perto de suas nascentes estão as cidades de Dan e, na época do NT, Cesaréia de Filipe (Baniyas).

Jordão significa aquele que desce ou também lugar onde se desce (bebedouro). Nome bem adaptado ao maior rio da Palestina, pois realmente ele nasce acima do nível do Mediterrâneo, atravessa o lago de Hule, ainda a 80 metros acima do nível do mar, forma a 16 km ao sul o lago de Genezaré, que já está a 210 metros abaixo do nível marítimo e tem sua foz no mar Morto, 110 km abaixo, situado nada menos que a 390 metros abaixo do nível do Mediterrâneo.

O lago de Hule era pequeno e pouco profundo. Tinha cerca de 4 km e foi drenado pelo atual Israel, pois provocava malária. Para ir da Palestina para a Síria era necessário atravessar o Jordão ao sul de Hule. Por isso foi construída aí uma fortaleza, Hazor, que se tornou a principal cidade do norte da Palestina.

Entre o lago de Hule e o lago de Genezaré, o Jordão corre violentamente no fundo de uma garganta de 350 metros de profundidade. Perto da desembocadura do Jordão no lago de Genezaré estão as ruínas de Corazim, mencionada em Mt 11,21.

O lago de Genezaré (do hebraico Kinneret = harpa) é chamado também de lago de Tiberíades ou mar da Galiléia. É um belo lago, de 21 km de comprimento por 12 de largura, rico em peixes. O NT fala continuamente destes paragens, por onde andou Jesus. Cidades como Cafarnaum, Betsaida, Magdala, Tiberíades etc estavam na suas margens.

A 9 km ao norte do mar Morto está Jericó, uma das mais antigas cidades do mundo. E também Guilgal, santuário cananeu e depois israelita.

O mar Morto tem 75 km de comprimento por 16 km de largura, e é o ponto mais baixo da superfície terrestre: está a cerca de 390 metros abaixo do Mediterrâneo e tem outro tanto de profundidade. Nada vive nas suas águas, que contêm um alto teor de sal, cerca de 25%.

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A noroeste do mar Morto vivia, nos últimos séculos de Israel, a comunidade dos essênios, e nas grutas de Qumran foram encontrados em 1947 importantes manuscritos bíblicos que eles, os essênios, esconderam em cavernas, para salvá-los dos romanos que tudo destruíram em 68 d.C.

Ao sul do mar Morto está a Arabá, continuação da depressão palestina, que se eleva progressivamente, nos seus 150 km de extensão, do mar Morto ao golfo de Aqaba. No extremo sul da Arabá estava a fortaleza de Elat e o porto de Esion-geber. Era das colinas da Arabá que Salomão extraía o cobre para sua indústria. A região é desértica.

1.5.3. A Região Central da PalestinaNo extremo sul está o Negueb (deserto de Sin). Importante no Negueb era Cades-Barnea, oásis onde os israelitas estiveram após o êxodo do Egito, segundo o texto bíblico. Cerca de 80 km ao norte estava Bersheba (Bersabéia), por onde passavam importantes rotas de caravanas. Um pouco mais ao nordeste, Arad, cidade cananéia.

Ao norte do Negueb se estende o território montanhoso de Judá, desde Bersheba até perto de Betel, alguns quilômetros ao norte de Jerusalém.

Há em Judá várias cidades e localidades importantes na história do povo de Israel, como por exemplo:

• Hebron (Kiriat-arbá), a cidade mais alta da Judéia - está a 1000 metros de altitude - ligada à história de Abraão e de Davi. Fica a 32 km de Jerusalém

• Belém, pátria de Davi e lugar tradicional do nascimento de Jesus, está a 7 km de Jerusalém

• Jerusalém, a cidade conquistada por Davi aos jebuseus e transformada em sua capital

• Técua, pátria do valente profeta Amós, apenas um povoado a 19 km de Jerusalém

• Anatot, povoado onde nasceu Jeremias

• Betânia, terra de Lázaro etc.

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Continuando a subir em direção norte, chegamos à região de Samaria, capital do reino do norte, localizada a 60 km de Jerusalém. Nesta região central encontramos: Ai, Betel, Siquém, Silo, Tirsá, Dotan, cidades cujas histórias deveriam ser cuidadosamente estudadas. Aí estão os mais antigos santuários de Israel.

Ao norte de Samaria está a planície de Esdrelon (Jezreel), um vale ótimo para a agricultura. Por ali passavam as principais vias de comunicação entre o Egito e a Síria, e para guardar a passagem foram construídas as fortalezas de Ibleam, Taanak, Meguido e Jokneam, cidades com um longo passado de lutas e guerra. Merecem ainda atenção: Bet-shan e Jezreel.

Finalmente chegamos à região da Galiléia, que aparece muito pouco no AT, crescendo, contudo, em o NT, por ser a pátria de Jesus.

1.5.4. A Costa MediterrâneaVamos começar de novo pelo sul, de Gaza. De Gaza, sul, até Tiro, norte, são cerca de 200 km de costa. Aí por volta de 1150 a.C. os filisteus, vindo do Egeu, ocuparam uma faixa costeira formando a conhecida pentápoles filistéia, uma confederação de cinco cidades: Gaza, Ascalon, Ashdod, Gat e Ekron.

A planície filistéia tem de 7 a 15 km de largura, onde eram cultivados o trigo e a oliveira. Por ali passava a estrada que ia do Egito para a Síria. Caravanas em tempo de paz e exércitos destruidores em tempo de guerra eram uma constante.

Entre a planície filistéia e as montanhas de Judá há uma faixa de terra de 15 a 25 km de largura chamada Shefelah (= terras baixas). Os vales da Shefelah, caminhos entre a filistéia e Judá, eram defendidos pelas fortalezas de Debir, Lakish, Libnah, Azecah, Maggedah, Bet-Shemesh e Gezer. Ao norte da planície filistéia está a planície de Sharon, com as cidades de Jope, Lod, Afeq etc. Mais para o norte está finalmente a cidade de Dor, em seguida o promontório e o monte Carmelo, com o porto de Acco na planície de Asher. depois já é a Fenícia.

Leituras Recomendadas

AA.VV., A Criação e o Dilúvio Segundo os Textos do Oriente Médio Antigo, São Paulo, Paulus, 1990.

AA.VV., Bíblia. Os Caminhos de Deus I-II, Coleção Grandes Impérios e Civilizações, Madrid, Edições del Prado, 1996.

Page 40: Historia de Israel

BAINES, J. & MÁLEK, J., O Mundo Egípcio. Deuses, Templos e Faraós, 2 vols., Coleção Grandes Impérios e Civilizações, Madrid, Edições del Prado, 1996.

CARDOSO, C. F. S., Sociedades do Antigo Oriente Próximo, São Paulo, Ática, 1986.

CLIFFORD, R. J., Creation Accounts in the Ancient Near East and in the Bible, Washington, The Catholic Biblical Association of America, 1994.

DEL OLMO LETE, G., Mitos y Leyendas de Canaan según la Tradición de Ugarit, Madrid, Institución San Jerónimo & Ediciones Cristiandad, 1981.

DONNER, H., História de Israel e dos Povos Vizinhos I-II, São Leopoldo, Sinodal/Vozes, 1997 [20043].

ECHEGARAY, J. G., O Crescente Fértil e a Bíblia, Petrópolis, Vozes, 1995.

FREEDMAN, D. N. (ed.), The Anchor Bible Dictionary on CD-ROM, New York, Doubleday & Logos Research Systems, 1992, 1997.

GALBIATI, E. & ALETTI, A., Atlas Histórico da Bíblia e do Antigo Oriente. Da Pré-História à Queda de Jerusalém no Ano 70 d. C., Petrópolis, Vozes, 1991.

GARELLI, P., O Oriente Próximo Asiático I, São Paulo, Pioneira/Edusp, 1982.

KRAMER, S. N., Os Sumérios. Sua História, Cultura e Carácter, Amadora, Livraria Bertrand, 1977.

MAY, H. G. (ed.), Oxford Bible Atlas, Oxford, Oxford University Press, 19903.

PRITCHARD, J. B. (ed.), Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament (ANET), Princeton, Princeton University Press, 19693.

ROAF, M., Mesopotâmia e o Antigo Médio Oriente, Coleção Grandes Impérios e Civilizações, Madrid, Edições del Prado, 1996.

THOMPSON, T. L., The Mythic Past. Biblical Archaeology and the

Page 41: Historia de Israel

Myth of Israel, New York, Basic Books, 1999.

WYATT, N., Religious Texts from Ugarit. The Words of Ilimilku and his Colleagues, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1998.

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2. As Origens de Israel2.1. A Teoria da ConquistaIsrael invade a terra de Canaã, vindo da Transjordânia, pelo final do século XIII a.C. As tribos lutam unidas e, fazendo uma campanha militar em três fases, dirigidas ao centro, sul e norte, ocupam o país, destruindo seus habitantes, no espaço de uns 25 anos.

Esta é a visão de Js 1-12 e a que dominou no mundo judaico. A síntese de Js 10,40-43 diz o seguinte:"Assim Josué conquistou toda a terra, a saber: a montanha, o Negueb, a planície e as encostas, com todos os seus reis. Não deixou nenhum sobrevivente e votou todo ser vivo ao anátema, conforme havia ordenado Iahweh, o Deus de Israel; Josué os destruiu desde Cades Barne até Gaza, e toda a terra de Gósen até Gabaon. Todos esses reis com suas terras, Josué os tomou de uma só vez, porquanto Iahweh, Deus de Israel, combatia por Israel. Finalmente Josué, com todo Israel, voltou ao acampamento em Guilgal".

Mapas do Israel atual? Confira aqui!

Page 42: Historia de Israel

Alguns defendem esta teoria, com matizes, baseados na "evidência" arqueológica como William Foxwell Albright, George Ernest Wright, Yehezkel Kaufmann, Nelson Glueck, Yigael Yadin, Abraham Malamat, John Bright, este último moderadamente[1]. A arqueologia atesta:

a) Uma ampla destruição de cidades cananéias no final do século XIII a.C. Do norte para o sul, são essas as cidades: Hazor, Meguido, Succoth, Betel, Bet-Shemesh, Ashdod, Lakish, Eglon e Debir.

Destas 9 cidades, 4 são ditas especificamente como destruídas por Josué:

Hazor: Js 11,10-11

Lakish: Js 10,31-33

Eglon: Js 10,34-35

Debir: Js 10,38-39

b) A não destruição de cidades que os textos confirmam como não tendo sido tomadas por Josué:

Gibeon: Js 9

Taanach: Jz 1,27

Siquém: Js 24

Jerusalém: Js 15,63; 2Sm 5,6-9

Bet-Shean: Jz 1,27-28

Gezer: Js 10,33

c) A reocupação das cidades destruídas foi homogênea e pode ser relacionada com a ocupação israelita que se seguiu à conquista. Além do que tal ocupação mostra, na sua maior parte, um empobrecimento técnico, típico do assentamento de populações seminômades (o tipo de cerâmica, de construções, de utensílios etc).

d) Localidades que estavam abandonadas há muito tempo são ocupadas novamente no século XIII a.C., como: Dor, Gibeah, Bersabéia, Silo, Ai, Mispa, Bet-Zur...

Page 43: Historia de Israel

Ora, em nenhuma destas evidências aparece qualquer inscrição dizendo tratar-se de Israel. Mas como nenhum outro povo ocupou tal região neste período, quem poderia ser senão Israel?

Porém:

• os dados arqueológicos não são puros, são interpretados

• várias destruições podem ter sido feitas por lutas internas, lutas entre as cidades cananéias

• o livro dos Juízes relata a conquista de maneira individualizada, feita pelas várias tribos isoladamente e não uma ação conjunta de um pretenso Israel unido

• o Dtr marcou muito sua obra com propósitos teológicos - necessários no tempo do exílio - e não tinha a nossa concepção de história. Ele projetou muito no passado o que era projeto para o presente, como:

• o hérem ou "anátema", uma guerra de extermínio, com o objetivo de manter os israelitas separados das populações estrangeiras que ocuparam a Palestina durante o exílio

• o processo de nacionalização através do chefe único - Josué - que interessava na reunificação dos israelitas no pós-exílio, quando na realidade Josué deve ter comandado apenas tribos da "casa de José", como Efraim, Manassés, Benjamim

• a chave litúrgica na apresentação dos fatos (o que interessava aos levitas e à reforma de Josias) como: a tomada de Jericó (Js 6), a travessia do Jordão (Js 3-5), o culto praticado num só lugar, na seqüência Guilgal, Silo, Siquém (Js 5,10;18,1;24,1) e a condenação do culto praticado em qualquer outro lugar (Jz 17-18), quando, na verdade, os lugares de culto parecem ter sido muitos nesta época, e contemporâneos!

• as cidades de Jericó, Ai e Gibeon não podem ter sido conquistadas nesta época, segundo os arqueólogos. Jericó foi destruída no século XIV a.C. e não há indícios de destruição nos séculos XIII-XII a.C., nem de reocupação; Ai (= ruína) também já fora destruída muito tempo antes, no III milênio. Gibeon não era nenhuma cidade importante na época de Josué, segundo mostra a arqueologia (cf. Js 9)

• o livro de Josué recorre muito à etiologia, quando diz: "e (tal está assim) até o dia de hoje" (Js 4,9;5,9;6,25;7,26;8,28-29;9,27;10,27 etc). O

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mesmo acontece com o livro dos Juízes. Qual o valor histórico destes relatos?

2.2. A Teoria da Instalação PacíficaModelo defendido por Albrecht Alt (1925;1939), Martin Noth (1940;1950), Manfred Weippert, Siegfried Hermann, José Alberto Soggin, Yohanan Aharoni e outros[2]. Os relatos de conquista de Josué são etiológicos e Josué não passou de um chefe local efraimita. As tribos foram ocupando os espaços vazios entre as cidades-estado cananéias, sem um conflito generalizado e organizado. Os conflitos aconteciam quando um clã invadia o território de uma cidade-estado[3].

Tal teoria baseia-se na análise crítica dos textos bíblicos e interpreta à sua luz os dados arqueológicos, que assim acabam confirmando-na. Apóia-se também nas tradições patriarcais do Gênesis: os patriarcas viviam, mais ou menos pacificamente, nas proximidades das cidades cananéias[4].

Defende uma entrada diferenciada na Palestina, para as tribos israelitas: êxodos diferentes para os vários grupos, pelo menos, para o sul e para o norte. Ligas anfictiônicas: primeiro duas (Noth): uma de clãs do sul (6 clãs posteriormente assimilados a Judá) e outra de tribos do norte. Depois sua união, antes da monarquia, em doze tribos. Noth liga os hebreus aos hapiru.

Problemas:

• anfictionia israelita?

• hapiru/hebreu?

• conceito de etiologia e narrativas etiológicas

• e as destruições do final do século XIII a.C.?

2.3. A Teoria da RevoltaA teoria da revolta foi defendida primeiro por George Mendenhall, com um artigo[5] chamado The Hebrew Conquest of Palestine, publicado em Biblical Archaeologist 25, pp. 66-87, 1962. O artigo já começa com uma constatação, que hoje tornou-se lugar comum em congressos ou salas de aula: "Não existe problema da história bíblica que seja mais difícil do que a reconstrução do processo histórico pelo qual as Doze Tribos do antigo Israel se estabeleceram na Palestina e norte da Transjordânia"[6].

De fato, a narrativa bíblica enfatiza os poderosos atos de Iahweh que liberta o povo do Egito, o conduz pelo deserto e lhe dá a terra, informando-nos,

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deste modo, sobre a visão e os objetivos teológicos dos narradores de séculos depois, mas ocultando-nos as circunstâncias econômicas, sociais e políticas em que se deu o surgimento de Israel.

Frente a isso, os pesquisadores sempre utilizaram modelos ideais para descrever as origens de Israel, como o fez Martin Noth com a tese da anfictionia, importada do mundo grego. O que George Mendenhall propôs com o seu artigo foi apresentar um novo modelo ideal em substituição a modelos que não mais se sustentavam, sugerindo uma linha de pesquisa que levasse em conta elementos que até então não tinham sido considerados.

G. Mendenhall começa descrevendo os dois modelos existentes até então para a entrada na terra de Canaã, o da conquista militar e o da infiltração pacífica de seminômades e elenca os três pressupostos presentes em ambos:

• as doze tribos entram na Palestina vindo de outro lugar na época da "conquista"

• as tribos israelitas eram nômades ou seminômades que tomam posse da terra e se sedentarizam

• a solidariedade das doze tribos é do tipo étnico, sendo a relação de parentesco seu traço fundamental, caracterizando-as, inclusive, em contraste com os cananeus.

Ora, continua Mendenhall, o primeiro e o terceiro pressupostos até que podem ser aceitos, mas "a suposição de que os israelitas primitivos eram nômades, entretanto, está inteiramente em contraste com as evidências bíblicas e extra-bíblicas, e é aqui a reconstrução de uma alternativa deve começar"[7].

A seguir, Mendenhall critica a visão romântica do modo de vida dos beduínos, erroneamente vistos como nômades contrastando com os sedentários das cidades, que foi assumida sem criticidade pelos pesquisadores bíblicos e usada como modelo para o Israel primitivo. Mostra que os próprios relatos bíblicos jamais colocam os antepassados de Israel como inteiramente nômades, como, por exemplo, Jacó e Labão, Jacó e os filhos, onde há sempre uma parte do grupo que é sedentária. Igualmente critica a noção de tribo como um modo de organização social próprio de nômades, mostrando que tribos podem ser parte ou estar em relação com povoados e cidades.

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Aproximando o conceito de hebreu ao de Hab/piru, e utilizando as cartas de Tell el-Amarna, Mendenhall procura demonstrar que ninguém podia nascer hebreu já que este termo indica uma situação de ruptura de pessoas e/ou grupos com a fortemente estratificada sociedade das cidades cananéias. E conclui: "Não houve uma real conquista da Palestina. O que aconteceu pode ser sumariado, do ponto de vista de um historiador interessado somente nos processos sócio-políticos, como uma revolta camponesa contra a espessa rede de cidades-estado cananéias".

Estes camponeses revoltados contra o domínio das cidades cananéias se organizam e conquistam a Palestina, diz Mendenhall, "porque uma motivação e um movimento religioso criou uma solidariedade entre um grande grupo de unidades sociais preexistentes, tornando-os capazes de desafiar e vencer o complexo mal estruturado de cidades que dominavam a Palestina e a Síria no final da Idade do Bronze"[8]. Esta motivação religiosa é a fé javista que transcende a religião tribal, e que funciona como um poderoso mecanismo de coesão social, muito acima de fatores sociais e políticos... Por isso a tradição da aliança é tão importante na tradição bíblica, pois esta é o símbolo formal através da qual a solidariedade era tornada funcional.

A ênfase na mesma herança tribal, através dos patriarcas, e na identificação de Iahweh com o "deus dos pais", pode ser creditada à teologia dos autores da época da monarquia e do pós-exílio que deram motivações políticas a uma unidade que foi criada pelo fator religioso.

Niels Peter Lemche, por outro lado, critica Mendenhall, por seu uso arbitrário de macro teorias antropológicas, mas especialmente por seu uso eclético destas teorias, coisa que os teóricos da antropologia não aprovariam de modo algum[9]. Segundo Lemche, Mendenhall usa os modelos de Elman Service expostos em sua obra Primitive Social Organization, New York, Random, 19622. Sem dúvida, seu ponto mais crítico é o idealismo que permeia o seu estudo e coloca o "javismo", um javismo não muito bem explicado, mas principalmente só o javismo e nenhuma outra esfera da vida daquele povo, como a causa da unidade solidária que faz surgir Israel.

Alguns anos mais tarde, Norman K. Gottwald publicou seu polêmico livro The Tribes of Yahweh: A Sociology of the Religion of Liberated Israel, 1250-1050 B.C.E., Maryknoll, New York, Orbis Books, 1979, no qual retoma a tese de G. Mendenhall e avança por quase mil páginas em favor de uma revolta camponesa ou processo de retribalização que explicaria as origens de Israel. Mas, em um artigo anterior, de 1975, didaticamente,

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Gottwald expõe sua tese então em desenvolvimento, e que usarei aqui para sintetizar seus pontos fundamentais[10].

Ele diz que até recentemente a pesquisa sobre o Israel primitivo era dominada por três idéias básicas:

• o pressuposto de mudança social ocorrida no deslocamento de populações, ou seja: um hiato sócio-político em Canaã teria ocorrido como resultado da substituição demográfica ou étnica de um grupo por outro, seja por imigração seja por conquista militar

• o pressuposto da criatividade do povo do deserto em iniciar mudanças sociais em regiões sedentárias, ou seja, Israel teria ocupado a terra como recurso para realizar a passagem do seminomadismo para a sedentarização, resultando numa aculturação sócio-política

• o pressuposto de mudança social produzida por características especiais de um grupo ou por elementos culturais de destaque, ou seja, a partir do momento em que o judaísmo é lido a partir da perspectiva do judaísmo tardio e do cristianismo, o javismo é visto como fonte isolada e agente de mudança na emergência de Israel[11].

As forças e pressões que dobraram e quebraram estes pressupostos são muitos, mas basta citarmos umas poucas para que as coisas comecem a clarear: a evidência etnográfica de que o seminomadismo era apenas uma atividade secundária de populações sedentárias que criavam gado e cultivavam o solo; indicações de que mudanças culturais e sociais são freqüentemente conseqüências do lento crescimento de conflitos sociais dentro de uma determinada população mais do que resultado de incursões de povos vindos de fora; a conclusão de que conflitos ocorrem tanto dentro de sociedades controladas por um regime único como entre estados opostos; a percepção de que a tecnologia e a organização social exercem um impacto muito maior sobre as idéias do que pesquisadores humanistas poderiam admitir; evidências da fundamental unidade cultural de Israel com Canaã em uma vasta gama de assuntos, desde a língua até a formação religiosa...

Os conceitos centrais que emergem deste deslocamento de pressupostos, cada vez maior entre os estudiosos, podem ser sintetizados da seguinte maneira:

• o pressuposto da ocorrência normal de mudança social ocorrida por pressão e conflitos sociais internos, como resultado de novos avanços tecnológicos e de idéias em confronto numa interação volátil

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• o pressuposto da função secundária do deserto em precipitar a mudança social, sendo que no Antigo Oriente Médio o seminomadismo era econômica e politicamente subordinado a uma região predominante agrícola e que nunca foi ocasião de deslocamentos maciços de populações ou de conquistas políticas provocadas por estes deslocamentos

• o pressuposto de que mudança social ocorre pela interação de elementos culturais de níveis diversos, especialmente o fato de que os fatores ideológicos não podem ser desligados de indivíduos e grupos vivendo em situações específicas, nas quais determinados contextos tecnológicos e sociais adquirem configurações novas[12].

A partir de tais constatações, Gottwald propõe um modelo social para o Israel primitivo que segue as seguintes linhas: "O Israel primitivo era um agrupamento de povos cananeus rebeldes e dissidentes, que lentamente se ajuntavam e se firmavam caracterizando-se por uma forma anti-estatal de organização social com liderança descentralizada. Esse desligar-se da forma de organização social da cidade-estado tomou a forma de um movimento de 'retribalização' entre agricultores e pastores organizados em famílias ampliadas economicamente auto-suficientes com acesso igual aos recursos básicos. A religião de Israel, que tinha seus fundamentos intelectuais e cultuais na religião do antigo Oriente Médio cananeu, era idiossincrática e mutável, ou seja, um ser divino integrado existia para um integrado e igualitário povo estruturado. Israel tornou-se aquele segmento de Canaã que se separou soberanamente de outro segmento de Canaã envolvendo-se na 'política de base' dos habitantes dos povoados organizados de forma tribal contra uma 'política de elite' das hierarquizadas cidades estados"[13].

Assim, Gottwald vê o tribalismo israelita como uma forma escolhida por pessoas que rejeitaram conscientemente a centralização do poder cananeu e se organizaram em um sistema descentralizado, onde as funções políticas ou eram partilhadas por vários membros do grupo ou assumiam um caráter temporário. O tribalismo israelita foi uma revolução social consciente, uma guerra civil, se quisermos, que dividiu e opôs grupos que previamente viviam organizados em cidades-estado cananéias. E Gottwald termina seu texto dizendo que o modelo da retribalização levanta uma série de questões para posterior pesquisa e reflexão teórica[14].

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[1]. Cf. ALBRIGHT, W. F., The Archaeology of Palestine, Baltimore, Penguin, 19603; WRIGHT, G. E., Biblical Archaeology, Philadelphia, Westminster Press, 19622; KAUFMANN, Y., The Religion of Israel: From its Beginnings to the Babylonian Exile, New York, Schocken Books, 1972; BRIGHT, J., História de Israel, São Paulo, Paulus, 1978.

[2]. Cf. ALT, A., Terra Prometida. Ensaios sobre a História do Povo de Israel, São Leopoldo, Sinodal, 1987; NOTH, M., The History of Israel, New York, Harper & Brothers, 1960; WEIPPERT, M., The Settlement of the Israelite Tribes in Palestine, London, SCM Press, 1971; HERMANN, S., A History of Israel in Old Testament Times, Philadelphia, Fortress Press, 1975; SOGGIN, J. A., Joshua, Philadelphia, Westminster Press, 1972.

[3]. Cf. ALT, A., Terra Prometida. Ensaios sobre a história do povo de Israel, pp. 19-110.

[4]. Cf. ALT, A., Terra Prometida, pp. 56 e 72-73.

[5]. Cf. o artigo em CARTER, C. E. & MEYERS, C. L. (eds.), Community, Identity and Ideology. Social Sciences Approaches to the Hebrew Bible, Winona Lake, Indiana, Eisenbrauns, 1996, pp. 152-169.

[6]. MENDENHALL, G. E., The Hebrew Conquest of Palestine, em CARTER, C. E. & MEYERS, C. L. (eds.), Community, Identity and Ideology, p. 152.

[7]. Idem, ibidem, p. 154.

[8]. Idem, ibidem, pp. 158-159.

[9]. Cf. LEMCHE, N. P., "On the Use of "System Theory", "Macro Theories", and Evolutionistic Thinking" in Modern Old Testament Research and Biblical Archaeology, em CARTER, C. E. & MEYERS, C. L. (eds.), Community, Identity and Ideology, p. 279.

[10]. Cf. GOTTWALD, N. K., Domain Assumptions and Societal Models in the Study of Pre-Monarchic Israel, em CARTER, C. E. & MEYERS, C. L. (eds.), Community, Identity and Ideology, pp. 170-181. Cf. também Revisiting The Tribes of Yahweh (2006).

[11]. Cf. Idem, ibidem, p. 172.

[12]. Cf. Idem, ibidem, pp. 173-174.

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[13]. Idem, ibidem, pp. 174-175.

[14]. Cf. Idem, ibidem, pp. 180-181.

PAUSA EM 06/10/2008 ÀS 16:30H

O contexto histórico que apoiaria a teoria é o seguinte:

Os hicsos conquistam o Egito por volta de 1670 a.C. e o dominam durante um século. Sua capital é Avaris. Mas são expulsos por Amósis (1580-1558 a.C.), faraó da décima oitava dinastia que transforma o Egito na maior potência mundial. A capital volta a Tebas. Tutmósis III, também da décima oitava dinastia, levou o Egito ao auge de seu poder, estendendo seu domínio até o Eufrates.

À décima oitava dinastia pertencem ainda: Amenófis IV (1372-1354 a.C.) - também conhecido como Akhenaton, o faraó do culto a Aton -, que construiu nova capital, Akhetaton, arqueologicamente conhecida como El-Amarna; Tutankhamon, que é o último faraó desta dinastia e que volta ao antigo culto a Amon e traz a capital de novo para Tebas.

A XIX dinastia teve alguns nomes famosos:

• Ramsés II, o faraó do êxodo

• Merneptah, seu filho, que cita Israel em estela de 1220 a.C.

Estela de Merneptah

Os príncipes estão prostrados dizendo: paz. Entre os Nove Arcos nenhum levanta a cabeça. Tehenu [=Líbia] está devastado; o Hatti está

em paz. Canaã está privada de toda a sua maldade; Ascalon está deportada; Gazer foi tomada; Yanoam está como se não existisse mais; Israel está aniquilado e não tem mais semente; O Haru [=Canaã] está

em viuvez diante do Egito.

Ramsés II é quem fez a aliança de paz com os hititas, deixando um vazio político na Palestina. Sob a XX dinastia, a última do reino novo, o Egito vai progressivamente perdendo toda a sua influência na Ásia.

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Vale citar aqui um longo trecho de J. G. Echegaray, O Crescente Fértil e a Bíblia: “Em 1286 a.C. aconteceu a célebre batalha de Cades, espetacular confrontação militar de Ramsés II com seu rival hitita Muwatalli. O exército egípcio compunha-se de quatro divisões que levavam nomes religiosos. A primeira, chamada divisão de Amon, na qual ia o faraó, induzida por um deficiente serviço de ‘inteligência’ que garantia que as tropas hititas ainda estavam longe, acampou ao norte da cidade de Cades. Atrás, a uma grande distância, aproximavam-se escalonadamente as divisões Rá, Ptah e Suteh. Então o exército hitita, ocultando-se, rodeou a cidade pelo sul e, saindo de um bosque, atacou a divisão Rá que acabava de atravessar o arroio Sabtuna (hoje El-Mukadiyeh). A divisão foi desarticulada e posta em fuga. Alguns se refugiaram no acampamento de Ramsés, que foi objeto de ataque imediato. Embora a divisão Amon se defendesse valentemente com seu rei à frente, não teria podido resistir se não fosse a intervenção inesperada de um corpo expedicionário de cavaleiros ‘amorreus’ procedentes da costa, que vinham para se unir ao exército egípcio na qualidade de aliados. A chegada pouco depois da divisão Ptah pôs o exército hitita em fuga, que teve de se retirar às pressas e se refugiar na cidade de Cades. A última divisão egípcia, Suteh, que ainda não atravessara o Orontes, não chegou a intervir na contenda. À vista dos acontecimentos, Ramsés II desistiu de tomar a cidade, abandoando sua missão de pacificar o país, deixando quase inteiro o exército inimigo encerrado na fortaleza, retirou-se ordenadamente para a Palestina. Não tinha sido uma verdadeira vitória, mas também não podia ser contado como uma derrota; o faraó, porém, a fez passar por um ressonante triunfo, que mandou gravar nas paredes dos templos de Tebas. A batalha na realidade fora um confronto entre as duas maiores potências do mundo. O exército egípcio era composto por cerca de 25.000 homens, mas só tinha 1.500 carros de combate. Pelo contrário, o exército hitita possuía 3.500 carros de combate”[15].

Os hicsos invadem o Egito e a Palestina, ocupando na região de Canaã, como bases centrais, Jericó e Siquém.

Bem, os hicsos introduziram na Palestina o uso do carro de combate, modificando todas as táticas de guerra então em uso. As populações locais (cananéias) tiveram que reforçar a defesa de suas cidades e abrigar em seu interior as populações mais atacadas pelos invasores.

Para rechaçar os hicsos, os egípcios da XVIII dinastia davam condições de defesa à Palestina, uma espécie de "feudo" seu: interesses estratégicos, comerciais (produtos do Líbano e rotas caravaneiras) etc levaram o Egito a

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estabelecer guarnições na Palestina e a cobrar tributo dos senhores, príncipes das cidades-estado cananéias.

As populações de baixa condição, vivendo ao abrigo das cidades e de seus exércitos locais, estava assim submetida ao príncipe cananeu, que estava submetido ao faraó egípcio. A espoliação se dava em dois níveis.

Quando o controle egípcio era menor, as cidades cananéias diminuíam ou interrompiam o pagamento do tributo, procuravam aumentar seus domínios a expensas de seus vizinhos e rivais etc. Mas a liberdade das cidades não era repassada para a população marginalizada!

Assim é descrita a situação nas cartas de Tell el-Amarna, escritas pelos governantes das cidades cananéias à corte egípcia de Amenófis III e de seu filho Amenófis IV (são 377 cartas escritas em acádico vulgar, com muitos cananeísmos, descobertas a partir de 1887).

Nos conflitos entre as cidades cananéias, seus governantes se acusam, nas cartas, da ajuda, feita pelo inimigo, aos hapiru: estes estariam conquistando cidades em Canaã e provocando revoltas[16]. Os hapiru revoltavam-se contra seus opressores cananeus e libertavam-se de seu controle.

Quando os israelitas do grupo de Moisés chegam a Canaã esta é a situação: confrontos generalizados entre as cidades, confronto entre os marginalizados e as cidades, vazio de poder egípcio porque Ramsés II não conseguiu vencer os hititas e foi obrigado a fazer um acordo com este povo da Ásia Menor.

Unidos pela esperança javista os recém-chegados juntam-se aos revoltosos, formando com eles uma mesma identidade social. Constituem um "governo" tribal, uma aliança tribal, e ocupam as regiões montanhosas, onde os cananeus, senhores das cidades, tinham perdido o controle.

Realmente, o livro de Gottwald suscitou uma grande polêmica e polarizou as atenções dos especialistas durante muito tempo. O modelo da retribalização ou da revolta camponesa passou a ser citado como uma alternativa bem mais interessante do que os modelos anteriores e fez surgir outras tentativas de explicação das origens de Israel. Muitas críticas também foram formuladas a Gottwald, sendo a de maior consistência a do dinamarquês Niels Peter Lemche, que em Early Israel. Anthropological and Historical Studies on the Israelite Society before the Monarchy, analisa longamente os fundamentos do modelo de Gottwald[17].

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Segundo Lemche, Gottwald fundamenta suas teorias no estudo de Morton Fried, The Evolution of Political Society, New York, Random, 1967, mas faz um uso eclético de outras teorias e autores, de uma maneira que dificilmente qualquer um deles aprovaria. Mas a birra principal de Lemche com estes autores e suas teorias é que, segundo ele, os modelos derivados da corrente antropológica do "evolucionismo cultural" desconsideram a variável chamada Homem (enquanto indivíduo livre e imprevisível em suas ações) por não ser controlável.

Entretanto, um dos problemas do ecletismo de Gottwald é que embora se reporte às vezes a Marx, faz uma leitura do Israel pré-monárquico segundo a tradição durkheimiana. Nas palavras de A. D. H. Mayes: “Existem, porém, boas razões, para ver Gottwald neste contexto [durkheimiano] antes do que na tradição de conflito a que pertence Marx. As características distintivas da teoria de conflito, que entende a sociedade dentro do quadro da interação de diversas classes ou grupos de status, estão inteiramente ausentes do estudo de Gottwald: nele Israel surge como unidade harmoniosa e indiferenciada. Gottwald adota enfoque funcionalista da sociedade israelita, que tem certamente raízes na teoria social de Durkheim, e enfatiza sua dimensão estrutural sincrônica, antes que sua dimensão histórica diacrônica”[18].

2.4. A Teoria da Evolução Pacífica e GradualQuanto a esta teoria, vale a pena olharmos alguns autores que procuraram avançar a partir e além de Mendenhall e Gottwald. Como nos lembra R. K. Gnuse, as descobertas arqueológicas dos últimos anos encorajaram os pesquisadores na elaboração de novas maneiras de compreender as origens de Israel. As escavações de localidades tais como Ai, Khirbert Raddana, Shiloh, Tel Quiri, Bet Gala, Izbet Sarta, Tel Qasileh, Tel Isdar, Dan, Arad, Tel Masos, Beer-Sheba, Har Adir, Horvart Harashim, Tel Beit Mirsim, Sasa, Giloh, Horvat ‘Avot, Tel en-Nasbeh, Beth-Zur e Tel el-Fûl, deixaram os arqueólogos impressionados com a continuidade existente entre as cidades cananéias das planícies e os povoados israelitas das colinas. A continuidade está presente sobretudo na cerâmica, nas técnicas agrícolas, nas construções e nas ferramentas[19].

O crescente consenso entre os arqueólogos é de que a distinção entre cananeus e israelitas no primeiro período do assentamento na terra é cada vez mais difícil de ser feito, pois estes parecem constituir um só povo. As diferenças entre os dois aparecem apenas mais tarde. Por isso, os arqueólogos começam a falar cada vez mais do processo de formação de Israel como um processo pacífico e gradual, a partir da transformação de parte da sociedade cananéia. “A teoria sugere que, de alguma maneira,

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cananeus gradualmente tornaram-se israelitas, acompanhando transformações políticas e sociais no começo da Idade do Bronze”[20].

Os defensores deste ponto de vista argumentam com o declínio cultural ocorrido no Bronze Antigo, com a deterioração da vida urbana causada pelas campanhas militares egípcias, com a crescente tributação, e, talvez, com mudanças climáticas. Mas o processo de evolução pacífica de onde surgiu Israel é descrito de maneira diferente pelos especialistas, de modo que R. K. Gnuse prefere classificar as teorias em quatro categorias, que são:

• Retirada pacífica

• Nomadismo interno

• Transição ou transformação pacífica

• Amálgama pacífico.

2.4.1. Retirada PacíficaComo defensores de uma retirada pacífica de grupos cananeus das planícies para as regiões montanhosas, R. K. Gnuse cita especialmente Joseph Callaway, David Hopkins, Frank Frick, James Flanagan, Gösta Ahlström e Carol Meyers[21].

Joseph Callaway foi um dos primeiros a observar nas escavações de Ai e Khirbet Raddana, no território de Efraim, que os habitantes destas pequenas localidades situadas nas montanhas usavam as mesmas técnicas dos cananeus na agricultura, na fabricação de ferramentas, na perfuração de cisternas, na construção de casas e de terraços para a retenção da água da chuva. Isto implica uma continuidade cultural com os cananeus das cidades situadas nos vales e sugere que as pessoas se deslocaram para Ai e Raddana para fugir de possíveis conflitos nos vales. Entre 1200 e 900 a.C. o número de povoados nas montanhas passou de 23 para 114, o que sugere uma significativa retirada.

David Hopkins, por sua vez, em uma avaliação detalhada da agricultura na região montanhosa da Palestina na Idade do Ferro I (1200-900 a.C.), observou que o desenvolvimento social aconteceu junto com a intensificação do cultivo da terra. Para Hopkins, estas pessoas desenvolveram um sistema de colaboração ao nível de clã e de famílias, o que lhes permitia uma integração de culturas agrícolas com a criação de animais, evitando, deste modo, os desastres comuns a que uma monocultura estava sujeita nestas regiões tão instáveis, especialmente em

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recursos hídricos. Hopkins valorizou mais o sistema cooperativo baseado no parentesco do que o uso de técnicas como terraços, cisternas e o uso do ferro para explicar o sucesso destes assentamentos agrícolas. Para Hopkins, diferentes unidades clânicas e tribais israelitas devem ter surgido a partir de diferentes atividades agrícolas.

Frank Frick acredita que os assentamentos israelitas surgiram após um colapso das cidades cananéias. Esta nova sociedade teria então evoluído de uma 'sociedade segmentária' (época dos Juízes) para uma 'sociedade com chefia' (Saul) e, finalmente, para o 'Estado' (Davi).

James Flanagan também acredita que o Israel pré-davídico surgiu da movimentação de grupos sedentários que deixaram os vales para uma organização mais descentralizada nas montanhas e na Transjordânia, onde eles se dedicaram à agricultura e ao pastoreio.

Gösta Ahlström, entretanto, foi quem desenvolveu mais amplamente este modelo de uma retirada pacífica em vários de seus escritos. Ele trabalha a continuidade entre israelitas e cananeus, evidente na cultura material, e busca reler os textos bíblicos dentro desta lógica. O próprio nome do povo, 'Israel', reflete esta lógica, já que construído com o nome de El, divindade cananéia. Ahlström contesta a tese de Gottwald de uma 'retribalização' ocorrida nas montanhas, já que sua estrutura social de base familiar não corresponde, segundo ele, ao tipo nômade. Nenhuma 'revolta' de camponeses pode ser documentada. Os recursos tecnológicos menores, igualmente, não indicam a chegada de um grupo de pessoas vindas de fora da terra, mas sim a escassez de recursos da área dos assentamentos.Talvez um grupo tenha vindo de Edom e se juntado a estes camponeses, trazendo com eles o culto a Iahweh.

Carol Meyers defende que Israel surgiu nas montanhas após uma violenta praga que devastou os vales. Teria havido um declínio de até 80% da população dos vales, e cidades podem ter sido queimadas para evitar contágio. Nas montanhas, o crescimento populacional - de 23 para 114 povoados - exigiu mais alimento, levando à intensificação da agricultura, agora possível pela construção de cisternas e terraços e isto produziu, no final, Israel.

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[15]. ECHEGARAY, J. G., O Crescente Fértil e a Bíblia, pp. 90-91.

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[16]. Cf. AA. VV., Israel e Judá. Textos do Antigo Oriente Médio, São Paulo, Paulus, 1985, pp. 28-31, cartas G, H, I, K, L.

[17]. Cf. LEMCHE, N. P., Early Israel. Anthropological and Historical Studies on the Israelite Society before the Monarchy, Leiden, E. J. Brill, 1985; cf. também MARTIN, J. D., Israel como sociedade tribal, em CLEMENTS, R. E. (org.), O Mundo do Antigo Israel. Perspectivas Sociológicas, Antropológicas e Políticas, São Paulo, Paulus, 1995, pp. 97-118; SICRE, J. L., Los Orígenes de Israel. Cinco Respuestas a un Enigma Histórico, em Estudios Biblicos 46 (1988), Madrid, pp. 421-456 e FRITZ, V., Die Entstehung Israels im 12. und 11. Jahrhundert v. Chr., Stuttgart, Kohlhammer, 1996, pp. 104-121, onde os vários modelos são descritos e analisados.

[18]. MAYES, A. D. H., Sociologia e Antigo Testamento, em CLEMENTS, R. E. (org.), O Mundo do Antigo Israel, p. 55.

[19]. Cf. GNUSE, R. K., No Other Gods. Emergent Monotheism in Israel, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1997, pp. 32-61.

[20]. Idem, ibidem, p. 33.

[21]. Cf. CALLAWAY, J., Village Subsistence at Ai and Raddana in Iron Age I, em THOMPSON, H. (ed.), The Answers Lie Below: Essays in Honor of Lawrence Edmund Toombs, Lanham, University Press of America, 1984; HOPKINS, D., The Highlands of Canaan, Decatur, Georgia, Almond Press, 1985; FRICK, F., The Formation of the State in Ancient Israel. A Survey of Models and Theories, Decatur, Georgia, Almond Press, 1985; FLANAGAN, J., David’s Social Drama: a Hologram of Israel’s Early Iron Age, Decatur, Georgia, Almond Press, 1988; AHLSTRÖM, G., A History of Ancient Palestine, Minneapolis, Fortress Press, 1993; MEYERS, C., Discovering Eve: Ancient Israelite Women in Context, New York, Oxford University Press, 1988.

2.4.2. Nomadismo InternoDefensores do nomadismo interno são C. H. J. de Geus, Volkmar Fritz e Israel Finkelstein[22]. Embora admitindo a continuidade entre israelitas e cananeus, estes especialistas defendem uma origem pastoril para os primeiros.

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C. H. J. de Geus, antigo defensor das teorias de Mendenhall e Gottwald, propõe que os israelitas eram etnicamente unidos, morando nas montanhas e usando categorias tribais. Eles seriam os hapiru das cartas de Tell el-Amarna, vivendo nas áreas intermediárias entre as cidades e com elas interagindo, experimentando, por isso, uma 'simbiose cultural'. Eles estavam na região há séculos e pertenciam à cultura amorita siro-palestina do Bronze Médio. Quando as cidades sofreram um colapso eles expandiram seu controle.

Volkmar Fritz, antes defensor da idéia de infiltração pacífica de Albrecht Alt, ao escavar no norte do Negev, percebe que a cultura israelita viveu um longo período em contato com a cultura cananéia e deslocou um pouco sua perspectiva. A casa israelita de quatro cômodos significa uma evolução da arquitetura cananéia e a sua familiaridade com a criação de animais domésticos e seus trabalhos em metal e cerâmica mostram que eles não eram verdadeiros nômades, mas que estavam em contato comercial com as culturas das cidades da região. Para Fritz, porém, a arquitetura diferenciada dos povoados israelitas nas montanhas mostra que eles não saíram simplesmente das cidades das planícies, mas que foram proto-israelitas, que, vindos de fora, antes de se sedentarizarem, entraram em contato simbiótico com as culturas citadinas. Ou seja: eles estavam culturalmente próximos dos cananeus, mas eram etnicamente diferentes e trouxeram consigo suas próprias estruturas sociais e sua cultura material. Eles seriam os hapiru ou os shasu dos textos egípcios, que eventualmente deram origem a Israel, Moab e Edom.

Israel Finkelstein é o principal defensor da idéia do 'nomadismo interno'. Talvez resumindo excessivamente seu matizado pensamento, eu diria que, para Finkelstein, os israelitas eram 'nômades internos', gente que vivia na Palestina, por toda a Idade do Bronze, na proximidade das cidades. Com o declínio destas, estes pastores se dedicaram também à agricultura para conseguir cereais e outros alimentos não mais oferecidos pelas cidades. Eles teriam se assentado em grande número na região montanhosa de Efraim e, a partir dali, se espalhado, como defendia Alt, para o norte e para o sul da região. O aumento populacional posterior colocou-os em conflito com populações das planícies até que se chegou à unificação davídica.

2.4.3. Transição ou Transformação PacíficaEntre os proponentes de uma transição ou transformação pacífica se destacam o já citado Niels Peter Lemche e mais: William Stiebing, R. Drews, Robert Coote & Keith Whitelam e Rainer Albertz[23].

Niels Peter Lemche, um dos mais brilhantes 'minimalistas' da Escola de Copenhague, acredita que muito pouco pode ser dito das origens de Israel

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antes do século X a.C. a não ser a percepção de um processo gradual de aumento da população nas montanhas da Palestina. Lemche, assim como outros minimalistas, questiona o uso da Bíblia Hebraica na reconstrução da História de Israel, já que esta é um produto pós-exílico, possivelmente da época helenística. Na verdade, diz Lemche, não há época patriarcal, êxodo, juízes, monarquia unida... Lemche expõe a sua visão no livro de 1998, The Israelites in History and Tradition, p. 74, ao mesmo tempo que procura superá-la com uma nova proposta nas páginas 75-77.

Diz Lemche que o modelo 'evolucionário' por ele defendido na obra de 1988, Ancient Israel: A New History of Israelite Society pressupõe que o aumento dos assentamentos tenha sido uma conseqüência natural da deterioração das condições de vida das cidades da Palestina durante a última parte do Bronze Recente, até cerca de 1200 a.C. Segundo esta explicação, diferenças étnicas só apareceram com o passar do tempo, motivadas por interesses econômicos, políticos, regionais e religiosos diferentes, levando os habitantes dos povoados a se agrupar em grupos de parentesco, linhagens e, no final do processo, em tribos.

Mas Lemche vê problemas nesta proposta, pois ela pressupõe um vazio de poder egípcio na região e a conseqüente decadência das cidades, provocada pela perda das rendas do comércio internacional, no conturbado enfrentamento de grandes potências no século XIII a.C. Entretanto, o que hoje se sabe é que a ausência egípcia na região não coincide com o aparecimento dos povoados na região montanhosa da Palestina. Daí, que o afastamento desta população, saindo das cidades, pode ter sido causado não pela ausência, mas pelo aumento da pressão egípcia sobre as mesmas, em sua exigência de mais tributos e mais trabalho forçado. Assim o Egito compensava as perdas do comércio internacional.

Mas esta proposta não inclui a participação dos nômades na formação desta nova sociedade, e a presença de elementos nômades nestes assentamentos deve ser considerada. Então, por que não creditar à política egípcia o processo de criação de assentamentos sem fortificações, por um lado, e por outro, a fixação dos migrantes, consolidando o poder do império na região? Pois, deste modo, o Egito transferia parte da população de cidades, agora improdutivas, para novas regiões e garantia os seus rendimentos na região.

William Stiebing, por outro lado, coloca as mudanças climáticas ocorridas na região do Mediterrâneo entre 1250 e 1200 a.C. como fator fundamental para explicar o declínio da cultura urbana da Grécia Micénica à Palestina. Afugentados pela seca, os sobreviventes da fome que se abateu sobre as cidades foram para as montanhas. Condições climáticas mais favoráveis por volta do ano 1000 a.C. possibilitaram o aumento desta população e à

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criação do Estado. Israel, portanto, surgiu não pelo simples deslocamento de determinados grupos, mas pelo crescimento populacional tornado possível pelas condições climáticas favoráveis à agricultura.

Robert Drews defende que os 'povos do mar' que invadem a região não eram simples migrantes, mas mercenários treinados e com armamento superior ao dos exércitos locais. Daí o massacre das cidades e o aumento populacional dos habitantes das montanhas, com mudanças, inclusive, em seu comportamento ético, agora mais igualitário. Ele dá pouca importância aos fatores climáticos na explicação dos acontecimentos.

Robert Coote & Keith Whitelam vêem as origens de Israel como parte de um processo de integração milenar entre as regiões das cidades e as regiões das montanhas. Processo que pode ser chamado de 'realinhamento' ou 'transformação', pois nos períodos de prosperidade as regiões das montanhas providenciavam recursos para as cidades dos vales, enquanto que nos momentos das crises elas absorviam as populações que deixavam tais cidades. No surgimento de Israel o colapso do comércio foi o fator mais significativo, segundo estes autores, pois colocou em crise a sobrevivência das cidades e exigiu dos povoados das montanhas uma forma mais eficaz de colaboração e cooperação para a sobrevivência, levando a um aumento populacional significativo. Com o desenvolvimento destas regiões o comércio foi recuperado, promovendo mais tarde o aparecimento do Estado.

Rainer Albertz faz uma espécie de síntese de várias escolas, indo de Albright a Lemche, não propondo uma teoria específica. Albertz fala de 'digressão', processo pelo qual o colapso do comércio internacional forçou os habitantes das cidades a se deslocarem para os povoados das montanhas e aí se desenvolverem. Para tais comunidades o grupo do êxodo trouxe as idéias do deus Iahweh.

2.4.4. Amálgama PacíficoFinalmente, a idéia de um amálgama pacífico de diferentes grupos nas regiões montanhosas da Palestina para explicar as origens de Israel tem como defensores especialistas como Baruch Halpern, William Dever, Thomas Thompson e Donald Redford. A opinião de R. K. Gnuse, que aqui se alinha, é de que este grupo de pesquisadores prevalecerá sobre os outros, por considerar melhor os pressupostos teóricos do debate atual[24].

Baruch Halpern foi um dos primeiros a descrever o processo de assentamento como uma complexa interação de diferentes grupos nas montanhas: poucos habitantes dos vales, muitos habitantes da região montanhosa, um grupo vindo do Egito com a experiência do êxodo, grupos

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vindos da Síria... O grupo do Egito trouxe Iahweh, enquanto o grupo sírio, de agricultores despossuídos, trouxe a circuncisão e a proibição da criação do porco e criou o nome 'Israel' no século XIII a.C. Todos estes grupos foram reunidos pela necessidade de manter rotas de comércio abertas com a ausência do Egito na região. Progressivamente controlaram também as planícies, levando ao surgimento da monarquia. Halpern sublinha ainda que o Israel histórico não é o Israel da Bíblia Hebraica, mas foi o Israel histórico que produziu o Israel bíblico.

William Dever já foi simpatizante do modelo da revolta de Gottwald, das propostas de Coote & Whitelam e do modelo de simbiose de Fritz. Hoje ele vê o surgimento de Israel entre as populações que praticavam a agricultura na Palestina e rejeita a dicotomia cananeu/israelita, dizendo que a distinção entre urbano e rural explica as diferenças, que são funcionais e não étnicas. Para Dever Israel se formou de refugiados das cidades, 'bandidos sociais' (social bandits), alguns revolucionários, uns poucos nômades, mas, principalmente, cananeus saídos das cidades. Na região das montanhas eles progressivamente criaram uma identidade que os diferenciou dos cananeus das planícies.

Thomas L. Thompson, um dos mais polêmicos 'minimalistas' é ferrenho defensor de uma História da Palestina escrita somente a partir dos dados arqueológicos e crítico de qualquer história e arqueologia bíblicas. Thompson observa que a população da Palestina permaneceu inalterada durante milênios, movendo-se os grupos entre as cidades das planícies e os povoados das montanhas segundo as estratégias de sobrevivência exigidas pelas mudanças climáticas, principal fator de transformação social e política da região. A população das montanhas era formada por nativos da região, que se misturaram com gente que veio das planícies, pastores de outras áreas e imigrantes da Síria, Anatólia e do Egeu. A unidade política de Israel só aparece na época das interferências assírias na região, no século VIII a.C., no que diz respeito a Samaria, e no século VII a.C., quando Jerusalém, após a destruição de Lakish por Senaqueribe, torna-se líder da região sul, como cidade cliente da Assíria. Toda a 'estória bíblica' do império davídico-salomônico e dos reinos divididos de Israel e Judá é, para Thompson, pura ficção pós-exílica.

Por fim, Donald Redford, egiptólogo, defende que existe uma diferença entre os habitantes das planícies e os habitantes das montanhas. Ele sugere que o núcleo da população nas montanhas era formado por pastores que se sedentarizaram, mas que pastores shasu vindos de Edom, e trazendo consigo o culto a Iahweh, também ali se assentaram, dando início ao futuro Israel, para ele, distinto dos cananeus.

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Conclusãoa. Qual é o modelo mais aceito na atualidade?

O modelo da instalação pacífica (de ALT/NOTH) sempre foi muito considerado. O modelo de MENDENHALL/GOTTWALD, de uma revolta de camponeses marginalizados que somam suas forças aos recém-chegados hebreus do êxodo foi o mais discutido até a década de 90. Outros, como o de LEMCHE, de uma evolução progressiva, ainda não conseguiram espaço nos manuais, mas são, hoje, os mais discutidos entre os especialistas.

b. Existe algum acordo mínimo sobre a questão?

O consenso dos especialistas tende a crescer na seguinte direção:

1. A arqueologia é importantíssima para definir o modo como Israel ocupou a região da Palestina

2. Os dados arqueológicos apóiam cada vez menos a versão da conquista tal como está no livro de Josué ou nas explicações dos norte-americanos

3. O elemento cananeu cresce em importância na explicação das origens de Israel.

c. Um modelo apenas explica tudo ou devemos recorrer a vários modelos?

Parece que não se pode usar um só modelo para explicar a ocupação de todo o território de Canaã, já que o processo de instalação parece ter sido diferenciado conforme as regiões e as circunstâncias. Parece provável que em cada região tenha havido um processo social específico que deve ser explicado.

d. Quais recursos devem ser usados para se elaborar um modelo explicativo?

Certamente a arqueologia, a análise minuciosa dos textos bíblicos (exceto para alguns 'minimalistas') e as ciências sociais. A contribuição da antropologia é cada vez maior para explicar estes mecanismos sociais antigos.

De qualquer modo, existe uma certeza: ainda surgirão muitos modelos explicativos para as origens de Israel e é possível que a solução definitiva esteja bem distante...

Leituras Recomendadas

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AA.VV., Israel e Judá. Textos do Antigo Oriente Médio, São Paulo, Paulus, 19972, pp. 37-38.

ALT, A., Terra Prometida. Ensaios sobre a História do Povo de Israel, São Leopoldo, Sinodal, 1987, pp. 19-110.

CARTER, C. E. & MEYERS, C. L. (eds.), Community, Identity and Ideology. Social Sciences Approaches to the Hebrew Bible, Winona Lake, Indiana, Eisenbrauns, 1996.

CERESKO, A. R., Introdução ao Antigo Testamento numa Perspectiva Libertadora, São Paulo, Paulus, 1996, pp. 99-119.

CLEMENTS, R. E. (org.), O Mundo do Antigo Israel. Perspectivas Sociológicas, Antropológicas e Políticas, São Paulo, Paulus, 1995.

ECHEGARAY, J. G., O Crescente Fértil e a Bíblia, Vozes, Petrópolis, 1993, pp. 83-105.

FINKELSTEIN, I. & SILBERMAN, N. A., The Bible Unearthed. Archaeology's New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts, New York, The Free Press, 2001.

FRITZ, V., Die Entstehung Israels im 12. und 11. Jahrhundert v. Chr., Stuttgart/Berlin/Köln, Kohlhammer, 1996, pp. 104-121.

GNUSE, R. K., No Other Gods. Emergent Monotheism in Israel, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1997, pp. 23-61.

GOTTWALD, N. K., As Tribos de Iahweh. Uma Sociologia da Religião de Israel Liberto 1250-1050 a.C., São Paulo, Paulus, 1986 [20042], pp. 202-229.

GOTTWALD, N. K., Introdução Socioliterária à Bíblia Hebraica, São Paulo, Paulus, 1988, pp. 251-276.

LEMCHE, N. P., The Israelites in History and Tradition, Louisville, Kentucky, Westminster John Knox, 1998.

SICRE, J. L., Los Orígenes de Israel. Cinco Respuestas a un Enigma Histórico, em Estudios Bíblicos 46 (1988), Madrid, pp. 421-456.

THOMPSON, T. L., The Mythic Past. Biblical Archaeology and the Myth of Israel, New York, Basic Books, 1999, pp. 101-225.

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[22]. Cf. DE GEUS, C. H. J., The Tribes of Israel: an Investigation into Some of the Presuppositions of Martin Noth’s Amphictyony Hypothesis, Amsterdam, Van Gorcum, 1976; FRITZ, V., Die Entstehung Israels im 12. und 11. Jahrhundert v. Chr., Sttutgart, Kohlhammer, 1996; FINKELSTEIN, I., The Archaeology of the Israelite Settlement, Jerusalem, Israel Exploration Society, 1988; FINKELSTEIN, I. & SILBERMAN, N. A., The Bible Unearthed. Archaeology's New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts, New York, The Free Press, 2001.

[23]. Cf. LEMCHE, N. P., Early Israel: Anthropological and Historical Studies on the Israelite Society Before the Monarchy, Leiden, Brill, 1985; Ancient Israel: A New History of Israelite Society, Sheffield, Sheffield Academic Press, [1988], 1995; The Canaanites and Their Land: The Tradition of the Canaanites, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1991; Die Vorgeschichte Israels. Von den Anfängen bis zum Ausgang des 13. Jahrhunderts v.Chr., Stuttgart, Kohlhammer, 1996; The Israelites in History and Tradition, Louisville, Kentucky, Westminster John Knox, 1998; STIEBING, W., Out of the Desert? Archaeology and the Conquest Narratives, Buffalo, Prometheus, 1989; DREWS, R., The End of the Bronze Age: Changes in Warfare and the Catastrophe ca. 1200 B.C., Princeton, Princeton University Press, 1993; COOTE, R. & WHITELAM, K., The Emergence of Early Israel in Historical Perspective, Decatur, Georgia, Almond Press, 1987; ALBERTZ, R., A History of Israelite Religion in the Old Testament Period, 2 vols., Philadelphia, Westminster Press, 1994.

[24]. Cf. HALPERN, B., The Emergence of Israel in Canaan, Chico, CA, Scholar Press, 1983; DEVER, W., Recent Archaeological Discoveries and Biblical Research, Seattle, University of Washington Press, 1990; THOMPSON, T. L., Early History of the Israelite People from the Written and Archaeological Sources, Leiden, Brill, 1992, 19942; The Mythic Past. Biblical Archaeology and the Myth of Israel, New York, Basic Books, 1999; REDFORD, D., Egypt, Canaan and Israel in Ancient Times, Princeton, Princeton University Press, 1992.

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3. Os Governos de Saul, Davi e Salomão

Até meados da década de 70 do século XX, raras vozes no mundo acadêmico ousariam contestar a versão abaixo para descrever a origem e as características da monarquia israelita.

3.1. Ascensão e Queda de SaulOs filisteus, um dos "povos do mar" rechaçados pelo Egito, haviam ocupado uma fértil faixa costeira no sudoeste da Palestina. Isto aconteceu por volta de 1150 a.C. Os filisteus formaram uma confederação de cinco cidades: Gaza, Ascalon, Ashdod, Gat e Ekron.

Ou porque viam em Israel uma ameaça às suas rotas comerciais ou por algum outro motivo, os filisteus avançaram com um exército organizado contra os agricultores israelitas. Usavam armas de ferro, metal que sabiam trabalhar bem e perigosos carros de combate, além de possuírem uma longa tradição militar.

Aí por volta de 1050 a.C. os filisteus atacam e vencem os israelitas perto de Afeq, na região norte. De acordo com 1Sm 4, a Arca da Aliança, levada pelos sacerdotes de Silo para o campo de batalha, como última esperança, foi capturada, os israelitas derrotados. Silo, destruído.

Os filisteus não ocuparam todo o país, mas posicionaram-se em postos estratégicos, cortando as comunicações entre os vários grupos israelitas. Além do mais, proibiram o trabalho em metal em todo o território israelita - o que equivalia a um desarmamento geral do povo e à sua dependência dos filisteus até mesmo para os trabalhos mais elementares da agricultura - e saquearam os produtos de boa parte do país.

Samuel tentou por todos os meios levantar e organizar o povo para uma luta de libertação. Em vão.

A saída, então, foi a escolha de um chefe único, colocado acima de todos os grupos israelitas autônomos. Nem que fosse alguém com poder despótico, superior às tribos todas em poder, com perigoso precedente de utilização deste poder contra parte da população, como acontecia nos reinos vizinhos e como demonstra o apólogo de Joatão em Jz 9,8-15, em um dos mais brilhantes panfletos anti-monárquicos que se conhece na história. Eis o texto:

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"Um dia as árvores se puseram a caminhopara ungir um rei que reinasse sobre elas.

Disseram à oliveira: 'Reina sobre nós!'

A oliveira lhes respondeu:'Renunciaria eu ao meu azeite,

que tanto honra aos deuses como aos homens,a fim de balançar-me por sobre as árvores?'

Então as árvores disseram à figueira:

'Vem tu, e reina sobre nós!'

A figueira lhes respondeu:'Iria eu abandonar minha doçura

e o meu saboroso fruto,a fim de balançar-me por sobre as árvores?'

As árvores disseram então à videira:

'Vem tu, e reina sobre nós!'

A videira lhes respondeu:'Iria eu abandonar meu vinho novo,que alegra os deuses e os homens,

a fim de balançar-me por sobre as árvores?'

Então todas as árvores disseram ao espinheiro:'Vem tu, e reina sobre nós!'

E o espinheiro respondeu às árvores:

'Se é de boa fé que me ungis para reinar sobre vós,vinde e abrigai-vos à minha sombra.

Se não, sairá fogo dos espinheirose devorará os cedros do Líbano!'".

Sobre a ascensão de Saul, um impetuoso benjaminita, a líder do povo, há duas versões opostas que refletem duas tendências: uma que aclama e defende a idéia (1Sm 9,1-10.16), outra que se opõe e alerta contra o perigo do empreendimento (1Sm 8).

"Este é o direito do rei que reinará sobre vós: Ele convocará os vossos filhos e os encarregará dos seus carros de guerra e dos seus cavalos e os fará correr à frente do seu carro; e os nomeará chefes de mil e chefes de cinqüenta, e os fará lavrar a terra dele e ceifar a sua seara, fabricar as

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suas armas de guerra e as peças de seus carros. Ele tomará as vossas filhas para perfumistas, cozinheiras e padeiras. Tomará os vossos

campos, as vossas vinhas, os vossos melhores olivais, e os dará aos seus oficiais. Das vossas culturas e e das vossas vinhas ele cobrará dízimo, que

destinará aos seus eunucos e aos seus oficiais. Os melhores dentre os vossos servos e as vossas servas, os vossos bois e os vossos jumentos, ele

os tomará para o seu serviço. Exigirá o dízimo dos vossos rebanhos, e vós mesmos vos tornareis seus escravos. Então, naquele dia, reclamareis contra o rei que vós mesmos tiverdes escolhido, mas Iahweh não vos

responderá, naquele dia!" (1Sm 8,11-18).

Este discurso, colocado na boca de Samuel, é, na verdade, um texto deuteronomista, avaliando, após a sua falência, o que de fato a monarquia representou em Israel, Mas, alguns acham que se pode considerá-lo como herdeiro de uma tradição antimonárquica que se manifesta já na época de Saul.

De qualquer maneira, numa atuação carismática e espontânea, Saul conseguiu uma vitória sobre os amonitas que entusiasmou o povo e o convenceu de suas capacidades guerreiras (1Sm 11). Depois disso ele foi, segundo o Deuteronomista, aclamado rei em Guilgal (1Sm 11,14-15).

Mas, podemos dizer que Saul não foi propriamente um rei. Continuou a viver em sua terra, Gibea, e não tocou na estrutura interna da organização tribal. Era um chefe militar: mantinha um pequeno exército permanente e regular e seu governo oferecia alguns cargos: seu primo Abner era general de seu exército, Davi, seu escudeiro. Se houve mais, pouco foi.

Saul e seu filho Jônatas conseguiram uma boa vitória sobre os filisteus reunidos em Gibea e Micmas (1Sm 13-14), o que deu a Israel um alívio temporário.

Entretanto, a queda de Saul devia acontecer em breve. As causas poderiam ser identificadas na ambigüidade de sua posição (rei ou chefe tribal?), na independência tribal, na sempre constante ameaça dos filisteus e principalmente no desentendimento entre a antiga ordem tribal e as exigências da nova ordem.

Segundo as fontes bíblicas de que dispomos, Saul teria usurpado funções sacerdotais (1 Sm 13) e violado antigas leis da guerra santa que não favoreciam sua estratégia militar (1Sm 15).

Samuel, significativo representante da antiga ordem, acabou rompendo com Saul. As coisas se agravaram, porém, quando o jovem pastor de

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Belém, Davi, amigo de Jônatas e marido de Mical, filhos de Saul, tornou-se seu rival. Saul assassinou a família sacerdotal de Silo, agora estabelecida em Nob, porque esta defendera Davi (1Sm 22) e a partir daí perseguiu Davi implacavelmente.

Davi refugiou-se no deserto e formou um bando de guerreiros que fugiam de Saul e atacavam os filisteus. Não se agüentando, porém, nesta posição, Davi e sua tropa oferecem seus serviços ao rei filisteu de Gat. Este o acolhe e lhe dá como feudo a cidade de Siclaq, no Negueb.

A queda de Saul acontece quando os filisteus partiram mais uma vez de Afeq e, escolhendo posição favorável, entraram em choque com o exército de Saul a noroeste do monte Gelboé. A batalha estava perdida antes mesmo de começar, mas Saul não voltou atrás. Resultado: seus três filhos morreram em combate e ele mesmo, muito ferido, "se lançou sobre a sua espada" e seu exército foi totalmente desfeito (1Sm 31).

Os filisteus cortaram-lhe a cabeça e fixaram seu corpo e os de seus filhos nos muros de Bet-Shan, como exemplo para os israelitas. Então, ocuparam toda a terra. Saul liderou os israelitas de 1030 a 1010 a.C.

3.2. Davi e a Criação do EstadoPara substituir Saul não ficara ninguém válido a não ser seu último filho Isbaal. Com efeito, Abner refugiou-se com ele em Mahanaim, na Transjordânia, e de lá pretendeu que fosse dada continuidade ao governo de Saul através do fraco Isbaal. Foi só uma pretensão, realmente.

Enquanto isso, Davi dirigiu-se com seus homens para Hebron e, com o consentimento dos filisteus e o apoio da população do sul, tornou-se o líder de Judá (2Sm 2,1-4). Isto teria acontecido por volta de 1010 a.C.

Segundo as fontes bíblicas, dois anos mais tarde, Isbaal é assassinado e, através de hábeis manobras políticas, Davi é também aclamado rei da região norte do território por todo o povo (2Sm 5,1-5).

Em seguida, ele conquista Jerusalém, cidade jebuséia situada no sul, e faz dela a sua cidade. Assim, Davi consegue uma união, ainda que frágil, dos vários grupos israelitas.

Competia agora a Davi vencer os filisteus e acabar de vez com suas ameaças. Ele não se fez de rogado. Os filisteus atacaram repetidamente e foram totalmente derrotados: tiveram que reconhecer a supremacia de Israel e tornaram-se seus vassalos.

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Segundo o texto bíblico, Davi construiu, na verdade, um grande reino: submeteu Amon, Moab, Edom, os arameus etc. Todos os reis da região, até o Eufrates, pagavam-lhe tributos.

E o Estado sob Davi funciona, segundo o texto bíblico, de maneira austera e modesta, mantendo uma administração baseada no respeito às instituições tribais e alguns funcionários.

"Davi reinou sobre todo o Israel, exercendo o direito e fazendo justiça a todo o povo. Joab, filho de Sárvia, comandava o exército. Josafá, filho de Ailud, era o arauto. Sadoc e Abiatar, filhos de Aquimelec, filho de Aquitob, eram sacerdotes; Saraías era secretário; Banaías, filho de Joiada, comandava os cereteus e os feleteus. Os filhos de Davi eram sacerdotes" (2Sm 8,15-18).

Seu exército compunha-se de israelitas convocados das várias tribos, de sua guarda pessoal - seus homens de confiança desde os tempos da clandestinidade - e de mercenários estrangeiros, como os cereteus e feleteus.

Os países dominados pagavam tributo, instituiu-se a corvéia - estrangeiros obrigados a trabalhar grátis nos projetos do Estado – e Davi não interferiu na administração da justiça tribal.

Davi levou para Jerusalém a Arca da Aliança, nomeou os chefes dos sacerdotes e fez tudo o que pôde para o culto, procurando assim manter o consenso da população ao redor da nova instituição.

Apesar de tudo isto, Davi enfrentou tensões surgidas entre a antiga e a nova ordem: por exemplo, o recenseamento (com fins fiscais e militares) que ele mandou fazer gerou conflitos e críticas (2Sm 24) e a luta de seus filhos pela sucessão enfraqueceu muito seu prestígio.

Salomão substituiu-o no poder em 971 a.C. Davi governara 39 anos.

3.3. Salomão e a Consolidação do EstadoSalomão não era o herdeiro natural de Davi e sua posse foi recheada de intrigas e inimizades. Assim, logo que se viu garantido no poder, Salomão eliminou drasticamente seus inimigos. Mandou matar seu irmão Adonias, também o general Joab e desterrou o sacerdote chefe Abiatar.

Criou, segundo o texto bíblico, uma corte imensa e dispendiosa. 1Rs 4,22-23 conta de seus gastos: um absurdo em cereais e carne:

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"Salomão recebia diariamente para seu gasto trinta coros de flor de farinha [1 coro = 450 litros] e sessenta de farinha comum, dez bois cevados, vinte bois de pasto, cem carneiros, além de veados, gazelas, antílopes, cucos cevados".

"Conforme Ne 5,17s, 150 homens eram alimentados por Neemias diariamente com 1 boi e 6 ovelhas, mais algumas aves. Com base nesta notícia, poder-se-ia imaginar que a corte de Salomão se tenha composto de 3.000 a 4.500 pessoas, uma vez que consumia 20 a 30 vezes mais carne que o grupo de Neemias. Se acrescentarmos ao consumo ainda a farinha, o número será bem maior", diz C. A. DREHER[1].

Quanto à administração, Salomão introduziu novidades enormes, como, por exemplo, a divisão do norte em 12 províncias, desrespeitando a divisão tribal e nomeando prefeitos estranhos às populações locais. E tem mais: cada província cuidava da manutenção da corte durante um mês (1Rs 4,1-19).

Embora não fosse um guerreiro, Salomão sabia fazer se respeitar no armamento e na organização militar. Seu exército era poderoso na época e seus carros de combate temíveis. Estes carros foram uma inovação de Salomão. Davi só usava a infantaria. A população pagava por este exército, fornecendo "a cevada e a palha para os cavalos e os animais de tração, no lugar onde fosse preciso, e cada qual segundo o seu turno", diz 1Rs 4,28.

Apesar de algumas revoltas nos reinos vassalos e de um possível enfraquecimento de poder, Salomão, conseguiu, em geral, manter o país nos limites estabelecidos por seu pai Davi.

Mas sua habilidade revelou-se totalmente foi no comércio e na indústria, sempre segundo o texto bíblico. Construiu uma frota mercante que comerciava até com Ofir (atual Somália) e com todos os portos do Mar Vermelho, enquanto outra parte fazia a rota do Mediterrâneo até a Espanha. Seus navios eram construídos e tripulados pelos fenícios, mestres na arte da navegação.

Salomão dominou igualmente o comércio da Arábia, com o controle das caravanas: o comércio de cavalos da Cilícia e do Egito, através de suas agências de compra e venda. Exportava cobre e outros metais...

Toda esta atividade comercial gerou uma expansão interna muito grande no país: cidades que se fortaleciam, construções de grandes obras públicas por toda a parte, a população que aumentava consideravelmente em número.

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Porém, se olharmos menos ingenuamente este florescimento todo, veremos sobre quais bases foi construído. Sobre a exploração de uma boa parte da população. Vejamos.

A burocracia estatal requeria um número respeitável de funcionários, altos cargos distribuídos a gente nascida na corte e que se julgava superior a todos os demais.

As obras públicas requeriam dinheiro para sua concretização. O exército, recrutado entre o povo, não mais respeitando as tribos, precisava de muito dinheiro para funcionar com eficiência e assim por diante.

Resultado: Salomão colocou pesados impostos sobre a população israelita, forçou seus vassalos estrangeiros e a população cananéia à corvéia (trabalho grátis para o Estado) e usou o trabalho escravo em grande escala nas suas minas e fundições no sul do país (1Rs 9,20-22). Usou também, embora haja notícias controvertidas na obra deuteronomista, a mão-de-obra grátis em Israel (segundo 1Rs 9,22 os israelitas não foram submetidos à corvéia, mas segundo 1Rs 5,27;11,28 também os israelitas foram submetidos ao trabalho forçado para o Estado).

O Estado classista estava em pleno funcionamento. Com o correr do tempo, as diferenças de classe e as contradições internas foram se aprofundando até levar à divisão do território.

Informações sobre o Templo de Jerusalém? A atual polêmica com os Palestinos? Confira aqui!

A construção do Templo em Jerusalém, servindo ao mesmo tempo como santuário nacional e como capela real, transferia para o Estado todo o poder religioso. Muito interessante é a observação de C. A. DREHER, sobre os motivos porque Salomão construiu o Templo: "Que fazer, num tempo de paz, para continuar a garantir o direito ao tributo? Pode-se recorrer às armas e impor um governo através da força policial. Mas isso tem lá seus riscos na época de uma monarquia incipiente (...) Um motivo religioso lhe será bem mais útil. A construção do templo, a casa de Javé, cuja arca já se encontra em Jerusalém, lhe dará cobertura ideológica para garantir seu Estado e seu direito ao tributo"[2].

Salomão governou a região de 971 a 931 a.C., durante 40 anos.

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[1]. DREHER, C. A., O trabalhador e o trabalho sob o reino de Salomão, em Estudos Bíblicos n. 11, Petrópolis, Vozes, 1986, p. 56.

[2]. DREHER, C. A., ibidem, p. 51.

3.4. A Ruptura do Consenso Entretanto, o consenso foi rompido. Pois isto que acabo de descrever nada mais é do que uma paráfrase racionalista do texto bíblico, hoje não mais aceita por todos. E, curiosamente, a crise começou com as reavaliações da origem, datação e significado das narrativas do Pentateuco, especialmente os estudos feitos por Thomas L. Thompson (1974), John Van Seters (1975), Hans Heinrich Schmid (1976) e Rolf Rendtorff (1977). E daí se estendeu à História de Israel, até mesmo porque muitas das dúvidas hoje existentes sobre o Pentateuco dependem da reconstrução da história de Israel e da história de sua religião[3].

Ora, penso hoje que o chamado ‘consenso wellhausiano’ sobre o Pentateuco e, especialmente, os estudos na linha de Gerhard Von Rad, Martin Noth e muitos outros, ao colocarem o Javista (J) no reinado de Davi e Salomão, sustentavam a historicidade da época, caracterizada até como "iluminismo salomônico". Esta historicidade, por sua vez, era explicada pela Obra Histórica Deuteronomista (OHDtr), que, assim, garantia o J salomônico: um círculo fechado, vicioso, em que um texto bíblico amparava o outro. Assim, quando o J começou a ser deslocado para outra época pelos autores acima citados, o edifício inteiro desabou.

E então, questões que pareciam definitivamente resolvidas, foram de novo colocadas: O que teria sido o primeiro 'Estado Israelita'? Um reino unido, composto pelas tribos de Israel e Judá, dominando todo o território da Palestina e, posteriormente, sendo dividido em reinos do 'norte' e do 'sul'? Ou seria tudo isto mera ficção, não tendo Israel e Judá jamais sido unidos? Existiu um Império davídico/salomônico ou só um pequeno reino sem maior importância? Se por acaso não existiu um grande reino davídico/salomônico, por que a Bíblia Hebraica o descreve? Enfim, o que teria acontecido na região central da Palestina nos séculos X e IX a.C.? Além da Bíblia Hebraica, onde mais podemos buscar respostas?

3.5. As Fontes: Seu Peso, Seu Uso

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Claro, estas questões precisam ser recolocadas, até mesmo porque o ‘antigo Israel’, algo que parecíamos conhecer muito bem, é hoje uma incógnita, como denunciou o estudioso britânico Philip R. Davies. Ele concluiu, em seu estudo de 1992, que o ‘antigo Israel’ é um construto erudito, resultante da tomada de uma construção literária, a narrativa bíblica, tornada objeto de investigação histórica. E, como demonstram os estudos sobre o Pentateuco, o Israel bíblico é para nós um problema, não um dado sobre o qual se apoiar sem mais.

Este construto erudito, além de suscitar muitos outros problemas, é contraditório, pois a maioria dos estudiosos, "embora sabendo que a estória de Israel do Gênesis a Juízes não deve ser tratada como história, prossegue, não obstante, com o resto da estória bíblica, de Saul ou Davi em diante, na pressuposição de que, a partir deste ponto, o obviamente literário tornou-se o obviamente histórico", diz Philip R. Davies na p. 26. E pergunta: "Pode alguém realmente deixar de lado a primeira parte da história literária de Israel, reter a segunda parte e ainda tratá-la como uma entidade histórica?" Para ele uma história de Israel que começa neste ponto deveria ser uma entidade bem diferente do Israel literário, que pressupõe a família patriarcal, a escravidão no Egito, a conquista da terra que lhe é dada por Deus e assim por diante.

Para Philip R. Davies, não podemos identificar automaticamente a população da Palestina na Idade do Ferro (a partir de 1200 a.C.), e de certo modo também a do período persa, com o ‘Israel’ bíblico. "Nós não podemos transferir automaticamente nenhuma das características do ‘Israel’ bíblico para as páginas da história da Palestina (...) Nós temos que extrair nossa definição do povo da Palestina de suas próprias relíquias. Isto significa excluir a literatura bíblica" [sublinhado meu], conclui Philip R. Davies na p. 51.

Para o autor, a literatura bíblica foi composta a partir da época persa, sugerindo Philip R. Davies, mais para o final do livro, que o Estado Asmoneu (ou Macabeu) é que viabilizou, de fato, a transformação do Israel literário em um Israel histórico, por ser este o momento em que os reis-sacerdotes levaram o país o mais próximo possível do ideal presente nas leis bíblicas. A Bíblia, garante o autor na p. 154, como uma criação literária e histórica é um conceito asmoneu[4].

Considerada mais polêmica ainda do que a de Philip R. Davies é a postura do norte-americano Thomas L. Thompson, cujo programa é fazer uma história do Levante Sul sem contar com os míticos textos bíblicos e considerando todos os outros povos da região, não só Israel, pois este constitui apenas uma parte desta região. Thomas L. Thompson é contra

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qualquer arqueologia e história bíblicas! Para ele, o pior erro metodológico no uso das fontes é harmonizar a arqueologia com as narrativas bíblicas.

Aliás, o uso do texto bíblico como fonte válida para a escrita da História de Israel, tem sido alvo de muitos debates e grandes controvérsias. E não há como fugir da questão, pelo menos enquanto muitas ‘Histórias de Israel’ continuarem a ser nada mais do que uma paráfrase racionalista da narrativa bíblica.

Em uma das reuniões do Seminário Europeu sobre Metodologia Histórica, por exemplo, debatendo o assunto, alguns dos participantes acabaram classificando qualquer História de Israel como fictícia, enquanto outros defenderam que o texto bíblico usado cuidadosa e criticamente é um elemento válido para um empreendimento deste tipo. Na conclusão do livro onde foram publicados os debates deste encontro há uma boa amostragem do problema do uso das fontes.

Diz o britânico Lester L. Grabbe, coordenador do grupo, que parece haver quatro possíveis atitudes a respeito da questão:

1. assumir a impossibilidade de se fazer uma ‘História de Israel’.2. ignorar o texto bíblico como um todo e escrever uma história

fundamentada apenas nos dados arqueológicos e outras evidências primárias: esta é a postura verdadeiramente ‘minimalista’, mas o problema é que sem o texto bíblico muitas interpretações dos dados tornam-se extremamente difíceis.

3. dar prioridade aos dados primários, mas fazendo uso do texto bíblico como fonte secundária usada com cautela.

4. aceitar a narrativa bíblica sempre, exceto quando ela se mostra como absolutamente falseada: esta é a postura caracterizada como ‘maximalista’, e ninguém neste grupo a defendeu.

O fato é que as posturas 1 e 4 são inconciliáveis e estão fora das possibilidades de uma ‘História de Israel’ mais crítica: isto porque a 1 rejeita a possibilidade concreta da história e a 4 trata o texto bíblico com peso diferente das outras fontes históricas. Somente o diálogo entre as posições 2 e 3 podem levar a um resultado positivo. Praticamente todos os membros do seminário ficaram nesta posição 3 ou, talvez, entre a 2 e a 3, concluiu Lester L. Grabbe.

Parece-me, neste ponto, que já ficou claro para o leitor a importância do exame das fontes primárias, se quisermos saber algo sobre a monarquia.

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Aliás, as fontes sobre a monarquia israelita são de quatro tipos diferentes, podendo ser classificadas, portanto, em quatro níveis: antropologia histórica, fontes primárias, fontes secundárias e fontes terciárias.

Antropologia histórica: considera os dados provenientes de estudos da geografia, do clima, dos assentamentos humanos, da agricultura, da organização social e da economia de uma região e de sua população.

Fontes primárias: fontes escritas provenientes da Palestina, evidência arqueológica da Palestina e fontes escritas fora da Palestina, todas mais ou menos contemporâneas aos eventos que relatam, tais como a Estela de Merneptah, a Inscrição de Tel Dan, a Estela de Mesha, os Óstraca de Samaria, os Selos lemelek de Judá, a Inscrição de Siloé, a Carta Yavneh Yam, o Calendário de Gezer, os Óstraca de Arad, as Cartas de Lakish, os Anais de Salmanasar III, o Obelisco Negro de Salmanasar III, os testemunhos de reis assírios e babilônicos como Adad-nirari III, Tiglat-Pileser III, Sargão II, Senaquerib, Assaradon, Assurbanipal, Nabucodonosor, e do Egito o Faraó Sheshonq...

Fontes Secundárias: a Bíblia Hebraica, especialmente o Pentateuco e a Obra Histórica Deuteronomista, escritos muito tempo depois dos fatos e com objetivos mais teológicos do que históricos.

Fontes Terciárias: livros da Bíblia Hebraica que retomam fontes secundárias, como os livros das Crônicas que retomam a OHDtr.

O alemão Herbert Niehr, em Some Aspects of Working with the Textual Sources [Alguns Aspectos do Trabalho com as Fontes Escritas], por exemplo, ao fazer tal distinção, repassa os problemas metodológicos relativos ao uso de cada uma destas fontes, argumentando que as tentativas para superar as diferenças existentes entre elas devem ser feitas cuidadosamente e concluindo que podemos fazer apenas tentativas de escrever uma História de Israel, sempre sujeita a um processo contínuo de mudança, até mesmo porque quanto mais evidência primária tivermos com o avanço da pesquisa, menor valor devemos atribuir aos textos da Bíblia Hebraica[5].

3.6. Dois Exemplos de Fontes Primárias: as Estelas de Tel Dan e de Merneptah

Um exemplo de fonte primária muito interessante é a Estela de Tel Dan. Na localidade de Tel Dan, norte de Israel, em julho de 1993, em escavação sob a direção do arqueólogo israelense Avraham Biran, foi descoberto um fragmento de uma estela de basalto de 32 por 22 cm, com uma inscrição em aramaico, publicada por A. Biran e J. Naveh em novembro de 1993. Cerca

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de 12 meses mais tarde, dois outros fragmentos menores foram descobertos na mesma localidade, mas em um ponto diferente do primeiro.

Os arqueólogos agruparam os três fragmentos, avaliando serem partes da mesma estela e produzindo um texto coerente. Datada no século IX a.C., a inscrição foi aparentemente escrita pelo rei Hazael de Damasco, na qual ele se vangloria de ter assassinado dois reis israelitas, Jorão (de Israel) e Ocozias (de Judá) e de ter instalado Jeú no trono de Israel, o que teria ocorrido por volta de 841 a.C. (estes episódios, com enfoque diferente, são narrados em 2Rs 8,7-10,36).

Mas o que causou grande rebuliço foi um termo encontrado no fragmento maior: bytdwd. Aparentemente, a tradução mais provável seria casa de Davi. Daí, a grande novidade: seria esta a primeira menção extrabíblica da dinastia davídica e até mesmo da existência do rei Davi, do qual só temos (ou tínhamos) informações na Bíblia Hebraica.

Porém, contestações a tal leitura continuam a ser feitas, pois outras traduções são possíveis, como casa do amado, lendo-se dwd não como "David", mas como dôd, um epíteto para a divindade, Iahweh, no caso; ou, também, bytdwd poderia ser o nome de uma localidade. Ainda: os fragmentos menores são seguramente parte de uma mesma pedra, mas é incerto se eles pertencem à mesma estela da qual o maior faz parte. Qual é o problema? É que, se bytdwd está no fragmento maior, os nomes dos dois reis, sendo um deles, Ocozias, segundo a Bíblia, davídico, estão nos fragmentos menores. E a leitura "casa de Davi" seria induzida por esta segunda informação.

A polêmica não está encerrada, como se pode ver em artigo do professor de Estudos Semíticos da Universidade La Sapienza, de Roma, Giovanni Garbini ou nas conclusões de Niels Peter Lemche, do Instituto de Exegese Bíblica da Universidade de Copenhague, Dinamarca[6].

Contudo, a menção de Israel como reino, no norte da Palestina, é interessante. Imediatamente nos faz lembrar de outra famosa inscrição, a Estela de Merneptah. Esta estela comemora os feitos do Faraó Merneptah (1224-1214 a.C. ou 1213-1203 a.C., segundo outra cronologia), filho e sucessor de Ramsés II, e foi encontrada em 1896 por Flinders Petrie no templo mortuário do faraó em Tebas. Pode ser datada por volta de 1220 a.C. (ou 1208 a.C.), quinto ano do governo de Merneptah, e celebra sua vitória sobre líbios que ameaçavam o Egito.

Lá no final da inscrição, há o seguinte: Os príncipes estão prostrados dizendo: Paz. Entre os Nove Arcos nenhum levanta a cabeça. Tehenu

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[=Líbia] está devastado; o Hatti está em paz. Canaã está privada de toda a sua maldade; Ascalon está deportada; Gazer foi tomada; Yanoam está como se não existisse mais; Israel está aniquilado e não tem mais semente; O Haru [=Canaã] está em viuvez diante do Egito.

Esta é a primeira menção de Israel em documentos extrabíblicos que conhecemos. Mas a identificação de quem ou o que é este “Israel” não é nada simples e tem gerado muitas controvérsias. John Bright, por exemplo, viu a inscrição como seguro testemunho de que Israel já estava na Palestina nesta época - embora tenha acrescentado uma nota na terceira edição do livro, em 1981, dizendo que este Israel pode ser pré-mosaico e não o grupo do êxodo - e William G. Dever vê aqui um ‘proto-Israel”, enquanto outros, tentando desligar este “Israel” da referência bíblica, traduziram o termo egípcio por Jezrael, uma referência geográfica, e assim por diante. Mas a maioria lê mesmo o termo “Israel” na estela. Só que alguns acham que é um grupo étnico bem definido, enquanto outros pensam que seja um grupo nômade das montanhas da Palestina... Para Niels Peter Lemche, o importante é que, seja qual for a natureza deste “Israel”, a estela de Merneptah atesta a presença desta entidade nas colinas do norte da Palestina e isto pode ter relação com o posterior surgimento do reino de Israel nesta região[7].

Ah, e é claro: a referência da estela à “semente” de Israel, tanto pode ser aos suprimentos agrícolas quanto à descendência! Mas quando e como surgiu Israel como Estado na região?

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[3]. Sobre a ruptura do consenso e as várias etapas da pesquisa, convido o leitor a ler o artigo A História de Israel no Debate Atual. Ou uma versão mais resumida em Estudos Bíblicos n. 71, Petrópolis, Vozes, 2001, pp. 62-74.

[4]. Cf. DAVIES, P. R., In Search of ‘Ancient Israel’, Sheffield, Sheffield Academic Press [1992], 19952.

[5]. Cf. o texto de Herbert Niehr em GRABBE, L. L. (ed.), Can a ‘History of Israel’ Be Written? pp. 156-165.

[6]. Cf. de Niels Peter Lemche, The Israelites in History and Tradition, Louisville, Kentucky, Westminster John Knox, 1998, pp. 38-43.

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[7]. Cf. BRIGHT, J., História de Israel, pp. 145-146; DEVER, W. G., Archaeology and the Israelite “Conquest”, em FREEDMAN, D. N. (ed.), The Anchor Bible Dictionary on CD-ROM, New York, Doubleday & Logos Library System, 1992, 1997; LEMCHE, N. P., The Israelites in History and Tradition, pp., 35-38.

3.7. A Questão Teórica: Como Nasce Um Estado Antigo?Sem dúvida, a questão da origem dos antigos Estados Israelitas passa pela discussão da noção de Estado como forma de organização política. No volume de 1996, editado por Volkmar Fritz & Philip R. Davies sobre As Origens dos Antigos Estados Israelitas, no qual é apresentada a recente controvérsia sobre a existência ou não de uma monarquia unida em Israel e, especialmente, de um Império davídico/salomônico e que traz dez conferências de renomados especialistas apresentadas em um Colóquio Internacional realizado em Jerusalém sobre A Formação de um Estado. Problemas Históricos, Arqueológicos e Sociológicos no Período da Monarquia Unida em Israel, a alemã Christa Schäfer-Lichtenberger sugere que somente a arqueologia não resolverá esta discussão.

Ela questiona a aplicação pura e simples do conceito moderno de “Estado” às formas de organização política das comunidades antigas como forma de se desvelar sua existência e parte para uma discussão teórica na qual tentará definir a noção de Estado a partir dos estudos etnosociológicos de Georg Jellinek, Max Weber e Henri Claessen.

Claessen e outros estabeleceram que para se explicar a origem de um Estado é preciso considerar a emergência de vários fatores, tais como o crescimento da população e suas necessidades, as guerras e as ameaças de guerras, as conquistas e invasões, o desenvolvimento da produção e o aparecimento do excedente, a cobrança de tributos, o surgimento de uma ideologia comum e conceitos de legitimação dos governantes, além da influência dos Estados vizinhos já existentes.

Seguindo especialmente Henri Claessen, Christa vai distinguir três fases de desenvolvimento do Estado primitivo: o estado primitivo incoativo, o estado primitivo típico e o estado primitivo de transição. O processo de desenvolvimento de uma fase para outra passa pelo enfraquecimento dos laços de parentesco e o fortalecimento das ações políticas centralizadas, pela transformação da posse comum da terra em propriedade privada dos

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meios de produção e pela substituição de uma economia de trocas de bens e serviços em uma economia de mercado, fortalecendo o antagonismo de classes, até o desenvolvimento de especializações por parte de oficiais estatais, o estabelecimento da taxação regular e constante, a codificação de leis e a constituição de estruturas jurídicas controladas pelo poder central.

Em seguida, considerando sete critérios usados tanto por Weber como por Claessen, segundo a autora, – população, território, governo centralizado, independência política, estratificação, produção de excedente e tributos, ideologia comum e conceitos de legitimação - e usando os dados do Deuteronomista, Christa vai classificar o reino de Saul como um estado incoativo e o reino de Davi como um estado heterogêneo, pois este último, pelos critérios de governo centralizado, estratificação social e produção de excedente, é ainda um estado incoativo, embora já possua algumas características de estado primitivo típico, mas pelos critérios de população, território, independência política e ideologia, ele já é um estado de transição.

E, para a autora, como se explica a ausência de documentos escritos extrabíblicos sobre um reino unido?

Christa diz que a ausência de documentos escritos no Antigo Oriente Médio sobre Israel na Idade do Ferro I (ca. 1200-900 a.C.) pode ter quatro causas, cada uma independente da outra:

a) Não existiu uma entidade política de nome Israel nesta época

b) Síria/Palestina, Egito e Assíria não conseguiram hegemonia política sobre esta região nesta época, e, por isso, nada registraram

c) Os textos não sobreviveram porque foram registrados em papiros

d) Os escritos ainda não foram encontrados.

Christa é de opinião que as causas b e d oferecem uma explicação suficiente para o silêncio do Antigo Oriente Médio.

Christa trata também da ausência de monumentos e inscrições em monumentos nesta época na região e justifica tal ausência dizendo que não se deve colocar Judá-Israel no mesmo nível do Egito ou da Assíria, onde tais achados arqueológicos são comuns, pois Estados com estruturas pequenas ou médias não podem ser medidos pelos mesmos critérios de grandes impérios. E mesmo que inscrições em monumentos tenham existido, elas estariam em Jerusalém, onde dificilmente teriam sobrevivido

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às reformas religiosas de reis como Josias – por conterem nomes de outras divindades além de Iahweh – ou às maciças destruições militares de que a cidade foi vítima[8].

O estudo é interessante quando questiona algumas posturas pouco elaboradas teoricamente de certos especialistas, mas o restante deixa uma sensação de “dèjá vu”! As categorias sócio-antropológicas da autora sobre o Estado me parecem insuficientes – especialmente quando confrontadas com as várias tentativas marxistas na área – e ela não escapa de uma leitura do Deuteronomista como sua fonte principal. Tem-se a impressão de que a leitura da OHDtr é que oferece as categorias etnosociológicas para a análise e não o contrário. No mínimo, deixaria Thomas L. Thompson desconfiado e Niels Peter Lemche contrariado!

Para ficar ainda no campo da discussão teórica, dizem especialistas de tendência marxista que analisam as sociedades de tipo tributário (também chamadas "asiáticas", porque mais comuns naquele continente) que a sociedade tribal de tipo patriarcal já representa uma forma típica de transição da comunidade primitiva para a sociedade de classes. As contradições da sociedade tribal aumentam progressivamente até provocarem o aparecimento do Estado, que inicialmente é uma função (de defesa, de grande obras etc), mas que passa a ser uma exploração.

Da economia de auto-subsistência, através do desenvolvimento das forças produtivas, passa-se a uma economia tribo-patriarcal baseada em certa hierarquização que permite a acumulação para determinadas camadas: há os privilégios dos homens sobre as mulheres, do primogênito sobre seus irmãos, das tribos líderes sobre as outras tribos etc. É um embrião de divisão de classes, anterior ao Estado, detectável em Israel já no período conhecido biblicamente como "dos juízes".

Da economia tribo-patriarcal passa-se à economia do Estado tributário, através da necessidade de obras conjuntas (defesa contra inimigos, trabalhos de irrigação, construção de muralhas, por exemplo) e da dominação de uma linhagem superior que se impõe sobre as outras (família do líder, como Davi e seus descendentes) e que passa a controlar também o comércio intertribal. Aliás, na sociedade tributária o comércio é possível só a partir da acumulação do excedente feita pelo Estado.

Neste tipo de sociedade a escravidão só existe de maneira secundária: o peso da produção não cai sobre os escravos, pois a propriedade coletiva da terra, que continua como na época tribal, torna-os desnecessários. A mão-de-obra é familiar.

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Assim, o Estado tributário que inicialmente nascera com funções públicas (defesa, organização etc) passa, pouco a pouco, a ser um autêntico poder de classe (a classe que se constitui nele) para manter e aumentar a exploração. O Estado é conseqüência da exploração de classe, ele não é a sua causa. O despotismo do governo é também uma conseqüência da formação de classes.

A grande contradição interna desta organização: coexistência de estruturas comunitárias e de estruturas de classe. Se ela não evolui, as sociedades tributárias ficam estagnadas no seu nível social. A terra pertence a Iahweh em Israel, mas o Estado detém o poder religioso através dos templos, controlando a vontade da divindade através dos sacerdotes, profetas e juízes pagos pelo governo. O indivíduo passa assim, na sociedade tributária, por duas mediações: da comunidade tribal a que pertence e do Estado tributário[9].

3.8. As Soluções de Lemche e de Finkelstein & SilbermanLester G. Grabbe nos lembra, na conclusão do volume sobre o primeiro Seminário Europeu sobre Metodologia Histórica, do qual já falamos acima, que durante as discussões em Dublin, em 1996, ninguém negou a existência de um ‘reino de Israel’, assim como de um ‘reino de Judá’, testemunhados pela Assíria, mas os participantes do seminário fizeram objeções a duas concepções: uma é a de que o construto literário do ‘Israel bíblico’ pode ser diretamente traduzido em termos históricos; e a outra é a de que ‘Israel’ deve canalizar e dominar o estudo da região na antigüidade. A descrição bíblica de um grande Império israelita foi tratada com muito ceticismo [sublinhado meu].

Por tudo isto, é que se buscam outras soluções. Como a de Niels Peter Lemche que, no volume de 1996, editado por Volkmar Fritz & Philip R. Davies sobre As Origens dos Antigos Estados Israelitas, propõe o conceito de sociedade patronal [patronage society] para explicar a variedade social da Síria, e especialmente da Palestina, no Período do Bronze Recente (ca. 1500-1200 a.C.).

Este modelo, freqüentemente chamado de ‘sistema social mediterrâneo’ parece ter sido onipresente em sociedades com um certo grau de complexidade, mas que não constituíam ainda Estados burocráticos. E Lemche define como típico de uma sociedade patronal sua organização vertical, onde no topo encontramos o patrono [patron], um membro de uma linhagem líder, e abaixo dele seus clientes [clients], normalmente homens e suas famílias.

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Lemche explica que a ligação entre patrono e cliente é de tipo pessoal, com juramento de lealdade do cliente ao patrão e de proteção do patrono para o cliente. Em tal sociedade, códigos de leis não são necessários: ninguém vai dizer ao patrono como julgar.

A crise da Palestina que aparece nas Cartas de Tell el-Amarna (século XIV a.C.) pode ser explicada, segundo Lemche, a partir desta realidade: os senhores das cidades-estado palestinas vêem o faraó como seu patrono e reivindicam sua proteção em nome de sua fidelidade; porém, o Estado egípcio não os vê do mesmo modo e os trata de modo impessoal, seguindo normas burocráticas. Daí, a (falsa) percepção dos pequenos reis das cidades de Canaã de que foram abandonados pelo faraó, que não está cuidando de seus interesses na região.

Sem dúvida, houve uma crise social na Palestina no final do Bronze Recente. E a proposta de Lemche para o que pode ter acontecido é a seguinte: as fortalezas do patrono foram substituídas por estruturas locais, por povoados, organizados sem um sistema de proteção como o do patrono – o assim chamado ‘rei’ – ou com patronos locais.

Portanto, o aparecimento dos povoados da região montanhosa do centro da Palestina representa, simplesmente, um intervalo entre dois períodos de sistemas patronais mais extensos e melhor estabelecidos. Pois o que aconteceu no século X a.C. foi, de fato, o restabelecimento de um sistema patronal semelhante ao anterior[10].

Já Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman, no capítulo sobre a monarquia davídico-salomônica de seu livro The Bible Unearthed. Archaeology's New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts, New York, The Free Press, 2001, pp. 123-145, nos lembram como, para os leitores da Bíblia, Davi e Salomão representam uma idade de ouro, enquanto que para os estudiosos representavam, até recentemente, o primeiro período bíblico realmente histórico. Hoje, a crise se abateu sobre o "império" davídico-salomônico. E se perguntam: Davi e Salomão existiram? Mostram como os minimalistas dizem: "não", os argumentos pró e contra a postura dos minimalistas, e colocam aquela que é para eles a questão chave: o que diz a arqueologia sobre Davi/Salomão?

Para Finkelstein e Silberman a evolução dos primeiros assentamentos para modestos reinos é um processo possível e até necessário na região. Descrevendo as características do território de Judá, concluem que este permaneceu pouco desenvolvido, escassamente habitado e isolado no período atribuído pela Bíblia a Davi/Salomão: é o que a arqueologia descobriu.

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E Jerusalém? As escavações de Yigal Shiloh, da Universidade Hebraica de Jerusalém, nas décadas de 70 e 80, na Jerusalém das Idades do Bronze e do Ferro mostram que não há nenhuma evidência de uma ocupação no século X a.C. A postura mais otimista aponta para um vilarejo no século décimo, enquanto que o resto de Judá, na mesma época seria composto por cerca de 20 pequenos povoados e poucos milhares de habitantes, tendo havido, portanto, dificilmente, um grande império davídico.

Mas e as conquistas davídicas? Até recentemente, em qualquer lugar em que se encontravam cidades destruídas por volta do ano 1000 a.C. isto era atribuído a Davi por causa das narrativas de Samuel. Teoricamente é possível que os israelitas da região montanhosa tenham controlado pequenas cidades filistéias como Tel Qasile, escavada por Benjamin Mazar em 1948-1950, ou até mesmo cidades cananéias maiores como Gezer, Meguido ou Bet-Shean. Mas será que o fizeram?

E o glorioso reino de Salomão? Em Jerusalém, nada foi encontrado, mas e Meguido, Hasor e Gezer? Em Meguido P. L. O. Guy, da Universidade de Chicago, descobriu, nas décadas de 20 e 30, os "estábulos" de Salomão. Sua interpretação dos edifícios achados se baseou em 1Rs 7,12;9,15.19. Na década de 50, Yigael Yadin descobriu, ou identificou nas descobertas de outros, as "portas salomônicas" de Hasor, Gezer e Meguido. Também a chave aqui foi 1Rs 9,15, que diz: "Eis o que se refere à corvéia que o rei Salomão organizou para construir o Templo de Iahweh, seu palácio, o Melo e o muro de Jerusalém, bem como Hasor, Meguido, Gazer [=Gezer]".

Mas, na década de 60, Y. Yadin escava novamente Meguido e faz a descoberta de um belo palácio que parecia ligado à porta da cidade e abaixo dos "estábulos", o que o leva à seguinte conclusão: os palácios [a Universidade de Chicago encontrara outro antes] e a porta de Meguido são salomônicas, enquanto que os "estábulos" seriam da época de Acab, rei de Israel do norte no século IX a.C.

Durante muitos anos, estas "portas salomônicas" de Hasor, Gezer e Meguido foram o mais poderoso suporte arqueológico ao texto bíblico. Mas o modelo arquitetônico dos palácios salomônicos veio dos palácios bit hilani da Síria, e estes, se descobriu, só aparecem no século IX a.C., pelo menos meio século após a época de Salomão. "Como poderiam os arquitetos de Salomão ter adotado um estilo arquitetônico que ainda não existia?", se perguntam os autores na p. 140. E o contraste entre Meguido e Jerusalém? Como um rei constrói fabulosos palácios em uma cidade provincial e governa a partir de um modesto povoado?

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Pois bem, dizem Finkelstein e Silberman na p. 140: "Agora nós sabemos que a evidência arqueológica para a grande extensão das conquistas davídicas e para a grandiosidade do reino salomônico foi o resultado de datações equivocadas".

Dois tipos de evidência fundavam os argumentos em favor de Davi e Salomão: o fim da típica cerâmica filistéia por volta de 1000 a.C. fundamentava as conquistas davídicas; e as construções das monumentais portas e palácios de Hasor, Gezer e Meguido testemunhavam o reino de Salomão. Nós últimos anos, entretanto, estas evidências começaram a desabar [aqui os autores remetem o leitor ao Apêndice D, pp. 340-344, onde os seus argumentos são mais detalhados].

Primeiro, a cerâmica filistéia continua após Davi e não serve mais para datar suas conquistas; segundo, os estilos arquitetônicos e as cerâmicas de Hasor, Gezer e Meguido atribuídos à época salomônica são, de fato, do século IX a.C.; e, por último, testes com o Carbono 14 em Meguido e outras localidades apontam para datas da metade do século IX a.C.

Enfim: a arqueologia mostra hoje que é preciso "abaixar" as datas em cerca de um século [anoto aqui que esta "cronologia baixa" de Finkelstein tem dado muito o que falar nos meios acadêmicos!]. O que se atribuía ao século XI é da metade do século X e o que era datado na época de Salomão deve ser visto como pertencendo ao século IX a.C.

Dizem os autores: "Não há razões para duvidarmos da historicidade de Davi e Salomão. Há, sim, muitos motivos para questionarmos as dimensões e o esplendor de seus reinos. Mas, e se não existiu um grande império, nem monumentos, nem uma magnífica capital, qual era a natureza do reino de Davi?" (p. 142).

O quadro é o seguinte: região rural... nenhum documento escrito... nenhum sinal de uma estrutura cultural necessária em uma monarquia... do ponto de visto demográfico, de Jerusalém para o norte, povoamento mais denso; de Jerusalém para o sul, mais escasso... estimativa populacional: dos 45 mil habitantes da região montanhosa, cerca de 40 mil habitariam os povoados do norte e apenas 5 mil se distribuíam entre Jerusalém, Hebron e mais uns 20 pequenos povoados de Judá, com grupos continuando o pastoreio...

Davi e seus descendentes? "No século décimo, pelo menos, seu governo não possuía nenhum império, nem cidades com palácios, nem uma espetacular capital. Arqueologicamente, de Davi e Salomão só podemos dizer que eles existiram - e que sua lenda perdurou" (p. 143).

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Entretanto, quando o Deuteronomista escreveu sua obra no século VII a.C., Jerusalém tinha todas as estruturas de uma sofisticada capital monárquica. Então, o ambiente desta época é que serviu de pano de fundo para a narrativa de um mítica idade de ouro. Uma bem elaborada teologia ligava Josias e o destino de todo o povo de Israel à herança davídica: ele unificara o território, acabara com o ciclo idolátrico da época dos Juízes e concretizara a promessa feita a Abraão de um vasto e poderoso reino. Josias era o novo Davi e Iahweh cumprira suas promessas "O que o historiador deuteronomista queria dizer é simples e forte: existe ainda uma maneira de reconquistar a glória do passado" (p. 144)

Leituras Recomendadas

Ayrton’s Biblical Page: Cf. os artigos A História de Israel no Debate Atual e Pode uma ‘História de Israel’ Ser Escrita?

CARDOSO, C. F. S. (org.), Modo de produção asiático. Nova visita a um velho conceito, Rio de Janeiro, Campus, 1990.

DAVIES, P. R., In Search of ‘Ancient Israel’, Sheffield, Sheffield Academic Press [1992], 19952.

DAVIES, P. R., Minimalism, "Ancient Israel," and Anti-Semitism. “Minimalism” is an invention. None of the “minimalist” scholars is aware of being part of a school, or a group, em Bible and Interpretation, 2002.

DIETRICH, W., Die frühe Königszeit in Israel. 10. Jahrhundert v. Chr., Kohlhammer, Stuttgart/Berlin/Köln, 1997.

DONNER, H., História de Israel e dos Povos Vizinhos I, São Leopoldo, Sinodal/Vozes, 1997 [20043], pp. 197-268.

FREEDMAN, D. N. (ed.), The Anchor Bible Dictionary on CD-ROM, New York, Doubleday & Logos Library System, 1992, 1997

FINKELSTEIN, I. & SILBERMAN, N. A., The Bible Unearthed. Archaeology's New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts, New York, The Free Press, 2001.

FRITZ, V. & DAVIES, P. R. (eds.), The Origins of the Ancient Israelite States, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1996.

GEBRAN, Ph. (org.), Conceito de modo de produção, Rio de Janeiro,

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Paz e Terra, 1978.

GRABBE, L. L. (ed.), Can a ‘History of Israel’ Be Written? Sheffield, Sheffield Academic Press, 1997.

LEMCHE, N. P., The Israelites in History and Tradition, Louisville, Kentucky, Westminster John Knox, 1998.

PIXLEY, J., A História de Israel a Partir dos Pobres, Petrópolis, Vozes, 20049, pp. 22-36.

SCHWANTES, M. et alii, Trabalhador e trabalho, Estudos Bíblicos n. 11, Petrópolis, Vozes, 1986.

VAN SETERS, J., The Pentateuch. A Social-Science Commentary, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1999.

NEXT

[8]. Cf. SCHÄFER-LICHTENBERGER, C., Sociological and Biblical Views of the Early State, em FRITZ, V. & DAVIES, P. R. (eds.), The Origins of the Ancient Israelite States, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1996, pp. 78-105.

[9]. Cf. FIORAVANTE, E., Do modo de produção asiático ao modo de produção capitalista, em GEBRAN, Ph. (org.), Conceito de modo de produção, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978, pp. 131-155.

[10]. Cf. LEMCHE, N. P., From Patronage Society to Patronage Society, em FRITZ, V. & DAVIES, P. R. (eds.), The Origins of the Ancient Israelite States, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1996, pp. 106-120. Como parece ter ficado claro, toda a discussão sobre as origens dos Estados israelitas passa também pela discussão anterior sobre as origens de Israel, um pressuposto não discutido aqui, mas que pode ser visto em detalhes no artigo A História de Israel no Debate Atual.

4. O Reino de Israel

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Segundo o texto bíblico, com a morte de Salomão, em 931 a.C., desabou a unidade do reino. O norte, agora chamado de Israel, separou-se do Estado davídico que permaneceu em Judá. E o reino do norte existiu durante 209 anos, até ser massacrado pelo poderoso Império assírio, em 722 a.C.

4.1. A Rebelião Explode e Divide IsraelPara começar, podemos anotar que o processo de sucessão de Salomão não foi bem visto, especialmente porque o norte tinha consciência da exploração a que era submetido pelo poder central e levantou, então, a bandeira da rebelião.

Proclamado rei em Judá, Roboão (931-914 a.C.), filho de Salomão, foi a Siquém para que o norte o aclamasse senhor também das outras tribos. Em Siquém, os israelitas impuseram-lhe uma condição: aceitariam o seu governo, caso fossem retiradas as pesadas leis impostas ao povo por seu pai Salomão. Roboão não aceitou as condições e foi a gota d'água. Podemos seguir o desenrolar dos acontecimentos a partir do capítulo 12 do primeiro livro dos Reis.

"Disseram assim a Roboão: 'Teu pai tornou pesado o nosso jugo; agora, alivia a dura servidão de teu pai e o jugo pesado que ele nos impôs e nós te serviremos' (...) O rei Roboão consultou os anciãos que haviam auxiliado seu pai Salomão durante sua vida, e perguntou: 'Que me aconselhais a responder a este povo?' Eles lhe responderam: 'Se hoje te sujeitares à vontade deste povo, se te submeteres e dirigires boas palavras, então eles serão para sempre teus servidores'. Mas ele rejeitou o conselho que os anciãos lhe deram e consultou os jovens que foram seus companheiros de infância e o assistiam. Perguntou-lhes: 'Que aconselhais que se responda a este povo' (...) Os jovens, seus companheiros de infância, responderam-lhe: 'Eis o que dirás a este povo (...); eis o que lhes responderás; 'Meu dedo mínimo é mais grosso que os rins de meu pai! Meu pai vos sobrecarregou com um jugo pesado, mas eu aumentarei ainda o vosso jugo; meu pai vos castigou com açoites, e eu vos açoitarei com escorpiões!' " (1Rs 12,3-11).

Israel do norte, chamado doravante simplesmente de Israel, Samaria ou ainda Efraim, constituído pelas 10 tribos rebeldes, escolheu para seu rei a Jeroboão, um nobre da tribo de Efraim e inimigo de Salomão, que se encontrava exilado.

Inicialmente nem guerra houve entre os dois países irmãos, pois assim debilitados viram-se ameaçados pelos inimigos externos e deixaram suas rixas para acertar mais tarde. Quando o norte se rebelou, Roboão quis partir para a repressão armada, mas foi desaconselhado.

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Jeroboão escolheu a cidade de Siquém para capital do seu reino, onde permaneceu apenas 5 anos. Transferiu-a seguidamente para Penuel e Tirsá. Só mais tarde, sob outro rei, foi construída Samaria, a capital definitiva.

Rejeitando o governo de Jerusalém, os nortistas rejeitaram também o Templo e as peregrinações nas grandes festas. Para substituir o Templo e mesmo para evitar que o povo fosse a Jerusalém e passasse para o lado de lá, Jeroboão construiu dois touros de ouro e colocou-os em antigos santuários: Dan, no extremo norte, e Betel, perto de Jerusalém, no sul. E isto deu o que falar. Para o sul, já era a idolatria que dominava o norte, embora a intenção do rei fosse apenas reavivar o culto naqueles santuários.

Israel caracterizou-se pela instabilidade política. No curto espaço de 209 anos, teve 19 reis de diferentes dinastias que se sucederam com golpes de Estado, assassinatos e chacinas várias.

A incerteza quanto à localização da capital e ainda o perigo da pressão estrangeira (Fenícia, Síria e Assíria) fizeram do novo país um foco de problemas e de crises sucessivas. E quem saía perdendo, como sempre, era o povo. Os mesmos camponeses e pescadores antes explorados pelo sul, passaram a sê-lo pelo norte.

Por outro lado, tanto o norte quanto o sul perderam, segundo o texto bíblico, todas as suas possessões estrangeiras: definitivamente os tempos do Israel forte haviam acabado. Divididos, tanto Israel quanto Judá eram fracos demais para dominar seus vizinhos, como dizem ter feito Davi e Salomão.

Reis de Israel

Nome Data Duração

Jeroboão I 931-910/9 a.C. 21 anos

Nadab 910-909 2 anos

Baasa 909/8-886 22 anos

Ela 886/5-885 2 anos

Zimri 885/4 7 dias

Omri 885/4-874 11 anos

Acab 874/3-853 21 anos

Ocozias 853-852 2 anos

Jorão 852-841 11 anos

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Jeú 841-813 28 anos

Joacaz 813-797 16 anos

Joás 797-782 15 anos

Jeroboão II 782/1-753 29 anos

Zacarias 753 6 meses

Salum 753/2 1 mês

Menahem 753/2-742 11 anos

Pecahia 742/1-740 2 anos

Pecah 740/39-731 9 anos

Oséias 731-722 9 anos[1]

4.2. Israel de Jeroboão I a Jeroboão IIDe Jeroboão I a Omri (cerca de 50 anos) houve muita instabilidade em Israel. Nadab foi assassinado por Baasa; seu filho Ela foi também assassinado por Zimri, que, por sua vez, se suicidou, quando viu a morte trazida pelo general Omri. Houve também vários conflitos com Judá por causa das fronteiras.

Omri, que deu um golpe militar em 885 a.C., foi um válido artífice da paz com Judá. Fez aliança com a Fenícia, casando seu filho Acab com Jezabel, filha de Etbaal, rei de Tiro. Levou vantagem no confronto com Moab e com os arameus de Damasco.

Omri construiu Samaria em 880 a.C. para capital do reino e desenvolveu bastante o país. Porém, como sempre, o progresso do país empobrecia largas camadas da população e levava a exploração classista ao máximo.

Sob Acab, filho de Omri, a situação do povo era muito difícil. O intenso comércio com a Fenícia aumentou a riqueza da classe dominante em Israel. Faltava dinheiro no país? O povo precisava de empréstimos? Os privilegiados emprestavam a juros exorbitantes. A lavoura não produzia quando a seca era forte? Os ricos vendiam mantimentos à população camponesa, em "suaves prestações"...

Para termos uma idéia da situação: a partir desta época ficou muito comum o camponês se vender ao rico credor para saldar suas dívidas, trabalhando como escravo. Ou entregava seus filhos.

O rei - e sua gloriosa corte - puxava a procissão das explorações. Quem quiser conferir, leia o episódio exemplar da vinha de Nabot (1Rs 21).

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Em Samaria, Acab construiu um templo para sua mulher Jezabel cultuar seu deus Baal. Até aí tudo bem. Isto era costume naquela época. Mas Jezabel arrastou a corte toda e a aristocracia atrás de si neste culto. Resultado: por todo o país proliferaram os sacerdotes de Baal.

O profeta Elias, contemporâneo de Acab, vai lutar com todas as forças contra tamanha deterioração do javismo e de seus ideais de justiça.

Originário do Galaad, Elias faz ver ao povo, segundo a interpretação deuteronomista dos livros dos Reis, que a idolatria e o abandono do javismo era um problema muito sério, de âmbito nacional e causador de todos os males que dominavam o país, o mais sério deles sendo a exploração da maioria da população.

Perseguido pela rainha Jezabel, que prontamente percebeu o perigo por ele representado contra o seu culto e os seus privilégios, Elias tornou-se no seu tempo um símbolo da fidelidade a Iahweh, como demonstra o significado de seu nome (Elias = só Iahweh é Deus). Suas ações estão narradas em 1Rs 17-22 e 2Rs 1-2, embora de forma lendária e extremamente carregadas pelas cores teológicas do Deuteronomista.

Encontrando muita oposição entre as autoridades religiosas e entre o próprio povo explorado, a dinastia de Omri vai cair de maneira violenta: Jeú, em 841 a.C., com a aprovação do profeta Eliseu, dá um golpe militar sangrento, assassinando toda a família de Jorão, o rei de turno.

Jeú e seus descendentes enfrentaram graves problemas na política externa: Jeú pagou tributo ao rei assírio Salmanasar III e perdeu a Transjordânia para Hazael, rei de Damasco.

Mas com a subida ao trono de Jeroboão II (782/1-753 a.C.) o país se recupera - também Judá, sob o governo de Ozias, cresce bastante nesta mesma época - graças a uma série de circunstâncias favoráveis.

Havia paz entre os dois reinos irmãos. A Síria fora vencida pela Assíria. Esta, por sua vez, atravessava um período de dificuldades. E então, livres de pressões maiores, os dois reinos começaram a sua expansão.

Jeroboão II, bom militar, levou a fronteira norte de seu país onde anteriormente a colocara Salomão (2Rs 14,23-29). Tomou Damasco e submeteu a Síria, inclusive as regiões da Transjordânia até Moab.

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Israel controlou as rotas comerciais de então. Em Samaria os arqueólogos encontraram os restos de esplêndidos edifícios, provas da riqueza alcançada.

Porém, mais uma vez, o povo...

O sistema administrativo adotado por Jeroboão II foi aquele mesmo próspero e injusto de Salomão: concentração da renda nas mãos de poucos com o conseqüente empobrecimento da maioria da população.

Criaram-se extremos de riqueza e de pobreza. Os pequenos agricultores, endividados, viam-se nas mãos de seus credores, enquanto os tribunais, regados a bom dinheiro, só achavam a razão do lado dos ricos.

À desintegração social somou-se a religiosa. Com os santuários cheios de adoradores, bem providos do bom e do melhor, a religião javista foi sendo colocada de lado em favor de outros deuses menos exigentes quanto à justiça e à igualdade social.

Nesta época, os profetas Amós (ca. 760 a.C.) e Oséias (755-725 a.C.) destacaram-se na denúncia da situação em que se encontrava Israel.

Page 91: Historia de Israel

Am 2,6-8

Assim falou Iahweh:

Pelos três crimes de Israel,

pelos quatro, não o revogarei!

Porque vendem o justo (tsaddîd) por prata

e o indigente ('ebyôn) por um par de sandálias.

Eles esmagam sobre o pó da terra a cabeça dos fracos (dallîm)

e tornam torto o caminho dos pobres ('anawim) ;

um homem e seu pai vão à mesma jovem

para profanar o meu santo nome.

Eles se estendem sobre vestes penhoradas,

ao lado de qualquer altar,

e bebem vinho daqueles que estão sujeitos a multas, na casa de seu deus. Amós, com os termos tsaddîq (justo), 'ebyôn (indigente), dal (fraco) e 'anaw (pobre), designa as principais vítimas da opressão na sua época. Sob estes termos, Amós aponta o pequeno camponês, pobre, com o mínimo para sobreviver e que corre sério risco de perder casa, terra e liberdade com a política expansionista de Jeroboão II.

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Am 6,4-6

Eles estão deitados em leitos de marfim,

estendidos em seus divãs,

comem cordeiros do rebanho

e novilhos do curral,

improvisam ao som da harpa,

como Davi, inventam para si instrumentos de música,

bebem crateras de vinho

e se ungem com o melhor dos óleos,

mas não se preocupam com a ruína de José.

Estes são, segundo Amós, os opressores de sua época. São os que vivem em palácios e acumulam (3,10), são as senhoras da alta sociedade (4,1), são os que constroem boas casas e plantam excelentes vinhas (5,11), são os que aceitam suborno na administração da justiça (5,12), são os que vivem no luxo e na boa vida (6,4-6), são os que controlam o comércio (8,4-6).

Enfim, "Amós, como outros profetas após ele, identifica os opressores com os que detêm o poder econômico, político e judicial"[2] .

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Os 4,1-3

Ouvi a palavra de Iahweh, filhos de Israel,

pois Iahweh vai abrir um processo contra os habitantes da terra,

porque não há fidelidade (‘emeth) nem solidariedade (hesedh),

nem conhecimento de Deus (da'at 'elohîm) na terra.

Mas perjúrio e mentira, assassínio e roubo,

adultério e violência,

e o sangue derramado soma-se ao sangue derramado.

Por isso a terra se lamentará, desfalecerão os seus habitantes

e desaparecerão os animais selvagens, as aves dos céus

e até os peixes do mar.

Temos aqui três categorias negativas superpostas:

o a falta de conhecimento de Deus (da'at 'elohîm), que se manifesta como ausência de fidelidade ('emeth) e solidariedade (hesedh)

o as desordens sociais, causadas pela falta de conhecimento: perjúrio, mentira, assassínio, roubo, adultério, homicídio

o a morte, com a desagregação do universo. As feras, os pássaros e os peixes desaparecem. O homem fenece.

Portanto, segundo Oséias, a raiz mais profunda do mal é a falta de conhecimento de Deus. Que não é conhecimento intelectual ou cultual. É a experiência ou vivência do javismo que está em jogo. Oséias está dizendo que o problema em Israel é que não há mais espaço para os valores do javismo e isso causa a desagregação da sociedade.

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[1]. Há várias cronologias possíveis para o período dos reis. Estou seguindo a de PAVLOVSKY, V./VOGT, E., Die Jahre der Könige von Juda und Israel, em Biblica 45 (1964), Roma, pp. 321-347.

[2]. Cf. SICRE, J. L., A justiça social nos profetas, São Paulo, Paulus, 1990, p. 200. SCHWANTES, M., Amós. Meditações e Estudos, São Leopoldo/Petrópolis, Sinodal/Vozes, 1987, pp. 36-48 diz que os opressores de Israel, segundo Amós, são: os sacerdotes (Templo), os juízes, os senhores de escravos, o exército, os cidadãos (os habitantes da cidade).

4.3. A Assíria Vem Aí: Para Israel é o FimCom a morte de Jeroboão II desabou tudo o que ainda restava em Israel, apesar de tudo. De 753 a 722 a.C. seis reis se sucederam no trono de Samaria, abalado por assassinatos e golpes sangrentos. Houve 4 golpes de Estado (golpistas: Salum, Menahem, Pecah e Oséias) e 4 assassinatos (assassinados: Zacarias, Salum, Pecahia e Pecah):

o Zacarias, filho de Jeroboão II, governou 6 meses (753 a.C.) e foi assassinado

o Salum ben Jabes governou 1 mês (753/2 a.C.): foi assassinado

o Menahem ben Gadi (753/2-742 a.C.) já teria começado a pagar tributo à Assíria

o Pecahia (= Facéias), filho de Menahem, reinou de 742/1-740 a.C. e foi assassinado

o Pecah (= Facéia), filho de Romelias, governou de 740/39 a 731 a.C.

o Oséias, filho de Ela, assassinou Pecah e foi o último rei do norte, de 731a 722 a.C.

O profeta Oséias lamenta o golpismo da época:

"No dia de nosso rei,os príncipes ficaram doentes pelo calor do vinho,

e ele estendeu a sua mão aos petulantes quando se aproximaram.Seu coração é como um forno em suas insídias,

a noite inteira dorme a sua ira,pela manhã ela arde como uma fogueira.Todos eles estão quentes como um forno,

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devoram seus juízes.Todos os seus reis caíram.

Não há entre eles quem me invoque" (Os 7,5-7).

A grande ameaça internacional era a Assíria. Em 745 a.C. subiu ao trono assírio um hábil rei: Tiglat-Pileser III.

Ele começou por resolver os problemas com os babilônios no sul da Mesopotâmia, dominando-os. Depois, tomou Urartu, ao norte. Pacificou os medos no norte do Irã. Em seguida, pôde ocupar-se com o oeste: começou pela Síria, contra a qual efetuou várias campanhas a partir de 743 a.C.

Por que a Assíria ambicionava a região? Por causa:

o da madeira e dos recursos naturais o do Egito, o eterno rival o da Ásia Menor o do controle do comércio do Mediterrâneo.

Em 738 a.C. Tiglat-Pileser III já submetera grande parte da Síria e da Fenícia. Israel começou a pagar-lhe tributo possivelmente já sob o governo de Menahem. Foi um imposto per capita que atingiu cerca de 60 mil proprietários de terras. Mas grupos patrióticos assassinaram em Israel o rei submisso à Assíria. E o oficial que subiu ao poder imediatamente tornou-se chefe de uma coalizão anti-assíria que congregava a Síria, os filisteus e outros.

Pecah, este era seu nome, queria que Judá se aliasse a ele. Judá, sabiamente não quis. Então, o rei de Damasco e o rei de Israel invadiram Judá pelo norte e cercaram Jerusalém. Isto foi no ano de 734 a.C. e é a chamada guerra siro-efraimita. Em Judá reinava Acaz.

Os edomitas, que dependiam de Judá, aproveitaram a ocasião e declararam sua independência. Derrotaram as tropas de Judá em Elat e destruíram a cidade.

Os filisteus, também dominados por Judá, igualmente não perderam tempo. Invadiram o Negueb e a planície da Shefelah, conquistando algumas cidades de Judá.

Deste modo, Judá foi invadido por três lados e não tinha como resistir. A saída foi pedir o auxílio da Assíria. Isaías foi contra este passo e avisou Acaz de que suas conseqüências seriam terríveis.

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Is 7,3-6Então disse Iahweh a Isaías: Vai ao encontro de Acaz, tu juntamente

com o teu filho Sear-Iasub [= um resto voltará]. Encontrá-lo-ás no fim do canal da piscina superior, na estrada do campo do pisoeiro. Tu lhe dirás: Toma as tuas precauções, mas conserva a calma e não tenhas medo nem vacile o teu coração diante dessas duas achas de lenha fumegantes, isto é, por causa da cólera de Rason, de Aram, e do filho de Romelias, pois

que Aram, Efraim e o filho de Romelias tramaram o mal contra ti, dizendo: 'Subamos contra Judá e provoquemos a cisão e a divisão em seu

seio em nosso benefício e estabeleçamos como rei sobre ele o filho de Tabeel'.

Tiglat-Pileser III destruiu rapidamente as forças aliadas. Começou pela costa e avançou sobre os filisteus desbaratando-os completamente. Estabeleceu uma base no extremo sul, cortando qualquer possível ajuda egípcia. Virou-se, em seguida, contra Israel e saqueou toda a Galiléia e a Transjordânia. Deportou uma parte do povo e destruiu numerosas cidades.

Neste ínterim, Pecah de Israel foi assassinado e seu sucessor, Oséias (não se confunda o rei Oséias com o profeta homônimo), submeteu-se imediatamente à Assíria e pagou-lhe tributo.

A destruição foi paralisada. Faltava só Damasco. Tiglat-Pileser III conquistou-a, executou o rei e deportou a população, em 732 a.C.

Depois da tempestade, o que se viu foi o seguinte: a Síria não existia mais, passara a província assíria. De Israel pouco restara: toda a costa, a Galiléia e o Galaad passaram para a Assíria.

Entretanto, ainda não era tudo. O rei Oséias só se submetera à Assíria porque não tinha outra saída. Quando Tiglat-Pileser III foi sucedido por Salmanasar V, Oséias pensou ser o momento bom para a revolta. Começou a negar o tributo à Assíria e a ligar-se ao Egito.

Foi um suicídio. O Egito estava todo dividido e muito fraco. Não veio ajuda nenhuma. Salmanasar V atacou, prendeu o rei, ocupou o país e cercou Samaria em 724 a.C.

"Salmanasar, rei da Assíria, marchou contra Oséias e este submeteu-se a ele, pagando-lhe tributo. Mas o rei da Assíria descobriu que Oséias o traía: é que este havia mandado mensageiros a Sô, rei do Egito, e não tinha pago o tributo ao rei da Assíria, como o fazia todo ano. Então o rei da Assíria mandou encarcerá-lo e prendê-lo com grilhões. Depois, o rei

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da Assíria invadiu toda a terra e pôs cerco a Samaria durante três anos. No nono ano de Oséias, o rei da Assíria tomou Samaria e deportou Israel para a Assíria, estabelecendo-o em Hala e às margens do Habor, rio de Gozã, e nas cidades dos medos" (2Rs 17,3-6).

Samaria caiu em 722 a.C. e o filho de Salmanasar V, Sargão II foi quem se encarregou da deportação e substituição da população israelita por outros povos que foram ali instalados.

Segundo os anais de Sargão II, o número de deportados samaritanos foi de 27.290 pessoas. Com a instalação, no território, de outros povos e outros costumes chegou para Israel do norte o fim definitivo.

Para Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman, este esquema bíblico, de uma monarquia unida, que se desintegra após a morte de Salomão, sempre foi aceito por arqueólogos e historiadores, mas está errado. Não há evidências de uma monarquia unida governada por Jerusalém, mas há boas razões para se acreditar que sempre houve duas diferentes entidades políticas na região montanhosa de Canaã, garantem os autores, no livro The Bible Unearthed, pp. 149-168.

Tiglat-Pileser III

Resumo de GARELLI, P. & NIKIPROWETZKY, V., O Oriente Próximo Asiático. Impérios Mesopotâmicos - Israel, São Paulo,

Pioneira/Edusp, 1982, pp. 87-96.

A Assíria parecia inerte, até que, em 746 a.C., estourou uma rebelião em Kalhu, conduzindo ao trono Tiglat-Pileser III. O golpe de Estado, de fato, assinala o termo da crise aberta, em 827, pela guerra civil. Ela acusara o triunfo da alta nobreza, em detrimento da autoridade real, cujo declínio quase arrastava à ruína todo o país. Verdade que não se dera nenhum revés de importância, sem dúvida graças à energia do turtanu Shamshi-Ilu, mas era nítida a perda de influência. Tiglat-Pileser III teria que enfrentar a perigosa situação que se desenvolvia nas fronteiras do reino.

A revolta que estourou em Kalhu, em 746 a.C., poderia parecer um simples episódio de uma época fértil em tentativas similares, mas, na realidade, levou ao trono aquele que iria tornar-se um dos maiores reis da Assíria, o verdadeiro fundador de seu império. Ignora-se a participação que teve na trama ou em sua repressão, tal como se ignora a filiação do novo soberano: enquanto em uma inscrição faz-se

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passar como filho de Adad-Nirari III, o que é pouco provável, por razões cronológicas, uma das listas reais apresenta-o como um dos filhos de Assur-Nirari V. Chegou-se a pensar que fosse um usurpador, cujo verdadeiro nome seria Pulu, pois assim o designam fontes babilônicas e bíblicas. Nada mais incerto; pode muito bem ter sido de linhagem real. Espírito metódico e audacioso, dele se fez o tipo de "rei reformador". Sem dúvida o foi, em política internacional. Atribui-se-lhe demasiado no plano interno; mas só se atribui aos ricos, e a personalidade do soberano era visivelmente rica. Os vizinhos da Assíria logo se aperceberiam disso, o que prova que a aparente paralisia do país refletia sobretudo uma crise do poder central.

Desde sua ascensão, Tiglat-Pileser III empreendeu uma série de operações militares contra a Babilônia e Namri, o que pode surpreender, visto que seu principal adversário, o rei de Urartu, acabara de obter a adesão dos países sírios. Imaginou-se, pois, que antes de ajustar contas com Sardur, rei de Urartu, e seus aliados, Tiglat-Pileser precisava garantir sua retaguarda e as grandes vias de comunicação com o Irã e o Golfo Pérsico. É possível, mas o fato também pode indicar que o perigo urártio não era tão premente quanto se tenderia a acreditar. A verdade é que, em 745 a.C., os exércitos assírios ganharam a rota do Sul.

Na Babilônia, a agitação permanecia endêmica. Os reis caldeus, desde muito tempo, esforçavam-se por firmar sua autoridade, porém conseguiram-no de forma bem imperfeita. A expedição levada a cabo por Tiglat-Pileser III em 745 a.C. é bastante curiosa, por outro lado. Em parte alguma as tropas assírias bateram-se com as forças de Nabonassar (Nabu-Nasir), que dois anos antes subira ao trono da Babilônia. Pode-se indagar, inclusive, se a intervenção assíria não se devera ao apelo de Nabonassar, ou, pelo menos , não tivera lugar com seu assentimento. Seria, em suma, uma repetição da que Salmanasar III levara a efeito havia um século. O adversário, aliás, em grande parte era o mesmo: as tribos aramaicas e caldéias. Encurraladas de Dur-kurigalzu e Sippar até o Golfo Pérsico, ao longo do tigre e do Kerkha (Uknu), bem como em redor de Nippur, na Babilônia central, tiveram de submeter-se. Milhares de deportados tomaram a rota da Assíria e foram estabelecidos em novas cidades, como Kar-Assur.

As conquistas de Tiglat-Pileser III são mal documentadas, mas sabe-se que de 743 a 738 a.C. ele desbaratou a coalizão siro-urártia e se impôs aos dinastas aramaicos. Em seguida, durante três anos, precisou transferir sua atenção para os medos e Urartu, antes de efetuar a

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conquista de Damasco e da Palestina, de 734 a 732 a.C. A revolta de Mukin-Zeri forçou-o, então, a dirigir-se novamente à Babilônia, oficialmente incorporada ao império em 729 a.C.

No decorrer desse vaivém contínuo, ao que tudo indica, houve raros confrontos de envergadura. Tudo decidira-se em 743 a.C., por ocasião de uma vitória decisiva sobre Sardur, em Comagena, que provocou a dissolução da coligação aramaica. Sua derrota incitou os países vizinhos, em particular Damasco, Tiro, Que (Cilícia) e Carquemish, a prestar submissão. Em 740 a.C., Tiglat-Pileser iria receber seus tributos em Arpade.

Os dinastas aramaicos manifestariam, mais uma vez, sua indestrutível coragem: as revoltas sucederam-se com grande obstinação, encerrando-se em 738 a.C. com a submissão de dezoito príncipes espalhados nos territórios compreendidos entre Tabal e Samaria. Essa demonstração não bastou para desencorajar todos os vencidos. Pecah, de Israel, e Razon, de Damasco, esperavam uma virada da situação. Para tanto, seria necessário um acordo, ou, no mínimo, a neutralidade do rei de Judá, Acaz, que não parecia muito entusiasmado pela aventura. Os conjurados tentaram então, de conluio com os edomitas, eliminar seu importuno vizinho, e o infeliz Acaz, apesar das advertências de Isaías (capítulos 7 e 8), viu-se obrigado a apelar para o auxílio do rei da Assíria, o qual agiu prontamente: descendo pela costa, atingiu Gaza e o Wadi El Arish, o Rio do Egito, impedindo qualquer possibilidade de socorro egípcio; a seguir, voltou-se contra Israel, cujo território saqueou. Ante o desastre, Pecah foi assassinado por um certo Oséias ben Elá, que se apressou a pagar tributo. Razon conseguiria resistir por três anos, antes de sucumbir por seu turno em 732 a.C.

Um elemento relevante, qual seja a política de ocupação permanente inaugurada por Tiglat-Pileser III, explica, em parte, a aparente facilidade das vitórias assírias. Até então, os soberanos da Assíria, mesmo os mais audaciosos, como Salmanasar III, concebiam suas operações ofensivas como expedições destinadas a aniquilar o poderio material de seus vizinhos e recolher despojos. Os vencidos tornavam-se tributários, mas, como conservam a independência, aproveitam-se imediatamente da menor dificuldade experimentada pelo poder assírio. Havia, assim, que recomeçar tudo. O primeiro a renunciar a tal concepção foi Tiglat-Pileser III, com quem a guerra converteu-se em guerra de conquista: o território ocupado era incluído nos limites da terra de Assur e dividido em províncias dirigidas por bel pihati, que dispunham de guarnições permanentes. As tropas assírias estavam,

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portanto, sempre a postos para sufocar as dissidências e empreender novas operações.

Por outro lado, o rei deportou numerosas populações para regiões excêntricas, a fim de separá-las de seu meio natural e impedir quaisquer veleidades de rebelião. Os prisioneiros de Babilônia foram disseminados por todo o arco de círculo montanhoso que cercava o reino a norte e a leste. Esse enorme amálgama de populações em muito contribuiu, sem dúvida, para a aramaização do império. Tiglat-Pileser pretendeu, no entanto, submetê-las a uma única jurisdição. Por isso, freqüentemente, computou-as entre as pessoas da terra de Assur, submetendo-as, como tais, às mesmas contribuições e corvéias. Chegou mesmo a implantar o culto de Assur na Média.

Em toda a parte praticou-se essa política de conquista e assimilação, exceto nas regiões excêntricas do planalto iraniano. E as vitórias se sucediam. Num único local, Urartu, o rei fora paralisado. Após a vitória de Comagena, em 735 a.C., tentou invadir o país, cuja capital, Turushpa, chegou a ser atacada. Apesar da derrota de Sardur, o esforço foi inútil: Urartu conservava considerável poderio, e Tiglat-Pileser III não insistiu. Tal revés não obscurece a amplitude de seus outros êxitos militares, cabendo indagar se o exército assírio não sofreu uma profunda reorganização.

Impossível evocar o reinado de Tiglat-Pileser III sem mencionar sua obra administrativa, que, segundo certos historiadores, refletiria suas mais aprofundas intenções em matéria de política interna. O rei teria procedido a uma nova divisão das províncias, fracionando as unidades demasiado vastas, a fim de diminuir o poderio da alta nobreza. Teria, portanto, revertido a evolução percorrida a partir de Shamshi-Adad V, que enfraquecera o poder real. Mas é uma hipótese apenas, sem confirmação nas fontes de que dispomos.

Certo é que Tiglat-Pileser III conseguiu perfeitamente manter as rédeas do seu mundo, canalizando as energias assírias para a conquista. E soube gerir seu imenso domínio, dosando habilmente firmeza e brandura. A propósito, é sintomático verificar que as cidades fenícias, incorporadas ao império, continuaram a usufruir de grande liberdade. Cerca de 734 a.C., às vésperas da campanha contra Israel e Damasco, só se lhes interditara o comércio com a Palestina e o Egito. No resto, as

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autoridades locais agiam à vontade, e o fisco assírio contentava-se com a cobrança de uma percentagem sobre as mercadorias na entrada da cidade. Em caso de revolta contra os fiscais, a intervenção da legião ituéia e algumas advertências prontamente restabeleciam a ordem. Não obstante, observa-se ao mesmo tempo que a chancelaria de Kalhu era cuidadosamente mantida ao corrente da evolução da situação, pois densa rede de correios sulcava o império. Um incidente num templo de Tiro, uma investida de nômades em Moab imediatamente eram comunicados à capital.

Daí em diante não houve mais um território nacional e territórios de caça, espoliados pelos exércitos assírios segundo as possibilidades do momento, e sim um império, mantido por guarnições administradas pelos governadores, que recolhiam os impostos. Esta sutil mistura de firmeza e diplomacia, disposta, em toda a medida do possível, a respeitar os interesses e franquias locais, permitiu a incorporação oficial da Babilônia ao império. Embora fosse senhor deste país a partir de 745 a.C., Tiglat-Pileser III não destronou o soberano legítimo, Nabonassar. Tampouco tomou qualquer medida contra o filho deste último. Tiglat-Pileser III só interveio quando o chefe da tribo Amukkanu, Nabu-Mukin-Zeri revoltou-se, por sua vez, e tomou o poder em 731 a.C. Em 729 a.C., o único senhor da Babilônia era o rei da Assíria. Entretanto, reduzir uma terra tão venerável, fonte de todas as tradições religiosas, à simples condição de província teria sido inabilidade. Tiglat-Pileser III não caiu nesse erro: fez-se reconhecer como rei e sua decisão foi ratificada na lista real babilônica. Quando de sua morte, em 727 a.C., todas as terras do Crescente Fértil se achavam unificadas sob o rótulo inédito de uma dupla monarquia assiro-babilônica.

O poderio do monarca assírio não era tal, contudo, que desencorajasse toda pretensão de independência. Foi o que ocorreu com Bar-Rekub de Sam'al e Oséias de Samaria. Foi Salmanasar V, filho de Tiglat-Pileser III quem os reprimiu. Samaria foi tomada em 722 a.C. e o filho de Salmanasar V, Sargão II deportou sua população para Kalhu, no Habur e para a Média. O reino de Israel foi, nesta ocasião, reduzido a província assíria. A data de 722 a.C. é duplamente simbólica: assinala uma importante inflexão da história de Israel e corresponde, ao mesmo tempo, à ascensão de um dos mais prestigiosos monarcas do antigo Oriente. Com efeito, mesmo sem ter sido o fundador do império, Sargão II contribuiu de forma decisiva para assegurar seu poderio e dar-lhe seu caráter definitivo.

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Leituras Recomendadas

DONNER, H., História de Israel e dos povos vizinhos II, São Leopoldo, Sinodal/Vozes, 1997 [20043], pp. 273-285; 299-362.

ECHEGARAY, J. G., O Crescente Fértil e a Bíblia, Petrópolis, Vozes, 1993, pp. 137-174.

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LEMCHE, N. P., The Israelites in History and Tradition, Louisville, Kentucky, Westminster John Knox, 1998.

PIXLEY, J., A História de Israel a partir dos Pobres, Petrópolis, Vozes, 20049, pp. 37-53; 63-67.

SCHOORS, A., Die Königreiche Israel und Juda im 8. und 7. Jahrhundert v. Chr. Die assyrische Krise, Stuttgart, Kohlhamer, 1998.

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Senaquerib subiu ao trono assírio em 705 a.C. e imediatamente teve que enfrentar nova revolta na Babilônia. Todas as províncias do oeste então se levantaram. Acreditavam ter chegado o momento da libertação. O Egito prometeu ajuda, mais uma vez. A coalizão integrava Tiro, com outras cidades fenícias; Ascalon e Ekron, com algumas cidades filistéias; Moab, Edom e Amon; e Ezequias, de Judá, entrou como um dos chefes da revolta. Fortificou suas defesas e preparou-se cuidadosamente para esperar a Assíria.

Que não se fez esperar. Senaquerib não se fez de rogado e já em 701 a.C. ele começou por Tiro, vencendo-a. Logo os reis de Biblos, Arvad, Ashdod, Moab, Edom e Amon se entregaram e pagaram tributo a Senaquerib.

Somente Ascalon e Ekron, juntamente com Judá, resistiram. Senaquerib tomou primeiro Ascalon. Os egípcios tentaram socorrer Ekron e foram derrotados. E foi a vez de Judá. Senaquerib tomou 46 cidades fortificadas em Judá e cercou Jerusalém.

Nos Anais de Senaquerib se diz o seguinte:

"Quanto a Ezequias do país de Judá, que não se tinha submetido ao meu jugo, sitiei e conquistei 46 cidades que lhe pertenciam (...) Quanto a ele, encerrei-o em Jerusalém, sua cidade real, como um pássaro na gaiola...".

Entretanto, por motivos desconhecidos, talvez uma peste, ele levantou o cerco e voltou para a Assíria. Jerusalém voltou a respirar, no último minuto. Mas teve que pagar forte tributo aos assírios.

Não se sabe porque Jerusalém se salvou. 2Rs 19,35-37 diz que o Anjo de Iahweh atacou o acampamento assírio. Existe uma notícia de Heródoto, História II,141, segundo a qual num confronto com os egípcios os exércitos de Senaquerib foram atacados por ratos (peste bubônica?). Talvez Senaquerib tenha partido por causa de alguma rebelião na Mesopotâmia. S. Hermann, estudando o caso, conclui: "Pode-se considerar que algum fato, acontecido no acampamento assírio que assediava Jerusalém, tenha obrigado à partida; mas isto não exclui que Ezequias tenha enviado o seu tributo e renovado de modo ostensivo o tratado de vassalagem, cuja ruptura provocara a invasão assíria"[1].

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Outra questão é se teria havido uma segunda campanha de Senaquerib na Palestina. De qualquer maneira, segundo os Anais de Senaquerib, o tributo pago por Ezequias ao rei assírio foi significativo:

"Quanto a ele, Ezequias, meu esplendor terrível de soberano o confundiu e ele enviou atrás de mim, em Nínive, minha cidade senhorial, os irregulares e os soldados de elite que ele tinha como tropa auxiliar, com 30 talentos de ouro, 800 talentos de prata, antimônio escolhido, grandes blocos de cornalina, leitos de marfim, poltronas de marfim, peles de elefante, marfim, ébano, buxo, toda sorte de coisas, um pesado tesouro, e suas filhas, mulheres de seu palácio, cantores, cantoras; e despachou um mensageiro seu a cavalo para entregar o tributo e fazer ato de submissão"[2].

Informação que concorda com a de 2Rs 18,13-16:

"No décimo quarto ano do rei Ezequias, Senaquerib, rei da Assíria, veio

para atacar todas as cidades fortificadas de Judá e apoderou-se delas.

Então Ezequias, rei de Judá, mandou esta mensagem ao rei da Assíria,

em Laquis: 'Cometi um erro! Retira-te de mim e aceitarei as condições

que me impuseres'. O rei da Assíria exigiu de Ezequias, rei de Judá,

trezentos talentos de prata e trinta talentos de ouro, e Ezequias entregou

toda a prata que se achava no Templo de Iahweh e nos tesouros do

palácio real. Então Ezequias mandou retirar o revestimento dos batentes

e dos umbrais das portas do santuário de Iahweh, que... rei de Judá,

havia revestido de ouro, e o entregou ao rei da Assíria".

Com isso, a reforma de Ezequias perdeu o rumo. Seu sucessor Manassés foi um dos piores governos de Judá. E um longo governo: 55 anos. Estando fortíssimo o império assírio, sua influência se espalhou. Deuses, cultos, costumes, domínio assírio. Um grande sincretismo religioso ameaçava o javismo. Quem protestava era duramente reprimido.

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Manassés foi sucedido pelo filho Amon que acabou assassinado por elementos anti-assírios, provavelmente. E foi entronizado, com apenas 8 anos de idade, seu filho Josias, em 640 a.C. Durante seu reinado, Judá alcançou esperançosa independência.

5.3. A Reforma de Josias e o DeuteronômioA Assíria estava nos seus estertores finais, enfrentando uma violência proveniente de vários pontos do império. Povos dominados e oprimidos pela extrema violência e crueldade assírias levantaram as cabeças. Principalmente os babilônios e os medos, artífices da derrocada definitiva da Assíria, entre 626 e 610 a.C.

Foi um momento bom para Judá. Sob a influência de um forte espírito nacionalista, o rei Josias deu início a uma ampla reforma, descrita em pormenores em 2Rs 22,3-23,25 como o obra mestra deste rei. Parece que a reforma começou aí pelo ano de 629 a.C., décimo segundo do reinado de Josias, que contaria então com 20 anos de idade.

Aproveitando a fraqueza assíria, Josias recuperou o controle sobre as províncias do antigo reino de Israel, aumentando seus tributos e melhorando suas defesas. Houve uma limpeza geral no país: cultos e práticas estrangeiras, introduzidos em Judá sob a influência assíria, foram definitivamente eliminados. A magia e os vários modos de adivinhação, banidos. Os santuários do antigo reino de Israel, considerados idólatras, destruídos.

Do Templo de Jerusalém foi recuperado um código de leis, o núcleo do atual livro do Deuteronômio, como se lê em 2Rs 22. Segundo alguns, escrito no reino do norte e levado para Jerusalém em seguida à destruição de Samaria em 722 a.C.; segundo outros, escrito em Jerusalém mesmo, durante o governo de Ezequias, por grupos fugidos do norte, o Deuteronômio original compreendia os capítulos 12,1-26,15 - um código de leis, segundo alguns, uma espécie de ritual de renovação da aliança - ornamentados por uma introdução (os atuais capítulos 4,44-11,32) e uma conclusão, os capítulos 26,16-28,68.

Ao ser promulgado por Josias em 622 a.C. como lei oficial do Estado, o Deuteronômio deu vida à reforma, mostrando que a certeza do povo de que Judá era indestrutível devido à promessa davídica era uma loucura. Era preciso reviver as antigas tradições mosaicas, pois só elas valiam a pena.

A reforma de Josias surtiu efeito? Sim e não. Positiva no geral, teve, contudo, pontos negativos. Não encontrou uma independência prolongada para poder se desenvolver; foi feita de cima para baixo, imposta pelo

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governo, sem base popular mais ampla; suas medidas ficaram no exterior apenas sem levar o povo a uma reconstrução real do javismo; a centralização do culto não deu bons resultados, esvaziando a vida e a religiosidade do povo... E o pior: os acontecimentos se precipitaram, Josias morreu cedo demais e a reforma se perdeu.

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[1]. HERMANN, S., Storia d'Israele. I tempi dell'Antico Testamento, Brescia, Queriniana, 19792, p. 347.

[2]. Cf. AA. VV., Israel e Judá. Textos do Antigo Oriente Médio, São Paulo, Paulus, 1985, p. 76.

O Império Assírio de 721 a 610 a.C.

Resumo de GARELLI, P. & NIKIPROWETZKY, V., O Oriente Próximo Asiático. Impérios Mesopotâmicos - Israel, São Paulo,

Pioneira/Edusp, 1982, pp. 97-106.

Falemos, em primeiro lugar da política externa. Antes de mais nada, cada mudança de reinado dava margem a sublevações esporádicas ou generalizadas, tendo amiúde de reprimi-las os soberanos durante longos anos, até obter, na melhor das hipóteses, apenas uma calma momentânea. Senão, vejamos: Sargão II praticamente não tivera trégua até sua conquista da Babilônia em 710 a.C.; sua morte, em 705 a.C. foi o sinal para um levante geral, da Palestina ao Elam, em cuja repressão Senaquerib gastaria quatro anos. Assarhadon, no decorrer dos cinco primeiros anos de reinado, viu-se acuado em defensiva nos mesmos teatros de operações, e a ascensão de Assurbanipal provocou a revolta do Egito, que, a despeito de reveses passageiros, terminou por prevalecer sobre as ambições assírias. A morte do grande rei, cerca de 627 a.C., suscitou uma interminável guerra civil, habilmente explorada pelos babilônios de Nabopolassar e à qual os medos dariam um termo brutal, em 612 a.C.

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Tal desfecho, até certo ponto, justifica as rebeliões anteriores que, consideradas isoladamente, se nos afiguram como loucos cometimentos, de resto muitas vezes assim julgadas pelos próprios contemporâneos. Foi o que aconteceu com a revolta de Ashdod, Moab e Edom em 714 a.C., esmagada por Sargão II. Ou com a revolta de Ezequias, de Judá, em 705, que levou Senaquerib a destruir 46 cidades de Judá e a sitiar Jerusalém, que só se salvou entregando seus tesouros. Às vezes também os assírios tomavam a ofensiva, para prevenir um perigo latente ou solidificar sua dominação. Assim aconteceu em 714 a.C., quando Sargão II resolveu acabar com a ameaça urártia.

E o Egito? Após a ocupação da Síria por Tiglat-Pileser III, o Egito alimentara sem cessar a agitação na Palestina. Por duas vezes, em 720 e 716, Sargão II chegou à fronteira egípcia, que teve de se abrir ao comércio assírio. Quatro anos mais tarde, o faraó Shabako apoiava secretamente a rebelião de Ashdod e saiu dessa difícil situação entregando a Sargão II o instigador da revolta. Em 701, só por milagre o Egito foi poupado por Senaquerib, que adiou a invasão do Egito, enquanto cercava Jerusalém, e acabou vítima de uma peste provocada por ratos no seu acampamento, tendo que voltar à Assíria.

O assassinato de Senaquerib em 681 a.C. levou o faraó a abandonar sua atitude reservada. A Caldéia estava em efervescência, citas e cimérios agitavam-se na Ásia Menor. O faraó Taharqa instigou as cidades fenícias a alastrarem o incêndio, mas a tomada de Sídon, em 677 a.C., e o tratado imposto a Baal de Tiro permitiram restaurar a ordem assíria nessas regiões. Assarhadon resolveu então extinguir esse foco perpétuo de agitação, regulando definitivamente o problema egípcio. Uma primeira tentativa, em 674 a.C. redundou em malogro. O projeto foi adiado devido às ameaças que pesavam sobre a fronteira ocidental do reino. Só depois de concluir um tratado com os medos, Assarhadon pôs-se à frente de uma expedição, que, em 671 a.C., conseguiu conquistar Mênfis sem maiores dificuldades.

Os assírios jamais conseguiram, entretanto, assentar seu domínio no Egito. Em 670 a.C. estourou a revolta. No ano seguinte Taharqa retomou Mênfis e Assarhadon morreu nesse meio tempo, sem poder castigar o faraó. Em 666 a.C. Assurbanipal prosseguiu a obra do pai. Novamente apoderou-se de Mênfis e, após uma revolta, chegou mesmo a Tebas. Mas o domínio assírio permaneceu precário, pulverizando-se em poucos anos. Em 653 a.C. Psamético I libertou o território egípcio e Assurbanipal, já demasiado absorvido pelos problemas da Babilônia e do Elam, foi

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obrigado a renunciar a quaisquer projetos de represália. O Egito não mais seria invadido até o reinado do persa Cambises, em 525 a.C.

Conquanto fosse um nítido revés para a Assíria, não se pode dizer que esta aventura desgastou suas forças. A Assíria organizara apenas três breves expedições ao vale do Nilo, de resto vitoriosas, e foram simples guarnições que ali não conseguiram manter-se. E, se estas não haviam sido sustentadas com mais diligência, fora precisamente porque o grosso das forças assírias se achava imobilizado em um verdadeiro ninho de vespas, a Babilônia e o Elam. O reino de Nínive não podia desviar-se desse teatro de operações, visto que nele estavam em jogo, além de todo o seu prestígio, sua segurança mais imediata.

A Babilônia era a jóia do império, a fonte de toda espiritualidade, a terra dos santuários prestigiosos, onde, a partir do século IX, os reis da Assíria regularmente iam em peregrinação, e de onde traziam os escritos fundamentais que inspiravam sua religião e a literatura de seu país. Isto porque, embora com seus particularismos, a Assíria no global seguia as tradições do Sul. Havia séculos que encarava com inveja esse vizinho mais dotado que a rejeitava e talvez mesmo a desprezasse. E eis que, sob o enérgico impulso de Tiglat-Pileser III, o inacreditável acontecera: a Babilônia era território assírio. Os novos senhores tudo fariam para conservar esse florão de sua coroa. Tentariam todas as fórmulas constitucionais para poupar as suscetibilidades locais e, quando se tornasse flagrante a derrota, deixariam abater-se pesadamente à sua cólera. Contudo, a repressão e as sucessivas destruições de Babilônia só serviram para galvanizar a resistência. Os babilônios tinham uma impertinente propensão a não se deixar assimilar. Desde que as campanhas de Shamshi-Adad V suprimiram o poder real tradicional da Transtigrina, foram os caldeus que representaram a principal força de oposição. Facilmente atraíram para a causa nacional as grandes cidades da planície, pelo menos as principais, e nem sequer vacilaram em unir-se ao Elam, seu tradicional inimigo, a fim de rechaçar o invasor do Norte.

Ora, essa conjunção de caldeus e elamitas era bastante perigosa para os assírios, pois a guerra, já estafante nos pântanos do sul, ameaçava alastrar-se ao longo do Zagros e, aos poucos, atingir as fronteiras orientais, cortando assim as vias de comunicação com o planalto iraniano. Por isso, era com extrema atenção que os assírios vigiavam os acontecimentos na Babilônia; não empreenderiam outras campanhas militares antes de assegurar sua retaguarda nessa região e, em caso de necessidade, renunciariam a elas para concentrar os esforços no teatro de operações essencial.

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Isso se observa desde Sargão II, quando a revolta retumbava em todo o império. Após as primeiras medidas destinadas a apaziguar a opinião pública assíria, passou a hostilizar Merodaque-Baladam, que com apoio do Elam se proclamara rei da Babilônia. Vencedor no confronto, Sargão II fez-se reconhecer como soberano do país, mas não usou qualquer subterfúgio diplomático: tornou-se rei da Babilônia sob seu nome assírio.

Senaquerib, cujo reinado foi praticamente todo consagrado a tentar resolver o problema babilônico, experimentou diversas fórmulas constitucionais. Após vários confrontos duvidosos com babilônios e elamitas, Senaquerib em 689 a.C. recuperou a superioridade e deu livre curso a seu furor: saqueou Babilônia e a inundou com as águas do Eufrates. Esse terrível exemplo e quiçá também a clemência de Assarhadon asseguraram, durante alguns anos, uma relativa calma na Babilônia. O novo rei restaurou a capital do sul e restituiu-lhe o papel de encruzilhada comercial.

Uns vinte anos depois, a situação evoluiria de forma dramática, em parte, provavelmente, devido às disposições testamentárias de Assarhadon que dividira os territórios mesopotâmicos entre os dois filhos, Assurbanipal e Shamash-Shum-Ukin. A divisão, de fato, havia sido bastante desigual, porquanto o domínio de Shamash-Shum-Ukin, apesar de ser o primogênito, cobria apenas os territórios de Babilônia, Borsippa, Cuta e Sippar, os quais ele nem sequer controlava de maneira absoluta. O filho mais novo, Assurbanipal, era o verdadeiro senhor do império. Tal situação devia parecer injusta e, sem dúvida, foi ela que levou o rei da Babilônia à revolta. No confronto que se seguiu, Assurbanipal tomou de assalto a cidade de Babilônia em 648 a.C. e seu irmão Shamash-Shum-Ukin morreu no incêndio de seu palácio. A Babilônia reconquistada foi administrada por Kandalanu. Quanto ao Elam, as tropas assírias saquearam sua capital Susa e o país foi reduzido a província assíria.

O desmoronamento do império assírio, que seguiu de perto o triunfo de seu maior soberano, Assurbanipal, é freqüentemente considerado um "escândalo histórico". Por certo, múltiplas causas, ainda mal conhecidas, devem ter entrado em jogo, e a trama dos acontecimentos permanece objeto de discussão. O fenômeno, efetivamente, continuaria incompreensível, se não se levasse em conta o fato seguinte: entre 627 a.C., data presumível da morte de Assurbanipal, e 612 a.C., data da queda de Nínive, houve uma sucessão quase ininterrupta de guerras civis

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ou externas. Quando os medos intervieram, o país devia encontrar-se esgotado.

Um fato novo, com efeito, ocorrera com a morte de Assurbanipal: o problema da sucessão não pôde ser solucionado, como sempre acontecera até então. O direito de Assur-Etel-Ilani à sucessão de Assurbanipal foi contestado pelo general Sin-Shum-Lishir e, a seguir, por um outro filho de Assurbanipal, Sin-Shar-Ishkun. Os revoltosos, que operavam a partir de bases militares em Babilônia, foram atacados incontinente por Assur-Etel-Ilani, e Sin-Shum-Lishir logo desapareceu de cena. A guerra entre os dois irmãos campeou daí em diante, para proveito de um caldeu, Nabopolassar, chefe do País do Mar. Assim, pelo menos três exércitos atuavam ao mesmo tempo na Babilônia. As cidades mudavam freqüentemente de mãos, e não mais sabiam onde se encontrava a autoridade legítima.

Os fatos são um pouco confusos, mas em 616 a.C. Nabopolassar controlava toda a Babilônia e levava a cabo operações ofensivas ao longo do médio Eufrates. A direção tomada pelos acontecimentos levou o faraó Psamético a intervir, pois os assírios se achavam impossibilitados de controlar a Síria e a Palestina, tendo as províncias dessa região recobrado uma independência de fato.

Em 612 a.C. a Assíria teve seu império assaltado e sua capital destruída pelos medos e babilônios. Seu rei fugiu para Harã e resistiu ainda dois anos, com ajuda egípcia. Em 610 a.C. o rei da Assíria é desalojado de Harã. Em 609 a.C. os assírios tentam, novamente, tomar Harã. Sem sucesso. Seja como for, os derradeiros restos do império assírio desapareceram então para sempre. Toda a Djezireh passou a ser território babilônico e o faraó Necao implantou o domínio egípcio na Palestina, nas cidades fenícias e nas antigas províncias aramaicas da Assíria, até os vaus do Eufrates.

5.5. Por Que Judá Caiu?Quando Judá entrou na fase crítica de enfrentamento com o poderio estrangeiro, balançando entre o enfraquecido Egito e a fortalecida Babilônia, a nação estava totalmente despreparada para a crise[6].

Não estou falando de forças militares, pois por aí é que o país não acharia mesmo nenhuma saída. Enquanto as maiores potências da época mantinham grandes exércitos regulares e, principalmente, financiavam, a peso de ouro, exércitos mercenários, os pequenos reinos tinham que contar, em boa parte, com voluntários despreparados para guerras prolongadas.

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Mas estou falando de outro despreparo. Despreparo gerado pelas atitudes políticas falhas e pela ideologia dominante enganosa de Judá.

Desde a época de Davi vinha sendo elaborada uma crença específica, a da invencibilidade de Jerusalém, associada à crença na perpetuidade da dinastia davídica.

Quando Davi conquistou Jerusalém e estabeleceu ali a sua capital, algumas providências significativas foram tomadas. Tais como: a transferência da Arca da Aliança para a nova sede, a constituição de uma sacerdócio associado e submisso ao Estado e a tentativa de construção de um Templo, o que, de fato, foi feito por Salomão.

Jerusalém, antiga cidade-fortaleza jebuséia, carecia de legitimidade javista. Os tradicionais santuários do povo de Israel estavam mais ao norte, eram Siquém, Silo, Betel, Guilgal etc. A transferência da Arca, espécie de trono móvel de Iahweh, foi uma manobra davídica para dar legitimidade à sua cidade (cf. 2Sm 6).

Outro dado interessante é a associação do sacerdócio à nova ordem real que se estabeleceu com Davi. Ele tinha, como sabemos através de 2Sm 8,15-18, uma curiosa dualidade tanto no comando do exército quanto na chefia do sacerdócio. Ou seja: dois generais, Joab e Banaías, comandam o exército, enquanto dois sacerdotes, Abiatar e Sadoc, comandam o sacerdócio. Esta dualidade poderia significar que o general Joab e o sacerdote Abiatar representavam as forças tradicionais de Israel, enquanto o general Banaías e o sacerdote Sadoc representavam a nova ordem monárquica, sem ligação com as tradições tribais. Ora, sabemos que, sob Salomão, Joab foi morto e Abiatar desterrado, assumindo os seus cargos Banaías e Sadoc, respectivamente (cf. 1Rs 2,26-35). Foi a vitória da nova ordem monárquica.

G. BETTENZOLI, em interessante artigo, distingue dois tipos de líderes judaítas desde a época de Davi. Há os "anciãos de Judá" (ziqnê y'hûdâh), líderes tribais das várias cidades e aldeias judaítas e os "anciãos da casa" (ziqnê bayit), representantes do poder da corte davídica de Jerusalém. Diferente do norte, onde o poder real se constitui a partir das lideranças tribais, o poder de Jerusalém constrói sua própria base, independente dos líderes tradicionais[7].

Ou seja: "Enquanto nas tribos do norte esta [a instituição monárquica] é inserida no direito sagrado javista, no território de Judá a monarquia é vista como uma realidade estranha à ordem sagrada, como um fenômeno estritamente dependente de uma oportunidade política"[8]. Bettenzoli

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assinala que, com o tempo, os "anciãos de Judá" vão perdendo sua liderança, gradualmente absorvidos pela monarquia e pela corte de Jerusalém.

É neste contexto que se desenvolve uma teologia da perpetuidade da dinastia davídica, referendada pelo profeta Natã (2Sm 7), e da sacralidade de Sião, moradia de Iahweh, que garante a inviolabilidade de Jerusalém.

Esta teologia pode ser vista também em vários salmos, como o 2, o 89 e o 132. Elaborada pelos sacerdotes associados ao poder real de Jerusalém, obviamente esta teologia apareceria nos salmos, pois estes representam também orações e celebrações do Templo.

Diz J. PIXLEY: "Essa nova teologia não foi, provavelmente, toda elaborada no tempo de Davi. Foi ele, porém, quem a iniciou. Os Salmos, por exemplo, expressão máxima desta teologia, até o dia de hoje são atribuídos majoritariamente à autoria de Davi. Para uma leitura a partir dos pobres a teologia davídica é muito ambígua, podendo servir, como aconteceu, para amparar e legitimar sua opressão"[9].

Como vimos, com a morte de Josias quase tudo se perdeu: o poder real sob Joaquim tornou-se extremamente despótico e o Templo, fortalecido pela centralização do culto, associou-se, mais uma vez, aos desmandos da classe dominante enquanto a legitimava e ocultava suas práticas através da religião.

Quanto mais próximo estava o desenlace da crise, mais a nação se apegava ao dogma da inviolabilidade da cidade, especialmente do Templo. Isto interessava aos poderes dominantes, pois garantia seus privilégios a curto prazo. Judá sabia, observando os acontecimentos, que enfrentaria, mais cedo ou mais tarde, a ameaça sem limites do poderio babilônico.

Podemos acompanhar, acerca desta época, os testemunhos dramáticos dos profetas Habacuc, que pregou entre 605 e 600 a.C., e Jeremias, que atuou incansavelmente desde 627 a.C., vendo, angustiado, o fim de seu país e indo morrer no Egito por volta de 580 a.C.

Leituras Recomendadas

AA.VV., Israel e Judá. Textos do Antigo Oriente Médio, São Paulo, Paulus, 19972.

DA SILVA, A. J., Nascido profeta. A vocação de Jeremias, São Paulo,

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DONNER, H., História de Israel e dos povos vizinhos II, São Leopoldo, Sinodal/Vozes, 1997 [20043], pp. 363-442.

ECHEGARAY, J. G., O Crescente Fértil e a Bíblia, Petrópolis, Vozes, 1993, pp. 143-188.

GRABBE, Lester L. (ed.), Leading Captivity Captive. ‘The Exile’ as History and Ideology, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1998.

HERMANN, S., Storia d'Israele. I tempi dell'Antico Testamento, Brescia, Queriniana, 19792.

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PIXLEY, J., A história de Israel a partir dos pobres, Petrópolis, Vozes, 20049, pp. 54-79.

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[6]. Cf. a análise de PIXLEY, J., A história de Israel a partir dos pobres, Petrópolis, Vozes, 20049, pp. 73-90.

[7]. BETTENZOLI, G., Gli Anziani in Giuda, em Biblica 64 (1983), pp. 211-224; Gli Anziani di Israele, em Biblica 64 (1983), pp. 47-73.

[8]. Idem, ibidem, p. 233.

[9]. PIXLEY, J., o. c., p. 30.

6. A Época Persa e as Conquistas de Alexandre Em 334 a.C., Alexandre, rei da Macedônia, entra com seus exércitos na Ásia Menor, depois de controlar toda a Grécia. Aos 23 anos de idade, o

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macedônio derrota o principal exército persa em Isso. Estamos no ano de 333 a.C. e o controle macedônio de todo o Oriente, até o vale do rio Indo, vai acontecer sem interrupções significativas. É o fim do Império Persa e o começo de uma nova era, a do helenismo.

A rota das conquistas de Alexandre passa pela Síria, Fenícia, Palestina, Egito. E, de volta, em direção à Babilônia, Susa, Persépolis e além. Na Fenícia e na Palestina somente as cidades de Tiro e Gaza oferecem a Alexandre alguma resistência: Tiro resiste heroicamente a 7 meses de cerco e Gaza, fiel aos persas, cai após 2 meses.

Durante estas campanhas, toda a Palestina, pertencente à V satrapia persa, é anexada ao novo império, sem maiores problemas. Inclusive a comunidade judaica que vive em Jerusalém e arredores.

As interrogações que afloram neste ponto dizem respeito à situação da Grécia no século IV a.C. e à política macedônia que possibilita a Alexandre a conquista do imenso Império Persa. Política que foi iniciada por Filipe II e desenvolvida de modo brilhante por seu filho.

Tentarei, assim, responder às seguintes questões:

qual é a situação da Grécia no século IV a.C. e qual é a política de Filipe II?

qual é o roteiro das conquistas de Alexandre Magno?

quem é Alexandre e quais são seus objetivos?

como acontece a anexação da Judéia por Alexandre em 332 a.C.?

qual é a situação da Judéia no momento da anexação?

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Grécia antiga. Use-a para este capítulo.

6.1. A Situação da Grécia e a Política MacedôniaO declínio da cidade-estado grega acontece antes mesmo de seu confronto com a Macedônia. A guerra é uma das principais características da Grécia do século IV a.C. De 431 a.C., começo da guerra do Peloponeso, a 338 a.C., data da vitória de Filipe II na batalha de Queronéia - cerca de um século - a guerra quase nunca pára.

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Atenas, no século V a.C., guiada por Címon e Péricles, torna-se uma potência imperial. Mas confronta-se com Esparta, dando origem à guerra do Peloponeso, que dura de 431 a 404 a.C., quando Atenas é derrotada.

A guerra do Peloponeso "foi em seus aspectos mais importantes uma luta entre Atenas, um Estado democrático e uma potência marítima, que havia convertido a Confederação Délia (concebida para resistir aos persas) num império sob seu

próprio comando, de um lado, e do outro a maioria dos Estados do Peloponeso conjuntamente com a Boiotia [= Beócia] e liderados por Esparta, uma potência oligárquica e conservadora, cujas forças terrestres constituíam o exército mais aguerrido da época"[1].

Esparta, senhora do mundo grego a partir de 404 a.C., cai rapidamente, especialmente porque sua estrutura institucional não lhe permite manter um império. O número de cidadãos espartanos, que é de cerca de 8.000 em 480 a.C., chega a cair para apenas 2.000 em 371 a.C. As causas podem ser vistas nas perdas da guerra, na concentração da terra em poucas mãos e na perda da Messênia, libertada pelo tebano Epaminondas em 370-369 a.C.

Esparta perde sua hegemonia, definitivamente, na batalha de Leuctras, em 371 a.C., derrotada por Tebas. "Esparta não passará, desde então, de uma cidade de segunda categoria, limitada na sua ação ao Peloponeso, sobre o qual nunca mais conseguirá restabelecer a sua antiga dominação"[2].

Tebas sucede a Esparta na hegemonia sobre a Grécia, mas cai em 362 a.C., na batalha de Mantinéia - embora vitoriosa - quando morre seu célebre general Epaminondas.

Em seguida, Tebas favorece os desígnios de Filipe II em relação à Grécia, mas acaba se aliando a Atenas, quando Filipe a ameaça. Termina derrotada pelo rei macedônio, em Queronéia, em 338 a.C. Posteriormente, em 335 a.C., Alexandre Magno reduz Tebas a ruínas. A batalha de Queronéia marca o fim da independência da Grécia[3].

No século IV a.C., por toda a Grécia, começa a emergir fortemente o contraste entre os ideais democráticos prometidos pelas constituições das cidades e a desigualdade criada pelas condições econômicas e sociais.

O grande orador ateniense Demóstenes, em discurso de defesa pronunciado em 352 a.C., deixa bem claro esta situação:

"Outrora, a cidade era rica, era magnífica, digo a cidade, pois entre os particulares, ninguém se elevava por cima da massa (...) Hoje, todos os

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profissionais da vida pública têm, em privado, tal abundância de bens que mandam, por vezes, construir casas particulares mais imponentes do que muitos edifícios públicos; alguns compraram mais terras que aquelas que vós todos possuís, no tribunal"[4]

O aumento dos mercenários é outro indício da desintegração da pólis grega. Ganhar a vida nos exércitos pagos pelos grandes reinos, seja a Pérsia ou outro qualquer, é a única saída para milhares de gregos empobrecidos. Estes homens perdem suas raízes cívicas, pois o exército é a única cidade que eles conhecem, ao mesmo tempo em que as cidades gregas perdem o controle da função militar.

Há ainda inúmeros aspectos que poderiam ser analisados. Mas, enfim, vale apenas observar que os pensadores políticos do século IV a.C. começam a ficar sensíveis às tendências monárquicas, refletindo a evolução da época. "O poder efetivo passa cada vez mais das velhas cidades para os soberanos, gregos e não-gregos, que possuem os meios financeiros para assegurar a força militar que escapa às cidades. Ao perderem o controle da função militar, as cidades perdem igualmente a iniciativa política"[5].

Qual é a solução para o problema social da Grécia?

Os gregos devem conquistar uma parte da Ásia, aí se instalarem, e submeter as populações locais à exploração do trabalho.

Este será o projeto do macedônio Filipe II, realizado por seu filho Alexandre Magno.

A Macedônia, com sua capital Pela, está situada ao norte da Grécia e é apenas semi-grega. Gregos de origem, os macedônios vivem, entretanto, em contato permanente com populações não-gregas, razão porque os atenienses, por exemplo, os qualificam como bárbaros. Na verdade sua língua é um dialeto grego com forte infusão de vocábulos estrangeiros e não é compreendido pelos gregos. Somente a aristocracia macedônia fala e escreve o grego ático. Mas os macedônios pertencem ao mesmo grupo étnico dos dórios e talvez tenham se originado de clãs ilírios ou trácios misturados com populações não-arianas...

Da Macedônia arcaica quase nada sabemos. Mas, segundo o padrão conhecido dos dórios primitivos, os macedônios deveriam formar tribos de pastores parcialmente nômades, cada uma chefiada por um rei - simultaneamente líder guerreiro e religioso -, um conselho de anciãos e uma assembléia. Com o tempo uma das tribos acaba controlando as outras.

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No século VII a.C. estrangeiros se estabelecem entre os macedônios e acontece uma expansão de seu território e a consolidação de uma monarquia que se sustenta na aristocracia dos grandes proprietários de terra. A partir do contato e das alianças com a Pérsia, sob as pressões do persa Dario I (521-486 a.C.), o Estado macedônio absorve instituições políticas e militares do grande império oriental e se fortalece progressivamente até a época de Filipe II [6].

Filipe II, filho do rei Amintas, governa a Macedônia de 359 a 336 a.C. Tendo sido educado em Tebas, assimila a mentalidade grega clássica e também estuda as reformas militares de Epaminondas. As táticas militares deste grande comandante tebano, nascido por volta de 420 a.C., foram o segredo da (breve) hegemonia de Tebas sobre a Grécia, como vimos acima.

Filipe II percebe que é necessário abrir à sua pátria os caminhos do mar Egeu, pois a região litorânea, com várias cidades autônomas, como Olinto, ou com cidades ligadas a Atenas, nunca tinha se submetido ao controle macedônio.

Outro passo de Filipe II: a reorganização do exército macedônio. Especialmente a falange tebana, que é adaptada para fins ofensivos, tornando-se o principal instrumento de suas vitórias e das vitórias de Alexandre Magno. Filipe II "criou a infantaria `média' formada de macedônios e de mercenários ligeiramente armados: arqueiros, fundibulários, cavalaria onde serviam principalmente os nobres da Tessália e cavalaria ligeira empregada para reconhecimentos, tropas especialmente preparadas com meios adequados para o cerco e por fim a guarda real, tirada da infantaria"[7].

Filipe II cria o serviço militar obrigatório e profissionaliza o exército. Um corpo permanente de oficiais assessora o rei nas questões militares.

Filipe II conquista a hegemonia sobre a Grécia. Faz uma política extremamente eficiente, sem escrúpulos, explorando as rivalidades entre as cidades gregas até se apresentar como a única alternativa possível para a solução dos conflitos.

"Filipe II foi um excelente estrategista e um tático, homem de Estado e negociador perigoso, sabendo usar da corrupção, da mentira, da fraqueza ou da divisão dos adversários e do amor da paz em outros povos para os anestesiar e depois conquistar"[8].

Diante da ofensiva de Filipe II sobre a Grécia, três reações atenienses são típicas e servem para clarear a situação então vivida pelos gregos.

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A primeira é a de Demóstenes, famoso orador, o maior opositor de Filipe II e principal porta-voz da democracia ateniense. Demóstenes vê na hegemonia da Macedônia o maior dos riscos que a Grécia corre e faz de tudo para impedi-la.

Demóstenes, considerado o maior dos oradores gregos, nasce em Atenas em 382 a.C. e morre em 322 a.C. Temos hoje 61 discursos atribuídos a Demóstenes, mas é possível que alguns deles não sejam autênticos. Entre seus discursos destacam-se as quatro "Filípicas" - pronunciadas contra Filipe II -, as três "Olínticas" (também contra Filipe II), e a "Oração da Coroa", pronunciada em 330 a.C. (contra Ésquines), considerado o maior discurso do maior dos oradores[9].

Em maio de 341 a.C., diante da crescente ameaça representada por Filipe II, que utiliza vários subterfúgios para se intrigar com Atenas e destruí-la, Demóstenes pronuncia a "Terceira Filípica", na qual tenta alertar os atenienses para o perigo iminente. Entre outras coisas, ele aborda as transformações ocorridas na arte militar do século IV a.C. e chama a atenção para as suas conseqüências. Vejamos um trecho.

"É verdade que os que querem consolar a cidade lhe pronunciam este discurso simplório: Filipe, dizem, não tem ainda o poder que outrora tinham os Lacedemônios [os espartanos] quando eram os senhores do mar e de todo o continente, quando tinham o Grande Rei [o rei da Pérsia] por aliado e ninguém lhes resistia. E, no entanto, a cidade fez-lhes frente, não foi dominada. Quanto a mim, constatando que tudo, por assim dizer, progrediu em dimensão, que o presente já nada se parece com o passado, penso que foram as coisas da guerra que conheceram as maiores mutações e o maior progresso. Primeiro que tudo, nada me diz que outrora os Lacedemônios, tal como todos os outros gregos, invadissem um país para lhe devastar o território com os seus hoplitas e os seus exércitos de cidadãos, a não ser quatro ou cinco meses por ano, durante a estação quente; após o que regressavam a casa. Além disso, tinham um comportamento tão arcaico, ou antes cívico, que não compravam qualquer serviço a ninguém; faziam uma guerra regular e aberta. Hoje, vós o presenciais, foram os traidores que tudo perdeu ou quase; as batalhas campais não servem para nada, e dizem-vos que Filipe se encontra aqui ou ali, onde ele quer, e não com uma falange de hoplitas; não, tropas ligeiras, cavaleiros, arqueiros, mercenários, eis o exército que lhe segue as passadas. Quando, por outro lado, ele cai sobre um povo minado por um mal interior e que não ousa sair dos muros para defender o seu território devido à desconfiança que aí reina, ele assesta as suas baterias e cerca a

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cidade. E abstenho-me de analisar o fato de que, para ele, não há qualquer diferença entre o verão e o inverno e que também não há para ele estação reservada onde interrompa as operações"[10].

Diametralmente oposta à de Demóstenes é a atitude de Ésquines, que se torna colaborador dos macedônios e destes recebe, em troca, significativas vantagens materiais. Demóstenes acusa-o, certa vez, de ter se enriquecido, recebendo de Filipe II terras na Macedônia, além de determinada quantia em dinheiro. E Ésquines não consegue desmentir seu rival e acusador.

Ésquines, de origem modesta, torna-se famoso orador em Atenas, tendo nascido por volta de 390 a.C. e morrido provavelmente em 314 a.C. Temos dele três discursos: Contra Tímarcos, Sobre a Embaixada e Contra Ctesifonte. É o grande adversário de Demóstenes e um fato bem o ilustra.

O cidadão ateniense Ctesifonte propõe ao povo, em 336 a.C., que a cidade conceda uma coroa de ouro a Demóstenes, por seus serviços prestados à pátria na sua luta contra a hegemonia macedônia.

"Ésquines, partidário da facção macedônia e rival do autor da Oração da Coroa nas lides oratórias e na vida pública, moveu uma ação contra Ctesifonte, acusando-o de haver violado a Constituição por três motivos: 1º porque Demóstenes ainda não havia prestado contas de sua gestão em importante cargo público; 2º porque a coroação, por força da lei, deveria ter lugar na praça pública ou no Senado e não no teatro de Dionísio como pretendia Ctesifonte; e 3º porque Ctesifonte estaria atribuindo a Demóstenes, no projeto em que propunha a concessão da coroa de ouro, méritos que ele não possuía e serviços que ele não prestara"[11].

Em 330 a.C., após seis anos de tramitação do processo, os dois oradores se enfrentam. É então que Ésquines pronuncia o discurso "Contra Ctesifonte" e Demóstenes responde com sua "A Oração da Coroa", onde tenta provar que Ésquines é um traidor da pátria, comprado pelo ouro de Filipe II. Demóstenes vence.

"Essa vitória não foi somente o reconhecimento dos serviços prestados pelo orador a Atenas; foi também um ousado protesto do povo ateniense, premiando o mais destemido adversário do expansionismo macedônio, e isso quando Alexandre, o Grande já era o senhor do mundo de então. Devem ter pesado na decisão dos atenienses, amantes da liberdade, afirmações de Demóstenes como esta: `Ninguém até hoje foi capaz, desde o início dos tempos, de persuadir Atenas a aceitar a servidão, tolerando o poder divorciado do direito'"[12].

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A terceira posição sobre a questão da hegemonia macedônia sobre a Grécia é a de Isócrates[13], que nem é um combatente da resistência como Demóstenes, nem um colaboracionista como Ésquines.

Isócrates quer se ver livre da pressão e do domínio persas. Esparta não é a esperança, Tebas também não. Atenas, verdadeira "capital" da Grécia, está submetida, segundo Isócrates, a uma má democracia e cometera o erro de fundar um império pela força, que agora desmorona. O mal é a desunião dos gregos. Todos lutam contra todos. Isso é o que dá poder à Pérsia.

No "Panegírico" Isócrates pede a Atenas e a Esparta que esqueçam suas rivalidades e se unam contra a Pérsia:

"É muito melhor fazer a guerra contra o Grande Reino do que disputarmos a nós próprios a hegemonia. É necessário que esta expedição seja feita pela geração atual a fim de que aqueles que conheceram juntos a infelicidade sejam também os que gozem a felicidade e não passem todo o seu tempo no infortúnio. Não chega já de um passado em que nem sequer se sabe que catástrofe nos faltou?"[14]

"Feito o diagnóstico, Isócrates considerou que bastava a união para reparar todos os males. As cidades devem entender-se para combater o bárbaro e estender sobre toda a Ásia as leis da civilização da Grécia. Para isso é necessário que admitam uma direção única e que restabeleçam uma hegemonia necessária. Quem deve exercer essa hegemonia?"[15].

Segundo Isócrates, Filipe II é a solução. O "Filipe", escrito em 346 a.C., é uma exortação ao macedônio para que assuma o comando dos gregos contra os bárbaros.

"Vemos assim que a unidade da Grécia podia ser concebida de muitas formas, umas baseadas na democracia da cidade e levando à resistência a um imperialismo, tendo por suporte valores do passado, no caso a de Demóstenes, outras aceitando esse imperialismo e constituindo-se numa variedade de colaboracionismo vulgar [ Ésquines], outras por concepções utópicas políticas e históricas, a de Isócrates, de alto teor moral e inegável desinteresse mas não menos perigosas para a independência e a liberdade dos cidadãos"[16].

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[1]. HARVEY, P., Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1987, verbete Guerra do Peloponeso.

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[2]. AUSTIN, M./VIDAL-NAQUET, P., Economia e sociedade na Grécia antiga, Lisboa, Edições 70, 1986, pp. 132-134.

[3]. Cf. HARVEY, P. o. c., verbete Tebas. ROSTOVTZEFF, M., História da Grécia, Rio de Janeiro, Zahar, 1973, p. 216, comenta: "Quando a liga espartana se desintegrou e Tebas estava ficando cada vez mais fraca, a condição política da Grécia só pode ser definida pela palavra anarquia'". E acrescenta na p. 217: "Na Grécia, a democracia mostrou-se incapaz de criar uma forma de governo que deveria reconciliar o individualismo característico do país com as condições essenciais à existência de um Estado poderoso. Cf. também FINLEY, M. I., Os gregos antigos, Lisboa, Edições 70, 1984, pp. 75-80.

[4]. DEMÓSTENES, Contra Aristócrates, 206ss. Cf. o texto em AUSTIN, M./VIDAL-NAQUET, P., o. c., p. 325. GLOTZ, G., A cidade grega, São Paulo, Difel, 1980, p. 257, diz que "a agricultura a tal ponto se comercializa que a grande propriedade se reconstitui pela progressiva evicção dos pequenos camponeses e pela concentração das parcelas de terra entre as mesmas mãos".

[5]. AUSTIN, M./VIDAL-NAQUET, P., o. c., p. 143.

[6]. Cf. GOUKOWSKY, P., Essai sur les origines du mythe d'Alexandre (336-270 av. J.-C.) I, Nancy, Université de Nancy II, 1978, pp. 9-12.

[7]. DE CASTRO, P., Alexandre, o Grande, São Paulo, Editora Três, 1973, p. 21.

[8]. DE CASTRO, P., o. c., p. 23.

[9]. Sobre Demóstenes, cf. HARVEY, P., Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina, verbete Demóstenes; DE ROMILLY, J., Fundamentos de literatura grega, Zahar, Rio de Janeiro 1984, pp. 155-164. Esta autora observa na p. 161: "Demóstenes era democrata, mas precisamente por essa razão parecia-lhe que o verdadeiro remédio para todos os males possíveis seria o fortalecimento dos costumes democráticos. Para isso ele reclama duas coisas: o respeito à lei, e a vontade, da parte do povo, de aceitar suas responsabilidades".

[10]. DEMÓSTENES, Terceira Filípica, 47-50. Cf. o texto em AUSTIN, M./VIDAL-NAQUET, P., o. c., p. 312. HARVEY, P., o. c., verbete Demóstenes, comenta sobre a "Terceira Filípica": "Esta é uma das mais belas orações de Demóstenes, marcada por um tom de gravidade e profunda preocupação".

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[11]. DA GAMA CURY, M., introdução a DEMÓSTENES, A Oração da Coroa, Rio de Janeiro, Ediouro, s/d, p. 6.

[12]. Idem, ibidem, pp. 6-7.

[13]. Isócrates, outro grande orador ateniense, vive entre 436 e 338 a.C. Temos dele vinte e um discursos e nove cartas. Seus discursos políticos pregam a unidade grega. O mais famoso é o "Panegírico", publicado em 380 a.C., provavelmente por ocasião do Festival Olímpico.

[14]. ISÓCRATES, Panegírico, 166ss. Cf. o texto em AUSTIN, M./VIDAL-NAQUET, P., o. c., p. 313.

[15]. DE CASTRO, P., o. c., p. 29.

[16]. DE CASTRO, P., o. c., p. 30.

6.3. Quem é Alexandre Magno?A cronologia das conquistas de Alexandre não é suficiente para se entender o macedônio e suas atitudes. É preciso perguntarmos agora: quem é Alexandre? Por que Alexandre invade a Ásia? Quais são os seus propósitos?

Segundo os historiadores antigos, Alexandre é um jovem brilhante. E para ilustrar isso contam certos episódios, como o seguinte narrado por Plutarco.

Certa vez, estando ausente seu pai, ele ainda adolescente, recebe embaixadores persas e trata-os de maneira tão cativante que faz fama. Nas palavras de Plutarco:

"Chegaram embaixadores do rei da Pérsia, certa vez, quando Filipe estava ausente em viagem; ele os entreteve de maneira cativante. Tratou-os com simpatia; não lhes fez perguntas pueris e banais; informou-se da extensão das estradas e da natureza da viagem pelo interior, de como o rei mesmo procedia nas guerras, da combatividade e poderio da Pérsia. Assim, eles ficaram admirados e acharam que a falada capacidade de Filipe nada era comparada com a iniciativa do filho e sua tendência às grandes empresas"[21].

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Naturalmente, é necessário que leiamos tais narrativas com olhos críticos, pois Plutarco é do século I d.C. e a fama de Alexandre, nesta época , é muito grande. O brilhantismo de suas conquistas costuma ser retroprojetado para sua infância e adolescência, como fica evidente no final deste trecho.

Costuma-se explicar, às vezes, a personalidade de Alexandre através da dupla influência do pai Filipe - espírito moderado, apolínio, regrado pela disciplina militar e pela educação grega - e da mãe Olímpia, totalmente imoderada, dionisíaca, dada a exaltação e a "furores divinos".

Aqui, o risco é de: 1º) dar explicações psicológicas para fatos históricos ou sociais, onde quem deve falar, antes de tudo, é o historiador ou o sociólogo; 2º) fazer falsa psicologia, pois é muito difícil determinar as causas de certos comportamentos de personalidades famosas da antigüidade apenas através de narrativas não muito próximas aos acontecimentos e condicionadas por inúmeros fatores que precisam ser primeiro explicitados[22].

Um dos episódios que costumam ser citados para ilustrar a personalidade de Alexandre é o da morte de Clito, seu amigo e companheiro, que o insulta durante um banquete, quando ele já é senhor do Oriente:

"Então, Alexandre, tomando a lança de um de seus guardas, com ela traspassou Clito, que vinha ao seu encontro afastando o reposteiro da porta. Ao vê-lo tombar gemendo e rugindo, logo se lhe dissipou a cólera; caiu em si e, diante dos amigos emudecidos e parados, rapidamente arrancou a lança do cadáver e tê-la-ia cravado na própria garganta se não o contivessem os seus guardas pessoais, agarrando-lhe os braços e conduzindo-o à força para os aposentos. Passou a noite e o dia seguinte a chorar perdidamente; por fim, cansado de clamar e lastimar, manteve-se calado, emitindo profundos suspiros"[23].

Em contraste com a irracionalidade deste episódio - pelo menos aparente, pois, como veremos adiante, há razões políticas para o assassinato de Clito -, o mesmo Plutarco nos conta que ao aprisionar, após a batalha de Isso, a família de Dario, trata-a com a maior deferência e humanidade.

Diz-lhes que sua guerra é com Dario, por causa do poder, e que elas - a mãe, a esposa e as duas filhas moças de Dario - nada têm a temer. E que tudo o que tinham antes continuarão a ter.

"Ele permitiu sepultassem todos os mortos persas que elas quisessem, tirando dos despojos as roupas e adornos fúnebres; não as privou da mínima parte dos cuidados e honras a que estavam habituadas (...)

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Alexandre aparentemente considerava mais próprio de rei vencer a si mesmo que ao inimigo; não lhes tocou, nem conheceu, antes de casar, outra mulher além de Barsina"[24].

Alexandre tem vários preceptores, pedagogos e professores, entre eles o filósofo Aristóteles, na época ainda sem a fama que mais tarde o caracteriza. No castelo de Mieza, próxima a Pela, Aristóteles orienta Alexandre durante 4 anos.

A educação ministrada a Alexandre por Aristóteles é a típica de um jovem grego. Homero é a leitura básica. Alexandre leva nas suas campanhas uma edição da Ilíada anotada por Aristóteles.

"Considerava e chamava a Ilíada um vade-mecum da arte da guerra; adotou a versão corrigida por Aristóteles, conhecida como Ilíada do Escrínio, e conservava-a sempre junto com o punhal debaixo do travesseiro, segundo conta Onesícrito"[25].

Além de Homero, Eurípedes, Píndaro, Heródoto, Xenofonte, Tucídides, entre outros, são as suas leituras. Estuda, com Aristóteles, moral, dialética, metafísica, retórica, medicina, geografia.

Vejamos, rapidamente, quem são estes autores que o jovem Alexandre lê.

Textos dos autores gregos? Escolha: em grego ou inglês!

Eurípedes nasce em Salamina por volta de 485 a.C. e morre em 406 a.C. Grande dramaturgo que escreve 82 peças, das quais hoje sobrevivem 18 tragédias e um drama satírico.

Píndaro, famoso poeta lírico, nasce perto de Tebas por volta de 522 a.C. Escreve 17 livros, mas temos apenas cerca de um quarto de sua obra. Entre suas odes mais notáveis estão as Odes Olímpicas e as Odes Píticas. Quando destrói Tebas em 335 a.C., Alexandre ordena que se poupe a casa de Píndaro.

Heródoto nasce aproximadamente em 480 a.C. em Halicarnasso. É considerado por muitos como o pai da historiografia ocidental. O assunto de sua história é a luta entre a Ásia e a Grécia.

Xenofonte, ateniense, nasce por volta de 430 a.C. Historiador e militar, sua obra mais conhecida é a Anábasis (= escalada), narrativa em prosa da expedição de Ciro, o Jovem e seus 10 mil gregos contra seu irmão Artaxerxes II, rei da Pérsia.

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Tucídides, historiador ateniense, vive entre 460 e 400 a.C., aproximadamente. Escreve a história da guerra do Peloponeso, uma das mais importantes obras históricas de todos os tempos por sua imparcialidade e seu método científico[26].

Do ponto de vista político, Aristóteles preconiza a unidade grega e a vitória sobre os persas, mas não a paridade entre gregos e bárbaros que Alexandre deseja e começa mais tarde, ao conquistar o Império Persa.

"Nos oito livros da 'Política', Aristóteles discute a ciência política do ponto de vista da cidade-estado, que imagina ser a comunidade política mais apta a proporcionar ao cidadão a vida em sua plenitude (...) Aristóteles reconhece as vantagens da democracia, porém descobre o tipo mais elevado de forma de governo na monarquia do governante perfeito, se houve um governante dessa qualidade", observa P. Harvey[27].

Na "Política" diz Aristóteles:

"Quando acontece, então, que há uma família inteira (ou mesmo algum cidadão) de tal forma proeminente sobre as outras em qualidades que superam as de todas as outras, então é justo que esta família seja uma família real, soberana sobre todos, e que este cidadão seja um rei, pois como foi dito antes isto se coaduna não apenas com o direito geralmente argüido pelos fundadores de governos aristocráticos e oligárquicos, e também pelos criadores de governos democráticos (todos baseiam suas pretensões na superioridade, embora não na mesma superioridade), mas com o próprio direito mencionado anteriormente. Na verdade, não teria cabimento matar ou banir, nem mesmo - é óbvio - condenar tal homem ao ostracismo, nem sequer que ele passe à condição de súdito quando fora a sua vez; não é natural que a parte se sobreponha ao todo, e um homem dotado dessa superioridade excepcional é como um todo em relação à parte. Logo, resta apenas à comunidade obedecer a tal homem, e a ele ser o soberano, não em alternância, mas de modo absoluto"[28].

O pensamento político de Aristóteles pode ser visto de maneira clara em uma Carta do filósofo a Alexandre, escrita provavelmente no final de 328 a.C., cujo original grego se perdeu, existindo apenas uma versão árabe. A carta é um programa de governo e Aristóteles recomenda a Alexandre que abandone suas tendências orientalizantes e volte a servir os gregos.

Eis os seus pontos principais:

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o Alexandre deve preferir a atividade legisladora à glória das armas, pois grande número de cidades gregas dependem dele.

o As vitórias de Alexandre geraram a paz e, sendo sua autoridade universal e seu poder ilimitado, ele pode conseguir que os homens obedeçam à Lei, criando na Grécia um Estado pan-helênico, com a adesão voluntária dos gregos.

o Alexandre deve se afastar dos maus conselheiros que tendem a fazer dele um tirano que não segue a justiça. Como ele é agora o soberano de muitos povos, deve fazer-se amar e ser respeitado pelos gregos e macedônios. Os gregos, sem mais conflitos internos, poderão dedicar-se à filosofia. Os nobres persas devem ser deportados para a Grécia para que a paz seja mantida.

o Alexandre deve estar atento ao fato de que é mais glorioso governar homens livres [gregos] do que escravos [orientais] e que uma glória duradoura não pode ser construída só com empreendimentos militares. Por isso, Alexandre deve se voltar para os gregos, exercendo a função de legislador e fundador de cidades[29].

Apesar dos conselhos de Aristóteles - que Alexandre não seguirá - é preciso lembrar que o macedônio é excelente soldado e estrategista brilhante. Vários episódios de luta e coragem são contados a seu respeito. Enfrentando exércitos persas muito superiores aos seus, vence-os com lances de genialidade e ousadia, às vezes contra os conselhos de seus melhores generais que recomendam maior prudência.

O que se impõe perguntarmos agora é o seguinte: quais são os objetivos de Alexandre ao invadir a Ásia e se confrontar com o

Império Persa?

As opiniões dos historiadores são variadas a respeito[30].

Alguns acreditam que é para vingar as afrontas de Xerxes contra os gregos em 480 a.C., quando este rei persa avançara através da Trácia, da Macedônia, da Tessália e da Ática, chegando a tomar Atenas. Somente no ano seguinte, em 479 a.C., os gregos conseguem repelir Xerxes em Platéias e em Mícales, após derrotarem sua frota em Salamina, em setembro de 480 a.C.

Outros acreditam que o objetivo inicial de Alexandre seja o de libertar as cidades gregas da Ásia Menor, dando assim continuidade ao projeto de seu

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pai Filipe II que já enviara para lá um exército de 10 mil homens comandado por Parmênion e que está prestes a ser empurrado de volta para o mar.

É bem provável que a conquista de todo o Império Persa não faça parte de seus planos originais. Mas as circunstâncias levam-no a isto.

Foi fácil vencer o enorme exército de Dario em Isso, mas se não fossem anuladas as suas possibilidades navais ao longo da Fenícia e da Palestina - daí a razão do duro cerco de Tiro e a tomada de Gaza - a Grécia e a Ásia Menor continuariam ameaçadas.

Se a perseguição a Dario não continuasse após a volta do Egito, mais tarde Alexandre teria que se medir com ele para sustentar as suas conquistas asiáticas. Parece que a própria lógica da conquista é que leva avante sua expedição.

A possibilidade de fusão das culturas grega e persa deve ter surgido provavelmente como conseqüência e necessidade, após as conquistas das regiões mais diretamente persas. É certo que não faz parte do plano original do macedônio. Alexandre necessita de uma burocracia persa para administrar os territórios conquistados e precisa de exércitos nativos para sustentar as conquistas.

"De duas uma: ou a própria amplidão de suas conquistas o obrigaria a deter-se; ou então era preciso associar as populações autóctones à sua administração. A reconciliação greco-persa não era uma quimera, nem um capricho: era uma necessidade"[31].

P. Goukowsky demonstra, na sua análise do mito de Alexandre, que as práticas e as teorias do absolutismo político persa são revestidas por Alexandre de um verniz grego, tornando possível o exercício da monarquia absoluta com vocação universal. Como ele assume cada vez mais o modelo persa de governar e viver, seus contemporâneos gregos e macedônios não o vêem com bons olhos. Parece-lhes que o objetivo inicial da Liga de Corinto foi abandonado e as conquistas do brilhante jovem macedônio nenhum benefício lhes trazem. A imagem de um Alexandre defensor do helenismo só surgirá no século II a.C., frente à ameaça romana[32].

Aliás, questão interessante é a do mito de Alexandre. Histórias, na sua maioria inventadas, criadas após o tremendo sucesso de suas campanhas e o fascínio de sua figura de herói que conquista o mundo e morre jovem sem usufruir do poder e da riqueza que acumulara.

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Entretanto, P. Goukowsky observa, em seu detalhado estudo das origens do mito de Alexandre, que o próprio conquistador constrói cuidadosamente esta imagem de super-herói que lhe rende altos dividendos políticos, tornando viável o desenvolvimento de seus projetos orientalizantes[33].

Consta que Alexandre se vê como privilegiado herói, filho de Zeus, no Egito identificado a Amon, a quem vai reverenciar e consultar no oásis líbio de Siwah. Além de se considerar descendente de Héracles, de quem procura imitar as façanhas sobre-humanas.

O que narra Plutarco acerca de sua origem é uma espécie de "evangelho da infância" que legitima este mito de sua filiação divina.

"Na noite anterior à das núpcias, a noiva [Olímpia] sonhou que, em meio a um trovão, lhe caía um raio sobre o ventre; da chaga brotou um fogo violento, irromperam labaredas, grassaram por toda a parte e por fim se apagaram. Filipe, por sua vez, mais tarde, depois do casamento, sonhou que aplicava sua chancela no ventre da esposa e a gravura da chancela, pensava, era a figura dum leão"[34].

É ainda Plutarco quem diz que, certa vez, Filipe II viu uma serpente estendida sobre o corpo de Olímpia: símbolo do deus, deitado com sua mulher.

Do mesmo gênero "apócrifo" é o caso do cavalo Bucéfalo. Garanhão indomável, obedece prontamente a Alexandre e provoca a seguinte "previsão" de seu pai:

"Meu filho, procura para ti um reino compatível com o teu valor; a Macedônia é pequena para ti"[35].

Merece, finalmente, menção o episódio de sua visita a Delfos, onde teria ido consultar o oráculo acerca de sua expedição à Ásia.

"Desejando ouvir o oráculo a respeito de sua expedição, foi a Delfos. Por acaso, eram dias de mau agouro, nos quais não é lícito dar consultas; contudo, mandou chamar, primeiramente, a pitonisa chefe. Ela recusou-se, alegando a lei. Então, foi ele em pessoa buscá-la. Quando a arrastava à força para o templo, como que subjugada por seu arrebatamento, ela exclamou: `Filho, ninguém pode contigo'. Ouvindo isso, Alexandre declarou não precisar de outro oráculo; tinha já a resposta que dela desejava"[36].

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[21]. PLUTARCO, Alexandre, 5, em Vidas, São Paulo, Cultrix, s/d, p. 141.

[22]. Cf. BERGER, P., Perspectivas sociológicas. Uma visão humanística, Petrópolis, Vozes, 19899; BOTTOMORE, T. B., Introdução à sociologia, Rio de Janeiro, Zahar, 1983, pp. 15-90; WRIGHT MILLS, C., A imaginação sociológica, Rio de Janeiro, Zahar, 19826, pp. 156-178; GARDINER, P., Teorias da história, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 19843.

[23]. PLUTARCO, Alexandre, 51-52, em o. c., p. 181.

[24]. PLUTARCO, Alexandre, 21, em o. c., p. 155. Observe-se no final deste texto a avaliação moralizante do comportamento de Alexandre, feita por Plutarco. Aliás, esta é uma característica marcante dos autores da época imperial romana.

[25]. PLUTARCO, Alexandre, 8, em o. c., p. 143. Homero é o maior poeta épico grego, autor da "Ilíada" e da "Odisséia". Homero é provavelmente do século IX a.C. e sua linguagem o relaciona com os dialetos jônio e eólio da Ásia Menor. A Ilíada, em 24 cantos, conta um episódio do cerco de Tróia (também chamada Ílion) pelos gregos, por volta de 1200 a.C., no seu décimo ano. O assunto é a cólera de Aquiles, causada por uma afronta cometida contra ele por Agamêmnon, líder das forças gregas. Cf. DE ROMILLY, J., Fundamentos da literatura grega, pp. 17-43.

[26]. Cf. HARVEY, P., Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina, nos respectivos verbetes.

[27]. Idem, ibidem, verbete Aristóteles.

[28]. ARISTÓTELES, Política III, XI, 1288a, Brasília, Editora da UnB, 19882, pp. 117-118.

[29].Cf. GOUKOWSKY, P., Essai sur les origines du mythe d'Alexandre I, pp. 50-55.

[30]. Cf. LÉVÊQUE, P., O mundo helenístico, Lisboa, Edições 70, 1987, pp. 11-12; SAULNIER, C., Histoire d'Israel III. De la conquête d'Alexandre à la destruction du temple (331 a.C.-135 a.D.), Paris, Du Cerf, 1985, pp. 73-74; GOUKOWSKY, P., o. c., pp. 69-71.

[31].BENOIST-MÉCHIN, J., Alexandre Magno, p. 47.

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[32]. Cf. GOUKOWSKY, P., o. c., pp. 69-78.

[33]. Cf. Idem, ibidem, pp. 17-68.

[34]. PLUTARCO, Alexandre, 2, em o. c., p. 138.

[35]. Idem, Alexandre, 6, em o. c., p. 142.

[36]. Idem, Alexandre, 14, em o. c., p. 148.

6.4. A Anexação da Judéia por AlexandreDurante as campanhas de Alexandre contra Tiro e Gaza, em 332 a.C., a Palestina é anexada ao novo império.

Sobre a atitude de Jerusalém para com Alexandre, a principal fonte que possuímos é um texto de Flávio Josefo, que merece ser, pelo menos, parcialmente transcrito.

"Chegando à Síria, Alexandre tomou Damasco, apoderou-se de Sidônia e cercou Tiro. De lá enviou uma carta ao sumo sacerdote dos judeus, pedindo-lhe que lhe mandasse reforços, que fornecesse provisões para o seu exército e que, aceitando a amizade dos macedônios, lhe mandasse os presentes que costumava mandar a Dario; e acrescentou que os judeus não teriam nada a temer. O sumo sacerdote respondeu aos mensageiros que tinha prometido com juramento a Dario que não pegaria em armas contra ele, e que não ia faltar à palavra jurada enquanto Dario fosse vivo. Ouvindo isto, Alexandre se encolerizou muito (...) Depois de tomar Gaza, Alexandre se apressou em subir a Jerusalém. O sumo sacerdote Jadus, ao ouvir isto, encheu-se de angústia e temor, não sabendo como se apresentar aos macedônios, cujo rei devia estar muito irritado com a sua recente desobediência"[37].

O texto prossegue dizendo que o sumo sacerdote, em apuros, suplica a Deus e deste recebe uma mensagem em sonhos, segundo a qual ele deve ir, em trajes de festa, com os sacerdotes, ao encontro de Alexandre. Isto feito, Alexandre prostra-se diante do sumo sacerdote, dizendo tê-lo visto em sonhos e por isso pensa que vencerá Dario e quebrará o poder dos persas.

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Alexandre vai ao Templo, onde sacrifica a Deus, e depois atende a vários pedidos do sumo sacerdote em benefício de seu povo.

Deste texto deduz-se que a situação da Judéia sob Alexandre permanece a mesma vigente na época persa: a comunidade continua governada pelo sumo sacerdote, regida pela Torá e ligada ao Templo.

As disposições tomadas por Alexandre a respeito do povo judeu, a pedido do sumo sacerdote, são plausíveis:

o "a liberdade de viverem segundo as leis de seus pais" o "a isenção de impostos a cada sete anos" o "que os judeus de Babilônia e da Média vivessem segundo

suas próprias leis".

Acontece, porém, que Alexandre jamais esteve em Jerusalém ou na Judéia, que fica fora de sua rota em direção ao Egito. O que ele pode ter feito foi enviar até lá um de seus oficiais para obter a submissão da comunidade judaica aos novos senhores da região.

O texto de Flávio Josefo é fantasioso e está construído sobre temas típicos: a proteção divina dispensada ao Templo e ao povo fiel a Iahweh; os sonhos, o do sumo sacerdote e o de Alexandre, este último, inclusive, legitimando as suas conquistas como vontade de Iahweh.

Entretanto, o texto é importante, na medida em que mostra a boa acolhida de Alexandre entre os judeus e as expectativas que suas conquistas criam para o pequeno distrito governado pelo Templo.

C. Saulnier observa sobre este texto que "a referência às profecias de Daniel, se ela não foi introduzida pelo próprio Flávio Josefo, indica que a história deve ter sido forjada aí pela metade do século II, em um círculo filo-heleno, provavelmente alexandrino, sob a inspiração de romances gregos e mais especialmente do romance de Alexandre"[38].

Já em Samaria a situação é diferente. Anexada sem maiores problemas, acontece, em seguida, uma revolta, quando o prefeito de Alexandre na Síria, Andrômaco, é queimado vivo pelos samaritanos. A punição determinada por Alexandre, ao voltar do Egito, é terrível. Samaria é destruída e no lugar se estabelece uma colônia macedônia.

6.5. A Situação da Judéia no Momento da Anexação

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É preciso, finalmente, que se esclareça a situação da Judéia no momento da anexação, em 332 a.C., já que a "mudança de dono", do persa para o grego, não altera significativamente a vida judaica e as condições econômicas e políticas vigentes.

A sociedade israelita tradicional sempre se fundamentara no clã (mishpâhâh). O clã é constituído por uma agrupamento de famílias ampliadas (beth-'âbhoth) que moram na mesma região e se auxiliam tanto no setor social quanto no econômico, constituindo uma comunidade jurídica local[39].

Segundo H. G. Kippenberg, citando R. Pattai e E. Meyer, a mishpâhâh:

o é um grupo de descendência patrilinear, ou seja, a linha de descendência corre de pai para filho

o é unidade de convocação do exército tribal o caracteriza-se pela residência comum de seus membros o transmite o direito de posse por herança: a terra, os rebanhos,

enfim, a propriedade é comunal e não pode ser vendida, mas deve ser mantida em poder do grupo através da herança de pai para filho

o é formada de famílias ampliadas o seus membros têm responsabilidade mútua, gerando uma

solidariedade de sangue muito coesa o tem regras específicas de casamento, com preferência pelo

casamento entre primos patrilineares e com a obrigatoriedade do dote

o integra, em circunstâncias específicas, uma tribo[40].

O que acontece a partir da época persa é que a família (beth-'abh) vai tornar-se a unidade econômica fundamental, deixando o clã em segundo plano[41].

Por que isto acontece? Terá surgido algum progresso econômico que ameaça as relações de parentesco da sociedade judaica?

O pequeno distrito de Judá, com cerca de 1.100 km2 apenas, ocupa quase que só a região montanhosa da Judéia. Somente no nordeste é que ele se estende um pouco pela planície do Jordão.

Ora, esta condição geográfica vai determinar a produção de alimentos, e de maneira pouco feliz para os judeus. Pois na região montanhosa o cultivo depende das chuvas, sendo a irrigação possível apenas na planície. Daí

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estar comprometida a rentabilidade da lavoura, numa região de poucas chuvas.

As encostas íngremes das montanhas do leste praticamente impossibilitam o aproveitamento da terra, enquanto que a região que desce para a planície costeira é mais favorável. Só que aqui a terra é calcária, desenvolvendo-se, portanto, apenas plantas de raízes profundas, como a oliveira, a parreira e a figueira. A terra adequada para o plantio de cereais é a terra-roxa, rica em ferro, e esta os judeus não controlam mais[42].

O cultivo da oliveira é menos trabalhoso do que o do trigo. E pode ser feito, como vimos, em terrenos ruins para o trigo.

Vamos acompanhar H. G. Kippenberg: "As plantações de oliveiras podiam ser feitas em terrenos que para o cultivo do trigo não eram muito vantajosos. Elas exigiam menos trabalho do que o cultivo do campo. Pelo menos é o que afirmam os agrônomos latinos, que calculavam a relação de uma pessoa para cada 6,25 hectares de campo, mas de uma para cada 7,5 hectares de plantações de oliveiras. Terrenos, cuja produção era inferior à relação de 1:4 (plantio/colheita), davam mais lucro se fossem aproveitados como bosques de oliveira ou como vinhedo"[43].

Só que aí há um problema: este tipo de cultivo exige riqueza, exige um certo capital, já que a oliveira só começa a dar lucro 10 anos depois de plantada.

Os casos da Ática, na Grécia, e da Itália, nos séculos VII e VI a.C., nos ensinam que o tipo de aproveitamento da terra, como o da Judéia, dependia de dois fatores: da existência de uma aristocracia que dispusesse de dinheiro para investir na produção agrícola e da possibilidade de troca de derivados da azeitona e da uva pelo trigo.

"O produtor de oliveiras era obrigado a vender seu produto a troco de alimentos, enquanto o agricultor produzia, em geral, ele mesmo, seus mantimentos. Se um campo era usado para esta ou aquela cultura, dependia tanto do fator riqueza, como do fator troca"[44].

Este fator troca já é testemunhado no tempo de Neemias. Ne 10,32 diz:

"Se os povos do país trouxerem para vender, no dia de sábado, mercadorias ou qualquer espécie de víveres, nada compararemos em dia de sábado ou em dia santificado".

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É possível que a produção de trigo da Judéia seja insuficiente para o consumo e que este comércio feito pelo 'am ha'arez inclua a venda de trigo produzido em outra região. Neste caso, os habitantes da Judéia devem produzir derivados de azeitona e vinho para trocar pelo trigo.

Outra coisa que caracteriza esta época persa é a propagação da moeda na Judéia[45]. As primeiras moedas citadas no AT são as dracmas persas de ouro, os dáricos, cunhadas por Dario I após 517 a.C.

Esd 2,69 diz a respeito das oferendas feitas ao Templo após a volta dos exilados:

"Segundo suas posses, deram ao tesouro de culto sessenta e uma mil dracmas de ouro, cinco mil minas de prata e cem túnicas sacerdotais".

E Ne 7,70-71 também diz:

"Alguns chefes de família depuseram no cofre das obras vinte mil dracmas de ouro e duas mil e duzentas minas de prata. As doações feitas pelo resto do povo atingiram o montante de vinte mil dracmas de ouro, duas mil minas de prata e sessenta e sete túnicas sacerdotais".

A Judéia usa também as moedas de prata de Atenas e da Pérsia e as moedas yehud, de prata, cunhadas na região. "A dracma de ouro pesava cerca de 8,4 g., o siclo de prata persa 5,6 g. Elas eram trocadas na proporção de 1 por 20, correspondendo à correlação de 1 por 13 entre ouro e prata"[46].

Uma dracma de ouro vale 300 litros de cevada, daí serem mais práticas no uso quotidiano as moedas de prata yehud que pesam 2,08 g. e, portanto, possuem valor bem menor.

Por que Dario manda cunhar moedas?

Heródoto nos informa: no tempo de Ciro e de Cambises não havia determinações fixas sobre o tributo devido pelas províncias do Império Persa. Dario cria um sistema que permite calcular receitas e despesas e regulariza os tributos com a criação da moeda[47].

Sabemos também que, dado a enorme extensão do Império Persa, não há soldados persas suficientes para guarnecer todas as províncias e, especialmente, para serem mandados para as batalhas. É necessário a contratação de grande quantidade de mercenários, de múltiplas nacionalidades. Para pagá-los o Estado precisa de dinheiro.

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Segundo Heródoto, a V satrapia persa, à qual pertence a Judéia, deve pagar à Pérsia 350 talentos de prata por ano, o equivalente a 11.995 quilos de prata[48].

Acontece que os moradores da Judéia não têm minas de prata. Assim, devem vender seus produtos agrícolas, excedentes ou não, e adquirir prata para pagar o tributo persa. É o que apresenta Ne 5,4, quando os judeus se queixam da situação a Neemias:

"Tivemos que tomar dinheiro emprestado penhorando nossos campos e vinhas para pagar o tributo do rei".

Esta situação econômica gera graves conseqüências sociais: os agricultores judeus precisam diminuir o número de familiares que vivem da renda da terra e investir em produtos que dêem mais lucro. Vendem cevada e derivados da oliveira e da videira, além do gado. Não havendo grande produção de cevada na Judéia, o que compensa é o cultivo de oliveiras e videiras. Para vender o excedente, entretanto, dependem de negociantes estrangeiros[49].

Ne 5,1-5 testemunha o conflito social que explode na Judéia no século V a.C.:

"Levantou-se uma grande queixa entre os homens do povo e suas mulheres contra seus irmãos, os judeus. Uns diziam: `Somos obrigados a penhorar nossos filhos e nossas filhas para receber trigo, para podermos comer e sobreviver'. Outros diziam: `Temos que empenhar nossos campos, vinhas e casas para receber trigo durante a penúria'. Outros ainda diziam: `Tivemos que tomar dinheiro emprestado, penhorando nossos campos e vinhas para pagar o tributo do rei; ora, temos a mesma carne que nossos irmãos e nossos filhos são como os deles: no entanto, temos que entregar à escravidão nossos filhos e filhas; e há entre nossas filhas algumas que já são escravas! Não podemos fazer nada, porque nossos campos e nossas vinhas já pertencem a outros'".

Neste texto observamos três grupos de queixosos[50]:

o o primeiro grupo penhora seus filhos para receber alimentos o o segundo hipoteca suas terras na época da fome o o terceiro grupo, por não ter pago os impostos, tem que vender

seus filhos como escravos.

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Há determinada seqüência na formação da dependência: primeiro penhoram-se os filhos (escravidão), depois a terra. A penhora dos filhos é a `arabah, prevista nas leis de Ex 21,2-4 e Dt 15, 12-18. Diz Dt 15,12:

"Quando um dos teus irmãos, hebreu ou hebréia, for vendido a ti, ele te servirá por seis anos. No sétimo ano tu o deixarás ir em liberdade".

Se observarmos bem, esta legislação de Dt 15,12-18, posterior à do Ex 21,2-4, é mais avançada do que aquela. Talvez porque a lei estipulada no livro do Êxodo não estivesse sendo obedecida.

"Agora as mulheres recebem o mesmo direito à liberdade, tampouco existem restrições quanto a se permitir que a família do escravo seja alforriada. Os escravos devem receber provisões da parte do seu senhor para sobreviver como pessoas livres, para que não sejam de novo forçados à escravidão por dívidas, e merecem algo por seus anos de trabalho"[51].

O caso de segundo grupo é o daqueles que possuem campos, vinhas, casas e oliveiras e têm que empenhá-los numa situação de penúria[52]. Trata-se de uma penhora que transfere ao credor o usufruto da terra e não a sua propriedade. Ou seja: o credor tem direito aos produtos excedentes, ao dinheiro, ao trigo, ao vinho e ao óleo, como nos diz Ne 5,11.

"Se os produtores não tiverem condições de conseguir uma produção em seus campos que satisfaça sua fome, correm o risco de serem vendidos como escravos. Ao contrário da escravidão por dívida, este ato é definitivo e irreversível"[53].

É o mesmo caso denunciado por Miquéias no século VIII a.C., quando o profeta diz que os credores podem se apropriar com facilidade dos campos e das casas dos outros e, de fato, o fazem. Se o camponês que penhora sua produção não produzir o suficiente, acaba na escravidão. A penhora permite o ataque direto do credor à propriedade e à família do devedor. Vamos ler Mq 2,1:

"Ai daqueles que planejam iniqüidade

e que tramam o mal nos seus leitos!

Ao amanhecer eles o praticam

porque que está no poder de sua mão.

Se cobiçam campos, eles os roubam;

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se casas, eles as tomam;

eles oprimem o varão e sua casa

o homem e sua herança".

Segundo H. G. Kippenberg, a crise do tempo de Neemias, como aparece em Ne 5, pode ter tido vários motivos, como:

o piora da qualidade da terra o mau tempo que prejudicou a colheita o crescimento do número de familiares o divisão e diminuição das terras por causa da herança o exigências estatais de pagamentos de impostos.

"E ainda mais, este imposto tinha que ser pago em moedas. Que escolha tinham estes camponeses, cujos campos e vinhedos já estavam hipotecados, senão vender seus filhos e filhas como escravos?"[54].

E o que é denunciado em Ne 5,6-12 é que os credores dos quais os judeus dependem são seus irmãos de sangue e são pessoas de posses e classe alta. Diz Ne 5,7:

"Tendo deliberado comigo mesmo, repreendi os nobres (horîm) e os magistrados (seghânîm) nestes termos: `Que fardo cada um de vós impõe a seu irmão!'"[55].

Por que a repreensão de Neemias?

É que o endividamento tem como objetivo vender ao estrangeiro o judeu empobrecido, pois o comércio de escravos no Mediterrâneo está em pleno florescimento.

Finalizo com H. G. Kippenberg, que observa: "Endividamento e principalmente insolvência não são frutos vindos diretamente de fatores como coação demográfica, divisão de heranças, deterioração da terra ou mau tempo. Eles são importantes para a formação de classes somente quando se tornam instrumentos dos relativamente mais ricos ou mais poderosos para criar novas dependências, para apossar-se de imóveis ou para vender escravos"[56].

Neemias declara uma anistia, segundo a qual os credores devem renunciar às rendas das terras hipotecadas, excluindo, como conseqüência, a

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escravidão do judeu ao estrangeiro. Isto se a lei tiver funcionado, o que não sabemos.

Leituras Recomendadas

ARISTÓTELES, Política , Brasília, Editora da UnB, 19882.

ARRIAN, Anabasis Alexandri, 2 vols., Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 1989-1996.

AUSTIN, M./VIDAL-NAQUET, P., Economia e sociedade na Grécia antiga, Lisboa, Edições 70, 1986.

BENOIST-MÉCHIN, J., Alexandre Magno, Porto, Lello & Irmão, 1980.

DE CASTRO, P., Alexandre, o Grande, São Paulo, Editora Três, 1973.

FINLEY, M. I., Os gregos antigos, Lisboa, Edições 70, 1984.

GLOTZ, G., A cidade grega, São Paulo, Difel, 1980.

GOUKOWSKY, P., Essai sur les origines du mythe d'Alexandre (336-270 av. J.-C.) I-II, Nancy, Université de Nancy II, 1978-1981.

GRABBE, L. L., Judaism from Cyrus to Hadrian I-II, Minneapolis, Fortress Press, 1992, ou na edição inglesa, em um volume, pela SCM Press, 1994.

HARVEY, P., Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1987.

HERÓDOTO, História, Brasília, Editora da UnB, 1985.

KIPPENBERG, H. G., Religião e formação de classes na antiga Judéia, São Paulo, Paulus, 1988.

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ORLANDI (org.), Alexandre Magno, Lisboa/São Paulo, Verbo, 1976.

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ROSTOVZEV, M., Storia economica e sociale del mondo ellenistico I, Firenze, La Nuova Italia, 1981.

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YAMAUCHI, E. M., Persia and the Bible, Grand Rapids, MI, Baker Books, [1990], 1996.

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[37]. JOSEFO, F., Antiquitates Iudaicae, XI, 317ss. O texto em questão pode ser lido em PAUL, A., O judaísmo tardio. História política, São Paulo, Paulus, 1983, pp. 63-64.

[38]. SAULNIER, C., Histoire d'Israel III, p. 71. Cf. também ABEL, F.-M., Histoire de la Palestine depuis la conquête d'Alexandre jusqu'a l'invasion arabe I, Paris, Gabalda, 1952, pp. 10-12. Além de Flávio Josefo, o encontro do sumo sacerdote de Jerusalém com Alexandre é narrado também na "Recensão C do Pseudo-Calístenes" (um conjunto de lendas sobre Alexandre, atribuídas a Calístenes, sobrinho de Aristóteles, que se cristalizam por volta do século III d.C.), no Anexo Tardio ao Meguillat Taanit (= Rolo dos Jejuns) e no Talmud da Babilônia (Yoma 69a).

[39]. Cf. GOTTWALD, N. K., As tribos de Iahweh. Uma sociologia da religião de Israel liberto, 1250-1050 a.C., São Paulo, Paulus, 1986, p. 348.

[40]. Cf. KIPPENBERG, H. G., Religião e formação de classes na antiga Judéia, São Paulo, Paulus, 1988, pp. 22-28.

[41]. Seguirei, para esta questão, a excelente análise de KIPPENBERG, H. G., o. c., pp. 40-50.

[42]. Cf. Idem, ibidem, p. 42.

[43]. Idem, ibidem, pp. 43-44.

[44]. Idem, ibidem, p. 44.

[45]. KIPPENBERG, H. G., o. c., pp. 46-47, chama a atenção para a diferença entre dinheiro e moeda. O dinheiro, como medida de valor na

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troca de produtos, já existe bem antes da moeda. No Israel antigo caracteriza-se a riqueza pela posse do gado. É usado também o ouro, na forma de peças de enfeite, pesado segundo o método sumério-babilônico, o shekel, assim como a prata.

[46]. Idem, ibidem, p. 47.

[47]. Cf. HERÓDOTO, História III, 89, Brasília, Editora da UnB, 1985, pp. 179-180. Diz Heródoto: "No reinado de Ciros, e posteriormente no de Cambises, não havia tributo fixo, sendo o pagamento feito em presentes. Por causa da fixação dos tributos e de outras medidas análogas, os persas chamaram Dareios de mascate, Cambises de déspota e Ciros de pai, pois Dareios negociava com tudo, Cambises era duro e insensível e Ciros era generoso e se preocupava com o bem-estar de seus súditos".

[48]. HERÓDOTO, História III, 91, o. c., p. 180, diz: "A região situada entre Posidêon, uma cidade fundada na fronteira da Cilícia com a Síria por Anfílocos, filho de Anfiáraos, e o Egito (à exceção da parte pertencente aos árabes, isenta de tributos), pagava trezentos e cinqüenta talentos e constituía a quinta província, que abrangia toda a Fenícia, a parte da Síria chamada Palestina, e Chipre".

[49]. Cf. KIPPENBERG, H. G., o. c., p. 50.

[50]. Cf., para o que se segue, KIPPENBERG, H. G., o. c., pp. 53-72.

[51]. GNUSE, R., Não roubarás. Comunidade e propriedade na tradição bíblica, São Paulo, Loyola, 1986, p. 41. Cf. também VENDRAME, C., A escravidão na Bíblia, São Paulo, Ática, 1981, pp. 112-199.

[52]. É em Ne 5,11 que se fala nas oliveiras: "Restitui-lhes sem demora seus campos, vinhas, oliveiras e casas e perdoai-lhes a dívida do dinheiro, do trigo, do vinho e do óleo que haveis emprestado".

[53]. KIPPENBERG, H. G., o. c., pp. 54-55.

[54]. Idem, ibidem, p. 56.

[55]. A queixa dos camponeses é baseada no conceito de solidariedade judaica, fundamentada na relação de parentesco. Desapropriação e escravidão não são compatíveis com esta ordem jurídica. O conceito de irmão ('âh) designa o membro de uma sociedade solidária.

[56]. KIPPENBERG, H. G., o. c., p. 58.

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7.2. A Situação da Palestina de 323 a 301 a. C.Qual é a situação da Palestina neste período de 22 anos de conflito entre os herdeiros de Alexandre?

É claro que há uma enorme dificuldade de se seguir uma política coerente, pois os senhores da região mudam constantemente.

Entre 323 e 301 a.C. a Palestina é cruzada cerca de oito vezes por exércitos em luta. Daí as desgraças que atingem a região: pilhagens, requisições, deportações, desmantelamento de defesas e bens imóveis para prejudicar o inimigo, sustento das guarnições etc.

Ptolomeu I, por exemplo, na sua luta pela posse da Celessíria, toma Jerusalém em 312 a.C., deportando alguns milhares de judeus para o Egito. A maioria é destinada ao trabalho escravo das minas e da agricultura[7].

Aliás, somadas às migrações e aos mercenários, tais situações acabam aumentando espetacularmente o número de judeus no Egito, fazendo da diáspora alexandrina a maior comunidade judaica fora de Israel.

Entretanto, é muito difícil calcular a população judaica da diáspora. Os dados são escassos e problemáticos. Em Alexandria, porém, dois dos cinco bairros da cidade são ocupados prioritariamente por judeus. A cidade possui, na época romana, cerca de 1 milhão de habitantes e a comunidade judaica alcança o significativo número de 200 a 400 mil pessoas[8].

Apesar das atribulações, as guerras trazem também alguns benefícios para a região. A presença do exército macedônio, seja sob o comando de Pérdicas, Antípater, Eumênio ou Antígono, produz uma movimentação política e econômica incomum na Palestina. A região da Síria, na verdade, acaba ficando bem no centro das disputas entre os diádocos.

Junto com o exército vem o comércio, pois milhares de civis acompanham as tropas: mercadores, traficantes de despojos, escravos, mulheres, crianças... Os veteranos se fixam nas colônias militares, núcleos de futuras cidades.

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A guerra coloca em circulação, além disso, enormes quantias de dinheiro. As grandes construções navais - pois esquadras são montadas e destruídas - fazem prosperar as cidades da costa[9].

7.3. As Guerras Sírias entre Ptolomeus e Selêucidas

O domínio dos Ptolomeus sobre a Celessíria dura 103 anos. Durante todo este tempo Ptolomeus e Selêucidas lutam pela Síria. Os Ptolomeus, porque não podem se sentir seguros no Egito se suas fronteiras não estiverem protegidas pela Celessíria. E também por razões comerciais: a posse dos portos da Celessíria lhes garante o controle do Mediterrâneo Oriental e a ligação com a terra-mãe, a Macedônia. Os Selêucidas lutam pela região porque precisam cortar as bases dos Ptolomeus instaladas na costa da Ásia Menor. Deste conflito decorrem as chamadas "guerras sírias"[10].

A 1ª guerra síria (274-271 a.C.) é um confronto entre Ptolomeu II Filadelfo, de Alexandria, e Antíoco I Soter, de Antioquia. A guerra começa com a invasão da Síria por Ptolomeu II, que é repelido. Outra invasão leva-o a algumas vitórias. Todo o episódio é extremamente confuso pela quase total ausência de documentos[11].

A 2ª guerra síria (260-253 a.C.) coloca frente a frente Ptolomeu II Filadelfo e Antíoco II Theos. Antíoco II retoma as cidades da Ásia Menor que Ptolomeu II incorporara ao seu reino. A região da Celessíria fica fora da guerra.

A paz é feita quando Ptolomeu II cede aos Selêucidas suas possessões da Ásia Menor, menos a Cária, e dá sua filha Berenice em casamento a Antíoco II. Mas este deve repudiar sua esposa Laodice e os filhos que teve com ela. O acordo e o casamento são realizados. Parece que Ptolomeu II procura construir, assim, a médio prazo, um direito dinástico sobre o reino dos Selêucidas, direito a ser reivindicado na hora certa.

Só que alguns anos depois, após a morte de Antíoco II, desaparecido em circunstâncias misteriosas, talvez assassinado por Laodice, Berenice e seu filho são assassinados, agora, com certeza, por Laodice.

A 3ª guerra síria (246-241 a.C.) acontece entre Ptolomeu III Evergetes e Selêuco II Calínicos. Motivado pelo assassinato de sua irmã Berenice - ou talvez chamado por ela em seu socorro, quando Antíoco II ao morrer em Éfeso, onde vivia Laodice, nomeia Selêuco, seu filho mais velho com Laodice, para sucedê-lo -, Ptolomeu III invade a Síria e obtém grandes vitórias, chegando até a Mesopotâmia.

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Selêuco II, entretanto, consegue retomar as cidades conquistadas pelos Ptolomeus. Em seguida, Selêuco II tenta tomar a Celessíria, mas é repelido por Ptolomeu III.

Estas três primeiras guerras sírias quase não afetam a região de Judá. Há, por isso, um período de relativa paz, que favorece o desenvolvimento da região sob a administração ptolomaica. O crescimento econômico acontece especialmente sob o governo de Ptolomeu II Filadelfo (285-246 a.C.).

A 4ª guerra síria (221-217 a.C.) é entre Ptolomeu IV Filopator e Antíoco III, o Grande: Antíoco III tenta tomar a Celessíria, mas é barrado pelas forças ptolomaicas no ano de 221 a.C.

Em 219 a.C. Antíoco III avança novamente através da Celessíria e vence cidade após cidade, até atravessar a Palestina em 218 a.C. Em 217 a.C. os dois exércitos, selêucida e ptolomaico, travam grande batalha perto de Ráfia, no sul da Palestina, e Antíoco III é derrotado. A Celessíria retorna às mãos dos Ptolomeus.

A 5ª guerra síria (202-198 a.C.) se dá entre Ptolomeu V Epífanes e Antíoco III, o Grande. Quando morre Ptolomeu IV Filopator, o herdeiro, Ptolomeu V, tem apenas 5 anos de idade. A tutela e a regência ficam com os ministros Sosíbio e Agátocles.

Com o Egito assim enfraquecido, Antíoco III e Filipe V, da Macedônia, planejam reparti-lo entre si. Antíoco III invade a Celessíria e quase não encontra resistência, a não ser em Gaza. Agátocles é assassinado e Scopas dirige o exército ptolomaico que, em 198 a.C., é totalmente derrotado por Antíoco III em Panion (Baniyas), no norte da Palestina. O Egito só não é tomado porque Roma o proíbe a Antíoco III. A Celessíria, porém, será, daqui para a frente, selêucida. E os judeus de Jerusalém mudam, mas uma vez, de dono.

7.4. Alexandria e os Judeus

O governo dos Ptolomeus se faz a partir de Alexandria. Como é Alexandria? Qual é a sua relação com o Egito? Como vivem aí os judeus?

Alexandria está localizada a oeste do delta do Nilo, no istmo entre o Mar Mediterrâneo e o lago Mareótis, perto do braço canópico do Nilo.

Construída segundo uma forma alongada, a forma de uma clâmide12, tem um perímetro de mais de 15 km. Alexandria tem 5 bairros, com os nomes das 5 primeiras letras do alfabeto grego. O plano da cidade é do ródio

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Deinócrates: duas vias principais de 30 metros de largura cruzam-se em ângulos retos.

Este plano é conhecido como hipodâmico. Como explica P. Lévêque, "o urbanismo hipodâmico apareceu cerca de 480. A tradição liga-o ao nome de Hipódamo de Mileto, um filósofo (pitagórico?) que de fato parece ter sintetizado as pesquisas anteriores efetuadas especialmente nas cidades coloniais. Está fundado em dois princípios novos: 1) as ruas cortam-se em ângulo reto, o que produz uma disposição em tabuleiro de xadrez, sem que, aliás, existam dois eixos principais, como virá a ser o caso nas criações romanas; 2) o plano quer-se funcional e reserva, por exemplo, bairros especiais para o porto, os edifícios públicos, o habitat"[13].

Os monumentos que se destacam em Alexandria são o ginásio, o tribunal, o túmulo de Alexandre, o palácio, a biblioteca, o museu e o teatro.

A biblioteca de Alexandria, a maior e mais célebre das bibliotecas da antigüidade, é fundada por Ptolomeu I e notavelmente aumentada por Ptolomeu II. Localizada no bairro real, próxima ao Museu, é complementada por outra localizada no Serapeum (o templo de Serápis). A biblioteca teria chegado a possuir cerca de 700 mil volumes, segundo autores antigos, como Aulo Gélio, gramático latino do século II d.C. que vive em Atenas. Em 47 a.C., por acidente, cerca de 40 mil volumes são destruídos pelo fogo. E em 642 d.C. a biblioteca teria sido queimada por ordem do califa Omar, conquistador árabe da região.

L. Canfora acredita que "os gregos não aprenderam a língua de seus novos súditos, mas compreenderam que, para dominá-los, era preciso entendê-los, e que para entendê-los era necessário traduzir e reunir seus livros. Assim nasceram bibliotecas reais em todas as capitais helênicas: não apenas como fator de prestígio, mas também como instrumento de dominação"[14].

Veja aqui as recentes descobertas, feitas por Franck Goddio, da Alexandria submersa

O Museu, anexo ou próximo à biblioteca, é uma academia literária fundada por Ptolomeu II. O Museu é sustentado pelo Estado e ali os sábios convivem, discutem e produzem a ciência da época. Um poeta e filósofo satírico grego do século III a.C., que vive na corte de Ptolomeu II Filadelfo, de nome Timão, chama o Museu de "gaiola das Musas", onde "são criados uns garatujadores livrescos que se bicam eternamente"[15].

O porto é dividido em dois pelo Heptastádio, um paredão de cerca de 1.250 metros que liga a ilha de Faros à terra firme. O Farol, obra de Sóstrato de

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Cnido, tem três andares e 110 metros de altura. Sua construção se dá no começo do reinado de Ptolomeu II Filadelfo (285-247 a.C.).

Autores antigos nos falam de Alexandria, entre eles Estrabão e Diodoro[16]:

Estrabão XVII,I,8 diz o seguinte:

"A cidade tem a forma de uma clâmide, cujos lados maiores são aqueles banhados pelas águas: eles têm cerca de 30 estádios [o equivalente a 5,5 km], enquanto que de largura os istmos encerrados entre o mar e o lago têm cada um de 7 a 8 estádios. Todas as ruas permitem a circulação a cavalo ou de carro, mas há duas cuja largura excepcional excede um

pletro [cerca de 30 metros] e que se cruzam em ângulo reto. A cidade tem jardins públicos muito belos, assim como palácios reais que ocupam um

quarto ou um terço de sua superfície"[17].

Diodoro XVII,52,1-5 descreve do seguinte modo as características de Alexandria:

"Como decidira fundar no Egito uma grande cidade, ele [Alexandre] ordenou às pessoas que deixou no local com esta missão que a

edificassem entre o lago e o mar. Uma vez medido o terreno e dividido em bairros segundo todas as regras da arte, o rei deu à cidade o nome de

Alexandria, tirado de seu próprio nome. Ela está muito favoravelmente situada perto do porto de Faros, e o hábil traçado das ruas, que é obra do rei, faz com que ela seja atravessada pelo sopro dos ventos etésios. Como

estes sopram sobre as vastas extensões do mar, e refrescam o ar da cidade, o rei dotou os habitantes de Alexandria de um clima temperado,

ótimo para a saúde. Ele lançou igualmente as fundações da muralha, que é de uma dimensão extraordinária e de uma solidez impressionante. Situada, com efeito, entre um grande lago e o mar, ela possui apenas

duas vias terrestres de acesso, estreitas e fáceis de vigiar. A forma que ele lhe deu é bastante próxima à de uma clâmide, com uma grande avenida que corta a cidade pelo meio, uma maravilha por suas dimensões e sua beleza. Ela se estende de uma ponta a outra com um comprimento de

quarenta estádios e uma largura de um pletro [cerca de 30 metros] e ela é toda ornada de edifícios suntuosos, casas e templos. Alexandre ordenou

também que se edificasse um palácio: esta grande e poderosa obra é também uma maravilha. Após Alexandre, praticamente todos os reis do Egito até hoje têm acrescentado ao palácio edifícios suntuosos. Enfim, a cidade adquiriu em seguida uma tal extensão que muitas a consideram como a primeira do mundo. De fato, por sua beleza, suas dimensões, a

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abundância das rendas públicas e de tudo aquilo que faz o prazer da existência, ela ultrapassa, de longe, as outras"[18].

Alexandria é praticamente a única cidade do Egito, pois as outras duas que têm o estatuto de pólis, Náucratis e Ptolemaida, não podem rivalizar com ela.

Segundo P. Lévêque, três fatores explicam o enorme desenvolvimento de Alexandria:

o é a capital dos Ptolomeus e toda a burocracia do reino lágida aí se concentra

o é o centro de intensa atividade econômica, o único verdadeiro porto do Egito no Mediterrâneo, importa e exporta inúmeros produtos

o é um dos centros culturais mais importantes do mundo grego[19].

Do ponto de vista cultural basta que nos lembremos de Eratóstenes, um dos diretores da biblioteca de Alexandria, matemático e geógrafo, que calcula a circunferência da terra; Aristarco de Samotrácia, outro diretor da biblioteca, gramático que prepara edições críticas de Homero, Hesíodo, Píndaro etc; Arquimedes, um dos maiores matemáticos da Antigüidade, provavelmente estuda em Alexandria, vivendo depois em Siracusa; Euclides, famoso matemático, que vive em Alexandria no século III a.C., desenvolvendo a geometria e a teoria dos números; Hiparco, nascido em 190 a.C., que inventa a trigonometria, calcula a duração do ano solar e cataloga estrelas; Apolônio de Rodes, gramático e poeta, diretor da biblioteca; Zenódoto de Éfeso, gramático, diretor da biblioteca. E por aí afora[20].

Entretanto, Alexandria é uma cidade totalmente isolada do Egito. Do ponto de vista comercial exporta vários produtos do campo egípcio, mas praticamente o Egito nada consome do que é produzido em Alexandria.

C. Préaux assim resume o caráter específico da economia de Alexandria: a cidade vive em simbiose com o rei. Sua manutenção é garantida pelo abundante trigo egípcio. Seus bancos fazem crescer a receita real. O rei, a corte e os gregos a serviço do rei são os clientes da indústria e do comércio. Alexandrinos controlam a Celessíria, conquistada pelos Ptolomeus. Alexandria é um entreposto de produtos da África e do Oriente, que aí chegam por via terrestre e marítima[21].

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Já dissemos que os judeus são numerosos em Alexandria. Qual é a sua situação?

Os judeus ocupam dois dos cinco bairros de Alexandria. Exercem, em todo o Egito - pois não estão apenas em Alexandria - várias profissões: são soldados, agricultores, artesãos, funcionários. Mais raramente comerciantes. E nisto diferem da imagem clássica que temos do judeu, que é uma imagem medieval.

Os judeus, segundo a Carta de Aristéias a Filócrates, têm um políteuma em Alexandria[22]. Esta Carta é o primeiro documento que menciona esta comunidade. Falando da leitura da versão grega da Bíblia, conhecida como a LXX, diz o texto:

"Enquanto se liam os rolos, puseram-se de pé os sacerdotes, os anciãos da delegação de tradutores, os representantes da comunidade (kaì tôn apó tou politéumatos) e os chefes da população e disseram..."[23].

Os judeus têm em Alexandria um etnarca, certamente escolhido pela comunidade e referendado pelo rei. O etnarca exerce funções administrativas e judiciárias. Não se sabe bem o alcance dessas funções judiciárias: as sentenças são executadas pela comunidade judaica ou por instâncias reais? O etnarca tem competência jurídica sobre todos os casos ou somente sobre aqueles em que a lei judaica difere do direito grego?[24].

O políteuma é um recurso que permite às comunidades preservarem sua cultura e seus direitos. É uma espécie de cidade dentro da cidade, como a própria etimologia do nome indica (do grego pólis = "cidade" + sufixo que indica o resultado da ação). E por isso os judeus não têm o título de cidadãos de Alexandria. A cidadania alexandrina exigiria do judeus um modo de vida que violaria as regras específicas da Lei judaica, especialmente no que se refere às práticas alimentares. Ser ""cidadão" e ser "diferente" - como são os judeus - é impossível[25].

É A. Paul quem explica: "Segundo a tradição grega antiga, a primeira condição para alguém adquirir a 'cidadania' ou a politeía era a educação recebida no ginásio com a formação específica no ephebeîon. Em Alexandria provavelmente era este o meio habitual para se obter legalmente o título de cidadão, título que a administração real confirmava quase automaticamente. À diferença da época romana, com seus rigorosos critérios de raça, o período dos Ptolomeus foi um pouco laxo neste ponto. Para os judeus, todavia, a politeía, ou 'cidadania' grega total (isopoliteía) significava inegavelmente a apostasia"[26].

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[7]. Cf. ABEL, F.-M., o. c., pp. 30-32.

[8]. Cf. esta questão em SAULNIER, C., Histoire d'Israel III, pp. 286-287.

[9]. Cf. ABEL, F.-M., o. c., pp. 39-43.

[10]. Cf. PRÉAUX, C., o. c., pp. 139-155; WILL, E., o. c., pp. 146-150;234-261; vol. 2, 1982, pp. 26-44; 118-121; ABEL, F.-M., o. c., pp. 44-87. Sobre a 4ª e a 5ª guerras sírias temos boas informações em POLÍBIO, História V, 63-87; XVI, 18-19, Brasília, Editora da UnB, 1985, pp. 293-311; 457-458.

[11]. Estes títulos dos reis helenísticos - Soter, Filadelfo, Theos, Evergetes, Epífanes etc - lhes são, em geral, atribuídos por cidades às quais eles prestam algum serviço ou libertam de algum inimigo. Ptolomeu I, por exemplo, é chamado de Soter, "Salvador", porque salvou os ródios de um cerco imposto por Demétrio. Evergetes significa "Benfeitor", Epífanes é o "Manifesto", Theos é o "deus" etc. Cf. PRÉAUX, C., o. c., pp. 194-195;245-251.

[12]. A clâmide é um manto grego que se prende por um broche no pescoço ou no ombro direito.

[13]. LÉVÊQUE, P., O mundo helenístico, p. 63, nota 3.

[14]. CANFORA, L., A biblioteca desaparecida. Histórias da biblioteca de Alexandria, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 28. Cf. também PRÉAUX, C., Le monde hellénistique I, pp. 233-238.

[15]. Cf. CANFORA, L., o. c., pp. 39-45; PRÉAUX, C., o. c., pp. 231-233. O nome "museu" vem das musas, que na mitologia grega são as nove deusas da literatura e das artes. Cada uma delas se relaciona com uma arte: Calíope, com a poesia épica; Clio, com a história; Euterpe, com a música para flauta; Melpomene, com a tragédia; Terpsicore, com a dança; Erato, com a música para lira; Polímnia, com os cantos sacros; Urânia, com a astronomia e Talia, com a comédia.

[16]. Estrabão é um geógrafo grego que vive de 63 a.C. a 20 d.C. Após se instalar em Roma, em 29 a.C., produz uma importante obra de geografia universal. Diodoro Sículo, historiador grego romanizado do século I a.C.,

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publica, em 21 a.C., uma história universal que abrange desde os tempos mitológicos até a conquista da Gália por César (58-51 a.C.)

[17]. Cf. PRÉAUX, C., Le monde hellénistique. La Grèce et l'Orient (323-146 av. J.-C) II, Paris, Presses Universitaires de France, 19882, p. 497.

[18]. Cf. SAULNIER, C., Histoire d'Israel III, p. 359-360.

[19]. Cf. LÉVÊQUE, P., O mundo helenístico, p. 69.

[20]. Cf. HARVEY, P., Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina, respectivos verbetes.

[21]. Cf. PRÉAUX, C., Le monde hellénistique II, pp. 510-511.

[22]. "O autor se faz passar por um grego, adorador de Zeus, que escreve a seu amigo Filócrates para lhe relatar sua embaixada junto ao sumo sacerdote Eleazar. Trata-se, de fato, de um escrito judeu, profundamente marcado pelas categorias do pensamento helênico. A data desta obra é discutida, entretanto a hipótese mais razoável parece ser a que se situa na metade do século II a.C.", explica SAULNIER, C., Histoire d'Israel III, p. 365.

[23]. CARTA DE ARISTEAS A FILÓCRATES, 310, em DIEZ MACHO, A., Apócrifos del Antiguo Testamento II, Madrid, Cristiandad, 1983, p. 61.

[24]. Cf., para esta questão, PRÉAUX, C., Le monde hellénistique II, pp. 454-455. "Etnarca" significa aquele que governa uma etnia.

[25]. Cf. Idem, ibidem, p. 456.

[26]. PAUL, A., O judaísmo tardio, pp. 119-120. Cf. a discussão sobre a cidadania dos judeus de Alexandria em STERN, M., Greek and Latin Authors on Jews and Judaism I, pp. 399-403.

7.6. A Administração Ptolomaica da PalestinaEste sistema administrativo ptolomaico é também implantado na Palestina, durante os 103 anos de domínio de Alexandria sobre a região. Mas, com

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algumas modificações, pois a estrutura social da região é diferente da egípcia e a complexidade política é maior.

Os Ptolomeus implantam um sistema de arrendamento, a famílias ricas da terra, do direito de cobrar os impostos locais, repassados, por elas, aos senhores estrangeiros. O centro administrativo parece ser Acco, que tem seu nome mudado para Ptolemaida.

Politicamente a região da Celessíria é composta das seguintes etnias:

o cidades fenícias ao longo da costa, de Ortozia a Gaza o o distrito do Templo de Jerusalém, com seu povo judeu o os povos samaritano e idumeu o grupos descendentes de cananeus e sírios o várias cidades no interior, incluindo as colônias militares

macedônias o as tribos dos nabateus e dos árabes, no sul e na Transjordânia.

O modo de vida grego se implanta mais rapidamente nas cidades fenícias, mas também as póleis mais significativas do interior, tanto na Judéia quanto na Iduméia, na Samaria como na Galiléia, são inexoravelmente helenizadas.

Não há cidades livres, no sentido da Grécia clássica, dentro do reino ptolomaico. Mas há cidades que se aproximam do modelo da pólis grega, com seus magistrados e seu território. Assim são as mais importantes cidades fenícias e palestinas, como Tiro, Sídon, Acco-Ptolemaida, Gaza, Ascalon, Jope e Dor. Ou Marisa, na Iduméia[37].

Os judeus que habitam na Galiléia, na Iduméia e na Transjordânia não têm qualquer estatuto especial, mas o distrito de Judá é considerado como "Estado do Templo", território sagrado, onde valem as leis tradicionais do povo judeu e onde o sumo sacerdote é o chefe principal.

Acredita-se, entretanto, que já teria havido, no tempo dos Ptolomeus, um oficial especial que se encarrega, ao lado do sumo sacerdote, da administração das finanças[38].

Outra instituição que se desenvolve provavelmente durante o domínio ptolomaico é a gerousia (= senado), uma assembléia aristocrática composta pelos chefes das famílias mais influentes, pelos sacerdotes e pelos escribas do Templo. Será o conhecido Sinédrio da época de Jesus. Uma de suas funções é a de limitar o poder do sumo sacerdote.

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De modo geral, convém observar que o desenvolvimento econômico da região da Celessíria faz parte de uma estratégia política bem definida por parte dos Ptolomeus. É a maneira mais eficaz de impedir o avanço de seus rivais Selêucidas sobre a região. E tal política se implanta principalmente através da aliança grega com os aristocratas locais, dos quais já falei a propósito da crise agrária da época de Neemias.

É bem ilustrativo da política ptolomaica para a região da Celessíria um decreto de Ptolomeu II Filadelfo, provavelmente de 261/260 a.C.:

"Ordem do rei. Os habitantes da Síria e da Fenícia, que compraram um nativo livre (sôma laikòn eleúteron) ou dele se apropriaram com violência, ou o adquiriram de um ou outro modo, devem declará-lo e apresentá-lo ao ecônomo em qualquer hiparquia dentro de vinte dias após a publicação deste decreto".

Mais adiante, após declarar que podem ser conservadas as pessoas que já eram escravas antes da compra, valendo o mesmo para as pessoas livres vendidas em leilões reais, continua o decreto:

"E no futuro a ninguém será permitido, sob qualquer pretexto, vender ou penhorar nativos livres, exceto aqueles que o governador das rendas do Estado sírio ou fenício entregou ao processo de execução (prosbolé = arremate de propriedade a terceiros), também daqueles sobre os quais já foi pronunciada a pena de execução, como se encontra na lei do arrendamento"[39].

Este decreto, aparentemente filantrópico, na verdade estabelece um monopólio real na venda de homens livres. É uma medida econômica, mas também política, porque a caça ao homem livre cria uma desordem perigosa na região, provocando a indignação e a revolta das populações locais.

H. G. Kippenberg observa a propósito: "Pode-se duvidar de que este decreto tenha realmente surtido efeito na Palestina, onde naquela época grassava a escravidão. Ele é digno de nota porque legaliza a escravidão como conseqüência da inadimplência fiscal"[40].

Muito próximo deste decreto é outro conservado na Carta de Aristeas a Filócrates, também emitido por Ptolomeu II Filadelfo, só que, desta vez, a respeito dos judeus:

"Ordem do rei. Todos aqueles que tomaram parte na expedição de nosso pai nas regiões da Síria e da Fenícia e, invadindo o território dos judeus

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tornaram-se senhores de indivíduos judeus, quer os tenham trazido para a cidade [de Alexandria] e para o país [do Egito], quer os tenham vendido a outros - igualmente os que são da mesma raça e que os tenham precedido aqui ou que tenham sido deportados depois deles - que os possuidores os deixem livres e recebam imediatamente em compensação 20 dracmas por cada pessoa, os militares no pagamento de seu soldo, os outros no banco real"[41].

Também os arquivos de Zenão são importantes para a compreensão da administração ptolomaica da Palestina[42].

Trata-se de uma coleção de cerca de 2.000 papiros, encontrados após 1910, perto da antiga Filadélfia, localizada nas vizinhanças do oásis de Fayum, onde o dioceta de Ptolomeu II Filadelfo, o poderoso Apolônio, mantém sua dôréa. Descobertos por escavadores clandestinos, os papiros de Zenão são dispersos pelo mundo afora durante a 1ª Guerra Mundial. Estão em Londres, no Cairo, em New York, na Alemanha, na Itália...

Os papiros cobrem um período de 32 anos, entre 261 e 229 a.C., e trazem os arquivos de Zenão, originário de Caunos, cidade da Cária controlada por Ptolomeu II. Zenão vai para o Egito, onde entra para o serviço de Apolônio, no qual permanece 13 anos, de 261 a 248 a.C. A partir deste ano, Zenão deixa Apolônio - do qual não temos mais notícias após 245 a.C. - e se dedica a seus negócios particulares em Filadélfia. O seu último documento datado é de 14 de fevereiro de 229 a.C. A dôréa de Apolônio é liquidada em 243 a.C.

Acredita-se que teria sido para proteger-se contra possíveis problemas jurídicos e políticos futuros a respeito de suas posses que Zenão meticulosamente arquiva os papiros referentes aos negócios de Apolônio sob sua responsabilidade e os papiros relativos a seus próprios negócios.

Apolônio, ao mesmo tempo que é um poderoso ministro de Estado, encarregado das finanças e da fiscalização de todo o reino, é também um grande proprietário e negociante. Zenão é um de seus homens de confiança - administra, por exemplo, a sua dôréa durante nove anos - e cuida de seus negócios particulares, não sendo, portanto, um funcionário do governo. Mas Apolônio parece não separar bem estas duas esferas de negócios, a pública e a privada, e Zenão está também, por isso, ligado às questões públicas.

Zenão vai para a Palestina, em viagem de negócios para seu patrão, no final de 260 a.C. Fica na região até o começo de 258 a.C., isto é, por um período de 13 a 14 meses. Estamos em plena segunda guerra síria (260-253 a.C.),

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quando Ptolomeu II enfrenta-se com o Selêucida Antíoco II. Como o dioceta Apolônio é também responsável pelos suprimentos do exército ptolomaico, a missão de Zenão, que atinge as fronteiras do reino, não é apenas privada.

O seu roteiro na região não é muito fácil de ser reconstituído, mas é possível que ele tenha desembarcado em Gaza e da lá ido a Marisa, na Iduméia. Nesta cidade ele se vê às voltas com a fuga de três escravos que comprara na Iduméia.

Interessante é também sua visita aos Tobíadas, na Transjordânia. Para lá chegar, ele passa por Jerusalém e Jericó, segundo um papiro da coleção. Com os Tobíadas, Zenão realiza negócios para Apolônio e para o rei Ptolomeu II, como a compra de uma menina escrava, registrada no seguinte contrato:

"No ano vinte e sete do reinado de Ptolomeu, filho de Ptolomeu, e de seu filho Ptolomeu, sendo epônimos o sacerdote de Alexandre e dos deuses irmãos e a canéfora de Arsinoé Filadelfo que estão em função em Alexandria, no mês de Xandikos, na birta de Auranítide, Nicanor, filho de Xanocles, cnidiano, do séqüito de Tobias, vendeu a Zenão, filho de Agreofon, cauniano, do séqüito de Apolônio o dioceta, uma escrava babilônia chamada Sfragis, de sete anos de idade, por cinqüenta dracmas. Foi fiador [...], filho de Ananias, o persa, cleruco de Tobias. Foram testemunhas [...], juiz, Polemon, filho de Straton, macedônio, todos os dois clerucos do corpo de cavaleiros de Tobias, Timopolis, filho de Botes, milésio, Heráclito, filho de Filipe, ateniense, Zenão, filho de Timarcos, colofoniense, Demóstratos, filho de Dionísio, aspendiano, todos os quatro do séqüito de Apolônio o dioceta"[43].

Zenão fiscaliza também a hiparquia da região norte da Celessíria. Uma hiparquia é um distrito territorial governado por um hiparco. Este distrito, assim como os nomos egípcios, divide-se em aldeias (kômê) chefiadas por um comarca.

C. Orrieux observa a propósito da visita de Zenão à fronteira com os Selêucidas: "Pode-se imaginá-lo como um enviado especial de Apolônio, fazendo o leva-e-traz entre Alexandria e a Síria-Fenícia a fim de informar seu patrão diretamente sobre os problemas financeiros colocados pela proximidade das operações militares. Sem ser funcionário ele tem a função de conduzir delicadas negociações oficiosas"[44].

Zenão visita igualmente a Galiléia e fiscaliza propriedades de Apolônio nesta região. Apolônio é o proprietário da aldeia de Beth-Anath da Galiléia.

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O seu administrador consegue aumentar extraordinariamente a cultura da vinha, mas os camponeses estão em desacordo com ele quanto à quantidade de trigo, uva, vinho e figo que lhe devem fornecer, como documenta um dos papiros de Zenão[45].

No ano seguinte, entretanto, o administrador consegue sucesso, como testemunha a seguinte carta enviada a Apolônio:

"Glaukias a Apolônio, saudações (...) Ao chegar a Baitanata, eu tomei comigo Melas e nós examinamos as novas plantações e todos os outros empreendimentos. Considero satisfatório a situação dos trabalhos. Ele me disse que a vinha tem 80 mil pés. Ele construiu uma cisterna e uma casa adequada. Ele me fez provar o vinho e eu não pude adivinhar se ele vem de Quios ou da propriedade. Tu podes acreditar que um acaso feliz te favorece de todas as maneiras. Passe bem! Ano 23, Xandikos 7"[46].

Estas notícias sobre a viagem de Zenão estão em cerca de 40 daqueles quase 2.000 papiros do arquivo recuperado próximo a Fayum. O que resulta da leitura destes papiros é a impressão de intensa atividade política e econômica dos Ptolomeus na região da Palestina. Estes administram os territórios conquistados "com a mesma desenvoltura com que um agricultor macedônio administra suas próprias terras"[47].

Outro dado interessante para se conhecer a administração ptolomaica da Palestina é a história de José, o Tobíada e de seu filho Hircano, transmitida por Flávio Josefo[48].

Os Tobíadas vivem numa espécie de feudo na Transjordânia, ao sul do Galaad. O centro do território é a birta (= fortaleza) de Amon, identificada pelos arqueólogos com o `Arak el Emir atual.

Tobias, descendente do Tobias da época de Neemias (Ne 13,4), dirige uma cleruquia lágida na Transjordânia. Quando Zenão visita a Palestina em 259 a.C. ele comanda o clã.

Diz A. Paul: "Comandante de uma klerouchia militar (cujo centro era a birta ou `fortaleza' de família, construída inicialmente para resistir às invasões dos beduínos do deserto), Tobias era o chefe de uma importante tribo local, tendo ainda as funções de um prefeito do rei do Egito, a serviço do qual punha seus soldados, suas relações e suas influências"[49].

Duas cartas de Tobias, pertencentes aos papiros de Zenão, ilustram suas relações com os Ptolomeus. A primeira é dirigida a Ptolomeu II, a segunda a Apolônio.

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"Ao rei Ptolomeu, Tobias deseja bom dia! Eu te enviei dois cavalos, seis cães, um meio-onagro, cruzamento de jumenta, dois jumentos árabes brancos de tração, dois filhotes de meio-onagro e um filhote de onagro. Felicidades! Ano 29, Xandikos 10 [= 13 de maio de 257]".

"Tobias a Apolônio, saudações! Se tu vais bem e se teus negócios e o restante estão como tu desejas, graças aos deuses! Eu estou bem, lembrando-me de ti sem cessar, como é o certo. Eu te enviei Aineas para te oferecer um eunuco e quatro rapazes, escravos [...] de excelente estirpe. Eu reproduzo, a seguir, para teu uso, as características destes rapazes. Passe bem! Ano 29, Xandikos 10 [13 de maio de 257]". A seguir vem as características dos escravos...[50].

José, o filho de Tobias, sobrinho do sumo sacerdote Onias II por parte de mãe, nasce na Judéia em uma aldeia da família. Quando acontece a terceira guerra síria ( 246-241 a.C.), Onias II, partidário dos Selêucidas, se recusa a pagar os impostos devidos aos Ptolomeus, que é de 20 talentos. O rei Lágida, Ptolomeu III Evergetes, ameaça então reduzir a Judéia a uma colônia militar.

José, pró-Lágida, após ser designado pelo povo como chefe (prostátes), vai representar os interesses da Judéia diante do rei Ptolomeu em 242 a.C., obtendo muito mais até: consegue o direito de recolher os impostos de toda a Celessíria[51].

Com o auxílio de 2 mil soldados ele exige duramente os impostos das cidades e dos campos, enriquecendo-se com isso consideravelmente.

Com créditos samaritanos ele financia antecipadamente o arrendamento e "em lugar de 8.000 talentos para a província sírio-fenícia, José ofereceu o dobro. Dotado de plenos poderes estatais para aplicar a força, José recolheu o tributo das cidades e mandou executar os parentes dos magistrados que relutaram. As cidades provavelmente só puderam pagar as novas cargas fiscais impondo aos camponeses doação parcial em mantimentos, baseando-se no fato de que a terra era propriedade do dominador"[52].

Flávio Josefo diz que ele leva os judeus à prosperidade. Como? Diminui o número de bocas para comer, através da escravidão - que ainda rende mais excedentes - e estimula culturas mais rentáveis, por exemplo, olivais em vez de cereais.

Ao morrer em 226 a.C., seu filho Hircano o sucede no cargo, até o advento dos Selêucidas na região, tendo se suicidado quanto Antíoco IV assume o governo[53].

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Vejamos um trecho do relato de Flávio Josefo sobre José, o Tobíada, através do qual poderemos apreciar os seus métodos:

"José tomou, depois, dois mil homens das tropas do rei, a fim de poder obrigar os que se recusavam a pagar os tributos e, depois de ter dado a Alexandria quinhentos talentos, foi para a Síria. Os habitantes de Ascalon foram os primeiros a desprezar suas ordens. Não se contentaram em não querer pagar, mas o ultrajaram com palavras; mas ele soube castigá-los. Mandou prender imediatamente vinte dos principais, que mandou matar; escreveu ao rei para lhe dar contas do que tinha feito e mandou-lhe mil talentos do confisco de seus bens. O príncipe ficou tão satisfeito com seu proceder, que o elogiou magnificamente e permitiu que, dali por diante, usasse deles como quisesse. O castigo dos ascalonitas encheu de temor as outras cidades da Síria, que lhe abriram suas portas e pagaram seu tributo sem dificuldade alguma"[54].

Cronologia dos PtolomeusPtolomeu I Soter : 323-285Ptolomeu II Filadelfo : 285-247Ptolomeu III Evergetes : 247-221Ptolomeu IV Filopator : 221-205Ptolomeu V Epífanes : 205-181Ptolomeu VI Filometor : 181-145Ptolomeu VII Néos Filopator : 145-144Ptolomeu VIII Evergetes (Físcon) : 144-116Ptolomeu IX Soter (Latiro) : 116-107Cleópatra III : 107-101Ptolomeu X Alexandre : 101-88Ptolomeu IX Soter (Latiro) : 88-80Ptolomeu XI Alexandre II : 80Ptolomeu XII Aulete : 80-58; 55-51Cleópatra VII Filopator : 51-30

Leituras Recomendadas

CANFORA, L., A biblioteca desaparecida. Histórias da biblioteca de Alexandria, São Paulo, Companhia das Letras, 1989.

Page 157: Historia de Israel

DIEZ MACHO, A., Apocrifos del Antiguo Testamento II, Madrid, Cristiandad, 1983.

HENGEL, M., Judaism and Hellenism. Studies in their Encounter in Palestine during the Early Hellenist Period I, London, SCM Press, 1981.

JOSEFO, F., História dos Hebreus. Obra Completa, Rio de Janeiro, Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 1992.

LÉVÊQUE, P., O mundo helenístico, Lisboa, Edições 70, 1987.

ORRIEUX, C., Les papyrus de Zenon. L'orizon d'un grec en Egypte an IIIe siècle avant J. C., Paris, Macula, 1983.

PRÉAUX, C., Le Monde hellénistique. La Gréce et l'Orient (323-146 av. J.-C.) I-II, Paris, Presses Universitaires de France, 19872, 19882.

STERN, M., Greek and Latin Authors on Jews and Judaism I, Jerusalem, The Israel Academy of Sciences and Humanities, 1976.

TARN, W., La civiltà ellenistica, Firenze, La Nuova Italia, 1978.

THACKERAY, H. St. J./MARCUS, R./WIKGREN, A.,/FELDMAN, L. H., Josephus I-X, Cambridge, Harvard University Press, 1926-1965.

WILL, E., Histoire politique du monde hellénistique (323-30 av. J.-C) I, Nancy, Presses Universitaires de Nancy, 19792.

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[37]. Cf. ABEL, F.-M., Histoire de la Palestine I, pp. 51-60.

[38]. Cf. HENGEL, M., Judaism and Hellenism I, pp. 24-29.

[39]. Cf. KIPPENBERG, H. G., Religião e formação de classes na antiga Judéia, pp. 73-74; SAULNIER, C., Histoire d'Israel III, p. 364.

[40]. KIPPENBERG, H. G., o. c., p. 74.

[41]. CARTA DE ARISTEAS A FILÓCRATES, 22, em DIEZ MACHO, A., Apócrifos del Antiguo Testamento II, pp. 22-23. Cf. ABEL, F.-M., o. c., pp. 62-63. PRÉAUX, C., Le monde hellénistique II, p. 568 acredita na autenticidade deste documento, pelo menos nos seus termos mais gerais.

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[42]. Cf. ORRIEUX, C., Les papyrus de Zenon; ABEL, F.-M., o. c., pp. 65-71; SAULNIER, C., Histoire d'Israel III, pp. 450-451.

[43]. Cf. ORRIEUX, C., Les papyrus de Zenon, p. 42-43. O contrato é redigido em abril/maio de 259 a.C. O documento segue as regras mais estritas para este tipo de escrito: ano de reinado, corregência, sacerdotes epônimos dos cultos dinásticos, fiador, testemunhas etc.

[44]. ORRIEUX, C., o. c., p. 42.

[45]. Cf. KIPPENBERG, H. G., o. c., pp. 74-75.

[46]. Cf. ORRIEUX, C., o. c., p. 47. Esta carta está datada em 9 de maio de 257 a.C.

[47]. HENGEL, M., Ebrei, Greci e Barbari. Aspetti dell'ellenizzazione del giudaismo in epoca precristiana, Brescia, Paideia, 1981, p. 48.

[48]. Cf. JOSEFO, F., Antiquitates Iudaicae, XII, 158-236.

[49]. PAUL, A., O judaísmo tardio, p. 178.

[50]. Cf. ORRIEUX, C., o. c., pp. 43-44.

[51]. Com o título de prostátes, "ao qual estava ligado o principal cargo administrativo e financeiro da Judéia, efetuou-se, de fato, uma transferência de poderes do sumo sacerdote pró-selêucida para o Tobíada pró-lágida. Com isso, José se tornou o mais alto funcionário civil de Jerusalém", diz PAUL, A., o. c., p. 179.

[52]. KIPPENBERG, H. G., Religião e formação de classes na antiga Judéia, p. 76.

[53]. Cf., sobre José e os Tobíadas, SAULNIER, C., Histoire d'Israel III, pp. 451-454; PRÉAUX, C., Le monde hellénistique II, pp. 571-572.

[54]. JOSEFO, F., Antiquitates Iudaicae XII, 181.

8. Os Selêucidas: a Helenização da Palestina

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Em 198 a.C. o Selêucida Antíoco III, o Grande (223-187 a.C.) vence os egípcios em Panion (Baniyas), junto às nascentes do Jordão, e expulsa

definitivamente os Ptolomeus da Ásia. A anexação da Celessíria se dá a seguir.

Pressionados por Roma, com quem entram em conflito, os Selêucidas assistem aos progressivo declínio de seu Império. Para solidificar o

fragmentado Império, os reis Selêucidas, e especialmente Antíoco IV Epífanes (175-164 a.C.), implantam um acelerado processo de

helenização dos vários povos e cidades da região.

As questões que abordarei neste capítulo tratam:

do governo de Antíoco III , o Grande, e suas relações com os judeus e com Roma

do governo de Antíoco IV Epífanes e seu conflito com os judeus

das causas da helenização da Judéia.

8.1.O Governo de Antíoco III, o GrandeQuando Antíoco III, o Grande, vence os exércitos dos Ptolomeus, os judeus de Jerusalém o apóiam nesta luta, segundo Flávio Josefo. O partido selêucida em Jerusalém está mais forte do que o ptolomaico. Por isso, Jerusalém é contemplada com um decreto de Antíoco III, em 197 a.C. Diz o decreto:

"O rei Antíoco a Ptolomeu[1], saudações. Como os judeus, desde que entramos em seu país, nos testemunharam sua benevolência, como à nossa chegada em sua cidade, eles nos receberam magnificamente e vieram ao nosso encontro com o seu senado, como eles proveram abundantemente à subsistência de nossos soldados e de nossos elefantes e visto que nos ajudaram a expulsar a guarnição egípcia instalada na cidadela, nós, de nosso lado, havemos por bem reconhecer todos esses bons ofícios, reconstruir sua cidade arruinada pelos infortúnios da guerra e repovoá-la, fazendo voltar a ela os que foram dispersos. Em primeiro lugar, decidimos, em razão de sua piedade, fornecer-lhes, para os sacrifícios, uma contribuição em animais de sacrifício, em vinho, óleo e incenso, no valor de 20.000 dracmas de prata, artabes[2] sagradas de farinha de frumento, medidas segundo o costume do país, 1.460 médimos de trigo e 375 médimos[3] de sal. Quero que todas estas contribuições lhes sejam entregues segundo minhas instruções. Que sejam terminados os trabalhos do templo, os pórticos e tudo o que tiver necessidade de ser reconstruído. As madeiras serão tiradas na Judéia mesma e entre os outros povos e no

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Líbano, sem serem submetidas a nenhuma taxa. O mesmo será feito com todos os outros materiais necessários para se enriquecer a restauração do templo. Todos os membros da nação (éthnos) devem viver segundo as leis de seus pais. O senado, os sacerdotes, os escribas do templo e os cantores do templo serão isentos da capitação, do imposto coronário e da taxa sobre o sal. Para que a cidade seja repovoada mais depressa, concedo àqueles que a habitam atualmente e àqueles que nela se estabelecerem até o mês de hyperberetaios[4], uma isenção de impostos durante três anos. Nós os isentamos ainda, para o futuro, do terço do tributo, a fim de indenizá-los de suas perdas. Quanto aos que foram tirados da cidade e reduzidos à escravidão, nós lhes restituímos a liberdade e ordenamos que lhes sejam restituídos os seus bens"[5].

Examinemos um pouco o decreto. Além da reconstrução e do repovoamento da cidade - que sofrera três assédios consecutivos, em 201, 199 e 198 a.C. - o governo selêucida toma as seguintes medidas:

o que seja dada uma contribuição real para os sacrifícios, em animais, vinho, óleo, incenso, flor de farinha, trigo e sal

o a madeira retirada da Judéia e do Líbano para os trabalhos de construção do Templo e dos pórticos está isenta de taxas

o todos os membros do povo judeu devem viver segundo as leis de seus pais

o o senado (gerousia), os sacerdotes, os escribas do Templo e os cantores do Templo, ficam isentos da capitação, do imposto coronário e da taxa sobre o sal

o isenção de impostos durante três anos para os atuais habitantes da cidade e para aqueles que vierem nela morar até determinada data, para que a cidade seja repovoada mais depressa.

É interessante observarmos as medidas de Antíoco III sobre os impostos[6].

A madeira para a restauração do Templo está isenta do imposto alfandegário, que incide sobre todas as mercadorias em circulação.

O senado e os funcionários do Templo ficam isentos da capitação, imposto pessoal recolhido dos adultos. Ficam isentos também do imposto coronário: a coroa de folhas é, para os gregos, o símbolo da vitória, concedida aos vencedores dos jogos ou a um rei vitorioso[7]. Com o tempo, as cidades começam a oferecer aos seus reis coroas de ouro ou uma soma equivalente

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em dinheiro. O que antes era espontâneo acaba institucionalizado e tornado obrigatório, podendo somente o rei conceder a isenção.

Ainda: o senado e o Templo ficam isentos da taxa sobre o sal. Esta taxa é conhecida na Palestina e na Babilônia. Provavelmente paga-se determinado valor ao governo, ou talvez , na Palestina, que tem boas salinas, se aceite o produto "in natura".

Os habitantes da cidade, finalmente, são isentos durante 3 anos do phóros, o tributo, em prata ou em produtos, exigido de uma província, de um templo, de um éthnos ou de uma cidade, este último sendo o caso de Jerusalém.

Deve-se observar que, com este decreto, Antíoco III reforça o papel da aristocracia, associada há muito ao poder através da gerousia e que, sob outro aspecto, liga o destino do éthnos (= nação) judeu às decisões reais. Pois as leis dos antepassados (a Torá) devem ser obedecidas não porque assim o decidem os judeus, mas porque o quer o governo selêucida[8].

Apesar de parecerem benevolentes, estas medidas não devem , entretanto, nos enganar, pois não superam as decisões comuns tomadas em relação a outras cidades, naquela época.

O que Antíoco III faz é seguir a velha política persa em relação aos judeus. H. G. Kippenberg observa que "este decreto tem paralelo no documento de administração persa (Esd 7,12-26). Na carta de nomeação de Artaxerxes a Esdras (do ano 398 a.C.), está incluída a ordem ao encarregado das finanças da província Transeufratiana, que regulamenta o apoio material ao culto, bem como a isenção de tributos para sacerdotes, levitas, cantores, porteiros e servos do templo (vv. 21-24)"[9].

É preciso observar também que a reconstrução e o repovoamento da cidade são medidas necessárias para o fortalecimento do governo e dos interesses de Antíoco III naquela região disputada pelos Ptolomeus.

Entretanto, a expansão selêucida sob Antíoco III, o Grande, será impedida por Roma na medida em que seus interesses entram em choque com a forte república na Europa.

Por que Roma e os Selêucidas se enfrentam no século II a.C.?

Durante o século III a.C. Roma disputa com Cartago a posse da Sicília e o controle do Mediterrâneo ocidental. Cartago é uma colônia fundada pelos

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fenícios no norte da África (na região da atual Tunísia) talvez no século IX a.C. Os cartagineses constroem importante império comercial, ao mesmo tempo em que Roma se torna líder de uma poderosa confederação italiana. Fatalmente os interesses das duas potências se chocam e o enfrentamento militar torna-se inevitável.

Três grandes guerras são feitas entre as duas potências[10]. A primeira guerra dura 23 anos, de 264 a 241 a.C. A segunda guerra acontece de 218 a 202 a.C. com a vitória de Roma sobre o famoso general Aníbal. A terceira guerra, na qual Roma destrói Cartago e anexa seus territórios, se dá entre 149 e 146 a.C.

Durante a segunda guerra púnica[11] Aníbal alia-se a Filipe V da Macedônia para abrir outro front para Roma. Então Roma faz uma acordo com a liga etólia12 , oposta à Macedônia em um confronto pelo Épiro.

Após vencer Cartago, Roma ataca a Macedônia e vence Filipe V em Cinoscéfalos, em 197 a.C. O cônsul Flamínio proclama a "liberdade dos gregos" em 196 a.C., maneira de barrar a interferência de Filipe V na Grécia. Aliás, este tema da "liberdade dos gregos" é pura manobra política, bandeira desfraldada cada vez que reis e Estados rivais se enfrentam pela posse da região.

Durante os jogos Ístmicos, realizados naquele ano, como sempre, em Corinto, o arauto anuncia, segundo Políbio:

"'O Senado de Roma e o procônsul Tito Quíntio, após a vitória sobre o rei Filipos e os macedônios, deixam livres os seguintes povos, sem guarnições em suas cidades e sem a imposição de quaisquer tributos e governados pelas próprias leis de suas respectivas pátrias: os coríntios, os foceus, os lócrios, os eubeus, os aqueus ftióticos, os magnésios, os tessálios e os perrébios'. Desde o início haviam começado os aplausos ensurdecedores (...) Cessadas as aclamações ninguém mais demonstrou o menor interesse pelos atletas, e todos os presentes, falando com os seus vizinhos ou consigo mesmos, agiam a bem dizer como homens fora de si, de tal maneira que terminados os jogos a multidão quase matou Flamínio com suas demonstrações de gratidão. De fato, alguns dos presentes, desejosos de vê-lo frente a frente e de chamá-lo de seu salvador, outros, ansiosos por apertar-lhe a mão, e a maior parte lançando coroas e fitas frontais em sua direção, quase o reduziram a pedaços"[13].

Aníbal, após ser derrotado por Roma, refugia-se na corte selêucida e instiga Antíoco III a lutar contra Roma. Após muitas negociações frustradas, Roma enfrenta e vence Antíoco III na batalha de Magnésia, no começo

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de 189 a.C. O exército romano é comandado por Lucius Cornelius Cipião - depois cognominado "o Asiático" -, ajudado por seu irmão Cipião, o Africano. Antíoco, que tem 72 mil soldados, perde 50 mil homens de infantaria, 3 mil cavaleiros, 15 elefantes e Cipião faz 1400 prisioneiros. Os romanos perdem apenas 400 homens.

Em 188 a.C. a paz entre Roma e os Selêucidas é estabelecida em Apaméia da Frígia, quando são impostas humilhantes condições a Antíoco III[14].

O tratado de Apaméia, conservado por Apiano, diz o seguinte:

"Antíoco deverá abandonar tudo o que ele possui na Europa e, na Ásia, as províncias aquém do Taurus - as fronteiras serão traçadas em seguida. Ele entregará todos os seus elefantes e todos os navios que indicaremos. No futuro ele não terá mais elefantes e terá somente o número de navios que nós fixaremos. Ele fornecerá vinte reféns, segundo a lista elaborada pelo cônsul. Ele pagará pelas despesas desta guerra, da qual ele é o responsável, 500 talentos eubóicos imediatamente, 2.500 após a ratificação do tratado e 12.000 em doze anos, cada anuidade devendo ser paga a Roma. Ele nos entregará todos os prisioneiros e os desertores e restituirá a Eumênio tudo o que ele ainda retém das possessões adquiridas em virtude do acordo feito com Átalo, pai de Eumênio. Se Antíoco respeitar lealmente estas condições, nós lhe oferecemos paz e amizade sob condição de ratificação do Senado"[15].

M. Rostovtzeff comenta: "A situação geral do mundo helênico não foi afetada por esta guerra. O equilíbrio de poder de que Roma se tornara guardiã continuou a existir, embora de forma peculiar: Roma resolvia todas as disputas internas da Grécia, sem consultar, porém, a opinião grega, nem mesmo em assuntos gregos. Todos os reinos helênicos eram independentes, mas nenhum poderoso. A todos, e especialmente às cidades gregas, Roma garantia 'liberdade', mas no momento em que qualquer um deles mostrava tendências de realizar uma política independente, prontamente o esmagava"[16].

Assim começa o declínio do império selêucida. Daqui para a frente, Antíoco III e seus sucessores debater-se-ão em crescentes lutas internas pelo poder, assistindo à fragmentação progressiva dos seus domínios e lutando com grandes dificuldades financeiras. Só a Roma Antíoco deve pagar 15.000 talentos eubóicos. O talento eubóico, do nome da ilha de

Eubéia, pesa cerca de 26 kg. Logo, Antíoco deve pagar a Roma o equivalente a 390.000 kg de prata.

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O que ocorrerá é que, em relação a cidades como Jerusalém, por exemplo, os sucessores de Antíoco III não terão condições de manter a prometida isenção tributária, premidos que estarão por Roma. O próprio Antíoco III é morto em 187 a.C., pela população revoltada, quando saqueia um templo elamita, para conseguir dinheiro com que pagar aos romanos.

F.-M. Abel explica que ele foi "ao templo de Bel, famoso por possuir muito ouro e prata dedicado ao deus, e tendo-o assaltado de noite com suas tropas, não levou em conta a coragem vigilante das populações desta região rude. Ele foi morto, ele e os seus, pelos habitantes que acorreram em defesa do santuário. Este foi o fim pouco glorioso de Antíoco, dito o Grande, após trinta e seis anos de reinado com a idade de cerca de cinqüenta e cinco anos, em 187 a.C."[17].

Seu sucessor, Selêuco IV Filopator (187-175 a.C.), apoiado por judeus dissidentes do sumo sacerdote Onias III, tenta apoderar-se do dinheiro depositado no Templo de Jerusalém. É o conhecido incidente de Heliodoro, narrado em 2Mc 3,4-40.

"Ora, certo Simão, da estirpe de Belga, investido no cargo de superintendente do Templo, entrou em desacordo com o sumo sacerdote a respeito da administração dos mercados da cidade. Não conseguindo prevalecer sobre Onias foi ter com Apolônio de Tarso, que naquela ocasião era o estratego da Celessíria e da Fenícia. E referiu-lhe que a câmara do tesouro em Jerusalém estava repleta de riquezas indizíveis, a ponto de ser incalculável a quantidade de dinheiro. E que esse dinheiro não tinha proporção alguma com as despesas dos sacrifícios, sendo portanto possível fazer tudo isso cair sob o domínio do rei. Entrevistando-se então com o rei, Apolônio informou-o acerca das riquezas que lhe haviam sido denunciadas. E o rei, escolhendo a Heliodoro, superintendente dos seus negócios, enviou-o com ordens de proceder à requisição das referidas riquezas" (2Mc 3,4-7).

O texto continua dizendo que, ao manifestar suas intenções a Onias III, Heliodoro é informado por ele de que os depósitos, na verdade, pertencem aos órfãos e às viúvas, além do dinheiro do Tobíada Hircano. E que, ao contrário do que lhe fora dito, o total dos depósitos é de 400 talentos de prata (10.500 kg) e de 200 talentos de ouro (5.250 kg).

O certo é que Heliodoro não consegue apossar-se do dinheiro do Templo. Segundo 2 Macabeus, o próprio Iahweh o impede através de anjos (2Mc 4,24-34). Esta lenda nos oculta totalmente o que de fato acontece em Jerusalém neste episódio.

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O desacordo entre o sacerdote Simão e o sumo sacerdote Onias III é a propósito da agoranomia, a supervisão dos mercados. Nas cidades gregas, a agoranomia é uma fiscalização encarregada de verificar os pesos e medidas e a regularidade das transações comerciais. Não sabemos exatamente em que consiste a agoranomia em Jerusalém e nem qual é a razão do conflito entre Simão e Onias.

Muitas soluções são propostas[18]: ou Onias discorda da acumulação de cargos feita por Simão, que é supervisor dos mercados e superintendente (prostátes) do Templo[19]; ou porque Simão permite a venda, nos mercados, de produtos proibidos pela Lei; ou porque ele comete abusos na venda de animais destinados aos sacrifícios. Por outro lado, como administrador do santuário, Simão pode ter acusado Onias de entesourar os excedentes das subvenções reais destinadas aos sacrifícios, garantidas pelo decreto de Antíoco III.

Heliodoro vai embora, mas as intrigas de Simão continuam. A tal ponto que Onias III é obrigado a ir a Antioquia dar explicações ao rei, segundo 2Mc 4,4-6:

"Considerando, então, o perigo dessa rivalidade e como Apolônio, filho de Menesteu, estratego da Celessíria e da Fenícia, ainda fomentava a maldade de Simão, Onias foi ter com o rei. E isto, não para se tornar acusador de seus concidadãos, mas tendo em vista o interesse comum e o individual de toda a população. Pois ele estava percebendo que, sem uma intervenção do rei, não era mais possível alcançar a paz na vida pública, nem Simão haveria de pôr termo à sua demência".

É possível que neste conflito entre Simão e Onias III estejamos assistindo ao primeiro embate entre judeus helenistas e judeus ortodoxos. De qualquer modo, Onias III acaba retido em Antioquia, enquanto em Jerusalém os acontecimentos se precipitam.

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[1]. Este Ptolomeu, a quem se dirige o rei Antíoco, é o estratego e sumo sacerdote selêucida da Celessíria.

[2]. Artabe é uma medida egípcia de capacidade, de cerca de 40 litros.

[3]. Médimo é uma medida antiga de capacidade, de cerca de 50 litros.

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[4]. Hyperberetaios é um mês macedônio que corresponde a agosto/setembro.

[5]. Cf. JOSEFO, F., Antiquitates Iudaicae XII, 138-144. Uso para este texto a tradução que se encontra em AA.VV., Israel e Judá. Textos do Antigo Oriente Médio, São Paulo, Paulus, 19972, pp. 98-99.

[6]. Cf., sobre os impostos selêucidas, SAULNIER, C., Histoire d'Israel III, pp. 456-458; PRÉAUX, C., Le monde hellénistique I, pp. 384-388.

[7]. Há quatro grandes jogos pan-helênicos: os Jogos Olímpicos, em Olímpia; os Jogos Ístmicos, em Corinto; os Jogos Píticos, em Delfos e os Jogos Nemeus, no vale de Neméia.

[8]. Cf. KIPPENBERG, H. G., Religião e formação de classes na antiga Judéia, pp. 77-81; BICKERMAN, E., The God of Maccabees. Studies on the Meaning and Origin of the Maccabean Revolt, Leiden, Brill, 1979, pp. 32-34.

[9]. KIPPENBERG, H. G., o. c., p. 78.

[10]. Cf. ROSTOVTZEFF, M., História de Roma, Rio de Janeiro, Zahar, 19774, pp. 56-78; PEIXOTO, P. M., Aníbal, o pai da estratégia, São Paulo, PAUMAPE, 1991; BRADFORD, E., Aníbal, um desafio aos romanos, São Paulo, Ars Poetica, 1993.

[11]. As guerras entre Roma e Cartago são chamadas de "púnicas" porque os romanos chamam os cartagineses, em latim, de poeni (= fenícios), donde puni e "guerras púnicas".

[12]. Com a decadência da pólis, a formação de confederações de cidades gregas é vista como uma solução. "Instalados na margem setentrional do golfo de Corinto, e obscuros durante muito tempo, os etólios acabam anexando quase toda a Grécia central, inclusive grande parte da Tessália", dizem AYMARD, A./AUBOYER, J., O Oriente e a Grécia Antiga II, Rio de Janeiro, Difel, 19775, p. 199.

[13]. POLÍBIO, História XVIII, 46, Brasília, Editora da UnB, 1985, pp. 481-482.

[14]. Cf. SAULNIER, C., Histoire d'Israel III, pp. 102-104; PRÉAUX, C., Le monde hellénistique I, pp. 153-163; WILL, E., Histoire politique du monde hellénistique II, Nancy, Presses Universitaires de Nancy, 19822, pp. 210-215;221-224.

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[15]. APIANO, Syriaka 38-39. Cf. o texto em SAULNIER, C., o. c., pp. 372-373. Apiano é natural de Alexandria e morre aproximadamente em 160 d.C. Trabalha como advogado em Roma e compila narrativas em grego de várias guerras romanas em 24 livros, dos quais temos hoje dez.

[16]. ROSTOVTZEFF, M., História de Roma, p. 71.

[17]. ABEL, F.-M., Histoire de la Palestine I, p. 104. Cf. também WILL, E., Histoire politique du monde hellénistique II, pp. 238-240.

[18]. Cf. SAULNIER, C., Histoire d'Israel III, pp. 107-110; Idem, A revolta dos Macabeus, São Paulo, Paulus, 1987, pp. 19-21; ABEL, F.-M., Histoire de la Palestine I, pp. 105-108.

[19]. O prostátes é o encarregado de administrar as finanças do santuário.

8.2. Antíoco IV e a Proibição do JudaísmoEm 175 a.C. Selêuco IV é assassinado. Assume o poder o seu irmão Antíoco IV Epífanes (175-164 a.C.), que voltava de Roma, onde era refém desde 188 a.C., quando seu pai Antíoco III perdera a batalha de Magnésia e assinara o tratado de Apaméia.

A instabilidade do reino selêucida aumenta e Antíoco IV toma medidas helenizantes como forma de consolidar o seu poder. Concede o status de pólis a várias cidades, promove a adoração de Zeus e reivindica para si prerrogativas divinas[20].

A fundação de cidades é um instrumento fundamental para a helenização do Oriente com o conseqüente fortalecimento do poder macedônio.

"A civilização arcaica e clássica tinha coincidido com o desenvolvimento da pólis e era nos grandes centros urbanos, tais como Mileto, Corinto, Atenas, Siracusa, que se tinha desenvolvido a civilização grega. Alexandre tinha mostrado bem ser o herdeiro da tradição, ao semear o Império que acaba de conquistar com numerosas Alexandrias"[21].

Segundo Plutarco, Alexandre teria fundado 70 Alexandrias. Só que menos da metade pode ser testemunhada com certeza pelos dados históricos e arqueológicos.

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A fundação de cidades tem, para Alexandre, objetivos estratégicos, econômicos e políticos: servem para guardar passagens de grandes vias de comunicação, tornam-se lugares de comércio e atraem os nômades para as suas vizinhanças, fazendo deles camponeses que sustentarão as cidades[22].

Os sucessores de Alexandre seguem a mesma política. Especialmente os Selêucidas, herdeiros de um império multinacional, recorrem à política da difusão da pólis.

"Os objetivos desta urbanização [dos Selêucidas] são bastante diversos. As cidades favorecem o desenvolvimento econômico, que acresce, na mesma proporção, a fortuna do rei. Elas permitem a implantação de tropas, que guardam os grandes eixos de circulação e as posições estratégicas (...) Elas diminuem as resistências indígenas, fragmentando as antigas satrapias entre as cidades"[23].

É bom, entretanto, lembrar que a fundação das póleis gregas nem sempre começam do nada. Há vários modos de se criar uma pólis: fundação de uma cidade grega dentro de uma antiga cidade oriental, dando-lhe um estatuto político e um nome grego; recriação, com estrutura grega, de uma cidade arrasada pela guerra ou por um terremoto; fusão entre cidades pequenas que não têm como se defender; fundação de uma cidade grega ao lado de uma cidade oriental[24].

A reivindicação de prerrogativas divinas pelo rei é outra arma de controle das populações orientais, usada desde Alexandre e, agora, enfatizada por Antíoco IV Epífanes, face ao esfacelamento do império selêucida.

Esta não é uma criação grega, mas oriental, habilmente incorporada pelos dominadores macedônios. Os reis egípcios, assírios ou babilônios são deuses ou filhos prediletos dos deuses. Situados acima dos homens, são a garantia da ordem política, mas também da ordem cósmica e da fertilidade da natureza.

Antíoco IV que, de 175 a 169 a.C., aparece nas moedas cunhadas em Antioquia apenas com a inscrição "Rei Antíoco", a partir desta época começa a ter sobre sua cabeça uma estrela, símbolo da divindade. E a partir de sua vitória sobre o Egito, a inscrição das moedas selêucidas é "Rei Antíoco Theos Epífanes".

"Ele pensa, definitivamente, que sua vitória o manifestou como deus, ou que é um deus que se manifestou na sua carne. Ele é o praesens divus, e,

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segundo sua intenção, o epíteto epifanés, 'manifesto', é relacionado com Theós, ou seja, com sua apoteose"[25].

As dificuldades econômicas enfrentadas por Antíoco IV Epífanes, geradas pela pressão romana, a quem deve pagar mil talentos por ano, leva-o a sobrecarregar seus súditos e o instiga ao saque de templos para a obtenção de fundos.

Enquanto isto, em Jerusalém, o processo de helenização avançara bastante desde o século anterior, especialmente entre a aristocracia

sacerdotal e leiga. Forma-se um forte partido pró-helênico, que pretende incrementar o avanço civilizatório grego e, por isso, está em

luta com os judeus tradicionais e fiéis à Lei.

Estes helenizantes defendem urgente revogação do decreto de Antíoco III, que os impede de se integrarem totalmente no modo de vida grego.

F.-M. Abel observa, por exemplo, que a Judéia está cada vez mais cercada por cidades helenizadas e é impossível ao judeu não tomar contato com o seu modo de vida. Quem vai a Ptolemaida passa por Samaria ou Dora; se alguém negocia na Galiléia não pode fugir de Citópolis ou Filotéria; ou na Transjordânia é necessário ir a Pella, a Gadara ou a Filadélfia. Do lado do mar? Marisa está na rota de Gaza ou Ascalon. Jâmnia, Gazara e Jope também não podem ser evitadas[26].

A ocasião favorável aos partidários da helenização surge quando Onias III, o conservador sumo sacerdote, está em Antioquia cuidando dos interesses de seu povo e Antíoco IV assume o poder.

Um irmão de Onias III, Jasão (Joshua), oferece ao rei alta soma em dinheiro e um rápido programa de helenização dos judeus em troca do cargo de sumo sacerdote.

1Mc 1,11-13 comenta o caso do seguinte modo:

"Por esses dias apareceu em Israel uma geração de perversos (paránomoi) que seduziram a muitos com estas palavras: 'Vamos, façamos aliança com as nações circunvizinhas, pois muitos males caíram sobre nós desde que delas nos separamos'. Agradou-lhes tal modo de falar. E alguns de entre o povo apressaram-se em ir ter com o rei, o qual lhes deu autorização para observarem os preceitos (dikaiômata) dos gentios".

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O termo paránomoi indica, segundo Dt 13,14, pessoas que fazem propostas de apostasia da Lei. Daí que "fazer aliança com as nações" indica renegar a Lei e seguir costumes gentios.

Também o dikaiômata tôn éthnôn (preceitos dos gentios) é significativo. Dikaíôma é usado pelos LXX para traduzir o hebraico derek ou mishpat (caminho, direito) significando obrigações legais. Observar os preceitos dos gentios significa, portanto, abandonar as normas da Lei e seguir leis gentias[27].

Antíoco IV Epífanes aceita a oferta de Jasão, pois precisa de dinheiro, tem urgência em helenizar a região para garantir sua fronteira sul e, ao que parece, suspeita de tendências pró-ptolomaicas em Onias III.

Assim, em 174 a.C. é instalado um ginásio em Jerusalém, aos pés da acrópole, contíguo à esplanada do Templo.

2Mc 4,7-10 descreve do seguinte modo os fatos:

"Entrementes, tendo passado Selêuco à outra vida e assumindo o reino Antíoco, cognominado Epífanes, Jasão, irmão de Onias, começou a manobrar para obter o cargo de sumo sacerdote. Durante uma audiência, ele prometeu ao rei trezentos e sessenta talentos de prata e ainda, a serem deduzidos de uma renda não discriminada, mais oitenta talentos. Além disso, empenhava-se em subscrever-lhe outros cento e cinqüenta talentos[28], se lhe fosse dada a permissão, pela autoridade real, de construir uma praça de esportes e uma efebia, bem como de fazer o levantamento dos antioquenos de Jerusalém. Obtido, assim, o consentimento do rei, ele, tão logo assumiu o poder, começou a fazer passar os seus irmãos de raça para o estilo de vida dos gregos".

Um ginásio grego não é mera praça de esportes. É uma instituição cultural das mais importantes, usada no processo de helenização de várias cidades orientais.

Além dos esportes gregos, praticados nus - o que causa embaraço aos jovens judeus circuncidados -, o ginásio implica a presença de divindades protetoras, como Héracles (= Hércules) e Hermes e ensina a maneira grega de se viver e de se ver o mundo. Falar o grego corretamente, vestir-se à moda grega, conhecer e discutir a cultura grega, são algumas das atividades praticadas no ginásio.

Consta que o rei Antíoco IV vai a Jerusalém nesta época, sendo recebido pelos filo-helenistas com grande entusiasmo.

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Além do que, "o ginásio parece ter sido realmente uma corporação separada de judeus helenizados, com direitos cívicos e legais definidos, estabelecida dentro da cidade de Jerusalém"[29].

Estes judeus são chamados de "antioquenos" nos documentos da época, como se vê em 2Mc 4,9.19. Certamente porque estão sob a proteção real, ou mesmo porque são considerados como "cidadãos de Antioquia", segundo alguns. C. Saulnier acredita que de duas uma: ou Antíoco IV autoriza a formação de uma pólis dentro de Jerusalém ou a organização de um políteuma em Jerusalém[30].

"De qualquer modo - quer Antíoco IV tenha fundado uma pólis em Jerusalém, quer ele tenha reunido um certo número de judeus em um políteuma de estrutura grega -, o resultado é o mesmo: uma parte dos judeus pretende doravante viver à maneira helênica, de modo que a Torá não é mais a única lei, isto é, o decreto de Antíoco III não se aplica mais à totalidade da população"[31].

2Mc 4,12-14a fala do ginásio de Jerusalém com grande desgosto:

"Foi, pois, com satisfação que [Jasão] construiu a praça de esportes justamente abaixo da Acrópole e, obrigando os mais nobres de entre os moços, conduziu-os ao uso do pétaso[32]. Verificou-se, desse modo, tal ardor de helenismo e tão ampla difusão de costumes estrangeiros, por causa da exorbitante perversidade de Jasão, esse ímpio e de modo algum sumo sacerdote, que os próprios sacerdotes já não se mostravam interessados nas liturgias do altar".

A situação, entrementes, se complica, quando um sacerdote não-sadoquita, chamado Menelau, apoiado pela poderosa família dos Tobíadas, faz uma oferta maior a Antíoco IV e obtém o sumo sacerdócio. Menelau, irmão de Simão - aquele Simão que entrara em conflito com Onias III por causa da agoranomia - oferece a Antíoco 300 talentos de prata (cerca de 7.800 kg) suplementares na época de pagar o tributo.

Diz 2Mc 4,23-24:

"Depois de um período de três anos, Jasão enviou Menelau, irmão do já mencionado Simão, a levar as quantias ao rei e a completar-lhe relatórios sobre certos assuntos urgentes. Menelau, porém, tendo se apresentado ao rei e adulando-o pela ostentação de sua autoridade, conseguiu para si o sumo sacerdócio, superando em trezentos talentos de prata a oferta de Jasão".

Page 172: Historia de Israel

Isto se dá em fins de 172 a.C., início de 171 a.C. Jasão foge para a Transjordânia, para o feudo de Hircano, o Tobíada dissidente e pró-Lágida, já morto nesta época.

Como protestasse contra a venda de vasos sagrados do Templo (vendidos por Menelau para conseguir o dinheiro prometido a Antíoco IV), Onias III é assassinado a mando de Menelau. A população de Jerusalém, revoltada com as ações de Menelau, vê três membros da gerousia serem executados por Antíoco IV, quando oficialmente denunciam as arbitrariedades cometidas pelo sumo sacerdote.

Em 169 a.C., na volta de sua primeira campanha egípcia, campanha vitoriosa, Antíoco IV saqueia o Templo de Jerusalém, com a aprovação de Menelau[33]. 1Mc 1,21-23 narra este saque do Templo, do qual se desconhece a causa. Talvez seja a sempre crescente necessidade de dinheiro. Vejamos a narração de 1 Macabeus:

"Entrando com arrogância no Santuário, apoderou-se do altar de ouro, do candelabro com todos os seus acessórios, da mesa da proposição, das vasilhas para as libações, das taças, dos incensórios de ouro, do véu, das coroas, da decoração de ouro sobre a fachada do Templo: tudo ele despojou. Tomou, além disso, a prata, o ouro, os utensílios preciosos e os tesouros secretos que conseguiu descobrir".

Já em 168 a.C., em sua segunda campanha contra o Egito, Antíoco IV é impedido de entrar em Alexandria, e de assim anexar o país, pelo legado romano Popilius Laenas. Roma defende, deste modo, o fraco Egito e vigia de perto os Selêucidas.

Políbio comenta o episódio do encontro de Antíoco IV e Popilius Laenas, interessante para se avaliar o poder de Roma neste momento histórico:

"Quando ele viu o general romano Popilius, o rei [Antíoco IV], de longe o saudou e estendeu-lhe a mão. Mas o outro, que tinha uma tabuinha onde estava transcrito o senatus-consulto, lha estendeu e pediu que a lesse imediatamente (...) O rei a leu e declarou desejar deliberar com seus amigos acerca desta novidade. Ao ouvir isto, Popilius fez um gesto aparentemente intolerável e de uma arrogância inusitada. Ele tinha na mão uma vara de videira. Traçou com esta vara um círculo ao redor de Antíoco e convidou-o a lhe dar, antes de sair, a resposta ao documento. O rei, aturdido com esta insolência, pensou um instante, e em seguida declarou que faria tudo o que os romanos pediam. Então Popilius e seus acompanhantes apertaram sua mão e o cumprimentaram com amizade. O

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senatus-consulto ordenava-lhe parar imediatamente a guerra contra Ptolomeu"[34].

Na Palestina corre o falso boato de que Antíoco morrera no Egito e Jasão ataca Jerusalém. Menelau refugia-se na acrópole. Jasão promove sangrento massacre na cidade, mas foge com a chegada de Antíoco IV, que restabelece Menelau no poder.

Consta que, no final do verão de 168 a.C., o rei Selêucida, pensando estar havendo uma revolta, pune Jerusalém, executando muitos judeus e vendendo a outros como escravos. Antíoco IV deixa na cidade o frígio Filipe com uma guarnição, mas este não consegue controlá-la (2Mc 5,5-14).

C. Saulnier assim resume estes acontecimentos: "Podemos dizer que há em Jerusalém dois motivos de dissensões que não coincidem entre si. Primeiramente, os judeus estão divididos a propósito do helenismo em aproximadamente duas facções que podemos designar como a dos filo-helenos e a dos assideus: os primeiros, parecendo amplamente encorajados por dois sumos sacerdotes sucessivos e rivais, Jasão e Menelau. Além disso, as dificuldades do reinado de Antíoco IV sugerem a existência de um partido pró-Lágidas, outrora sustentado por Hircano, filho de Tobias, e Onias III, depois por Jasão e talvez por uma fração da população que já se esquecera das durezas da administração egípcia, e, de outro lado, a existência de um partido pró-Selêucidas, apoiado pelos Tobíadas, por Menelau e sem dúvida por aqueles que são designados como antioquenos de Jerusalém"[35].

No começo de 167 a.C. Antíoco IV envia a Jerusalém Apolônio, o misarca (comandante das tropas mísias), com forte contingente. Ataque, assassinatos em massa, escravidão. Muralhas demolidas e construção de poderosa fortaleza em Jerusalém, conhecida, em grego, como Acra (= cidadela), sede de uma guarnição e verdadeira pólis, no coração de Jerusalém, encostada no Templo. Durante cerca de 25 anos a Acra será o braço armado selêucida em Jerusalém, espinho atravessado na garganta dos judeus fiéis.

2Mc 5,23b-24 assim fala da intervenção de Apolônio:

"Nutrindo para com os súditos judeus uma disposição de ânimo profundamente hostil, o rei enviou o misarca Apolônio à frente de um exército de vinte e dois mil homens, com a ordem de trucidar todos os que estavam na força da idade e de vender as mulheres e os mais jovens".

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1Mc 1,33-35 descreve a construção da Acra:

"Então reconstruíram a cidade de Davi, dotando-a de grande e sólida muralha e torres fortificadas, e dela fizeram a sua Cidadela. Povoaram-na de gente ímpia, homens perversos, e nela se fortificaram. Abasteceram-na de armas e víveres e nela depositaram os despojos tomados em Jerusalém, tornando-se eles assim uma armadilha enorme"[36].

É nesta época que começa verdadeira caçada aos Oníadas e a seus partidários. Como é de praxe em tais circunstâncias, suas propriedades são confiscadas e transferidas para os Tobíadas ou para as colônias militares reais.

Desencadeia-se feroz perseguição a todos os inimigos de Menelau. Os habitantes do distrito judaico transformam-se em cidadãos sem direitos. Os fiéis seguidores da Lei, os assideus (= piedosos) são obrigados a fugir para os desertos e montanhas. Jerusalém é, enfim, uma cidade contaminada: os gentios controlam a sua população.

Acredita-se que tenha sido para vencer a, por enquanto pacífica, resistência judaica ao programa de helenização é que Antíoco IV decide

proibir a prática do judaísmo, no verão de 167 a.C.

Por outro lado, é preciso considerar que esta intervenção direta e brutal contra os costumes e os deuses de outros povos não é uma praxe grega. É quase certo que o partido helenista de Jerusalém tenha pedido a intervenção real e tenha apontado as medidas necessárias para aniquilar os judeus tradicionais[37].

Como norma geral, duas medidas são tomadas (1Mc 1,41-53):

o a abolição da Torá, com seus mandamentos e suas proibições: ficam proibidas as práticas do sábado, das festas, da circuncisão, da distinção de alimentos puros e impuros. Todos os manuscritos da Lei devem ser destruídos. Qualquer violação destas normas tem a morte por punição

o uma reforma do culto em toda a Judéia: a abolição dos sacrifícios e da sacralidade do santuário e dos sacerdotes, a ereção de altares em todo o país e o sacrifício de porcos e outros animais impuros a deuses estrangeiros.

Page 175: Historia de Israel

Para completar, em dezembro de 167 a.C., é introduzido o culto de Zeus Olímpico no Templo de Jerusalém, com respectiva imagem e

sacrifício.

Explica C. Saulnier que "deus iminente dos gregos, Zeus representava os valores do poder e da autoridade; o epíteto Olímpico recordava suas prerrogativas sobre as outras divindades e seu aspecto uraniano (isto é, de deus do céu); na Síria ele fora assimilado a Baal Shâmin, deus soberano, senhor das tempestades e da fecundidade. Tais aspectos podiam aparentemente aproximá-lo de Iahweh que, desde a época persa, era designado nos textos judaicos como "o Deus dos céus". Nestas condições, podemos admitir que Antíoco IV quisesse introduzir em Jerusalém uma divindade sincrética, que permitisse a judeus, sírios e gregos reconhecer nela a emanação de um deus soberano"[38].

A introdução deste culto no Templo é a "abominação da desolação", segundo Dn 11,31. 1Mc1,54-57.64 assim descreve a "abominação da desolação":

"No décimo quinto dia do mês de Casleu do ano de cento e quarenta e cinco [8 de dezembro de 167 a.C.], o rei fez construir, sobre o altar dos holocaustos, a Abominação da desolação. Também nas outras cidades de Judá erigiram-se altares e às portas das casas e sobre as praças queimava-se incenso. Quanto aos livros da Lei, os que lhes caíam nas mãos eram rasgados e lançados ao fogo. Onde quer se encontrasse em casa de alguém um livro da Aliança ou se alguém se conformasse à Lei, o decreto real o condenava à morte (...) Foi sobremaneira grande a ira que se abateu sobre Israel".

Os judeus são também obrigados a participar da festa de Dionísio e do sacrifício mensal em honra do aniversário do rei (2Mc 6,7).

Enfim, uma verdadeira cruzada contra a Lei. Por detrás disso tudo podemos ver as tristes figuras de Menelau e dos Tobíadas[39].

NEXT

[20]. Cf., para o reinado de Antíoco IV e seu confronto com os judeus, BRIGHT, J., História de Israel, São Paulo, Paulus, 1978, pp. 570-576; ABEL, F.-M., Histoire de la Palestine I, pp. 109-132; HENGEL, M., Judaism and Hellenism I, pp. 277-290; SAULNIER, C., Histoire d'Israel III, pp. 105-121; Idem, A revolta dos Macabeus, pp. 21-31; WILL, E., Histoire politique du monde hellénistique II, pp. 326-341.

Page 176: Historia de Israel

[21]. LÉVÊQUE, P., O mundo helenístico, p. 59.

[22]. Cf. PRÉAUX, C., Le monde hellénistique II, pp. 401-403.

[23]. LÉVÊQUE, P., o. c., p. 61.

[24]. Cf. PRÉAUX, C., Le monde hellénistique II, pp. 403-408.

[25]. ABEL, F.-M., Histoire de la Palestine I, p. 128.

[26]. Cf. Idem, ibidem, p. 109.

[27]. Cf. SAULNIER, C., Histoire d'Israel III, pp. 110-111.

[28]. Jasão oferece a Antíoco 590 talentos, o equivalente a cerca de 15.340 kg de prata. Um talento ático pesa 26,2 kg.

[29]. BRIGHT, J., História de Israel, p. 572.

[30]. Cf. SAULNIER, C., Histoire d'Israel III, p. 112.

[31]. Idem, ibidem, p. 113.

[32]. Pétaso é o chapéu de copa baixa e abas largas usado nos exercícios pelos atletas gregos no ginásio.

[33]. "O reinado [dos Ptolomeus] era dirigido por regentes que governavam em nome do jovem Ptolomeu VI, que se tornara rei com a morte de seu pai em 180. Por motivos obscuros, tais regentes parecem ter declarado guerra contra Antíoco IV em 170. Este começou as operações em 169 e, depois de uma campanha fácil, ocupou Mênfis", explica SAULNIER, C., A revolta dos Macabeus, p. 24. Cf. também WILL, E., Histoire politique du monde hellénistique II, pp. 311-320.

[34]. POLÍBIO, História XXIX, 27. Cf. este texto em SAULNIER, C., Histoire d'Israel III, pp. 376-377. Cf. a análise do episódio em WILL, E., Histoire politique du monde hellénistique II, pp. 320-325.

[35]. SAULNIER, C., A revolta dos Macabeus, p. 23.

[36]. Para o significado da Acra em Jerusalém, cf. BICKERMAN, E., The God of the Maccabees, p. 46-53.

Page 177: Historia de Israel

[37]. Cf. HENGEL, M., Judaism and Hellenism I, pp. 287-289; SAULNIER, C., Histoire d'Israel III, pp. 118-121; Idem, A revolta dos Macabeus, pp. 27-28.

[38]. SAULNIER, C., A revolta dos Macabeus, p. 26.

[39]. Cf. HENGEL, M., Judaism and Hellenism I, pp. 292-303; BRIGHT, J., História de Israel, pp. 574-576.

8.3.As Causas da HelenizaçãoCom muita freqüência, têm-se colocado as razões religiosa e cultural como motivo para a helenização da Judéia e conseqüente resistência macabéia. Claro que, na típica visão teocrática do judaísmo de então, as motivações religiosas é que oferecerão os conceitos para a leitura dos fatos.

C. Saulnier, por exemplo, mostra que há duas interpretações divergentes para as medidas anti-judaicas de Antíoco IV Epífanes[40].

Uma é a que expus acima: a helenização forçada é conseqüência da pressão exagerada da aristocracia judaica, que teria, inclusive, sugerido a Antíoco IV as medidas a serem tomadas. É a que considero mais provável.

Mas há a versão judaica, muito bem expressa em 1Mc 1,41-42, que diz:

"O rei prescreveu, em seguida, a todo o seu reino, que todos formassem um só povo, renunciando cada qual a seus costumes particulares. E todas as nações conformaram-se ao decreto do rei".

Com sua linguagem guerreira carregada de simbolismos, o livro de Daniel descreve a maldade de Antíoco IV no seu ataque às práticas judaicas:

"Tropas enviadas por ele virão profanar o Santuário-cidadela e abolirão o sacrifício perpétuo, ali introduzindo a abominação da desolação. Os que transgridem a Aliança, ele os perverterá com suas lisonjas; mas o povo dos que conhecem a seu Deus agirá com firmeza (...) O rei agirá a seu bel-prazer, exaltando-se e engrandecendo-se acima de todos os deuses. Ele proferirá coisas inauditas contra o deus dos deuses e no entanto prosperará, até que a cólera chegue a seu cúmulo - porque o que está decretado se cumprirá. Sem consideração para com os deuses de seus

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pais, sem consideração para com o favorito das mulheres ou para com qualquer outro deus, é a si mesmo que ele exaltará acima de tudo" (Dn 11,31-32.36-37).

Como esta é uma linguagem apocalíptica, alguns elementos precisam ser explicados: "Engrandecendo-se acima de todos os deuses" é uma referência à efígie de Antíoco IV cunhada nas suas moedas, mais para o fim de seu governo, com os traços de Zeus Olímpico. Os reis Selêucidas antecessores de Antíoco IV cultuavam Apolo, mas ele cultua especialmente a Zeus Olímpico, daí o texto dizer que ele age "sem consideração para com os deuses de seus pais". Quando o texto diz que ele não "tem consideração para com o favorito das mulheres", está falando do deus Adônis-Tamuz. Tamuz é uma divindade assírio-babilônica de origem popular, conhecido também sob o nome semítico de Adônis na mitologia mediterrânea. Tamuz é estreitamente vinculado à divindade feminina da fertilidade, a Inanna suméria e a Ishtar acádica. Ele é amante de Ishtar.

Este texto de Daniel é bem representativo da visão judaica do rei ímpio perseguidor do povo justo. De qualquer maneira, Antíoco IV não é bem visto pelos escritores da época, porque também Políbio traça dele um perfil pouco lisonjeiro.

Diz Políbio que Antíoco IV aprecia sair da corte e se misturar com as pessoas do povo, discutindo longamente com ourives ou outros peritos nos seus ateliês. Ou que ele se infiltra nas festas do povo sem ser convidado ou vai ao mercado (ágora, local onde se reúne também a assembléia do povo) e se mete nas mais acirradas disputas, além de protagonizar outras atitudes populistas41.

Apesar de tudo isso, é preciso ir além na interpretação dos fatos. Além das razões estratégicas e políticas dos Selêucidas para incentivar a helenização dos judeus, razões já apresentadas, há motivos econômicos para o conflito que o processo desencadeia[42].

É que o sistema político grego tradicional, como adotado pelos Selêucidas, não dispõe de um mecanismo fiscal para o recolhimento do tributo. Ou seja: não há uma burocracia profissional que administra as finanças do Estado. Em Atenas, por exemplo, o cidadão se dedica à administração da cidade sem receber recompensa alguma, a não ser a satisfação do dever cumprido e o sentimento de contribuir para o bem comum[43] . Assim, nos reinos helenísticos a função de recolher o tributo é arrendada à aristocracia dos povos dominados, proporcionando-lhe lucros financeiros e influência política junto ao governo estrangeiro, como vimos no caso dos Tobíadas.

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Por outro lado, deve-se levar em conta que a noção grega de Estado é concretizada no Oriente:

o ou na pólis, uma associação de cidadãos livres e autônomos baseada na vizinhança

o ou no éthnos, uma relação de parentesco baseada na solidariedade dos laços de sangue.

M. Rodrigues explica que "três grandes princípios presidem à formação da pólis: eleuteria (independência), autonomia (poder próprio) e autarquia (autogestão). A cidade era tudo para o cidadão grego. O verbo politeyestaí, que significava 'tomar parte nos negócios públicos', também significava simplesmente 'viver'"[44].

Ora, Judá é e permanece um éthnos também na administração selêucida. Mas o próprio Antíoco III, o Grande, com seu decreto de 197 a.C., reforça os privilégios da aristocracia, criando as condições para a sua emancipação da hierocracia e para o predomínio da pólis sobre o éthnos.

"A autonomia étnica, que foi concedida oficialmente à Judéia, trouxe em si elementos que ofereciam à aristocracia das cidades novas possibilidades"[45].

A lei, baseada na vontade do rei Selêucida - que reivindica tal direito como "direito de lança" por ser o conquistador - e não nas tradições dos antepassados codificadas na Torá, cria condições para que a aristocracia judaica substitua as leis étnicas por leis políticas.

O texto de 1Mc 10,29-31, que trata de uma isenção de impostos concedida aos judeus mais tarde, em 152 a.C., por Demétrio I, dá-nos uma idéia dos tributos recolhidos pelos Selêucidas na Judéia.

"Desde agora desobrigo-vos, e declaro isentos todos os judeus, dos tributos (phóroi), do imposto sobre o sal e do ouro das coroas. Igualmente renuncio à terça parte da semeadura e à metade dos frutos das árvores, que me caberiam de direito: de hoje em diante deixo de arrecadá-los à terra de Judá e aos três distritos que lhe foram anexos, bem como à Samaria e à Galiléia. Isto a partir do dia de hoje e para todo o tempo. Jerusalém seja considerada santa e isenta, assim como seu território, sem dízimos e sem tributos".

Os três primeiros impostos citados, já os conhecemos do decreto de Antíoco III: trata-se do phóros, do imposto sobre o sal e do imposto coronário.

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Agora, o que aqui nos interessa é perceber como se faz o recolhimento do tributo na Judéia. A aristocracia - por exemplo, os Tobíadas e seus associados - recolhe dos camponeses 1/3 do produto das colheitas e metade da produção das frutas. Vende, certamente com ganhos, estes produtos e paga aos seus senhores Selêucidas determinada quantia em prata. Talvez cerca de 300 talentos anuais segundo 1Mc 11,28.

Flávio Josefo também testemunha que os impostos são cobrados pela aristocracia, quando comenta o decreto de Antíoco III. Diz Josefo:

"Os nobres arrendaram nas suas próprias cidades paternas o direito de cobrar o tributo, e, depois que eles recolheram a quantia fixada, a pagaram aos reis"[46].

Daí ser significativo que a primeira notícia a respeito do nascente conflito com o helenismo, como vimos acima, aponte uma razão econômica. Vamos lembrar o que diz 2Mc 3,4:

"Ora, certo Simão, da estirpe de Belga, investido no cargo de superintendente do Templo, entrou em desacordo com o sumo sacerdote a respeito da administração dos mercados da cidade".

Assim, a aristocracia começa a pressionar sempre mais na direção da helenização total, como modo de quebrar as barreiras da tradição de solidariedade baseada na aliança. Seu enriquecimento fácil, baseado na tributação e na manutenção de seus privilégios, choca-se com as normas da Lei. A solução será pedir a Antíoco IV Epífanes a eliminação da Lei. Some-se a isso a precariedade financeira dos Selêucidas e o mecanismo começa a ficar claro.

Segundo as leis israelitas, a terra é dom de Iahweh ao povo. Israel tem a posse da terra, mas não é seu proprietário. O livro do Deuteronômio, escrito a partir do século VIII a.C., repete isto sempre (Dt 12,1.9.10.20.29; 13,13;16,5.18.20 etc). Dt 12,1, por exemplo, diz:

"São estes os estatutos e as normas que cuidareis de pôr em prática na terra cuja posse Iahweh, Deus de teus pais te dará, durante todos os dias em que viverdes sobre a terra".

A terra em Israel é classificada como nahala (= herança, posse), como em Dt 12,9.10; 19,10;20,16 e tantos outros lugares.

Pode-se até negociar a terra, mas somente dentro de determinadas normas. O direito que regulamenta a venda da terra é o chamado ge'ulla (= resgate

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da terra). Quem tem o direito de compra é apenas o parente do lado masculino da família.

A venda da terra pode proteger o proprietário empobrecido de pagar tributos e impostos a estrangeiros, como pode protegê-lo também de ser vendido como escravo permanente a estrangeiros.

O resgate da terra é baseado no conceito de hesed (= fidelidade), uma solidariedade que sustenta a relação comunitária no nível do clã.

H. G. Kippenberg assim resume a relação de parentesco em Israel:

o a estrutura de parentesco determina a reprodução das famílias e as relações sociais dentro da família

o a estrutura de parentesco une as famílias em uma hierarquia baseada nas prerrogativas dos irmãos mais velhos sobre os mais novos, mas cria laços de solidariedade entre eles

o a terra pode ser negociada entre parentes, mas não com estranhos ao círculo de parentesco. Entretanto, este princípio leva ao acúmulo de terras pelas famílias mais ricas[47].

Compare-se esta concepção israelita da posse da terra com a concepção grega, onde a terra pode ser dada a quem o rei determinar, porque ela lhe pertence por direito de conquista. O conflito jurídico é evidente.

Ora, como no interior do clã a estratificação social avança bastante nos períodos persa e grego, a aristocracia judaica que aí surge tende a excluir os mais pobres. Por outro lado, a manutenção das regras do parentesco exigida pela Lei e confirmada por Antíoco III prejudica os interesses da aristocracia.

Uma confirmação do avanço da estratificação social pode ser encontrada na regra do ano jubilar estabelecida por Lv 25,23-28.

Segundo esta lei, provavelmente do século VI a.C., se o israelita deve vender seu terreno, então o parente agnático (termo do direito romano que indica o parente por parte de pai) mais próximo deve comprá-lo. Se isto não for possível, no 49º ou no 50º ano o antigo dono deve receber de volta sua propriedade vendida.

Lv 25,47-55 estabelece também que se um israelita for vendido a estrangeiros como escravo, deve ser resgatado pelo parente mais próximo. Caso contrário, deve ser libertado no ano jubilar (49º ou 50º ano).

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Parece claro que a regra do ano jubilar está em contradição com a norma do resgate imediato da terra e do escravo e a lei do ano sabático (Dt 15,1-18; Ex 21,1-11). É porque estas regras não funcionam mais, devido à estratificação social, que se tem de exigir a regra dos 49/50 anos[48].

Voltemos ao confronto entre a aristocracia filo-helenista e os judeus fiéis à Lei. Como veremos daqui a pouco, os sacerdotes Macabeus, líderes da resistência judaica, e seus partidários assideus, defendem a manutenção dos laços de parentesco, da solidariedade étnica contra a instalação do regime da pólis em Jerusalém.

Enquanto os partidários da helenização seguem as ordens do rei (1Mc 2,19-20;6,21-27), os revolucionários Macabeus fazem valer os antigos mandamentos (1Mc 2,29-38: o sábado; 2,42-48: a circuncisão; 4,36-51: a purificação do Templo).

Que os motivos desta luta são também econômicos, gerados pelo arrendamento estatal dos impostos à aristocracia, não resta dúvida, se

observarmos que, em 142 a.C., quando o rei selêucida Demétrio II concede aos judeus a isenção dos tributos, isto é festejado como

libertação da escravidão e começo de uma nova era.

1Mc 13,36-42 assim descreve o fato:

"'O rei Demétrio a Simão, sumo sacerdote e amigo dos reis, aos anciãos e à nação dos judeus, saudações! Recebemos a coroa de ouro e a palma que nos enviastes, e estamos prontos a celebrar convosco uma paz duradoura e a escrever aos nossos administradores que vos considerem totalmente isentos. Tudo o que temos determinado a vosso respeito permanece firme e também são vossas as fortalezas que edificastes. Quanto às faltas por ignorância e os delitos cometidos até o dia de hoje, bem como a coroa que nos deveis, nós vo-los perdoamos. E se alguma outra coisa era arrecadada em Jerusalém, não o seja doravante. Se houver entre vós alguns homens que sejam aptos a ser recrutados para a nossa guarda de corpo, que eles se inscrevam. E reine a paz entre nós'. No ano cento e setenta, foi retirado de Israel o jugo das nações. E o povo começou a escrever, nos documentos e nos contratos: 'No primeiro ano de Simão, sumo sacerdote insigne, estratego e chefe dos judeus'".

É que, com o desaparecimento do arrendamento, a aristocracia não é mais identificada com o Estado, dando aos camponeses maior folga em relação aos senhores da terra. A desigualdade permanece a mesma, mas os camponeses conseguem controle sobre o excedente[49].

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A lógica grega deste arrendamento é a de reduzir o direito de cidadania a pequena faixa aristocrática, mantendo os produtores como simples moradores, objeto de conquista, sem direito a cidadania.

E esta lógica está funcionando, até que, em Jerusalém, uma camada aristocrática força a helenização e entra em choque com o direito sagrado tradicional do povo judeu. Aí vem o conflito com os Macabeus, que não tem objetivos religiosos: o que se quer é uma reforma da constituição da Judéia. Mas será a simbologia religiosa que exprimirá os interesses igualitários de sacerdotes e camponeses[50].

Leituras Recomendadas

AUSTIN, M. & VIDAL-NAQUET, P., Economia e sociedade na Grécia antiga, Lisboa, Edições 70, 1986.

BICKERMAN, E., The God of the Maccabees. Studies on the Meaning and Origin of the Maccabean Revolt, Leiden, Brill, 1979.

BRADFORD, E., Aníbal, um desafio aos romanos, São Paulo, Ars Poetica, 1993.

GLOTZ, G., A cidade grega, São Paulo, Difel, 1980.

HENGEL, M., Judaism and Hellenism. Studies in their Encounter in Palestine during the Early Hellenist Period I, London, SCM Press, 1981.

JOSEFO, F., História dos Hebreus. Obra Completa, Rio de Janeiro, Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 1992.

KIPPENBERG, H. G., Religião e formação de classes na antiga Judéia, São Paulo, Paulus, 1988.

LÉVÊQUE, P., O mundo helenístico, Lisboa, Edições 70, 1987.

MOSSÉ, C., As instituições gregas, Lisboa, Edições 70, 1985.

PEIXOTO, P. M., Aníbal, o pai da estratégia, São Paulo, PAUMAPE, 1991.

POLÍBIO, História, Brasília, Editora da UnB, 1985.

PRÉAUX, C., Le Monde hellénistique. La Gréce et l'Orient (323-146 av.

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J.-C.) I-II, Paris, Presses Universitaires de France, 19872, 19882.

ROSTOVTZEFF, M., História de Roma, Rio de Janeiro, Zahar, 19774.

SAULNIER, C., Histoire d'Israel III. De la conquête d'Alexandre à la destruction du temple (331 a.C.-135 a.D.), Paris, Du Cerf, 1985.

SAULNIER, C., A revolta dos Macabeus, São Paulo, Paulus,1987.

WILL, E., Histoire politique du monde hellénistique (323-30 av. J.-C.) I-II, Nancy, Presses Universitaires de Nancy, 1979-19822.

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[40]. Cf. SAULNIER, C., Histoire d'Israel III, pp. 118-121. Idem, A revolta dos Macabeus, pp. 27-28. Para as tendências da historiografia, ao longo dos séculos, sobre a questão, cf. BICKERMAN, E., The God of the Maccabees, pp. 24-31.

[41]. Cf. POLÍBIO, História XXVI,1. Cf. este texto em SAULNIER, C., Histoire d'Israel III, pp. 377-378. Cf. também, sobre Antíoco IV, WILL, E., Histoire politique du monde hellénistique II, pp. 306-308.

[42]. Cf. KIPPENBERG, H. G., Religião e formação de classes na antiga Judéia, pp. 73-87; GRUEN, W., Religião e formação de classes sociais no Judá pós-exílico, segundo H. G. KIPPENBERG, em Atualização 171-172, março/abril de 1984, pp. 152-161.

[43]. Cf., sobre isto, GLOTZ, G., A cidade grega, pp. 99-214; AUSTIN, M./VIDAL-NAQUET, P., Economia e sociedade na Grécia antiga, pp. 113-129.

[44]. RODRIGUES, A. M., As utopias gregas, São Paulo, Brasiliense, 1988, p. 76. Cf. também GIORDANI, M. C., História da Grécia, Petrópolis, Vozes, 19864, pp. 151-183; MOSSÉ, C., As instituições gregas, Lisboa, Edições 70, 1985; GLOTZ, G., A cidade grega, São Paulo, Difel, 1980.

[45]. KIPPENBERG, H. G., o. c., p. 80.

[46]. JOSEFO, F., Antiquitates Iudaicae XII, 155.

[47]. Cf. KIPPENBERG, H. G., o. c., p. 39.

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[48]. Cf. Idem, ibidem, pp. 61-63.

[49]. Cf. Idem, ibidem, p. 86.

[50]. Cf. Idem, ibidem, pp. 86-87.

9. Os Macabeus I: A Resistência

Com a proibição das tradicionais práticas judaicas em 167 a.C. desencadeia-se feroz perseguição àqueles que não se submetem às

ordens do rei selêucida Antíoco IV Epífanes. A posse de livros da Lei, a prática da circuncisão ou qualquer observância de um ritual judaico

leva a pessoa à morte.

Recusando-se a prestar culto aos deuses gregos, um sacerdote de Modin, que se retirara de Jerusalém desgostoso com o rumo das coisas, chamado Matatias, começa um movimento de rebelião armada contra

os gregos e seus associados da aristocracia judaica.

Com seus cinco filhos e grande grupo de camponeses fiéis às tradições judaicas ele faz uma guerra constante aos helenizantes, que culminará,

nesta primeira fase, com seu filho Judas Macabeu, na libertação de Jerusalém e na purificação do Templo apenas três anos após a

proibição dos sacrifícios javistas.

Jônatas, irmão de Judas Macabeu, será o primeiro sumo sacerdote da família, ocupando um cargo que, embora esteja vago, não lhe pertence. Isto começa a criar divisões internas, pois os judeus mais tradicionais

não podem admitir esta atitude.

Aproveitando-se do aprofundamento da divisão interna do império selêucida e de seu enfraquecimento político e econômico, os irmãos Macabeus vão pouco a pouco consolidando as suas conquistas na

Judéia.

Neste capítulo abordarei exatamente a luta de Matatias, de Judas Macabeu e de Jônatas pela independência da Judéia.

9.1. Matatias e o Começo da Revolta

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Como vimos, é em 167 a.C. que as práticas tradicionais do judaísmo são proibidas pelo decreto de Antíoco IV Epífanes e o culto de Zeus Olímpico é introduzido no Templo de Jerusalém.

É então que muitos judeus fiéis à Lei morrem, mas não abdicam da aliança javista herdada de seus pais. Falando da perseguição desencadeada pelo decreto real e da resistência dos judeus fiéis, assim descreve 1Mc 1,56-64 os fatos:

"Quanto aos livros da Lei, os que lhes caíam nas mãos eram rasgados e lançados ao fogo. Onde quer que se encontrasse, em casa de alguém, um livro da Aliança ou se alguém se conformasse à Lei, o decreto real o condenava à morte. Na sua prepotência assim procediam, contra Israel, com todos aqueles que fossem descobertos, mês por mês, nas cidades. No dia vinte e cinco de cada mês ofereciam-se sacrifícios no altar levantado por sobre o altar dos holocaustos. Quanto às mulheres que haviam feito circuncidar seus filhos, eles, cumprindo o decreto, as executavam com os mesmo filhinhos pendurados a seus pescoços, e ainda com seus familiares e com aqueles que haviam operado a circuncisão. Apesar de tudo, muitos em Israel ficaram firmes e se mostraram irredutíveis em não comerem nada de impuro. Eles aceitaram antes morrer que contaminar-se com os alimentos e profanar a Aliança sagrada, como de fato morreram. Foi sobremaneira grande a ira que se abateu sobre Israel".

O dia 25 de cada mês é a data do aniversário do rei e da inauguração do altar a Zeus Olímpico: o dia 25 de Casleu, que equivale, em nosso calendário, ao dia 15 de dezembro. A comemoração do aniversário do rei é uma prática persa retomada pelos macedônios no Oriente. Temos, desta prática, importante testemunho de Platão:

"Quando nasce o primogênito, herdeiro presuntivo da coroa, logo é festejado o acontecimento por todo o povo e os próprios governantes; daí por diante, todos os anos, no dia do aniversário do príncipe, a Ásia inteira comemora a efeméride com festejos e sacrifícios"[1].

Segundo 2Mc 6,7, os judeus devem participar também da festa de Dionísio:

"Eram arrastados com amarga violência ao banquete sacrifical que se

realizava cada mês, no dia do aniversário do rei. E ao chegarem as festas

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dionisíacas, obrigavam-nos a acompanharem, coroados de hera, o

cortejo em honra de Dionísio".

Dionísio, na mitologia grega, é filho de Zeus e da princesa Semele. Dionísio é um deus da vegetação, que morre e ressuscita, sendo também o deus do vinho - o Baco, também celebrado em Roma, donde "bacanal" -, que libera as forças do inconsciente humano e inspira a música e a poesia. Os rituais dionisíacos são repletos de êxtases, misticismos e orgias sagradas que celebram a vida, obviamente, com grande ênfase na sexualidade.

Na Grécia, especialmente em Atenas, celebram-se quatro grandes festas em honra de Dionísio: as Dionisíacas Rurais (em dezembro), as Lenéias (em fins de janeiro, começo de fevereiro), as Antestérias (a "festa das flores", celebrada em fins de fevereiro, começos de março, festa que comemora o renascimento da natureza) e as Grandes Dionísias ou Dionísias Urbanas (em março/abril, durante seis dias)[2] .

C. Saulnier pensa que a resistência dos judeus piedosos assuma, aos olhos de Antíoco IV, as características de uma verdadeira revolta e de uma oposição política perigosa. "Ao mesmo tempo, a profunda divisão dos judeus permite-nos compreender que os helenistas deviam se sentir ameaçados e acolhessem de boa vontade o apoio e a proteção das forças gregas. Assim, o começo desta crise é ambivalente, porque mistura a perseguição religiosa à guerra civil. Então, o que é interpretado em termos de perseguição pela literatura judaica, pode ser compreendido pelo historiador como uma reação contra a agitação que não parava de aumentar e a repressão de uma verdadeira revolta armada"[3] .

Reafirma esta interpretação religiosa judaica o 2º livro dos Macabeus, que faz uma verdadeira teologia do martírio. O livro descreve detalhadamente os suplícios sofridos pelo velho escriba Eleazar (2Mc 6,18-31) e o martírio dos sete irmãos com sua mãe (2Mc 7,1-42).

2Mc 6,12-13 garante ainda que o castigo que se abate sobre a nação judaica é a punição pelos pecados do povo e só servirá para purificá-lo e encaminhá-lo para o reto caminho. Pecados cometidos pelos helenizantes que violam a Lei sagrada:

"Agora, aos que estiverem defrontando-se com este livro, gostaria de

exortar que não se desconcertem diante de tais calamidades, correção de

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nossa gente. De fato, não deixar impunes por longo tempo os que

cometem impiedade, mas imediatamente atingi-los com castigos, é sinal

de grande benevolência".

Ao explicar a pilhagem do Templo por Antíoco IV, 2Mc 5,17 apresenta a mesma perspectiva:

"Antíoco subia até às alturas em seu pensamento, não percebendo que

era por causa dos pecados dos habitantes da cidade que o Senhor estava

irritado por um tempo, e que era por isso que se verificava essa sua

indiferença para com o Lugar".

É bom lembrarmos que a perseguição atinge apenas os judeus do distrito de Jerusalém. Não há sinal de perseguição entre os judeus da diáspora, por exemplo, entre os de Tiro e de Antioquia. Mas é interessante observarmos também a atitude dos samaritanos durante estes acontecimentos.

Flávio Josefo traz um texto a propósito dos samaritanos datado de 166 a.C. É um rescrito (= decisão do rei comunicada por escrito) de Antíoco IV aos sidonianos de Siquém, que é como os samaritanos, segundo Flávio Josefo, se designam nesta época.

"Memorando dos sidonianos de Siquém ao rei Antíoco Théos Epífanes: 'Nossos ancestrais, por causa das secas que assolavam o país, obedecendo a um velho escrúpulo religioso, adotaram o costume de celebrar o dia que os judeus chamam de sábado, ergueram sobre o Garizim um templo anônimo e ofereceram os sacrifícios que lhes convinham. Hoje, quando tu tratas os judeus como merecem por sua maldade, os oficiais reais, pensando que é por causa de nosso parentesco com eles que nós seguimos as mesmas práticas, nos envolvem nestas mesmas acusações, enquanto que, por origem nós somos sidonianos, como o demonstram claramente as atas públicas. Nós te suplicamos, portanto, tu, o benfeitor e o salvador, de ordenar a Apolônio, chefe do distrito e a Nicanor, agente real, de não nos molestar fazendo contra nós as mesmas acusações que contra os judeus que nos são estranhos tanto pela raça como pelos costumes, e de chamar ao nosso templo anônimo, templo de Zeus. Deste modo, nós não seremos mais molestados e,

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podendo ocupar-nos com segurança de nossos trabalhos, nós aumentaremos as tuas rendas'. A tal pedido dos samaritanos, o rei deu a seguinte resposta: 'O rei Antíoco a Nicanor. Os sidonianos de Siquém nos apresentaram o memorando que segue. Já que seus emissários, diante de nós, e de nossos amigos reunidos em conselho, asseguraram que eles nada têm a ver com o que é censurado nos judeus, mas que eles desejam viver segundo o costume dos gregos, nós os isentamos de todas as acusações e ordenamos que o seu templo, como eles o pediram, seja chamado templo de Zeus'"[4].

Entre os judeus que permanecem fiéis à Lei, encontra-se um sacerdote chamado Matatias, da linhagem de Joiarib, neto de Simeão, bisneto de um certo Asmoneu[5].

Matatias se recusa a oficiar no Templo profanado pelo culto estrangeiro e se retira com a sua família para a sua propriedade situada em Modin, povoado localizado a cerca de 12 km a leste de Lida/Lod.

Matatias tem cinco filhos, como nos relata 1Mc 2,2-5:

"Tinha cinco filhos: João, com o cognome de Gadi, Simão, chamado

Tasi, Judas, chamado Macabeu, Eleazar, chamado Abaron, e Jônatas,

chamado Afus".

Os cognomes dos filhos de Matatias significam o seguinte: Gadi é o "afortunado"; Abaron é o "desperto"; Afus é o "favorecido"; Tasi tem significado incerto; Macabeu pode significar, do hebraico maqqabiahu, "designado por Iahweh", ou do grego, "martelo", possível alusão à sua força física ou, talvez, à forma de sua cabeça.

Quando os emissários reais chegam a Modin e convocam a população para o sacrifício sacrílego, pedindo a Matatias que oficiasse por ser um chefe ilustre na localidade, ele não só se recusa, mas ainda mata outro sacerdote que se oferecera no seu lugar e mata também o emissário real.

Convoca, em seguida, os judeus fiéis e foge com seus filhos para as montanhas (1Mc 2,27-28). Começa assim a luta desta célebre família contra os Selêucidas e seus aliados helenistas de Jerusalém e povoados vizinhos.

Mas a família de Matatias não está sozinha nesta luta. Diz 1Mc 2,29 que

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"Muitos que amavam a justiça e o direito desceram ao deserto para ali se

estabelecerem, eles, seus filhos, suas mulheres e seu gado, porque se

tinham multiplicado os males sobre eles".

E 1Mc 2,42 acrescenta que os assideus, homens valorosos e apegados à Lei se unem a Matatias e a seus filhos [6].

Matatias e os seus percorrem o território destruindo altares sacrílegos, circuncidando à força os meninos incircuncisos e recuperando a Lei das mãos dos gentios. Esta é a curta notícia que nos dá 1Mc 2,45-48.

As proibições de Antíoco IV Epífanes tocam em práticas bastante arraigadas no judaísmo pós-exílico. Vamos comentar algumas delas.

A prática do sábado parece ser muito antiga. A etimologia da palavra é incerta. Pode derivar do acádico shabattu ou shapattu, que significa "duas vezes sete" e indica o dia da lua cheia para os babilônios. Aliás, os calendários mesopotâmicos assinalam como dias de azar, ou dias tabu, as passagens das fases da lua, quando então o rei, o sacerdote e o médico, por exemplo, não devem exercer suas funções.

Para os judeus é um dia de descanso e dedicação do tempo a Iahweh. A ênfase sobre a observância do sábado cresce a partir do exílio e se torna lei, porque ela passa a ser uma marca característica do judeu fiel[7].

A circuncisão, que consiste na remoção do prepúcio, operação feita pelo pai da criança, deve ser cumprida no oitavo dia pós o nascimento, segundo Lv 12,3. Para a cerimônia usam os israelitas, naqueles tempos, facas de pedra lascadas, o que atesta a sua origem arcaica.

Entretanto, a circuncisão não é um ritual exclusivamente israelita: tribos africanas, americanas e australianas praticam-na. Quem não a conhece são os indo-europeus e os mongóis. Egípcios, edomitas, moabitas, amonitas, árabes, fenícios e cananeus usam igualmente a circuncisão. Dos povos palestinos com os quais Israel entra em contato, somente os filisteus (que são indo-europeus) não são circuncidados.

Quanto à sua origem, claro que um motivo higiênico pode estar oculto pelos rituais e cerimônias. Mas a circuncisão é, em tempos mais remotos,

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provavelmente um rito de iniciação à puberdade: uma cerimônia pela qual os rapazes são reconhecidos como homens adultos.

O seu uso israelita como símbolo de pertença a Iahweh data dos tempos do exílio babilônico, quando, progressivamente os outros povos da região vão deixando-na de lado. Daí a ênfase dada ao rito pelo judaísmo como marca característica do povo israelita[8].

As três principais festas (hag = peregrinação) israelitas, agora proibidas por Antíoco IV, são: a Páscoa/Ázimos; a festa das Semanas ou Pentecostes e a festa dos Tabernáculos ou das Tendas.

A Páscoa (pesah), termo de etimologia incerta, é um ritual muito antigo tipicamente pastoril, celebrado na primeira lua cheia da primavera, quando se sacrifica um animal novo para garantir a fecundidade de todo o rebanho. O seu sangue serve para aspergir as estacas da tenda, mais tarde os portais das casas, para afastar delas os poderes malignos.

Os Ázimos (massôt) são pães sem fermento. Esta festa marca o começo da colheita da cevada, no mês de Nisan (março/abril) e se celebra durante uma semana, de sábado a sábado.

Durante os sete primeiros dias da colheita, os sete dias da festa, come-se somente pão feito com farinha de grão novo, pão sem fermento. É excluído o que vem do "ano velho", simbolizando um novo ponto de partida. E é realizada uma primeira oferta das primícias a Iahweh.

A partir da reforma de Josias (629-609 a.C.) celebra-se a Páscoa na primeira lua cheia da primavera (14 de Nisan) e os Ázimos a partir do dia 15. Dá-se também às duas festas um novo sentido: a celebração da libertação do Egito.

A tradição sacerdotal, posterior ao exílio, estabelece, em Lv 23,5-8; Nm 28,16-25; Ex 12,1-20.40-51, o seguinte: no dia 10 de Nisan cada família escolhe um cordeiro macho, sem defeito e de um ano. No dia 14, entre as duas luzes (à noite) o cordeiro é degolado e o seu sangue aspergido nos portais de cada casa. Durante esta noite de lua cheia assam e comem o cordeiro. Não se pode quebrar nenhum osso e o que sobrar é queimado. Também são consumidos nesta noite pães ázimos e ervas amargas, estando todos vestidos para viajar. Quando a família é pequena demais para comer todo o cordeiro, une-se aos vizinhos. Os escravos e os estrangeiros residentes também podem participar, desde que sejam circuncidados.

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No dia 15 começa a festa dos Ázimos, que dura uma semana. No primeiro e no sétimo dia são feitas celebrações religiosas.

A festa das Semanas ou Pentecostes é celebrada 50 dias após a apresentação do primeiro molho de cevada na festa dos Ázimos, daí ser chamada pentecostés, "cinqüenta", em grego. A cerimônia consiste em oferecer dois pães fermentados, feitos com a nova farinha de trigo. Celebra o término da colheita, quando os primeiros frutos da lavoura, as primícias, são oferecidos a Iahweh. Foi posteriormente ligada ao Sinai, pois segundo a tradição, o povo libertado do Egito chega ao monte naquele época do ano.

A festa dos Tabernáculos ou Tendas é a mais importante das três festas de peregrinação em Israel. Primeiramente chamada de festa da colheita (asip), esta festa passa a chamar-se mais tarde sukkot, que se traduz por "cabanas", "tendas" ou "tabernáculos".

É, como as outras duas, uma festa agrícola, celebrada no outono, sem data precisa. Mais tarde a festa passa a ser celebrada, segundo as leis sacerdotais, a partir do dia 15 de Tishri (o mês de Tishri corresponde a setembro/outubro), com uma duração de sete dias, terminando com um dia solene de descanso.

No outono terminam todas as colheitas e se encerra o ano agrícola. Por isso, esta é uma festa muito alegre, como nossas festas juninas.

O nome sukkot vem da seguinte prática: durante as colheitas, o povo constrói cabanas ou abrigos nos pomares e vinhas, para se proteger do sol. Inicialmente a festa é celebrada ao ar livre e certamente assume o nome das cabanas (sukkot) que se espalham entre as plantações.

Mais tarde, a festa assume outro significado: o povo deve recordar o período em que vivera em tendas, no deserto, após a libertação do Egito (Lv 23,43). Naturalmente esta é uma associação litúrgica e não histórica[9].

Além destas três grandes festas, é preciso lembrar que há outras celebrações no Israel da época grega, que são igualmente proibidas por Antíoco IV Epífanes. Como o Yom Kippur, ou Dia da Expiação pelo santuário, clero e povo, celebrada no dia 10 de Tishri; ou a festa dos Purim, celebrada nos dias 14 e 15 de Adar (fevereiro/março), recordando a vitória dos judeus da Pérsia contra aqueles que querem exterminá-los, segundo o livro de Ester.

Há ainda um culto diário, típico do pós-exílio, celebrado de manhã e à tarde, segundo Ex 29,38-42 e Nm 28,2-8.

Page 193: Historia de Israel

A luta contra a helenização é comandada por um grupo sacerdotal, os Macabeus, o que faz parecer que os motivos religiosos sejam prioritários ou mesmo os únicos para a resistência. Como, aliás, insistem os livros dos Macabeus.

Mas é preciso lembrar que há uma coincidência de interesses dos sacerdotes e levitas empobrecidos com os interesses dos camponeses. Por isso lutam lado a lado.

Sacerdotes e levitas vivem da contribuição dos camponeses, pois o culto e o sacerdócio não têm propriedades, excetuando-se, é claro, uns poucos sacerdotes da nobreza. Os sacerdotes prestam serviços em Jerusalém só de tempos em tempos, morando no mais, em suas cidades e aldeias. O financiamento do culto fica, na maioria das vezes, por conta do Estado.

Assim, a classe sacerdotal sem terras está interessada no controle público das terras, como manda a Lei, e não na privatização da propriedade da terra, que é a tendência da aristocracia filo-helênica. Só assim os sacerdotes podem ter certeza das contribuições para o Templo e para o sustento de suas famílias.

Se a terra pertence a Iahweh, como diz a Lei, e os sacerdotes são os intermediários entre Iahweh e o povo, através da instituição do Templo, a sua sobrevivência está garantida. Mas se a terra pertence ao rei, como o quer o direito do conquistador grego, os sacerdotes que não pertencem à aristocracia e não se associam aos gregos são prejudicados[10].

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[1]. PLATÃO, O primeiro Alcibíades 121c, em Diálogos vol. V, Belém, Universidade Federal do Pará, 1975, p. 226.

[2]. Cf., sobre o tema, DE SOUZA BRANDÃO, J., Mitologia grega II, Petrópolis, Vozes, 19882, pp. 113-140; ELIADE, M., História das crenças e das idéias religiosas I/2, Rio de Janeiro, Zahar, 1978, pp. 199-217. BICKERMAN, E., The God of the Maccabees. Studies on the Meaning and Origin of the Maccabean Revolt,, Leiden, Brill, 1979, pp. 74-75, acredita que estas festas, celebradas em Jerusalém, fazem renascer, ou melhor, são meros disfarces dos antigos cultos cananeus da fertilidade, tão fortes em Israel até o exílio.

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[3]. SAULNIER, C., Histoire d'Israel III, p. 126.

[4]. JOSEFO, F., Antiquitates Iudaicae XII, 258-264; cf. SAULNIER, C., Histoire d'Israel III, pp. 379-380.

[5]. Joiarib é, segundo 1Cr 24,7, o chefe da primeira das vinte quatro classes sacerdotais que servem no Templo. Mas é possível que esta posição de destaque seja uma reformulação do texto após as vitórias dos Macabeus e seu acesso ao sumo sacerdócio. Os descendentes de Matatias são conhecidos como "Macabeus", do nome de seu filho Judas Macabeu, ou "Asmoneus" por causa de um bisavô de Matatias, segundo JOSEFO, F., Antiquitates Iudaicae XII, VIII, 1.

[6]. Assideus é a forma grecizada do hebraico hassidim, os "piedosos". 1Mc 2,42 diz que "a partir daí, uniu-se a eles os grupos dos assideus (hê synagôgê ton assidáiôn), que eram israelitas fortes, corajosos e fiéis à Lei".

[7]. Cf. DE VAUX, R., Ancient Israel. Its Life and Institutions, London, Darton, Longmann & Todd, 19682, pp. 475-483.

[8]. Cf. Idem, ibidem, pp. 46-48.

[9]. Cf. Idem, ibidem, pp. 415-517. Cf. também BICKERMAN, E., The God of the Maccabees, pp. 88-90.

[10]. Cf. KIPPENBERG, H. G., Religião e formação de classes na antiga Judéia, pp. 59-64.

9.2. A Luta de Judas Macabeu (166-160 a.C.)Matatias morre logo, no começo de 166 a.C., mas seu filho Judas, assumindo o comando da luta, desenvolve uma guerra de guerrilhas cada vez mais ampla e vence um a um os generais selêucidas enviados para detê-lo.

É preciso considerarmos, porém, que o reino selêucida tem forças mais do que suficientes para massacrar a rebelião judaica. Acontece, contudo, de estar Antíoco IV ocupado com vários problemas que explodem por toda a parte em seus territórios. Não pode, por isso, ocupar-se, para valer, com os judeus. Para sorte dos Macabeus e dos assideus, os judeus fiéis que os acompanham na luta anti-helênica.

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É 2Mc 8,1.5-7 que nos conta a estratégia de Judas:

"Entretanto Judas, também chamado Macabeu, e os seus companheiros,

iam introduzindo-se às ocultas nas aldeias. Chamando a si os coirmãos

de raça e recrutando os que haviam perseverado firmes no judaísmo,

chegaram a reunir cerca de seis mil pessoas (...) Transformada a sua

gente em grupo organizado, o Macabeu começou a tornar-se irresistível

para os gentios, tendo-se mudado em misericórdia a cólera do Senhor.

Chegando de improviso às cidades e aldeias, ateava-lhes fogo; e,

apoderando-se dos pontos estratégicos, punha em fuga a não poucos de

entre os inimigos. Para tais incursões, escolhia de preferência a noite

como colaboradora. De resto, a fama de sua valentia propagava-se por

toda parte".

As primeiras tropas selêucidas mandadas contra Judas são comandadas por Apolônio, governador da Samaria, provavelmente o misarca que saqueara Jerusalém no começo de 167 a.C. Este pequeno exército, composto de gregos e de samaritanos é facilmente vencido por Judas (1Mc 3,10-12).

Forças maiores vêm com o general Seron, comandante do exército da Síria, mas são igualmente vencidas em Bet-Horon (1Mc 3,13-26). Em seguida, são vencidas as forças dos generais Nicanor e Górgias, até que Lísias, o encarregado da pacificação judaica pelo rei Antíoco IV , vem pessoalmente combater Judas. Contudo, nem mesmo Lísias consegue vencê-lo e uma trégua é estabelecida entre as duas forças (1Mc 3,38-4,35).

C. Saulnier comenta que "esta vitória, aparentemente fácil, de Judas Macabeu explica-se pelos problemas que enfrentava neste momento o governo selêucida. Com efeito, Antíoco IV partira no princípio do ano 165 a.C. para uma campanha nas satrapias superiores (isto é, na alta Ásia), deixando Lísias em Antioquia para assegurar o governo e a guarda de seu jovem filho"[11] .

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É então que, livre de represálias selêucidas, Judas e os seus tomam Jerusalém, purificam e dedicam novamente o Templo. É dezembro de 164 a.C., exatamente três anos após a profanação do santuário. Para comemorar o fato é instituída a festa da Hanukka, isto é, "Dedicação", celebrada no dia 25 de Casleu (15 de dezembro).

1Mc 4,52-54.59 descreve assim este fato:

"No dia vinte e cinco do nono mês - chamado Casleu - do ano centro e

quarenta e oito, eles se levantaram de manhã cedo e ofereceram um

sacrifício, segundo as prescrições da Lei, sobre o novo altar dos

holocaustos que haviam construído. Exatamente no mês e no dia em que

os gentios o tinham profanado, foi o altar novamente consagrado com

cânticos e ao som de cítaras, harpas e címbalos (...) E Judas, com seus

irmãos e toda a assembléia de Israel, estabeleceu que os dias da

dedicação do altar seriam celebrados a seu tempo, cada ano, durante oito

dias, a partir do dia vinte e cinco do mês de Casleu, com júbilo e

alegria".

Durante esta festa os judeus acendem velas, fazem procissão com palmas e cantam salmos de louvor. Mesmo após a destruição do Templo a festa da Dedicação continua e o ritual de acender as velas ainda é observado, agora em casa[12] .

Judas continua a guerra após a purificação do Templo. Entretanto, a seqüência dos fatos é um pouco confusa, porque as nossas fontes, 1 e 2 Macabeus, divergem entre si.

C. Saulnier explica estas divergências pelas perspectivas diferentes de 1 Macabeus e 2 Macabeus. Segundo a autora, 1 Macabeus mistura dados históricos com uma teologia inspirada no deuteronomista, fazendo de Judas um libertador de Israel na linha dos juízes, os líderes da época da conquista. Já 2 Macabeus insiste muito na piedade de Judas, na sua fidelidade em observar o sábado e coisas do gênero. Mas, para além destes detalhes

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edificantes, 2 Macabeus traz certas precisões que devem ser levadas a sério[13] .

Judas dedica-se à proteção dos judeus que se vêem acuados pelos gentios em várias localidades. Sucedem-se assim as campanhas contra os idumeus e os amonitas, a expedição no Galaad, na Galiléia e na Judéia (1Mc 5,1-68)[14] .

Entretanto, morre Antíoco IV Epífanes, provavelmente na mesma época em que o Templo é retomado e purificado, no final de 164 a.C. Segundo uma tabuinha conservada no British Museum, Londres, o rei morre em outubro de 164 a.C., ou seja, no nono mês do ano 148 da era selêucida.

As versões de sua morte são muito estranhas e complexas. Segundo 1Mc 6,1-17, Antíoco IV tenta saquear o templo de Ártemis, em Elimaida, famoso por suas riquezas, e tem que fugir diante da reação da população[15] . Sabendo, ainda na Pérsia, da derrota de seus exércitos e da libertação de Jerusalém por Judas, adoece e morre. Segundo 1Mc 6,12-13, entre outras coisas, diz Antíoco aos seus amigos antes de morrer:

"Agora, porém, assalta-me a lembrança dos males que cometi em

Jerusalém quando me apoderei de todos os objetos de prata e de ouro que

lá se encontravam e mandei exterminar os habitantes de Judá sem

motivo. Reconheço agora que é por causa disso que estes males se

abateram sobre mim. Vede com quanta amargura eu morro em terra

estrangeira".

Segundo 2Mc 9,1-19, Antíoco IV tenta saquear um templo em Persépolis, mas tem que fugir "acossado pelos habitantes do país". Estando perto de Ecbátana[16] , é notificado da derrota de Nicanor na Judéia e cheio de fúria se apressa para se vingar dos judeus. 2Mc 9,4-5 diz:

"Fora de si pela cólera, pensou em fazer pesar sobre os judeus também a

injúria dos que o haviam posto em fuga. Por esse motivo, ordenou ao

cocheiro que completasse o percurso prosseguindo sempre, sem parar,

Page 198: Historia de Israel

enquanto já o acompanhava o julgamento do Céu. De fato, assim havia

ele falado, na sua soberba: 'Farei de Jerusalém um cemitério de judeus,

apenas eu chegue aí!' Foi quando o Senhor, que tudo vê, o Deus de

Israel, feriu-o com uma doença incurável e invisível: apenas terminara

ele a sua frase, acometeu-o uma dor insuportável nas entranhas e

tormentos atrozes no ventre".

Mas, prossegue o texto, Antíoco IV não desiste, acaba caindo da carruagem, desconjuntando os membros, e de seu corpo

"começaram a pulular vermes. E, estando ele ainda vivo, as carnes se lhe

caíam aos pedaços entre espasmos lancinantes" (2Mc 9,9).

E o texto conclui que, diante do sofrimento, Antíoco IV acaba se arrependendo dos males que fizera aos judeus (2Mc 9,11-17). E até promete tornar-se missionário judeu!

Políbio dá também a sua versão da morte de Antíoco IV:

"Na Síria, o rei Antíoco, desejando aumentar suas riquezas, decidiu fazer uma expedição contra o Templo de Ártemis, em Elimaida. Tendo chegado a esta região foi frustrado em sua esperança, porque os bárbaros que habitam neste lugar não consentiram neste delito. Voltando a Tabe da Pérsia, deixou ele a vida, ferido por um demônio, como dizem alguns, porque algumas manifestações do demônio tinham sobrevindo na ocasião do delito cometido contra o templo visado"[17] .

Suspeita-se, diante destas versões, que, na única coisa em que concordam - o fato do rei Antíoco resolver saquear um templo na Elimaida -, possa haver uma duplicata, uma simples repetição da história de seu pai, o rei Antíoco III, que morre ao saquear um templo na Elimaida[18] .

Os esquemas teológicos das versões dos livros dos Macabeus são evidentes: Antíoco IV morre porque é castigado na sua arrogância (especialmente segundo 2 Macabeus).

Page 199: Historia de Israel

Na verdade, não se sabe de que doença morre o rei Antíoco IV Epífanes. Mas, parece certo que seu fim se dá lá pelos lados da Pérsia, onde ele está em campanha.

A fama deste rei é muito ruim. Mas, como observa E. Will, "a documentação de que dispomos sobre o homem e sobre sua obra não nos autoriza nem a apologia nem a condenação. Parece ter havido em Antíoco IV um homem de Estado nada desprezível, mas, como seus contemporâneos, ultrapassado por uma conjuntura por demais complexa"[19] .

Morre Antíoco IV, mas a luta de Judas Macabeu continua contra Antíoco V (164-162 a.C.), seu filho, e o regente Lísias e, em seguida, contra Demétrio I (161-150 a.C.).

Quando parte em campanha para as províncias mais orientais de seu Império, Antíoco IV deixa Lísias encarregado dos negócios do reino em Antioquia. Mas, pouco antes de morrer, ele confia a seu conselheiro Filipe o encargo de governar o reino em nome de seu filho menor de idade Antíoco V. É a ele que Antíoco IV entrega

"o diadema, o manto e o anel do sinete, encarregando-o de tutelar

Antíoco, seu filho e de prepará-lo para o trono" (1Mc 6,15).

Mas, ao mesmo tempo, Lísias

"proclamou rei o jovem Antíoco, a quem havia educado desde

pequenino, e deu-lhe o nome de Eupator" (1Mc 6,17).

Judas aproveita-se destas circunstâncias e assedia a Acra em Jerusalém. Lísias e Antíoco V, que tem apenas 12 anos de idade, vêm então combater Judas. Atacam Betsur e Judas, deixando o cerco da Acra, enfrenta o exército selêucida em Bet-Zacarias. Judas acaba cercado no monte Sião.

Só que com a chegada de Filipe a Antioquia, Lísias tem que voltar às pressas para enfrentá-lo e decide fazer a paz com os judeus.

A carta de Antíoco V a respeito está conservada em 2Mc 11,22-26 nos seguintes termos:

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"O rei Antíoco a seu irmão Lísias, saudações. Tendo-se trasladado nosso pai para junto dos deuses, querendo nós que os súditos de nosso reino estejam livres de qualquer incômodo a fim de poderem dedicar-se ao cuidado dos próprios interesses, ouvimos dizer que os judeus não consentem na adoção dos costumes gregos, querida por nosso pai. Mas antes, preferindo o seu modo de vida particular, desejam que se lhes permita a observância das suas leis. Querendo, pois, que também este povo possa viver sem temor, decidimos que o Templo lhes seja restituído e que eles possam governar-se segundo os costumes de seus antepassados.Por isso, bem farás enviando-lhes embaixadores que lhes dêem as mãos, a fim de que, sabedores de nossa intenção fiquem de ânimo sereno e se entreguem prazerosamente às próprias ocupações".

Filipe não consegue o controle do reino e foge para o Egito, E os judeus obtêm, por decreto real, a liberdade religiosa novamente. O que Antíoco V faz é revogar o decreto de seu pai que proibia as práticas judaicas.

O helenizante sumo sacerdote Menelau é convocado a Antioquia e, por ordem de Lísias, é executado (2Mc 13,3-8). No seu lugar é nomeado o sumo sacerdote Alcimo.

Porém, um filho de Selêuco IV, Demétrio, de vinte e cinco anos de idade, que vive como refém em Roma, consegue fugir, chega à Síria, mata seu primo Antíoco V e Lísias e assume o poder. Demétrio I governará de 161 a 150 a.C[20] .

E então assistimos a uma primeira dissidência entre os revolucionários judeus. Alcimo "confirmado em sua dignidade [por Demétrio], voltara a Jerusalém acompanhado de Báquides, um dos amigos do rei, e fizera propostas de paz, que os assideus se viram pressionados a aceitar, enquanto Judas e seus partidários preferiam continuar na oposição"[21] .

Segundo 1Mc 7,8-9, Alcimo é um "ímpio", ou seja um helenizante:

"O rei escolheu a Báquides, um dos seus amigos, governador das regiões

de Além-do-Rio, homem poderoso no reino e fiel ao soberano, e o enviou

com o ímpio Alcimo, a quem assegurou o sumo sacerdócio, dando-lhe

ordens de exercer a vingança contra os filhos de Israel".

Page 201: Historia de Israel

Báquides é o governador da província da Transeufratênia, que vai do Eufrates ao Egito. Alcimo "é tratado de ímpio porque convivia com os gregos e criava obstáculos às pretensões dos Asmoneus. Mas na sua qualidade de aaronida legitimava sua nomeação e atraía à sua causa os assideus"[22] .

Com efeito, segundo 1Mc 7,14, os assideus raciocinam assim:

"É um sacerdote da linhagem de Aarão que veio com este exército: ele

não procederá injustamente conosco".

Isto indica que enquanto o objetivo da luta dos assideus é apenas conseguir a liberdade religiosa, o dos Macabeus é bem mais amplo.

Os Macabeus continuam a sua luta e só em 160 a.C., após seis anos de guerra, é que os Selêucidas vencem Judas, morto em Beerzet, 20 km ao norte de Jerusalém, em combate contra Báquides (1Mc 9,1-18).

A DINASTIA DOS SELÊUCIDAS

Selêuco I Nicator 312-280 a.C.

Antíoco I Soter 280-261

Antíoco II Théos 261-246

Selêuco II Calínicos 246-226

Selêuco III Ceráunos 226-222

Antíoco III, o Grande 222-187

Selêuco IV Filopator 187-175

Antíoco IV Epífanes 175-164

Antíoco V Eupator 164-162

Demétrio I Soter 162-150

Alexandre Balas 150-145

Demétrio II Nicator 145-139

Antíoco VI Théos 145-142

Trifão 142-139

Antíoco VII Sidetes 139-128

Demétrio II Nicator 128-122

Selêuco V 125

Antíoco VIII Filometor 125-113

Page 202: Historia de Israel

Antíoco IX Filopator 113-95

Antíoco VIII Filometor 111-96

Antíoco X contra 5 filhos de Antíoco VIII

95-93

Antíoco XIII 69-65 a.C.

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[11] . SAULNIER, C., A revolta dos Macabeus, p. 29.

[12] . Cf. DE VAUX, R., Ancient Israel, pp. 510-514; ASHERI, M., O judaísmo vivo. As tradições e as leis dos judeus praticantes, Rio de Janeiro, Imago, 1987, pp. 227-229.

[13] . Cf. SAULNIER, C., Histoire d'Israel III, pp. 136-138.

[14] . Cf. as lutas de Judas em BRIGHT, J., História de Israel, pp. 580-582; ABEL, F.-M., Histoire de la Palestine I, pp. 134-165; SCHÜRER, E., Storia del popolo giudaico al tempo di Gesù Cristo (175 a.C.-135 d.C.) I, Brescia, Paideia, 1985, pp. 222-233.

[15] . "De fato, não se tem notícia de cidade alguma com o nome de Elimaida, forma grega de Elam (Gn 10,22). A Elimaida é a região em torno de Susa, antiga capital da Pérsia (Ne 1,1) e, em sentido restrito, é a região montanhosa a nordeste dessa cidade", explica a BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1Mc 6,1 nota q.

[16] . "Atualmente Hamadã, 700 km a nordeste de Persépolis. Na realidade, Epífanes morreu em Tabe, a meio caminho entre essas duas cidades", diz a BÍBLIA DE JERUSALÉM, nota g a 2Mc 9,3.

[17] . POLÍBIO, História XXXI, 9. Cf. este texto em AA.VV., Israel e Judá. Textos do Antigo Oriente Médio, p. 99; ou em SAULNIER, C., Histoire d'Israel III, p. 380.

[18] . Cf. SAULNIER, C., A revolta dos Macabeus, p. 30; PRÉAUX, C., Le monde hellénistique I, p. 171.

[19] . WILL, E., Histoire politique du monde hellénistique II, p. 307.

[20] . Cf. Idem, ibidem, pp. 365-367.

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[21] . SAULNIER, C., A revolta dos Macabeus, p. 32.

[22] . BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1Mc7,9 nota q.

Os Macabeus II: a Independência

Após a morte de Jônatas, a luta dos Macabeus continua com seu irmão Simão a partir de 143 a.C. Simão, ao dominar a Acra, a poderosa fortaleza selêucida de Jerusalém, consegue, finalmente, a independência da Judéia.

Assassinado, Simão é sucedido por seu filho João Hircano I, que continua o processo de judaização da Palestina. Mas, por adotar medidas militares políticas helenizantes, João Hircano I começa a enfrentar a oposição dos fariseus, grupo que vai se tornando cada vez mais popular.

Aristóbulo I, filho e sucessor de João Hircano, apesar de ter governado apenas um ano, continua o processo de reaproximação com o helenismo. E a luta pelo poder no seio da família dos Macabeus é forte: Aristóbulo encarcera sua mãe e seus irmãos.

Seu irmão Alexandre Janeu casa-se com a rainha viúva, Salomé Alexandra, proclama-se rei, e continua o processo de anexação de territórios na Palestina, levando suas fronteiras a um ponto que o país nunca mais tivera desde que fora destruído por Nabucodonosor em 586 a.C.

Entretanto, Janeu vai enfrentar pesada guerra civil no seu confronto com os fariseus. Agindo com crueldade extrema, ele controla a situação após 6 anos de sangrentos conflitos.

Sua mulher Salomé Alexandra assume o poder depois dele e faz a paz com os fariseus, governando com grande habilidade.

Mas seus dois filhos, Hircano II e Aristóbulo II, após a morte da rainha, entram em violenta disputa pelo poder, que só acaba com a chegada definitiva dos romanos na região. O general Pompeu anexa a

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Judéia à República Romana em 63 a.C.

10.1. Simão Consegue a Independência da JudéiaSimão sucede a seu irmão Jônatas em 143 a.C. e, enfrentando Trifão, agora rei, repele um seu ataque na Judéia. Demétrio II ainda comanda a Cilícia e a Mesopotâmia e Simão faz aliança com ele. Consegue muitos benefícios para o povo judeu, como consta do decreto de Demétrio II citado em 1Mc 13,36-42.

Simão toma Gazara, estratégica cidade helenística. Gazara (= Gezer) é judaizada à força e João Hircano, filho de Simão, torna-se o seu governador militar.

E a independência da Judéia do jugo dos Selêucidas é garantida com a destruição da Acra por Simão em 141 a.C. e a expulsão dos gentios do território. A importante fortaleza é transformada no palácio dos Macabeus[1].

1Mc 13,49-52 descreve a tomada da Acra por Simão:

"Ora, os da guarnição da Cidadela, em Jerusalém, impedidos de sair e de andar pela vizinhança, para comprar ou vender, começaram a passar muita fome, perecendo não poucos dentre eles à míngua. Então clamaram a Simão para que aceitasse a sua mão direita, e ele os atendeu. Expulsou-os, porém dali e purificou a Cidadela, removendo-lhe as abominações. Finalmente nela entraram no vigésimo terceiro dia do segundo mês do ano cento e setenta e um[2], entre aclamações e palmas, ao som de cítaras, címbalos e harpas, e entoando hinos e cânticos, porque um grande inimigo havia sido esmagado e expelido fora de Israel. Simão estabeleceu que se comemorasse cada ano esta data com alegria. Fortificou ainda mais o monte do Templo, na parte contígua à Cidadela, e habitou ali, ele com os seus".

Simão fortalece também as alianças com Esparta e com Roma, restituindo, afinal, à Judéia, sua importância política. Como narra 1Mc 14,24:

"Simão enviou Numênio a Roma com um grande escudo de ouro, de mil minas de peso, para confirmar a aliança com eles"[3].

Simão acaba assassinado, com dois filhos, por um genro seu, Ptolomeu, filho de Abrebo, perto de Jericó, durante um banquete. Este seu genro está em conluio com Antíoco VII Sidetes (irmão de Demétrio II), que entre 139 e 128 a.C. é o rei selêucida. Este Antíoco VII inicialmente reafirma os

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acordos dos reis anteriores, mas em seguida reclama de Simão as localidades por ele conquistadas e o tributo dos territórios anexados por Simão à Judéia (1Mc 15,25-26). Como não chegam a um acordo, Antíoco VII apóia a ação criminosa de Ptolomeu contra Simão.

Entretanto, Simão é, durante seu governo, muito querido pelos judeus que resolvem fazer-lhe um elogio, gravado em placas de bronze e afixado no monte Sião, segundo 1Mc 14,25-26. O decreto é de setembro de 140 a.C.

1Mc 14,27-49 traz a inscrição sobre os feitos de Simão e da família dos Macabeus. Aí vemos que ele é etnarca (líder da etnia judaica), tem o direito de usar a púrpura e a fivela de ouro (v. 44) - o que faz dele um dinasta - é estratego (tem autoridade sobre o exército), é chefe (hegoumênos, expressão grega usada na LXX para traduzir sar, "príncipe", ou rosh, "chefe") e sumo sacerdote hereditário.

"Não se pode dizer que ele tenha um poder legislativo, porque o povo é regido pela Lei; entretanto, ele tem o direito de fazer 'julgamentos' que não podem ser contestados por ninguém, nem mesmo pelos sacerdotes, sob pena de condenação; não se pode mais fazer reuniões sem a sua aprovação"[4].

10.2. João Hircano I e as Divisões Internas dos JudeusQuando Simão é assassinado, um filho seu, chamado João Hircano, consegue escapar e assume o poder, governando de 134 a 104 a.C.

Durante seus primeiros anos de governos João Hircano I enfrenta enormes dificuldades para manter a independência da Palestina. Antíoco VII, por exemplo, consegue cercar Jerusalém em 133 a.C., impor a João Hircano o tributo e obrigá-lo a combater ao seu lado contra os partos. Sua intenção é a de submeter novamente a Judéia ao poder selêucida, inclusive reocupando a Acra, o que não consegue.

Flávio Josefo diz desse momento:

"Antíoco, que conservava ainda o ressentimento pelas vantagens que Simão, pai de HIrcano, tinha obtido sobre ele, atacou a Judéia, no quarto ano de seu reinado, que era o primeiro do principado de Hircano e a centésima sexagésima segunda Olimpíada. Depois de ter devastado os campos e obrigado Hircano a se retirar para Jerusalém, ele o sitiou, dividindo o seu exército em sete corpos, para cercar assim toda a praça"[5].

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Quando o poder selêucida muda de mãos, entretanto, João Hircano I continua as conquistas de seu pai Simão, judaizando importantes localidades palestinas como Mádaba, Samega, Siquém, Adora, Marisa, a Iduméia.

A. Paul lembra que a expansão territorial e os métodos imperialistas dos Macabeus vão se tornando cada vez mais fortes. "A maior parte das guerras terminou com a conversão forçada dos vencidos e muitas vezes com extermínios que lembravam o 'anátema' praticado por Josué. João Hircano destruiu o templo do monte Garizim e a cidade helenizada de Samaria e reduziu seus habitantes a escravos. Os idumeus e os itureus da Galiléia foram obrigados a se circuncidarem (...) Era necessário aniquilar a civilização grega com suas realizações, e não só suas resistências. 'Ou o judaísmo ou a morte': esta frase poderia resumir o programa político dos grandes Asmoneus. Foram destruídas assim muitas cidades de importância econômica e cultural tanto para a Palestina como para os territórios vizinhos. Tal foi, em particular, o destino das grandes e prósperas cidades costeiras e das cidades helenísticas fundadas a leste do Jordão"[6].

Para se libertar da tutela selêucida, João Hircano I apela para os romanos, com quem renova o tratado de amizade, já antes estabelecido por seus antepassados. Os romanos não morrem de amor pelos judeus, mas apóiam qualquer iniciativa que possa enfraquecer os Selêucidas, cujo território ambicionam.

O Senado romano renova então a amizade (filia) e a aliança (symmachía) com os judeus em 126 ou 125 a.C., mas também manda dizer que, no momento, há outros problemas mais urgentes em Roma. Logo que puder, o Senado procurará defender os interesses dos judeus[7].

Entretanto, as crueldades cometidas por João Hircano I contra as cidades conquistadas e as populações forçadamente judaizadas provocam a primeira reação dos fariseus contra os governantes Macabeus.

Flávio Josefo, para explicar a ruptura de João Hircano I com os fariseus, narra um episódio, bastante lendário, por sinal, segundo o qual, durante um banquete, um fariseu teria requerido de João Hircano I que abandonasse o sumo sacerdócio. Pois sua mãe teria sido prisioneira de Antíoco IV Epífanes - tendo se tornado suspeita de ter sido violentada e tornada impura -, o que o incapacitava para o cargo de sumo sacerdote, segundo Lv 21,14.

João Hircano I tenta punir este fariseu com a morte, ação que o partido farisaico não aprova. A partir deste momento João Hircano I alia-se aos saduceus e rompe com os fariseus[8].

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João Hircano I, na verdade, para conseguir as suas conquistas e garantir o seu território, começa a incorporar ao seu exército mercenários gentios. Naturalmente pagos com os tributos recolhidos do povo judeu. O que já desagrada bastante aos aliados dos Macabeus.

P. Sacchi explica: "Os gentios engajados eram impuros que viviam junto ao povo judeu. Para os essênios a contaminação da cidade crescia, para os assideus surgiam problemas sobre a pureza que antes não existiam. A suspeita em relação ao Asmoneu devia crescer"[9].

Originariamente aliados dos Macabeus no combate à helenização, os assideus acabam divididos na época de Jônatas. Deles saem os essênios, que rompem com o governo dos Macabeus, e os fariseus, que ainda o apóiam[10].

É preciso considerar também que, pouco a pouco, o governo macabeu toma rumos semelhantes aos de seus inimigos Selêucidas, afastando-se dos ideais originais da resistência. É isto principalmente que provoca os atritos com os judeus mais rigorosos na observância da Lei.

Observando outro aspecto, A. Paul crê que a política macabéia de destruição do helenismo é, a longo prazo, um suicídio. Esta política "consistia, de um lado, em destruir todos os traços, inclusive os humanos, do helenismo político e cultural das cidades da Palestina justamente quando a numerosa diáspora manifestava sua legalidade e impunha sua verdade, impregnando-se profundamente do modo grego de pensar, de viver e de se exprimir".

Além do que, esta política "significava o aniquilamento das infra-estruturas e das estruturas sociais e econômicas, das quais dependiam a salvação e a prosperidade da Palestina".

E o autor acrescenta: "Poucos decênios depois, quando da queda súbita do Estado asmoneu em 63 a.C., a história mostrou que, já nos tempos dos troféus, o processo de morte estava profundamente consolidado e generalizado".

Para concluir, diz A. Paul: "Da luta pelo restabelecimento da paz civil e, depois, pela independência nacional, passara-se, com efeito, a conquistas cuja finalidade era garantir a segurança necessária às novas fronteiras, muito vulneráveis. Formava-se assim uma engrenagem irresistível, já que a segurança conseguida pelas armas exigia a garantia de uma outra segurança, a qual, por sua vez, devia também ser conseguida pelas armas"[11].

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Também M. Hengel acredita que nesta época só a monarquia de tipo helenístico ou a pólis têm condição de sobreviver, sendo inviável qualquer outro tipo de Estado. Por que? Porque sem um exército moderno, um aparelho administrativo e financeiro eficiente e uma participação competitiva no mercado mundial um Estado não tem espaço neste contexto. Os judeus não conseguem compreender isso e estão destinados à falência, pois tentam transplantar seu antigo ideal teocrático para uma realidade política de um mundo transformado[12].

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[1]. Sobre Simão, cf. ABEL, F.-M., Histoire de la Palestine I, pp. 191-206; SAULNIER, C., Histoire d'Israel III, pp. 146-149; SCHÜRER, E., Storia del popolo giudaico al tempo de Gesù Cristo I, pp. 250-261.

[2]. O vigésimo terceiro dia do segundo mês do ano cento e setenta e um da era selêucida corresponde aos começos de junho de 141 a.C.

[3]. Uma mina ática pesa 436 gramas: o escudo pesaria quase meia tonelada de ouro. Entretanto, na resposta dos romanos à embaixada judaica se diz: "Eles nos trouxeram um escudo de ouro de mil minas" (1Mc 15,18). Deve-se entender que o escudo vale mil minas de prata, o equivalente a aproximadamente 44 kg de ouro, peso aceitável para esse tipo de escudo decorativo.

[4]. SAULNIER, C., Histoire d'Israel III, p. 155.

[5]. JOSEFO, F., Antiquitates Iudaicae XVII, 236. Sobre João Hircano I, cf. SCHÜRER, E., o. c., pp. 261-279.

[6]. PAUL, A., O judaísmo tardio, pp. 191-192. JOSEFO, F., Bellum Iudaicum I, 64-66 descreve o cerco e a queda de Samaria.

[7]. Cf. o texto em JOSEFO, F., Antiquitates Iuadaicae XIII, 259-266.

[8]. Cf. JOSEFO, F., Antiquitates Iudaicae XIII, 288-298. Cf. também SCHÜRER, E., o. c., pp. 275-278. Na p. 277 diz este autor: "Na sua forma anedótica, a história traz, sem dúvida, as marcas da lenda, e provavelmente Josefo a recebeu apenas de uma tradição oral. Não obstante, pode-se considerar como um dado de fato que Hircano verdadeiramente se distanciou dos fariseus e aboliu as suas prescrições".

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[9]. SACCHI, P., Storia del mondo giudaico, Torino, Società Editrice Internazionale, 1976, p. 115.

[10]. Cf., sobre os fariseus, saduceus e essênios, SCHÜRER, E., The history of the Jewish people in the age of Jesus Christ II, Edinburgh, T & T Clark, 1986, pp. 381-414; 555-590.

[11]. PAUL, A., O judaísmo tardio, pp. 193-196.

[12]. Cf. HENGEL, M., Ebrei, Greci e Barbari, pp. 134-135.

10.3. Aristóbulo I e a Reaproximação com o HelenismoSegundo Flávio Josefo, João Hircano tem cinco filhos, quando morre em 104 a.C. Mas ele não deixa o governo para nenhum deles, e sim para sua mulher[13] .

É bem provável, entretanto, que tenhamos aqui uma confusão com a situação análoga ocorrida mais tarde, quando, ao morrer, Alexandre Janeu deixa o trono para sua mulher Salomé Alexandra. É que Janeu é rei e pode fazer isto, mas não João Hircano que não é rei[14] .

De qualquer maneira, Aristóbulo, o filho mais velho de João Hircano I, aprisiona sua mãe e três de seus irmãos, assumindo o poder. Sua mãe morre de fome na prisão. Apenas um de seus irmãos, Antígono, fica livre. Contudo, as intrigas dos rivais de Antígono levam Aristóbulo a mandar matá-lo, temendo, provavelmente, sua concorrência, já que lhe fazem crer aspirar Antígono ao poder supremo[15] .

Ainda segundo Flávio Josefo, Aristóbulo I terá sido o primeiro Macabeu a usar o título de rei:

"Aristóbulo, que era o mais velho dos filhos de Hircano, cognominado 'Filélên', isto é, amigo dos gregos, mudou em reino, depois da morte de seu pai, o principado dos judeus e foi assim o primeiro que se fez coroar rei"[16] .

Entretanto, esta notícia é controvertida. Nas suas moedas aparece apenas a seguinte inscrição: "Judas, sumo sacerdote e a comunidade dos judeus".

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Além do que Estrabão diz que é seu irmão e sucessor Alexandre Janeu o primeiro Macabeu a ostentar o título de rei. Diz Estrabão:

"De qualquer modo, quando agora a Judéia estava sob o domínio de tiranos, Alexandre foi o primeiro a se declarar rei em vez de sacerdote"[17] .

Por outro lado, observe-se que tanto ele como seus irmãos têm nomes gregos - Aristóbulo, Antígono, Alexandre -, embora use para os judeus um nome semita, Judas. Isto significa que seu pai João Hircano já abrira as portas da família para a helenização. Helenização que um dia seus antepassados combateram.

E Flávio Josefo chama Aristóbulo I de "filo-heleno", o que igualmente indica sua aproximação da cultura grega, certamente apoiado pelos seus aliados saduceus. Por sinal, os autores gregos o têm em grande conta, segundo relata o mesmo Josefo:

"Era de natural tão doce e tão modesto, como Estrabão o refere com estas palavras, ante a relação de Timagenes: 'Este príncipe era muito afável (epieikês) e os judeus não lhe são devedores de pouco: porque ele levou tão longe os limites de seu país que ele aumentou com uma parte da Ituréia e uniu este povo a eles pelo laço da circuncisão'"[18] .

Certo é que Aristóbulo I continua as conquistas de sua família: anexa e judaíza a Galiléia, segundo as fontes antigas habitada por tribos ituréias, obrigando seus habitantes a aceitar a circuncisão e a Lei[19] .

Aristóbulo I morre, de dolorosa doença, tendo governado apenas um ano.

10.4. Alexandre Janeu, o Primeiro Rei MacabeuApós a morte de Aristóbulo I, sua viúva Salomé Alexandra, liberta seus irmãos da prisão e se casa com o mais velho, Alexandre Janeu, que se torna, assim, rei e sumo sacerdote.

É o que nos diz Flávio Josefo:

"Depois da morte do rei Aristóbulo, a rainha Salomé, sua esposa, que os gregos chamam de Alexandra, pôs em liberdade os irmãos desse príncipe, que ele mantinha na prisão, como vimos, e fez rei a Janeu, antes chamado de Alexandre, que era o mais velho e o mais moderado de todos"[20].

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Nos primeiros anos de seu governo, Alexandre Janeu retoma, com redobrado vigor, o processo de conquista, anexação e judaização de várias cidades palestinas. Conquista a região costeira da Palestina, desde a fronteira com o Egito, no sul, até o Monte Carmelo, ao norte.

Porém, ao tentar tomar Ptolemaida, entra em cena um rei ptolomaico: Ptolomeu IX Latiro, filho mais velho da rainha Cleópatra III, do Egito, é um pequeno rei em Chipre, para onde fora expulso por sua mãe.

Ptolomeu IX vence Alexandre Janeu, mas este recebe ajuda da rainha Cleópatra III. Ela certamente teme as conquistas do filho e provavelmente é também influenciada por conselheiros judeus, entre os quais se destacam Ananias e Helquias, generais do exército ptolomaico, filhos de Onias IV, da família sacerdotal de Jerusalém.

Cleópatra III acaba tornando-se senhora de toda a Palestina, antigo sonho dos Ptolomeus, mas se retira e deixa o território sob o comando de Alexandre Janeu.

O comentário de Flávio Josefo é o seguinte:

"Quando a rainha Cleópatra viu que seu filho crescia em poder daquele modo e devastava, sem resistência, toda a Judéia, tinha submetido Gaza à sua obediência e estava já quase às portas do Egito e que ele nada mais pretendia do que se apoderar do mesmo, julgou não dever esperar mais para enfrentá-lo. Assim, sem perder tempo, reuniu grandes forças de terra e mar, cujo comando confiou a Helquias e Ananias, judeus de nascimento (...) Alguns dos seus servidores propuseram-lhe apoderar-se de seu país e não permitir que um número tão grande de judeus, homens de bem, estivesse sujeito a um único homem. Mas Ananias aconselhou-lhe o contrário..."[21].

Alexandre Janeu continua, então, suas conquistas, desta vez a leste do Jordão e, em seguida, no sul, apoderando-se inclusive da importante cidade de Gaza em 96 a.C. A descrição que faz Flávio Josefo da conquista de Gaza é exemplar para avaliarmos os métodos de Alexandre Janeu:

"Quando entrou na cidade, Alexandre teve primeiramente uma atitude pacífica. Mas, em seguida, soltou suas tropas sobre os gazenses e deixou seus homens se vingarem deles; os soldados saíram, uns para um lado, outros para o outro, matando os gazenses. Estes (...) defenderam-se dos judeus, usando toda a sorte de armas que lhes caíam nas mãos e mataram tantos quantos foram os que perderam. Alguns deles, vendo-se sozinhos, puseram fogo em suas casas para que não fossem saqueadas

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pelo inimigo. Outros se desembaraçavam, com suas próprias mãos, de seus filhos e de suas mulheres: era o único meio de evitar que se tornassem escravos de seus inimigos. Cerca de quinhentos membros da Assembléia se refugiaram no templo de Apolo, porque o ataque teve lugar justamente quando eles estavam em conselho; mas Alexandre os matou e, depois de ter demolido a cidade sobre seus cadáveres - tendo decorrido um ano de cerco - retornou a Jerusalém"[22].

E é então que Alexandre Janeu começa a enfrentar séria oposição interna, capitaneada pelos fariseus, seus mais ferrenhos adversários.

Os fariseus vêm aumentando constantemente sua influência junto ao povo, ao mesmo tempo que os Macabeus se distanciam progressivamente de suas aspirações, colocando-se os dois poderes em nítido contraste. E como podem os fariseus aceitar como sumo sacerdote um guerreiro do tipo de Alexandre Janeu que não cumpre as rigorosas prescrições que o cargo exige?

Pois terá sido após as conquistas acima mencionadas, aí por volta do ano 90 a.C., que, durante a festa dos Tabernáculos, o povo atinge Alexandre Janeu com limões no momento em que ele está diante do altar para oferecer o sacrifício[23].

A reação de Alexandre Janeu é violenta: manda que seus mercenários ataquem a multidão e cerca de seis mil pessoas são massacradas. Em conseqüência desse episódio, ele manda construir uma paliçada de madeira em torno do Templo e do altar, para se proteger da população. Só os sacerdotes, que são saduceus, podem atravessar esta paliçada. A ruptura com os fariseus é total[24].

Alexandre Janeu acaba sofrendo mais uma derrota militar, desta vez quando se confronta com os nabateus pela posse da região do Golã, a leste do lago de Genezaré.

Ao fugir para Jerusalém encontra uma violenta rebelião armada contra seu governo. Apoiado por seus mercenários estrangeiros, Alexandre Janeu enfrenta uma guerra civil que dura seis anos e na qual terão morrido pelo menos cinqüenta mil judeus[25].

Os fariseus pedem, ao mesmo tempo, a ajuda de Demétrio III, rei de parte da Síria, que enfrenta e vence Alexandre Janeu totalmente, perto de Siquém. Isto terá sido por volta de 89 a.C.

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Entretanto, Demétrio III abandona a Palestina e volta para a Síria. Flávio Josefo diz que a razão é a reviravolta dos sentimentos judaicos ao verem seu território ocupado pelos estrangeiros: cerca de seis mil judeus teriam abandonado Demétrio III e passado para o lado de Alexandre Janeu[26].

Mas é mais provável que Demétrio III tenha se retirado por causa dos conflitos internos dos Selêucidas, porque em seguida ele é vencido por seu irmão que tem o apoio dos partos.

Alexandre Janeu consegue então controlar a revolta interna e, segundo Flávio Josefo, ao retornar a Jerusalém crucifica 800 de seus adversários enquanto participa de um alegre banquete, após fazê-los assistir ao massacre de suas esposas e filhos. Este gesto de terror teria desencorajado os seus adversários, de modo que oito mil deles se retiram do país e não voltam enquanto ele permanece no governo[27].

Estes acontecimentos, por outro lado, estão relacionados à crise vivida por Roma nesta época, que, temporariamente, recua no controle de

seus interesses na região.

A guerra conhecida como "Guerra dos aliados" (Bellum sociale) - na verdade, violentas guerras civis entre o proletariado e a aristocracia romana e também entre os aliados italianos e os cidadãos romanos - faz com que Roma perca por breve período o controle do Oriente. Somado a isso acontece o enfraquecimento definitivo do poder selêucida, que já não ameaça Roma.

Aproveitando-se do conflito interno em Roma, o rei iraniano Mitridates VI, do Ponto, alia-se aos partos, armênios, egípcios e sírios para cortar a influência romana na região. Esta "ausência" de Roma, de curta duração, é que permite igualmente a Alexandre Janeu o seu expansionismo judaizante, segundo muitos autores[28].

A. Paul, por exemplo, comenta: "É pois, sob o impulso de 'reorientalização' dos territórios e Estados do Oriente Médio que acompanhava o declínio dos Selêucidas gregos, que se deve situar o combate impiedoso de Alexandre Janeu contra as cidades helenísticas e sua decisão de impor, pela força ou pela morte, o elemento judaico em toda a Palestina"[29].

Após a pacificação interna, Alexandre Janeu dedica-se novamente às conquistas territoriais, expandindo o processo de judaização. Consegue grandes vitórias, apesar de um confronto desastroso com o rei nabateu Aretas tê-lo obrigado a fazer algumas concessões a este povo[30].

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Alexandre consegue, durante seus 37 anos de reinado, levar o território judaico à sua extensão máxima desde que o país fora devastado pelos babilônios cerca de 500 anos antes.

E. Schürer sintetiza assim as conquistas de Alexandre Janeu: "No sul os idumeus foram subjugados e judaizados; no norte o domínio de Alexandre se estendia até a Selêucia sobre o lago Merom. A costa, onde Jope fora outrora a primeira conquista dos Macabeus, estava agora quase inteiramente sob controle judaico. Com exceção de Ascalon, que conseguiu conservar a independência, todas as cidades costeiras da fronteira egípcia ao monte Carmelo foram conquistadas por Alexandre. Além disso, todo o país a leste do Jordão, do lago Merom ao mar Morto, ficou sob seu domínio, inclusive um número de importantes cidades que até então tinham sido centros de cultura grega como Hippos, Gadara, Pela, Díon e outras"[31].

Alexandre morre, em 76 a.C., quando combate os nabateus na fronteira gerasena, enquanto sitia a fortaleza de Ragaba. Mas, segundo F. Josefo, Alexandre morre de doença e não em combate, provavelmente por consumo excessivo de bebidas alcoólicas[32].

10.5. Salomé Alexandra e o Poder dos FariseusSegundo Flávio Josefo, ao morrer, Alexandre Janeu deixa o trono para sua esposa Salomé Alexandra e faz-lhe a seguinte recomendação:

"Se quiserdes seguir o meu conselho podereis conservar o reino e também os nossos filhos. Ocultai minha morte aos meus soldados até que esta praça [Ragaba] tenha sido tomada. Depois que voltardes vitoriosa a Jerusalém, procurai conquistar o afeto dos fariseus, dando-lhes alguma autoridade, a fim de que a honra que lhes concedeis os leve a louvar publicamente, perante o povo, a vossa magnanimidade. Eles gozam de tanto poder sobre seu espírito, que fazem amar ou odiar o que eles querem (...) Dai-lhes vossa palavra, em seguida, de que nada fareis no governo do reino, senão por seu conselho"[33].

Esta notícia pode ser verdadeira ou não. Talvez Josefo esteja apenas relatando, baseado em alguma tradição, inventadas causas para um efeito real: Salomé Alexandra governa durante nove anos apoiada pelos fariseus, que estão rompidos com os Macabeus desde João Hircano I[34]. De fato, segundo o mesmo Josefo, o poder é partilhado entre a resoluta rainha e os fariseus[35].

Através destes relatos de Flávio Josefo podemos concluir que, na verdade, os fariseus devem ter aumentado - ou iniciado? - seu poder no aristocrático

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senado criado muito antes pelos Ptolomeus para mais facilmente controlar o país. É através da gerousia, o futuro Sinédrio, que os fariseus começam de fato a legislar, oficializando o seu já imenso poder sobre o povo judeu.

E. Schürer comenta a propósito: os fariseus "podiam exercer tal autoridade somente se fossem um fator determinante no órgão administrativo supremo, a gerousia. Esta portanto, deve ter sofrido uma importante transformação. Enquanto era constituída, até então por representantes da nobreza e dos sacerdotes, agora deve ter admitido também mestres fariseus"[36].

Estas medidas desmobilizam os intermináveis conflitos internos. Conta muito também o fato de ser nomeado para o sumo sacerdócio o filho mais velho de Alexandre Janeu, Hircano, segundo Josefo, homem sem ambições, pouco apto para o governo e que gosta de viver na ociosidade. Isto deixa amplo espaço para a atuação dos fariseus[37].

Por outro lado, Salomé Alexandra não é nada ingênua nesta atribuição de poder aos fariseus. Além de reforçar a estrutura de seu exército com novos mercenários e, de fato, comandá-lo, ela entrega a defesa das fronteiras do país nas mãos de seu outro filho, Aristóbulo, mais jovem que Hircano, ambicioso, ousado, empreendedor. E este comanda várias fortalezas, assessorado por oficiais saduceus[38].

Obviamente os fariseus fazem várias tentativas para punir os saduceus, que apoiavam Alexandre Janeu e eram também responsáveis pela morte de tantos partidários seus; ao mesmo tempo que os saduceus, liderados por Aristóbulo fazem exatamente o jogo contrário. Mas Salomé Alexandra controla a situação, que só irá explodir após sua morte aos 73 anos de idade.

Talvez seja este o maior defeito de seu governo: a curto prazo, os conflitos são controlados, gerando próspero e pacífico período; mas, a longo prazo, a "bomba" está sendo armada para detonar nas mãos de seus filhos.

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[13]. Cf. JOSEFO, F., Antiquitates Iudaicae XIII, 299-302.

[14]. Cf. SACCHI, P., Storia del mondo giudaico, p. 118.

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[15]. Diz JOSEFO, F., Antiquitates Iudaicae XIII, 303: "A esse crime [de matar a mãe] acrescentou o de mandar matar seu irmão Antígono, que ele mostrara amar tanto. Calúnias foram a causa disso".

[16]. Idem, ibidem XIII, 301.

[17]. ESTRABÃO, Geographica XVI, 762. Cf. o texto de Estrabão em STERN, M., Greek and Latin Authors on Jews and Judaism I, pp. 301-302.

[18]. JOSEFO, F., Antiquitates Iudaicae XIII, 319. Timagenes é um historiador alexandrino do século I a.C. Cf. STERN, M., o. c., pp. 222-226.

[19]. Sobre esta questão, cf. SCHÜRER, E., Storia del popolo giudaico al tempo de Gesù Cristo I, p. 282; STERN, M., o. c., pp. 225-226. É possível que os itureus habitem apenas as partes norte e nordeste da Galiléia e também que a anexação deste território (Galiléia) tenha começado antes do governo de Aristóbulo I. A questão é controvertida.

[20]. JOSEFO, F., Antiquitates Iudaicae XIII, 320.

[21]. Idem, ibidem XIII, 348ss.

[22]. Idem, ibidem XIII, 362-364.

[23]. Durante a festa dos Tabernáculos cada participante leva uma folha de palmeira e um limão. Este é o costume da época.

[24]. Cf. JOSEFO, F., Antiquitates Iudaicae XIII, 372-373.

[25]. Cf. Idem, ibidem XIII, 375.

[26]. Cf. Idem, ibidem XIII, 379.

[27]. Cf. Idem, ibidem XIII, 380.

[28]. Para a história da guerra dos aliados, cf. ROSTOVTZEFF, M., História de Roma, Rio de Janeiro, Zahar, 19774, pp. 107-118; NICOLET, C., Roma y la conquista del mundo mediterráneo 264-27 a. de J. C. I, Barcelona, Editorial Labor, 1982, pp. 207-216; BLOCH, L., Lutas sociais na Roma antiga, Publicações Europa-América 19742, pp. 137-212; ALFÖLDY, G., A história social de Roma, Lisboa, Editorial Presença, 1989, pp. 81-109.

[29]. PAUL, A., O judaísmo tardio, pp. 198-199.

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[30]. Cf. JOSEFO, F., Antiquitates Iudaicae XIII, 392. Josefo não especifica que concessões são essas. Apenas diz: "Ele [Aretas] entrou com soldados na Judéia, venceu o rei Alexandre, perto de Adida, e voltou depois de ter conversado com ele".

[31]. SCHÜRER, E., Storia del popolo giudaico al tempo di Gesù Cristo I, pp. 292-293. A extensão do território judaico à época da morte de Alexandre Janeu nos é conhecida através do relato de JOSEFO, F., Antiquitates Iudaicae XIII, 395-397. A história das cidades da região pode ser lida em PAUL, A., O judaísmo tardio, pp. 206-218.

[32]. Cf. JOSEFO, F., Antiquitates Iudaicae XIII, 398.

[33]. JOSEFO, F., Antiquitates Iudaicae XIII, 401-404.

[34]. Sobre a data da morte de Salomé Alexandra existe alguma divergência. Ou ela morre em 67 a.C., como afirmo acima, ou em 69 a.C., como sustentam alguns autores. Sobre a questão, cf. SCHÜRER, E., Storia del popolo giudaico al tempo di Gesù Cristo I, pp. 262-263, nota 1.

[35]. "Assim ela tinha só o nome de rainha e os fariseus gozavam de todo o poder que lhes dava a realeza. Faziam voltar os exilados, libertavam os prisioneiros e em nada se diferenciavam dos soberanos", avalia JOSEFO, F., Antiquitates Iudaicae XIII, 408-409.

[36]. SCHÜRER, E., Storia del popolo giudaico al tempo di Gesù Cristo I, p. 296.

[37]. Cf. JOSEFO, F., Antiquitates Iudaicae XIII, 405ss.

[38]. Comenta SACCHI, P., Storia del mondo giudaico, p. 123: "Enviando os principais líderes saduceus para as fortalezas, Alexandra conseguia subtraí-los às vinganças farisaicas e dava o comando do exército a homens que, neste tempo, tinham experiência".

10.6. Aristóbulo II e a Intervenção de PompeuMal morre a mãe Salomé Alexandra, o conflito explode entre os dois irmãos, Hircano II e Aristóbulo II. Sendo o mais velho e, desde algum tempo, sumo sacerdote, à morte de Salomé Alexandra, Hircano II assume o posto de rei. Mas Aristóbulo II não concorda, acontece a guerra entre os

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dois irmãos e, próximo a Jericó, Aristóbulo vence Hircano. Este ainda se refugia em Jerusalém, mas é obrigado a render-se ao irmão que possui forças superiores.

Um acordo é feito entre eles: Hircano volta à vida privada, enquanto Aristóbulo II torna-se rei e sumo sacerdote dos judeus.

Eis a narrativa de Flávio Josefo:

"Os dois irmãos travaram batalha para decidir, pelas armas, aquela grave divergência. A maior parte das tropas de Hircano deixou-o para passar para o lado de Aristóbulo; ele fugiu com o resto para a fortaleza Antônia, onde a mulher e os filhos de Aristóbulo se encontravam e assim o salvaram de uma ruína completa. Tendo nas mãos reféns tão preciosos, ele negociou com seu irmão sem esperar chegar ao último extremo (...) Esse acordo se fez no Templo em presença de todo o povo. Os dois irmãos abraçaram-se com demonstrações de afeto"[39].

Quando tudo parece resolvido, entra um complicador na história. Seu nome: Antípater. Sua nacionalidade: idumeu. É o pai do futuro e

famoso Herodes Magno, que se tornará rei dos judeus de 37 a 4 a.C.

Há grande controvérsia quanto à identidade de Antípater. Flávio Josefo, citando Nicolau de Damasco, diz que Antípater seria um dos judeus descendentes dos exilados babilônicos. Mas Josefo mesmo considera falsa esta informação.

É a seguinte a informação de Flávio Josefo:

"Nicolau de Damasco fá-lo descender de uma das principais famílias de judeus que vieram da Babilônia para a Judéia, mas ele o diz em favor de Herodes, seu filho, que a fortuna elevou depois ao trono de nossos reis, como veremos a seu tempo"[40].

Nicolau de Damasco é um historiador nascido, por volta de 64 a.C., em Damasco, de uma família importante, pois sabe-se que seu pai exerce altas funções políticas na cidade. Nicolau torna-se, em 14 a.C., amigo e conselheiro de Herodes Magno. Além de escritor prolífico, Nicolau é também retor e diplomata, representando Herodes em negociações decisivas. A partir desta sua ligação com Herodes Magno, um idumeu que se torna rei dos judeus, compreende-se sua colocação a respeito de Antípater[41] .

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Flávio Josefo acredita que Antípater seja mesmo um idumeu, de origem nobre:

"Ele era idumeu e o mais poderoso de sua nação, quer pela sua descendência, quer pelas suas riquezas e por seu próprio mérito"[42] .

Há outras notícias sobre este personagem. Segundo Eusébio de Cesaréia, citando Júlio Africano, Antípater é da cidade de Ascalon, mas acaba sendo criado entre os idumeus, o que confirma a opinião de Josefo a respeito de sua nacionalidade, embora divirja quanto a outros dados.

Diz Eusébio:

"Salteadores idumeus chegaram de surpresa a Ascalon, cidade da Palestina, e levaram da capela de Apolo, construída perto da muralha, o pequeno Antípater, filho de um hieródulo, Herodes, com o resto dos despojos, e o mantiveram preso. Como o sacerdote não podia pagar o resgate pelo filho, Antípater foi educado segundo os costumes idumeus e, mais tarde, Hircano, sumo sacerdote da Judéia, interessou-se por ele"[43].

Ainda segundo Flávio Josefo, Antípater é, na época do conflito entre Hircano e Aristóbulo, o estratego (= governador militar) da Iduméia, como o fora seu pai, também de nome Antípater, este nomeado para o posto por Alexandre Janeu[44].

E isto explicaria a sua interferência nos negócios judaicos: para a família de Antípater, que vem construindo seu poder através de alianças e amizades com árabes, ascalonitas e gazenses, o ambicioso Aristóbulo II representa real perigo, enquanto o fraco Hircano II poderá ser mais facilmente manobrado. É então que Antípater se posiciona politicamente do lado de Hircano II e começa a manobrar para que este reconquiste o poder. Segundo Flávio Josefo, Antípater procura influenciar os judeus mais ilustres, lembrando-lhes que Aristóbulo é um usurpador do trono que pertence a Hircano, por ser o mais velho[45].

Além destes "judeus ilustres", Antípater procura convencer o próprio Hircano II de que deve lutar pelo poder e consegue, através de presentes, o apoio do rei nabateu Aretas para o projeto.

Hircano II sai de Jerusalém, junta-se a Aretas em Petra, e negocia com ele a retomada do poder: Aretas baterá Aristóbulo II e, em troca, Hircano lhe devolverá as 12 cidades da Transjordânia que Alexandre Janeu lhe tomara. E é de fato o que acontece. Aretas vence Aristóbulo, que se refugia no

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Templo com poucos seguidores, onde fica assediado por Hircano e Aretas. Agora a maior parte do exército que antes passara de Hircano a Aristóbulo na primeira batalha, faz o caminho inverso: passa de Aristóbulo a Hircano.

Estes acontecimentos nos levam a pensar que nestes confrontos há pelo menos dois fatores importantes. Em primeiro lugar, o exército macabeu é baseado em tropas mercenárias e não em judeus partidários, quer seja dos saduceus, quer seja dos fariseus. Estão facilmente passando para o lado do vencedor, pois este pode pagar mais. Em segundo lugar, parece que o conflito não se explica mais apenas pela luta entre fariseus e saduceus. Há outros judeus poderosos e ricos, associados a Antípater que entram no jogo político.

Esta é a opinião de P. Sacchi, quando diz: "Antípater (...) não se dirige aos fariseus para reempossar o sacerdote legítimo, mas se dirige a homens 'poderosos em Israel' (...) Poder-se-ia dizer que ao lado de uma nobreza essencialmente guerreira, ligada por tradição ao rei e à posse da terra, estava se formando uma nova classe de ricos, distanciados tanto dos nobres saduceus como da burguesia farisaica"[46].

É o antigo e irreversível mecanismo de helenização que continua em movimento. E agora com mais um detalhe: os governantes macabeus estão jogando também segundo as mesmas regras. Cada vez mais a aristocracia se emancipa da hierocracia e se constitui em poderosa força econômica e política. Porém, será sob o governo de Herodes Magno (37-4 a.C.), filho de Antípater, que se criará um poder totalmente independente das tradições judaicas, baseado nesta aristocracia economicamente muito bem situada e etnicamente indiferente[47].

Como se não bastassem as complicações locais, Roma reaparece no cenário político da Palestina. E, desta vez, vem para ficar.

Uma primeira constatação a ser feita: a decadência das monarquias helenísticas, criadas após a morte de Alexandre Magno pelos Diádocos, especialmente a dos Ptolomeus e a dos Selêucidas, leva à ascensão de novas potências regionais, principalmente no antigo reino dos Selêucidas, que é multinacional, pois agrupa etnias e Estados variados que vão do sul da Palestina às fronteiras da Índia. Sua fragmentação deixa um vazio político enorme, que será preenchido, no século I a.C., por outros poderes.

Um dos povos a participar desse jogo: os árabes nabateus, povo nômade do sul do Mar Morto - capital Petra - que se expande em direção norte, na Transjordânia, chegando a tomar Damasco dos Selêucidas em 87 a.C. Acabamos de ver sua interferência nos negócios judaicos[48].

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Os partos, povo de origem incerta, que ocupam um território no interior do reino selêucida durante o século III a.C., acabam conquistando a Mesopotâmia e tornando-se a mais significativa potência além do Eufrates[49].

Neste mesmo século I a.C. acontece a ascensão da Armênia, comandada por Tigranes, que reina também sobre a Síria a partir de 83 a.C.

Finalmente, o mais empreendedor dos novos reinos: o Ponto, governado por Mitridates VI Eupator, que acaba dominando a Paflagônia, o Bósforo Cimeriano, a Cólquida, a Armênia Menor, além de se aliar aos piratas da Cilícia, criando sérios embaraços para os interesses romanos na região[50].

Por outro lado, o enfraquecimento dos grandes reinos helenísticos se faz acompanhar - e um fato está ligado ao outro - do fortalecimento de Roma, que se torna senhora da Sicília em 241 a.C., da Sardenha e Córsega em 231 a.C., de parte da Espanha em 197 a.C., de Cartago em 146 a.C., da Macedônia e da Grécia também em 146 a.C. e de Pérgamo, na Ásia - doado por seu rei Átalo, em testamento, ao Senado romano, em 133 a.C., criando Roma a província da Ásia em 129 a.C.

Acontece, porém, que toda esta expansão de Roma provoca profundas transformações em sua estrutura social. Há um enfraquecimento do Senado e Roma vive permanentemente em conflito desde as tentativas de reforma dos Gracos (134 a.C.) até o estabelecimento do Império (30 a.C.).

As ameaças orientais à hegemonia romana crescem em conseqüência do esfacelamento dos Selêucidas e de sua "ausência" da região em função dos conflitos internos. A pirataria no Mediterrâneo oriental, baseada na Cilícia torna-se fortíssima e se alia a Mitridates VI que, em 88 a.C., massacra cerca de 80 mil italianos na província romana da Ásia, onde é acolhido como libertador pelas cidades da região. É que os impostos da região são cobrados pelos publicanos, da ordem dos cavaleiros, e suas arbitrariedades são tão grandes que as populações locais sentem-se escravizadas.

Ainda em 88 a.C. Mitridates VI toma a Grécia. Sula, que vem combatê-lo, retoma Atenas em 86 a.C. e negocia uma paz em 85 a.C. que nada resolve. Por volta de 80 a.C. Roma cria a província da Cilícia, na verdade uma base de operações militares na Panfília e na Lícia, mas não alcança qualquer resultado na luta contra os piratas.

A situação se complica ainda mais quando Nicomedes, rei da Bitínia, ao morrer, deixa seu reino para Roma e Mitridates VI o invade. Lúculo, que comanda as forças romanas na Cilícia contra-ataca, vence e expulsa

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Mitridates VI, que se refugia na Armênia junto a seu genro Tigranes. Este por sua vez é vencido por Lúculo e obrigado a deixar a Síria, que controla. Mas Mitridates VI retorna ao Ponto, porque, graças a intrigas de seus adversários em Roma, Lúculo cai em desgraça e vê seus poderes lhe serem retirados um a um pelo Senado.

É então que Pompeu entra em cena. Gnaeus Pompeius nasce em 106 a.C. de uma família rica. Combate Mário, ajuda Sula, vence Sertório na Espanha e elimina os últimos escravos do grupo de Espártaco. É

eleito cônsul no ano 70 a.C., ao mesmo tempo que Crasso.

Nos anos 69 e 68 a.C. os piratas atacam com força, chegando até mesmo ao porto de Óstia, na foz do Tibre, a cerca de 20 km de Roma. É então que o Senado dá um comando extraordinário a Pompeu, o imperium, para combatê-los. É janeiro de 67 a.C., mesmo ano da morte de Salomé Alexandra e do começo do conflito entre Hircano II e Aristóbulo II em Jerusalém.

O poder de Pompeu é extraordinário. Ele tem o imperium sobre o mar e o litoral, até 75 km para o interior, com autoridade acima dos governadores locais; ele tem direito de recrutar seus legados - o que é prerrogativa do Senado -, tem a ordem de equipar 500 navios e de requisitar suprimentos onde e quando necessitar[51].

O que faz Pompeu? Ataca com perícia e rapidez os piratas e os vence em 67 a.C., fazendo crescer notavelmente sua popularidade em Roma. Conquista o Ponto no verão de 66 a.C. Neste e no ano seguinte submete a Armênia: Tigranes continua no poder, só que agora aliado a Roma e despojado de todas as suas conquistas na Síria, na Fenícia e na Cilícia. Em seguida, Pompeu organiza a Ásia Menor, onde todos agora são aliados de Roma.

Em 64 a.C. Pompeu ocupa o que resta do reino selêucida e cria a província da Síria. As razões para esta criação parecem vir de dois lados: a segurança da região, ameaçada pelos partos de um lado e pela pirataria de outro, parece ser uma das razões. Mas a outra é econômica: Pompeu restabelece no Oriente - e expande extraordinariamente - os interesses dos publicanos que cobram o tributo dos povos dominados. Pode-se perceber que a aristocracia romana, que dá poderes tão extraordinários a Pompeu, e que é a maior beneficiária da tributação imposta aos conquistados, não é tão alheia assim à criação de novas províncias[52].

E, finalmente, Pompeu interfere na Judéia.

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Hircano II e Aristóbulo II, em luta pelo poder, levam o seu caso ao poderoso romano. Pompeu ordena que se levante o cerco a Jerusalém, mas apóia Hircano II. Aristóbulo II refugia-se no Templo com seus adeptos, entre eles muitos sacerdotes. Assediado, o Templo é tomado por Pompeu e cerca de 1.200 judeus são mortos pelos romanos. Aristóbulo e seu filho Antígono são levados presos para Roma.

Por que controlar os judeus? Amigos dos judeus desde a época do conflito dos Macabeus com os Selêucidas no século II a.C., agora, com a criação da província da Síria, o expansionismo macabaico torna-se um risco para os romanos. E na Transjordânia estão os perigosos nabateus. É provável que Pompeu apóie Hircano II exatamente por isso: é o mais fraco e o menos ambicioso dos dois irmãos Macabeus.

Hircano II é reconduzido ao sumo sacerdócio. E a Judéia fica sob a jurisdição do legado romano na Síria, Emílio Escauro. Perde os territórios não-judeus, conservando apenas a Judéia, a Galiléia, a Peréia (território "além do Jordão", em grego, perán tou Iordánou), o sul da Samaria e o norte da Iduméia. O idumeu Antípater torna-se uma espécie de ministro de Hircano II e controla, de fato, os negócios judaicos, trabalhando para os romanos. A Judéia paga os tributos a Roma, recolhidos por uma sociedade de publicanos sediada em Sídon.

No outono de 63 a.C., quando toma o Templo, Pompeu entra com seu estado maior no Santo dos Santos, o mais sagrado espaço dos judeus, acessível apenas ao sumo sacerdote. Este gesto marca definitivamente o domínio de Roma sobre a terra de Israel e o povo de Iahweh. Os Salmos de Salomão, escrito judaico de tendência farisaica situado entre 63 e 40 a.C., assim avaliam o gesto de Pompeu:

"Cheio de orgulho, o pecador destruiu com seu aríete as sólidas muralhas,

e Tu não o impedistes.

Povos estrangeiros subiram ao teu altar,

pisotearam-no orgulhosamente com suas sandálias.

Porque os filhos de Jerusalém mancharam o culto do Senhor

profanaram com suas impurezas as oferendas à divindade.

Por isso disse Deus: afastai-as de mim;

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nelas não me comprazo.

A beleza de sua glória nada significou diante de Deus,

Ele as desprezou totalmente.

Seus filhos e filhas sofrem rigorosa escravidão,

seu pescoço está marcado, marcado entre os gentios.

Deus os tratou de acordo com seus pecados,

por isso os entregou nas mãos dos vencedores"[53].

Leituras Recomendadas

GRABBE, L. L., Judaism from Cyrus to Hadrian. Volume I: The Persian and Greek Periods, Minneapolis, Augsburg Fortress, 1992.

JOSEFO, F., História dos Hebreus. Obra Completa, Rio de Janeiro, Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 1992.

KIPPENBERG, H. G., Religião e formação de classes na antiga Judéia, São Paulo, Paulus, 1988.

SACCHI, P., Storia del mondo giudaico, Torino, Società Editrice Internazionale, 1976.

SAULNIER, C., Histoire d'Israel III. De la conquête d'Alexandre à la destruction du temple (331 a.C.-135 a.D.), Paris, Du Cerf, 1985.

SCHÜRER, E., Storia del popolo giudaico al tempo di Gesù Cristo (175 a.C.-135 d.C.) I, Brescia, Paideia, 1985.

SCHÜRER, E., The History of the Jewish , Edinburgh, T & T Clark, 1986.

STERN, M., Greek and Latin Authors on Jews and Judaism I, Jerusalem, The Israel Academy of Sciences and Humanities, 1976.

WILL, E., Histoire politique du monde hellénistique (323-30 av. J.-C.) I-II, Nancy, Presses Universitaires de Nancy, 1979-19822.

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Page 225: Historia de Israel

[39]. JOSEFO, F., Bellum Iudaicum I, 120-122; cf., também, Idem, Antiquitates Iudaicae XIV, 1-7.

[40]. JOSEFO, F., Antiquitates Iudaicae XIV, 9.

[41]. Cf. STERN, M., Greek and Latin Authors on Jews and Judaism I, pp. 227-260; SCHÜRER, E., Storia del popolo giudaico al tempo di Gesù Cristo I, pp. 56-62.

[42]. JOSEFO, F., Bellum Iudaicum I, 123.

[43]. EUSÉBIO, Historia Ecclesiastica I, VII, 11. Eusébio vive entre 263 e 339 d.C. e é bispo de Cesaréia, na Palestina. Escreve uma importante "História Eclesiástica", em 10 livros. Sobre a origem de Antípater, cf. também SCHÜRER, E., Storia del popolo giudaico al tempo di Gesù Cristo I, pp. 300-301, nota 3.

[44]. Cf. JOSEFO, F., Antiquitates Iudaicae XIV, 10.

[45]. Cf. Idem, ibidem XIV, 11.

[46]. SACCHI, P., Storia del mondo giudaico, p. 125.

[47]. Cf. KIPPENBERG, H. G., Religião e formação de classes na antiga Judéia, pp. 109-116, que faz excelente análise deste processo na época de Herodes Magno.

[48]. Cf. WILL, E., Histoire politique du monde hellénistique II, pp. 450-452.

[49]. Sobre a incerta origem dos partos, cf. Idem, Histoire politique du monde hellénistique I, pp. 301-308.

[50]. Mitridates VI nasce de uma família helenizada e governa o Ponto de 112 a 63 a.C. O reino do Ponto fica no noroeste da Ásia Menor, junto ao mar Negro, do qual deriva seu nome: a região está en pôntoi, "junto ao mar". Cf. HARVEY, P., Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina, verbetes Mitridates e Pontos.

[51]. Para ver a estrutura romana de poder cf. SAULNIER, C., Histoire d'Israel III, pp. 481-484.

[52]. Cf. WILL, E., Histoire politique du monde hellénistique II, pp. 509-512; KIPPENBERG, H. G., Religião e formação de classes na antiga Judéia, pp. 103-105.

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[53]. SALMOS DE SALOMÃO 2,1-7. Cf. o texto em DIEZ MACHO, A., Apócrifos del Antiguo Testamento III, Cristiandad, Madrid 1982, p. 24.

11. O Domínio Romano

11.1. A “Pax Romana” chega a Jerusalém

11.1.1. Da Intervenção de Pompeu a Herodes Magno

Nos anos seguintes à interferência de Pompeu (63 a.C.) há paz na Palestina. Porém, em Roma as coisas se complicam. De 69 a 62 a.C. Roma é governada pelo triunvirato Crasso, Pompeu e César. Depois, enquanto César luta nas Gálias, governam os cônsules Crasso e Pompeu (55-54 a.C.), mas Crasso é derrotado em 53 a.C. pelos partos, ficando somente Pompeu como cônsul (51-49 a.C.). Entretanto, chega César, toma a Itália e a Espanha, confronta-se com Pompeu, que é finalmente vencido em Farsália, na Grécia, no ano 48 a.C. No Egito, um pouco mais tarde, Pompeu é assassinado.

César nomeia Cleópatra VII, a famosa herdeira dos Ptolomeus, rainha do Egito e, nesta luta pelo controle do Egito, recebe apoio de Hircano II que lhe envia tropas comandadas por Antípater. São estas tropas que conquistam Pelúsio, no delta do Nilo, para César.

Quando, em 47 a.C., César chega à Síria, como prêmio, dá a Hircano II o título de etnarca (governador de um grupo racial com o seu território) da Judéia, confirmando-o também no cargo de sumo sacerdote. Antípater recebe a cidadania romana e é nomeado prefeito ou procônsul da Judéia, enquanto seus dois filhos Fasael e Herodes são nomeados respectivamente estrategos de Jerusalém e da Galiléia.

César é assassinado em meados de março de 44 a.C., e Roma volta a ser governada por triúnviros: Antônio, Otaviano e Lépido.

Como era Roma nesta época? Veja aqui!

Entretanto, as intrigas palestinenses continuam: Antípater é envenenado em 43 a.C. pelo copeiro de Hircano II. Em 41 a.C. Antônio nomeia Herodes e

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Fasael etnarcas, enquanto Hircano II permanece apenas como sumo sacerdote.

Devido à fraqueza do controle romano na província da Síria, esta é invadida, em 40 a.C., pelos partos, descendentes do antigo império persa. Os partos colocam Antígono, filho de Aristóbulo II, como sumo sacerdote e rei na Judéia (40-37 a.C.).

Antígono corta as orelhas de Hircano II, seu tio, incapacitando-o, assim, para o cargo de sumo sacerdote (cf. Lv 21,17-23). Fasael se suicida. Herodes foge para Roma e no final do ano 40 a.C. e nomeado, pelo Senado romano, rei da Judéia, com uma única condição: terá que conquistar seu reino.

Roma e suas Sete Colinas

Em 37 a.C. Herodes torna-se o senhor da Palestina. Casa-se com Mariana I, parente de Aristóbulo II e Hircano II, entrando definitivamente para a família asmonéia.

Herodes Magno governa o povo judeu durante 34 anos (37-4 a.C.).

Herodes se equilibra no delicado jogo do poder porque sabe ser servil a Roma. Primeiro apóia Antônio, mas quando este é vencido por Otaviano na famosa batalha naval de Áccio, no ano 31 a.C., Herodes vai imediatamente visitar o vencedor, que está na ilha de Rodes, e, em gesto teatral, depõe a coroa a seus pés.

Resultado: volta para casa reconfirmado rei por Otaviano e ainda consegue favores: como o engrandecimento de território, a exoneração de tributo a Roma, a isenção de tropas de ocupação, a autonomia interior para as finanças, a justiça e o exército.

Herodes luta com decisão para consolidar o seu poder. Isto significa, antes de mais nada, que ele elimina, através de assassinatos e intrigas várias, adversários seus, inclusive alguns membros de sua família - como esposa e filhos.

Consolidado o poder, constrói obras grandiosas na Judéia. Templos, teatros, hipódromos, ginásios, termas, cidades, fortalezas, fontes. Reconstrói totalmente o Templo de Jerusalém, a partir do inverno de 20-19 a.C.

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Reconstrói Samaria, dando-lhe o nome de Sebaste, feminino grego de Augusto, em homenagem ao Imperador romano; constrói um importante porto, Cesaréia Marítima; Mambré, lugar sagrado ligado a Abraão, recebe uma grande construção que o valoriza; fortalezas são reedificadas ou totalmente construídas como Alexandrium, Heródion, Massada, Maqueronte, Hircania etc. Jericó é embelezada e torna-se sua residência favorita.

Observemos os nomes de suas construções, reveladores de seu espírito político:

Sebaste (Samaria), em homenagem a Augusto

Cesaréia (Marítima), em homenagem a César Augusto

Antipátrida, em homenagem a seu pai Antípater

Fasélida, em homenagem a seu irmão Fasael

Cipros, em homenagem a sua mãe

Heródion, em homenagem a si mesmo

fortaleza Antônia (em Jerusalém), em homenagem a Marco Antônio.

Valorizando o culto, Herodes Magno ganha para si o povo. Construindo fortalezas, controla possíveis revoltas. Matando seus inimigos, seleciona seus herdeiros. Apoiando a cultura helenística, aparece diante do mundo. Servindo fielmente a Roma, conserva-se no poder...

Entretanto, Herodes não tem legitimidade judaica, pois descende de idumeus e sua mãe é descendente de árabe. Assim, por ser estrangeiro, não tem para com os judeus nenhuma relação de reciprocidade e sua legitimidade se funda na própria estrutura do poder exercido[1].

Quando vence os seguidores de Antígono, Herodes constrói uma estrutura de poder independente da tradição judaica:

o nomeia o sumo sacerdote do Templo: destitui os Asmoneus e nomeia um sacerdote da família sacerdotal babilônica e, mais tarde, da alexandrina

o exige de seus súditos um juramento que obriga a pessoa a obedecer às suas ordens em oposição às normas tradicionais; se a pessoa recusar o juramento, é perseguida

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o interfere na justiça do Sinédrio o manda vender os assaltantes e os revolucionários políticos

capturados como escravos no exterior, sem direito a resgate o a venda à escravidão e a execução pessoal (a morte) tornam-se

normas comuns do arrendamento estatal.

Mas, se ele viola assim a tradição, como consegue legitimidade?

A estrutura de poder do Estado sob Herodes é bem diferente da estrutura da época dos Macabeus:

o o rei é legitimado como pessoa e não por descendência o o poderio não se orienta pela tradição, mas pela aplicação do

direito pelo senhor o o direito à terra é transmitido pela distribuição: o dominador a

dá ao usuário: é a "assignatio" o a base filosófica helenística é que legitima o poder do rei,

quando diz que o rei é "lei viva" (émpsychos nómos), em oposição à lei codificada, ou seja: o rei é a fonte da lei, porque ele é regido pelo "nous": o rei tem função salvadora e, por isso, dá aos seus súditos uma ordem racional, através das normas do Estado. "O rei em sua pessoa é a continuação do seu reino e o salvador de seus súditos", diz H. G. Kippenberg[2].

o o poder militar de Herodes se baseia em mercenários estrangeiros que ficam em fortalezas ou em terras dadas aos mercenários (cleruquias) por ele (terras no vale de Jezrael), e nas cidades não-judaicas por ele fundadas, a cujos cidadãos ele dá como posse o território que as rodeia, com os camponeses dentro!

Seus herdeiros: Arquelau, Herodes Antipas e Felipe.

Confira os Mapas do Império Romano aqui!

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[1]. Cf., para o que se segue, KIPPENBERG, H. G., Religião e formação de classes na antiga Judéia, São Paulo, Paulus, 1988, pp. 109-116. [2]. KIPPENBERG, H. G., Religião e formação de classes na antiga Judéia, p. 114.

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11.1.4. Os Prefeitos e Procuradores Romanos da Judéia

Copônio : 6-8 d.C.Marcos Ambívio : 8-12 (?)Ânio Rufo : 12-15 (?)Valério Grato : 15-26Pôncio Pilatos : 26-36Marcelo : 36-37Marulo : 37-41 (?)Cúspio Fado : 44-46Tibério Alexandre : 46-48Ventídio Cumano : 48-52Antônio Félix : 52-60Pórcio Festo : 60-62Lucéio Albino : 62-64 Géssio Floro : 64-66

O procurador ou prefeito era um administrador em ligação com o legado que governava a província romana da Síria e dependia dele. Residia em Cesaréia, mas subia a Jerusalém e podia lá permanecer conforme as circunstâncias ou as necessidades.

Por causa de Flávio Josefo[9] se pensava que a Judéia fora governada por procuradores (epítropos, em grego, procurator, latim), mas hoje se sabe, graças a uma inscrição sobre Pilatos encontrada em Cesaréia[10], que, até Cláudio, os governadores romanos da Judéia tinham o título de éparchos ou praefectus = prefeito. Após Cláudio, que se tornou Imperador no ano 41, podemos falar de “procuradores”. Portanto, a partir de Cúspio Fado (44-46). Entretanto, os dois títulos, para as províncias imperiais, como era o caso da Judéia, eram equivalentes, tendo perdido o significado original da época da República. Tanto o prefeito como o procurador tinham funções fiscais, militares e judiciais[11].

Pôncio Pilatos, prefeito da Judéia, que pronuncia a sentença de morte contra Jesus de Nazaré, é um governante duro e decidido, que nunca simpatizou com os judeus.

Sobre Pilatos e seu papel na crucifixão de Jesus, leia Warren CARTER, Pontius Pilate: Roman Governor, em Bible and Interpretation,

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September 2004.

Herodes Agripa I, escrevendo ao Imperador Calígula, descreve-o como inflexível por natureza e cruel por causa de sua obstinação. Acusa-o de venal, violento, extorsivo e tirânico.

Pertence à ordem dos cavaleiros, classe de pessoas ricas, muitos de origem humilde e até descendentes de escravos, que fizeram fortuna das mais variadas maneiras.

Pilatos é nomeado procurador por Tibério, graças à influência de Sejano, o poderoso prefeito da guarda pretoriana em Roma que é realmente quem manobra o poder.

Sejano faz de tudo para prejudicar os judeus. E consegue. Sob um pretexto qualquer, faz com que Tibério tome decisões anti-judaicas.

Pilatos faz muitas coisas contrárias aos costumes judeus, desrespeitando-os deliberadamente, para irritá-los e reprimi-los.

Embora saiba que os judeus abominam a reprodução de imagens de qualquer espécie, ele manda cunhar moedas com símbolos gentios. Símbolos como o lituus “um bastão recurvado numa das extremidades, em forma de chifre, que servia para demarcar o recinto onde os sacerdotes pagãos observavam as aves do sacrifício”, e o simpulum, espécie de concha sagrada. Pilatos é o único governante romano que tem tal ousadia[12].

Certa vez, Pilatos manda que seus soldados entrem em Jerusalém, à noite, levando efígies do Imperador nos estandartes. Quando amanhece, o povo se revolta com tal afronta, e ele tenta reprimi-lo. Mas tem que ceder diante da grande coragem dos judeus que preferem morrer a transgredir a Lei. Nas palavras de Flávio Josefo:

“Certa feita, Pilatos mandou levar, de noite, para Jerusalém, um certo número de imagens veladas do César, que os romanos chamavam de ‘estandartes’. Mal o dia clareou, uma grande agitação tomou conta da cidade. Todos quantos chegavam perto, enchiam-se de indignação com o espetáculo, que eles tomaram como uma zombaria grave à lei que proibia colocar qualquer imagem que fosse no interior da cidade. Pouco a pouco a exacerbação dos habitantes da cidade atraiu grandes multidões de pessoas que moravam no campo. E todos se dirigiram a Cesaréia, para falar com Pilatos. Suplicavam-lhe que mandasse tirar as imagens de Jerusalém e desistisse de agir contra as normas da religião judaica. Pilatos recusou-se a atender ao pedido deles. Então os

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judeus se lançaram por terra e ficaram imóveis, no lugar, durante cinco dias e cinco noites.

No sexto dia Pilatos sentou-se numa tribuna, no grande hipódromo da cidade, e convocou o povo, como se quisesse comunicar-lhe uma notícia. Em seguida, porém, fez aos soldados o sinal antes combinado, para cercarem os judeus, de armas na mão. Envolvidos por três fileiras de homens armados, os judeus foram tomados de violenta comoção diante do fato inesperado. Pilatos mandou massacrá-los, caso não admitissem a presença de imagens do Imperador em seu meio. Fez então novo sinal aos soldados para desembainharem as espadas. Os judeus, à uma, jogaram-se por terra, como se tivessem combinado entre si, e ofereceram o pescoço desnudo, declarando em alta voz que preferiam deixar-se matar a transgredir a Lei. Esta atitude heróica do povo em defesa de sua religião causou grande espanto em Pilatos. Ele ordenou, então, que as insígnias do Imperador fossem retiradas de Jerusalém”[13].

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[9] . “O território de Arquelau foi assim reduzido a província e Copônio, um romano da ordem dos cavaleiros, foi enviado por Augusto como procurador (epítropos), com plena autoridade”, diz JOSEFO, F., Bellum Iudaicum, 2, 117.

[10] . A inscrição foi encontrada no teatro romano de Cesaréia Marítima por uma expedição arqueológica italiana dirigida por Antonio Frova. Diz: TIBERIEVM PON]TIVS PILATVS PRAEF]ECTUS IVDA[EA]E.

[11] . Cf. SCHÜRER, E., Storia del Popolo Giudaico al Tempo de Gesù Cristo I, Brescia, Paideia, 1985, pp. 441-444.

[12] . Cf. SPEIDEL, K. A., O julgamento de Pilatos. Para você entender a Paixão de Jesus, São Paulo, Paulus, 1979, pp. 91-92.

[13] . JOSEFO, F., Bellum Iudaicum, 2, 169-174.

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11.1.5. De Agripa II ao Fim da Judéia

Quando morre Herodes Agripa I (44 d.C.), os romanos não quiseram entregar logo o governo para seu filho Agripa II que é apenas um garoto de 17 anos e vive em Roma. O país é governado, então, pelos procuradores.

Mas em 48 d.C. Agripa II recebe o governo de Cálcis, território antes dirigido por seu tio. Em 52 d.C. Agripa recebe também a antiga tetrarquia de Felipe e partes da Galiléia e da Peréia. Já antes, em 49 d.C., ele havia sido nomeado Inspetor do Templo, com direito de designar o sumo sacerdote, embora a Judéia continue governada por procuradores romanos. Agripa II é o último governante da família herodiana. Quando Jerusalém é destruída em 70 d.C., ele muda-se para Roma, onde morre após o ano 93 d.C.

Agripa II vive incestuosamente, dizem, com sua irmã Berenice e não é bem visto pelos judeus, especialmente pelos sacerdotes, graças às mudanças arbitrárias de sumos sacerdotes que sempre fez. Teve pouca influência sobre a comunidade judaica.

É diante de Agripa II e Berenice que Paulo comparece, quando prisioneiro em Cesaréia, segundo At 25,23-26,3.

A crescente revolta judaica contra a ocupação romana é, com freqüência, atribuída ao sempre vivo espírito nacionalista judaico e à sua imorredoura fé na libertação messiânica, mas historicamente é condicionada e ocasionada pela inabilidade dos procuradores e até mesmo de alguns Imperadores.

Vimos como Pilatos cometera arbitrariedades sem conta, muitas delas com o deliberado propósito de irritar os judeus, julgados totalmente impotentes frente ao poderio romano.

E esta atitude prepotente não pára com Pilatos, que afinal é punido pelo que fizera, sendo destituído por Tibério e chamado a Roma, onde tem que se explicar.

O Imperador seguinte, Calígula, proclama-se deus e obriga todas as províncias, inclusive a Judéia, a cultuá-lo, oferecendo-lhe sacrifícios. Quando os judeus se recusam a cultuá-lo, são perseguidos tanto na diáspora (em Alexandria, por exemplo) como na Judéia e demais províncias.

Calígula chega a exigir que uma estátua do Imperador seja colocada no Templo, contra todo o bom senso. Petrônio, legado da Síria, tenta demover

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o Imperador de seus propósitos: é condenado à morte, ou seja, recebe ordem do Imperador para se suicidar. Só que assassinam Calígula em 41 d.C., e Cláudio, seu sucessor, dispensa os judeus do culto ao Imperador, salvando também a vida de Petrônio.

Na Palestina do século I d.C. havia um verdadeiro clima de terror. Richard L. Rohrbaugh, na Introdução de um volume sobre “As Ciências Sociaise a Interpretação do Novo Testamento ”, diz sobre a expectativa de vida da população do Império Romano nesta época: “Cerca de 1/3 daqueles que ultrapassavam o primeiro ano de vida (portanto, não contabilizados como vítimas da mortalidade infantil) morriam até os 6 anos de idade. Cerca de 60% dos sobreviventes morriam até os 16 anos. Por volta dos 26 anos 75% já tinha morrido e aos 46 anos, 90% já desaparecido, chegando aos 60 anos de idade menos de 3% da população”[14].

É claro que estes dados não são uniformemente distribuídos por toda a população da época. Os que mais sofriam pertenciam às classes mais pobres das cidades e povoados, já que um pobre em Roma, no século I de nossa era, tinha uma expectativa de vida de 30 anos, quando muito. E o autor acrescenta: “Estudos feitos por paleopatologistas indicam que doenças infecciosas e desnutrição eram generalizadas. Por volta dos 30 anos a maioria das pessoas sofria de verminose, seus dentes tinham sido destruídos e sua vista acabado (...) 50% dos restos de cabelo encontrados nas escavações arqueológicas tinham lêndeas”[15].

Com moradias precárias, sem condições sanitárias adequadas, sem assistência médica, com uma má alimentação... Olhemos para a audiência de Jesus, por exemplo:este mesmo Jesus, com seus trinta e poucos anos de idade, era mais velho do que 80% de sua audiência. Uma audiência doente, desnutrida e com uma expectativa de mais 10 anos de vida, se tanto!

Douglas E. Oakman, em um estudo sobre as condições de vida dos camponeses palestinos da época de Jesus , mostra que a violência que sofriam era brutal. Fraudes, roubos, trabalhos forçados, endividamento, perda da terra através da manipulação das dívidas atingiam a muitos. Existia uma violência epidêmica na Palestina[16].

Quando Vitélio Cumano (48-52 d.C.) é procurador, acontece violenta revolta dos judeus durante a festa da Páscoa, por causa de um ultraje cometido por um soldado romano. Cumano reprime o tumulto e vinte mil judeus perdem a vida.

No tempo de seu sucessor Antônio Félix (52-60 d.C.) a tensão aumenta perigosamente. É no seu tempo que surge o grupo dos sicários, assim

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chamados por usarem em suas ações uma adaga curva e curta chamada “sica”. Sua tática é provocar tumultos e desestabilizar o governo através de assassinatos inesperados de personagens importantes. Escondem a sica sob as vestes e misturados na multidão eliminam não só romanos, mas também quem colabora com a ocupação estrangeira. Um dos assassinados neste tempo pelos sicários é o sumo sacerdote Jônatas.

Outros grupos tentam despertar no povo os sentimentos messiânicos, proclamando-se profetas e fazendo promessas utópicas. Tais grupos são duramente reprimidos pelos romanos através de grandes matanças. Félix manda crucificar inúmeros zelotas durante o seu mandato[17].

Outro procurador terrivelmente corrupto e repressor é Lucéio Albino (62-64 d.C.). Seu sucessor Géssio Floro (64-66 d.C.) consegue então jogar a gota d’água para que o ódio acumulado pelos judeus derrame.

Quando, após muitas arbitrariedades, G. Floro requisita 17 talentos do tesouro do Templo, a revolução estoura. Os judeus escarnecem do procurador, fazendo uma coleta para o “pobrezinho” Floro.

Resultado: Floro entrega para os seus soldados uma parte de Jerusalém, para que seja saqueada e crucifica alguns homens importantes da comunidade judaica. O povo, em supremo desprezo, não reage diante do saque, e o desprezo é vingado: há uma carnificina geral.

Então, os revolucionários chefiados por Eleazar, filho do sumo sacerdote, ocupam o Templo e a fortaleza Antônia. Agripa II tenta conter a revolta e não consegue. Céstio Galo, legado da Síria, ataca com uma legião, mas é rechaçado com pesadas perdas, assim como antes Floro teve que se retirar para Cesaréia ao ser derrotado. É a guerra definitiva.

Começam os preparativos para o que der e vier. A Galiléia é entregue ao sacerdote fariseu Josefo, o nosso conhecido historiador Flávio Josefo. Josefo fortifica várias cidades e se prepara. Também as fortalezas de Massada e Heródion são ocupadas pelos rebeldes.

“Reuniu-se um grande número daqueles judeus que queriam a guerra a qualquer preço. Tinham se dirigido para uma fortaleza chamada Massada. Aí surpreenderam a guarnição romana, massacraram-na e em seu lugar colocaram um destacamento constituído pela própria gente. Nessa época, Eleazar, filho do sumo sacerdote Ananias, um jovem de grande atrevimento que comandava então a guarda do Templo, incitou os sacerdotes em exercício a não aceitar donativos ou sacrifícios da parte de não-judeus. Este foi o começo propriamente dito

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da guerra contra os romanos, pois nesta ocasião foi praticamente rejeitado o oferecimento de sacrifício em favor dos romanos e do Imperador”[18].

O Imperador Nero confia então a Palestina a um experiente general: Vespasiano. Em companhia de seu filho Tito, Vespasiano ataca a Galiléia na primavera de 67 com 10 legiões (60 mil soldados, sem contar as tropas auxiliares, o que duplica este número). Conquistam facilmente o território, mas a fortaleza de Jotapata só cai após 47 tentativas de assalto. Josefo é aprisionado e muito bem tratado. Até o outono a Galiléia está nas mãos dos romanos, que então podem hibernar tranqüilamente.

Veja a posição ambígua de Flávio Josefo na guerra contra Roma aqui!

Na primavera de 68 Vespasiano ocupa sucessivamente a Peréia, a costa, as montanhas da Judéia, a Iduméia e a Samaria. Está para atacar Jerusalém quando Nero se suicida.

Vespasiano espera se definir a situação em Roma. Três Imperadores passam pelo trono, mas nenhum pára. Finalmente Vespasiano é aclamado Imperador no dia primeiro de julho de 69 e marcha para Roma, deixando a guerra sob o comando de Tito.

Tito cerca Jerusalém pouco antes da Páscoa de 70, com quatro legiões (24 mil soldados). A cidade está repleta de peregrinos. Uma cidade com cerca de 30 mil habitantes fixos. Mas nesta época ultrapassava os 180 mil.

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Tito ocupa o setor norte da cidade, abre um fosso ao seu redor para que ninguém escape e em julho de 70 toma a fortaleza Antônia, um dos redutos rebeldes. Como os muros do Templo não cedem, Tito o incendeia. É agosto de 70[19]. Toda a construção é consumida pelas chamas, mas os rebeldes conseguem se refugiar no palácio de Herodes.

Em setembro de 70 também o palácio cai. Os chefes rebeldes, João de Gíscala, zelota, e Simão Bargiora, sicário, são aprisionados e levados triunfalmente para Roma. A cidade é saqueada e os habitantes assassinados, vendidos ou condenados a trabalhos públicos.

Estão ainda de pé três fortificações rebeldes: Heródion, Massada e Maqueronte, defendidas pelos sicários e zelotas. Heródion e Maqueronte caem logo, mas Massada resiste um ano de cerco. Quando finalmente é

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tomada, os rebeldes incendeiam-na e se suicidam em massa para não caírem em mãos romanas.

Vespasiano manda cunhar moedas sobre as quais estão um soldado romano, uma mulher de luto e uma palmeira simbolizando Israel. A inscrição dizia: Judaea capta. Em Roma, o arco do triunfo de Tito, de pé ainda hoje, celebra a vitória romana. A Judéia é separada da Síria e torna-se uma província imperial, dirigida por um governador que mora em Cesaréia.

Quando reina Adriano (117-138 d.C.), há ainda nova revolta judaica. É que o Imperador, em giro pelo Oriente, decide reconstruir Jerusalém com o nome de Aelia Capitolina e manda fazer um templo dedicado a Júpiter no mesmo local onde existira o Templo de Salomão.

Simeão Bar-Kosibah é o chefe desta nova revolta, começada em 131 d.C. Ele é chamado também de Bar-Kokhba (filho da estrela), numa interpretação messiânica de Nm 24,17, feita por Rabi Aqiba.

Os rebeldes ocupam Jerusalém e algumas fortalezas espalhadas pelo território judaico. Depois de muita luta, um enviado especial de Adriano, Júlio Severo, consegue dominar a revolta, vendendo, em seguida, os rebeldes como escravos. É o ano 135 d.C.

Jerusalém torna-se, então, Colonia Aelia Capitolina e o templo a Júpiter é levantado no local do antigo Templo dos judeus, além dos outros templos construídos na cidade.

Aos judeus Jerusalém foi proibida, sob pena de morte. A Judéia torna-se parte da província Síria-Palestina.

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[14]. ROHRBAUGH, R. L., Introduction, em ROHRBAUGH, R. L. (ed.), The Social Sciences and New Testament Interpretation, Peabody, MA, Hendrickson, 1996, pp. 4-5.

[15]. Idem, ibidem, p. 5.

[16]. Cf. OAKMAN, D. E., The Countryside in Luke-Acts, em NEYREY, J. H. (ed.), The Social World of Luke-Acts: Models of Interpretation, Peabody, Massachusetts, Hendrickson, 1991, p. 168.

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[17]. Cf. GRABBE, L. L., Judaism from Cyrus to Hadrian. Volume II: The Roman Period, Minneapolis, Fortress Press, 1991, pp. 441-442.

[18]. JOSEFO, F., Bellum Iudaicum, 2,408-409.

[19]. A data exata da destruição do Templo é controvertida. A tradição rabínica diz que foi no dia 9 do mês de Ab (29 de agosto de 70), enquanto Flávio Josefo diz que foi no dia 10 de Ab. Cf. SCHÜRER, Storia del Popolo Giudaico I, pp. 613-614, nota 115; GRABBE, L. L., Judaism from Cyrus to Hadrian II, p. 460; JOSEFO, F., Bellum Iudaicum, 6, 250.