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OS DONOS DO PODER: UM ESTUDO SOBRE A DOMINAÇÃO EXERCIDA PELOS OPERADORES DO DIREITO Allan Mohamad Hillani RESUMO: O presente trabalho analisa as relações de poder em que se inserem os operadores do direito (e as suas representações sociais) e as maneiras como elas são expressas em nossa sociedade. Os operadores do direito (desde os estudantes e estagiários até os mais renomados juristas) recebem um tratamento diferenciado quando sua profissão é identificada por outras pessoas. Muitas vezes, a identificação acontece sem que seja dita uma palavra sequer, o que faz-nos concluir que seja uma questão visualizável sem muito esforço e como o status de operador de Direito concede um capital social bastante alto, isso permite que seja exercido um poder simbólico (Bourdieu) sobre os outros com quem eles se relacionam de maneira impessoal a partir da diferenciação. Quando essa posição social não é identificada à primeira vista, é reivindicada por meio de ritos autoritários como “você sabe com quem está falando?”, em que se personaliza o indivíduo a fim de retornar à ordem hierárquica da sociedade (DaMatta). Busca-se aqui, portanto, constatar por onde, por que e de que maneira esse poder é exercido, as construções sociais e simbólicas atreladas aos bacharéis de Direito e seu processo histórico de criação na realidade brasileira. 1. Introdução Não é preciso buscar no fundo da memória algum momento em que, somente pela vestimenta, para citar exemplo, alguma pessoa obteve melhor tratamento do que receberia sem o mesmo adereço. Esta constatação fica ainda mais evidente para quem vive no “universo jurídico”, em que situações como essas são mais do que frequentes. A percepção desse fato curioso, de

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O presente trabalho analisa as relações de poder em que se inserem os operadores do direito (e as suas representações sociais) e as maneiras como elas são expressas em nossa sociedade. Os operadores do direito (desde os estudantes e estagiários até os mais renomados juristas) recebem um tratamento diferenciado quando sua profissão é identificada por outras pessoas. Muitas vezes, a identificação acontece sem que seja dita uma palavra sequer, o que faz-nos concluir que seja uma questão visualizável sem muito esforço e como o status de operador de Direito concede um capital social bastante alto, isso permite que seja exercido um poder simbólico (Bourdieu) sobre os outros com quem eles se relacionam de maneira impessoal a partir da diferenciação. Quando essa posição social não é identificada à primeira vista, é reivindicada por meio de ritos autoritários como “você sabe com quem está falando?”, em que se personaliza o indivíduo a fim de retornar à ordem hierárquica da sociedade (DaMatta). Busca-se aqui, portanto, constatar por onde, por que e de que maneira esse poder é exercido, as construções sociais e simbólicas atreladas aos bacharéis de Direito e seu processo histórico de criação na realidade brasileira.

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Page 1: HILLANI, Allan M. Os donos do poder: Um estudo sobre a dominação exercida pelos operadores do direito

OS DONOS DO PODER: UM ESTUDO SOBRE A DOMINAÇÃO EXERCIDA PELOS OPERADORES DO DIREITO

Allan Mohamad Hillani

RESUMO: O presente trabalho analisa as relações de poder em que se inserem os operadores do direito (e as suas representações sociais) e as maneiras como elas são expressas em nossa sociedade. Os operadores do direito (desde os estudantes e estagiários até os mais renomados juristas) recebem um tratamento diferenciado quando sua profissão é identificada por outras pessoas. Muitas vezes, a identificação acontece sem que seja dita uma palavra sequer, o que faz-nos concluir que seja uma questão visualizável sem muito esforço e como o status de operador de Direito concede um capital social bastante alto, isso permite que seja exercido um poder simbólico (Bourdieu) sobre os outros com quem eles se relacionam de maneira impessoal a partir da diferenciação. Quando essa posição social não é identificada à primeira vista, é reivindicada por meio de ritos autoritários como “você sabe com quem está falando?”, em que se personaliza o indivíduo a fim de retornar à ordem hierárquica da sociedade (DaMatta). Busca-se aqui, portanto, constatar por onde, por que e de que maneira esse poder é exercido, as construções sociais e simbólicas atreladas aos bacharéis de Direito e seu processo histórico de criação na realidade brasileira.

1. Introdução

Não é preciso buscar no fundo da memória algum momento em que, somente pela vestimenta, para citar exemplo, alguma pessoa obteve melhor tratamento do que receberia sem o mesmo adereço. Esta constatação fica ainda mais evidente para quem vive no “universo jurídico”, em que situações como essas são mais do que frequentes. A percepção desse fato curioso, de como a distinção pode exercer dominação, desencadeou a pesquisa que resultou no presente artigo.

Primeiramente, é importante ressaltar que esse artigo não tem a pretensão de exaurir todas as constatações acerca das relações de poder exercidas pelos operadores de direito, nem de explicar todos os ritos que se passam no universo jurídico, mas apenas apontar algumas constatações e buscar explicá-las através das contribuições da sociologia e da antropologia, principalmente das produzidas no Brasil – com Roberto DaMatta, Sérgio Buarque de Holanda, entre outros – e na França – com Pierre Bourdieu.

Também se faz necessário dizer que o presente artigo não visa uma convergência absoluta dos autores utilizados como base, visto que em certos pontos de suas teorias eles podem divergir drasticamente, mas sim, sendo cauteloso para não cair em um ecletismo científico, buscar pontos de convergência em suas teorizações.

O objetivo desse artigo é tornar o que é comum em estranho, escancarar a dominação velada que involuntariamente pode-se estar exercendo, descobrir seus mecanismos e origens, para então encarar as posturas, os protocolos, os rituais e as tradições que cercam quem está

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inserido no universo jurídico de maneira crítica e, quem sabe, até repensar suas funções em nossa sociedade atual.

2. Raízes históricas

O operador de direito1 possui, em nossa sociedade, autoridade. A origem dela, porém, exige um estudo histórico mais dedicado para ser entendida. Esse mergulho histórico também se faz necessário para perceber como se formou essa figura de poder e suas relações com a nossa própria história.

2.1. Herança de além-mar

Sérgio Buarque de Holanda nos traz como a ética fidalga sempre foi característica dos povos ibéricos, nossos colonizadores. Diferentemente do resto da Europa Continental, na Espanha e em Portugal uma aristocracia fixa nunca chegou a se instaurar. A alternância de indivíduos nas posições sociais era tida como natural e constitutiva da cultura desses povos, inclusive se refletindo de diversas maneiras, como na dificuldade de existir uma adesão às religiões do trabalho ou um poder centralizado sem o uso da força, pois “em terra onde todos são barões não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida”2.

A cultura da personalidade foi desenvolvida ao extremo pelos portugueses e isso se mostra como estrutural nos povos resultantes de seus processos de colonização. “Para eles [os ibéricos], o índice do valor de um homem infere-se, antes de tudo, da extensão em que não precise depender dos demais, em que não necessite de ninguém, em que se baste”3. Isso evidencia o valor dado ao esforço pessoal mesmo antes da ascensão da burguesia mercantil, que, inclusive, por não ter tido que romper completamente com uma ordem feudalista e aristocrata anterior – como no resto da Europa – conseguiu adaptar a Europa ibérica a esses novos valores de maneira muito mais simples, porém incompleta, visto que diversas tradições se mantiveram. Não foram, portanto, completamente extirpados os costumes aristocráticos e alguns elementos da vida medieval mantiveram seu valor4, ou nas palavras de Faoro:

Não foi a burguesia que renegou sua posição: ela apenas se acomodou ao estado-maior dirigente, que a cerca tritura e lhe cunha anteriormente o estilo de vida. Esta marca social, esta estratificação, impediu-lhe a autônoma emancipação, avançando sobre ela – fundamento da estrutura – o descrédito ao negócio e ao trabalho manual em favor de valores que consagram a ociosidade letrada5.

1 Utilizo operador de direito como sendo todo aquele que trabalha com o direito, seja ele um estagiário, um docente, um jurista ou um ministro do Supremo Tribunal Federal. O termo operador pode não ser considerado adequado, pois remete a uma figura acrítica que opera uma “máquina jurídica” e isso pressupõe uma concepção específica e não unânime de direito. Ainda assim, ignorarei esse debate para não enveredar por caminhos tortuosos.2 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 32.3 Ibidem, p. 32.4 HOLANDA, 1995, p. 36.5 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo, 2001.

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Aí se evidencia uma diferença entre a cultura da personalidade e a cultura do indivíduo visto que essa veio de um rompimento radical com a ordem vigente anterior e aquela de uma conjugação entre os novos e os velhos valores. A cultura da personalidade, herança dos nossos colonizadores, acabou sendo triunfante e de grande importância para a cultura brasileira, como fica evidente na construção do Estado Brasileiro independente e da importância do bacharelismo nesse processo histórico.

2.2. Os salvadores da pátria: Bacharelismo no Brasil

O bacharelismo não é criação nem exclusividade brasileira. De todos os presidentes dos Estados Unidos da América, apenas dois não eram nem bacharéis nem militares, por exemplo6, mas isso não faz com que sua importância para compreender a realidade brasileira seja menor. O Bacharelismo é constitutivo da criação do Estado Nacional brasileiro e da intelectualidade produzida aqui.

Os cursos jurídicos no Brasil se fundaram sobre a mentalidade do individualismo político e do liberalismo econômico e a construção do Estado Nacional reivindicava tanto a autonomização cultural quanto a burocratização do aparelho estatal. Essa combinação, somada às alianças da elite política e governante, permitiu algum êxito, mesmo aos trancos e barrancos, do Estado Nacional patrimonial7. O papel dessa intelligentsia foi fundamental nesse processo visto que o Estado Nacional acabou se tornando um Estado de Magistrados. “O bacharel acabou por constituir-se, portanto, em sua figura central porque mediadora de interesses privados e interesses públicos, entre o estamento patrimonial e os grupos sociais locais”8.

É interessante ainda perceber a composição desse Estado. De acordo com o censo de 1872, 95% dos ministros, 90% dos deputados, 85% dos senadores e 100% dos conselheiros de Estado eram compostos por pessoas vindas do setor terciário que possuíam ensino superior – mais especificamente advogados, juízes, procuradores, padres, médicos, cirurgiões, professores, homens de letras, oficiais militares, altos funcionários públicos e parte reduzida dos capitalistas e proprietários –, aproximadamente 0,3% da população ativa; 0,1% da população total9. Os advogados, devido à sua formação e seu ofício, eram os prediletos para tomar conta dos cargos públicos, pois “o advogado é um instrumento de interesses individuais ou de grupos, e como tal pode tornar-se um porta-voz de oposições tanto quanto do poder público”10.

A compreensão da importância histórica dos bacharéis nos ajuda a analisar seu papel na nossa sociedade atual e sua relação com a cultura da personalidade, significativa para o brasileiro. Como coloca Sérgio Buarque de Holanda, “o que importa salientar aqui é que a origem da sedução exercidas pelas carreiras liberais vincula-se estreitamente ao nosso apego

6 HOLANDA, 1995, p. 156-157. 7 ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 77-78.8 Ibidem, p. 78.9 CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial; Teatro de Sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Relume-Dumará, 1996, p. 84-86.10 Ibidem, p. 89.

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quase exclusivo aos valores da personalidade”11. E é justamente sobre os valores da personalidade que iremos nos debruçar a seguir.

3. O brasileiro e a cultura da personalidade

A diferença entre o indivíduo e a pessoa, entre a cultura individualista e a cultura da personalidade, deve ser constatada para compreender melhor a realidade brasileira e as relações de poder aqui existentes12. Anterior a esse debate, ainda, é a constatação, indo na contramão de Hegel, da oposição entre o Estado e a família, pois “Só pela trangressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão”13. O Estado, a impessoalidade, a burocracia são, portanto, negação da pessoalidade, da proximidade, da afetividade da família. O Estado, criação moderna por excelência rompe com a família, resquício histórico preponderante no medievo. As relações de emprego negam as corporações de ofício, por exemplo14.

O indivíduo está ligado à ideia de formalidade, impessoalidade, como já dito. Nas sociedades liberal-democráticas consolidadas, todos são indivíduos, iguais, ideais: sujeitos de direito. Não há hierarquia nem privilégios, portanto. Todos cumprem a mesma lei, sofrem as mesmas sanções, têm os mesmos direitos. A pessoa, por sua vez, está ligada à ideia de diferença, de afeto. As pessoas não são iguais umas às outras, são diferentes e podem, portanto, ser dispostas hierarquicamente. Umas podem mais que outras, umas são mais belas, mais inteligentes, mais astutas que outras. Pessoa e indivíduo se contrastam o tempo todo e esse conflito dialético é fundamental para compreender a dinâmica do universo social brasileiro15.

Após essa distinção inicial, podemos nos aprofundar um pouco mais em como essa diferenciação se constrói. Para Roberto DaMatta, o conceito de indivíduo comporta três eixos. Primeiro, o indivíduo como realidade concreta. Não há formação social humana sem indivíduos. Porém, apesar de toda sociedade humana ser composta de indivíduos, apenas a sociedade ocidental colocou esse fato no centro de sua elaboração ideológica e essa é justamente a elaboração que interessa. O conceito de indivíduo, então, recebe elaborações distintas: de um lado as elaborações do eu individual, em que a sociedade está subordinada ao indivíduo, de outro, a elaboração holística, hierarquizante e tradicional, que coloca o indivíduo como parte da sociedade, como uma vertente coletiva da individualidade. A primeira se pauta pela igualdade, a segunda, pela complementaridade. A primeira resulta no indivíduo, a segunda na pessoa16.

“O lugar do indivíduo – em oposição ao lugar da pessoa – é nos sistemas onde inexiste, segmentos, ou melhor, onde os grupos que ocupam o lugar dos segmentos

11 HOLANDA, 1995, p. 157.12 DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 220.13 HOLANDA, op. cit., p. 141.14 Ibidem, p. 142.15 DAMATTA, 1997, p. 221.16 Ibidem, p. 222-223.

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tradicionais são associações”17. O indivíduo não tem mediação entre ele e o todo, a pessoa tem. O indivíduo faz as normas sociais, a pessoa recebe. Os indivíduos são iguais, as pessoas complementares. Sua consciência é individual e não social18. E é nessa dialética que constituímos nossa cultura, mesmo que a cultura da personalidade seja predominante, ou como diria Sérgio Buarque de Holanda:

Nosso temperamento admite fórmulas de reverência, e até de bom grado, mas quase somente enquanto não suprimam de todo a possibilidade de convívio mais familiar. A manifestação normal de respeito em outros povos tem aqui sua réplica, em regra geral, no desejo de estabelecer intimidade19.

A figura do homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda exprime bem isso. Desde a nossa relação de aversão à polidez em prol de uma relação mais íntima até quando, mesmo no âmbito estatal, individualista por natureza, para os cargos de função pública relevante indicamos pessoas de confiança e não necessariamente os mais bem preparados escolhidos por uma lógica meritocrática20.

A interação dialética entre o indivíduo e a pessoa na sociedade brasileira fica escancarada nos momentos de dramatização envolvendo ritos autoritários, que visam revelar a posição hierárquica antes escondida pela capa do individualismo, como será mais pra frente apresentado.

4. Diploma e poder simbólico

Bourdieu define o poder simbólico como sendo aquele “poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”21. É importante ressaltar essa função do poder simbólico, que cega não só o dominado como também o dominador e que demonstra que os mecanismos de dominação não obtêm sucesso se não conseguirem esconder de ambos, dominados e dominadores, essa relação de dominação. Bourdieu insiste na ideia de interiorização da dominação22.

A dominação é definida, porém, não como uma estrutura de obediência, como teorizou Weber, mas sim como um mecanismo de imposição de lugares e tensões dentro de um campo e essa disposição hierárquica se faz a partir das diferenças de acumulação de capital 23: “La domination retrouve ici um sens spatial: la qualité de dominant est moins celle du mâitre dont l’ordre a une chance d’être obéié (Weber) que la possession d’une position (sociale) plus

17 Ibidem, p. 224.18 Ibidem, p. 224-225.19 HOLANDA, 1995, p. 148.20 Ibidem, p. 146-147.21 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p. 8.22 COLAS, Dominique. Sociologie politique. Paris: Presses Universitaires de France, 2008, p. 134-135.23 COLAS, 2008, p. 136.

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élevée”24. O diploma de bacharel, por sua vez, se revela enquanto capital cultural 25, o que significa que o diploma não se encerra em si mesmo e possui um significado maior do que a simples comprovação de um conhecimento. Além disso, os títulos escolares não garantem somente a capacidade de exercer certa tarefa, mas sim toda uma “cultura geral”, elevam os sujeitos ao nível de “nobreza cultural” 26, cultura essa que é elemento essencial no processo de distinção visto que:

A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante (assegurando uma comunicação imediata entre todos os seus membros e distinguindo-os das outras classes); para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas; para a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distinções 27.

É importante ainda ressaltar que o poder simbólico é um poder tão efetivo quanto os outros. Aliás, “o poder simbólico, poder subordinado, é uma forma transformada, quer dizer, irreconhecível, transfigurada e legitimada, das outras formas de poder” 28, tendo como característica primordial “a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras”29, característica que será fundamental para estudar os ritos autoritários mais adiante.

5. A vestimenta e a linguagem sérias

As vestimentas e a linguagem características dos operadores de direito também são instrumentos que comportam capital cultural e ajudam na disposição hierárquica da sociedade. A roupa e o juridiquês, por exemplo, nos remetem a uma figura de seriedade, responsabilidade, que, portanto, deve ser respeitada. Mas há uma diferença entre levar algo a sério e ser sério. Quando se leva a sério, se vai ao encontro do objeto da seriedade, quando se é sério, coisifica-se enquanto objeto de seriedade. Um é dinâmico, o outro estéril; um revigora o mundo de possibilidades, o outro o reduz30.

Infelizmente, nós, brasileiros, ainda mais quando se trata da intelectualidade, temos o mau hábito de optar pelo sério ao invés do a sério: “No intelectual brasileiro que discursa, triunfa o sério – expressão de uma classe privilegiada diante da multidão analfabeta. No

24 “A dominação encontra aqui um sentido espacial: a qualidade de dominante é menos aquela do dono cuja ordem tem uma chance de ser obedecida (Weber) que a posse de uma posição (social) mais elevada” (tradução livre). Ibidem, p. 140.25 O capital cultural pode ser dividido em três: o incorporado, que seriam habilidades pessoais, o objetivo, que seriam obras de arte e afins, e o institucionalizado, socialmente sancionado por instituições, como o diploma. LIMA, Abili Lázaro Castro de. O discurso jurídico dos cursos de direito no Brasil: reflexões a partir das teorizações de Pierre Bourdieu. In: FONSECA, Ricardo Marcelo (org.). Direito e discurso: discrusos do direito. Florianópolis: Boiteux, 2006, p.110. 26 BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2008, p. 28.27 BOURDIEU, 2010, p. 10.28 Ibidem, p 15.29 BOURDIEU, 2010, p. 15.30 GOMES, Roberto. Crítica da razão tupiniquim. São Paulo: Cortez, 1980, p. 14.

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homem sério triunfa a razão ornamental”31, e logo em seguida o próprio Roberto Gomes traz o exemplo do terno e gravata e de como, apesar da incompatibilidade climática entre ele e o calor desta terra, insistimos nele como traje oficial de eventos importantes; é como se o discurso em terno e gravata fugisse da realidade brasileira32.

Ainda sobre a Razão Ornamental, Sérgio Buarque de Holanda aponta de maneira sintética e genial:

A verdade é que, embora presumindo o contrário, dedicamos, de modo geral, pouca estima às especulações intelectuais – mas amor à frase sonora, ao verbo espontâneo e abundante, à erudição ostentosa, à expressão rara. É que para bem corresponder ao papel que, mesmo sem o saber, lhe conferimos, inteligência há de ser ornamento e prenda, não instrumento de conhecimento e de ação33.

A Razão Ornamental, o apreço por essa estética intelectual, pelo bem falante, gerou, de certa forma, o trunfo do bacharel – e do operador de direito, por conseqüência34. Isso está diretamente ligado ao apreço pelas qualidades pessoais, pelo talento, pelo homem que se basta, como foi desenvolvido acima.

Também podemos enxergar a vestimenta e a linguagem como objetos portadores de capital cultural, social e simbólico. Sobre a roupa, especificamente, podemos comparar o traje do operador de direito – seja ele o terno e gravata, a toga ou qualquer outro – com o traje militar. Essas roupas, por serem típicas de certas posições sociais, têm por objetivo esconder o portador, proteger o papel desempenhado e ainda separar, distinguir, o seu papel naquele momento dos outros papéis desempenhados na vida diária35, distinção que gera dominação.

A farda individualiza o sujeito. Separa o papel a ser desempenhado naquele momento com os outros desempenhados pela mesma pessoa. O terno e a gravata não são fantasia, portanto, pois a fantasia une uma diversidade dos papéis praticados pela mesma pessoa cotidianamente. Outro ponto relevante é que as fardas remetem a papéis reais a serem exercidos e demonstram claramente posições sociais, não só posições, mas “posições centrais da estrutura social, já que são símbolos de poder na ordem social”36, hierarquizam para que a dominação seja exercida.

É importante ainda ressaltar que a farda não carrega em si mesma todo o capital cultural. Este pertence ao sujeito que a utiliza, pois, como o próprio DaMatta exemplifica “um coronel fardado não deixa de ser coronel quando não está fardado”37, e é justo sobre essa manutenção do capital simbólico mesmo quando os elementos que remetem a ele não são perceptíveis no primeiro contato visual, que chegamos ao rito autoritário que citamos anteriormente e analisaremos no ponto a seguir.

31 Ibidem, p. 17.32 Ibidem, p. 17.33 HOLANDA, 1995, p. 83.34 GOMES, 1980, p. 69-70.35 DAMATTA, 1997, p. 60-61.36 Ibidem, p. 61.37 DAMATTA, 1997, p. 61.

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6. Você sabe mesmo com quem está falando?

Ao mesmo tempo em que estamos cercados, como visto acima, pela formalidade ou ao menos pela aparência formal, buscamos negá-la a todo instante. Nessa contradição bastante característica do povo brasileiro que surge o jeito, tão idealmente condenado e materialmente praticado. O jeito é a outra face do rito autoritário do sabe com quem está falando?, pois um parte do princípio da conciliação e o outro da radicalização, mas ambos estão fundados na mesma cultura da personalidade, como ficará evidente a seguir.

6.1 O jeito

O jeito se constitui a partir da não-radicalização. Dar um jeito é evitar o conflito por meio da conciliação. Isso inclusive explica a tendência da razão brasileira ao ecletismo: não que apreciemos o ecletismo, mas condenamos o fanatismo e o jeito é justo a expressão dessa condenação38.

Em compensação, caímos em um fanatismo da concórdia. Não admitimos adversários, pois, como já dito sobre a cultura da personalidade, as pessoas são complementares umas às outras. Pior: se opor ao pensamento uno provindo da conciliação é extremamente condenado e penalizado de maneira verdadeiramente fanática. Só há a possibilidade de ou conciliar, ou suprimir39, ou nas palavras de Roberto Gomes:

Desprezada a desagradável realidade que nos circunda, restou ao intelectual brasileiro fazer filosofia como quem monta um quebra-cabeças: buscando o melhor ajuste (conciliação) possível e rejeitando (supressão) as pessoas mais rebeldes. Dando um jeito40.

O jeito também é a maneira encontrada para colocar valores mais importantes acima da formalidade e da burocracia e é sobre esse ato, a partir do estudo de Roberto DaMatta, que nos aprofundaremos a seguir.

6.2 O rito autoritário

O rito autoritário do sabe com quem está falando? Consiste na drástica distinção, vinda de cima pra baixo, entre duas posições sociais existentes ou teoricamente construídas. Ele é a negação do jeito por escancarar o conflito e por isso é repudiado pela cultura brasileira. Seu uso é visto como um recurso escuso, sem legitimidade, indesejável, além de remeter à rua, ao mundo real, cruel e perigoso, que se contrapõe à segurança do nosso lar 41.

A sociedade brasileira repudia o conflito de todas as formas possíveis, como já vimos. O jeito é a representação disso por excelência. Mas repudiar o conflito não significa sua não existência, significa somente que ele não seja enaltecido, que esteja escondido. E quem o esconde é bem específico, visto que “as camadas dominantes e vencedoras sempre adotam a perspectiva da solidariedade, ao passo que os dissidentes e dominados assumem sistematicamente a posição de revelar o conflito, a crise e a violência do nosso sistema”42.38 GOMES, 1980, p. 43-44.39 GOMES, 1980, p. 47-51.40 Ibidem, p. 52.41 DAMATTA, 1997, p. 181-183.42 Ibidem, p. 184.

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Como já vimos também, nossa sociedade se baseia na hierarquização. O repúdio à discórdia e à crise é estrutural em um sistema tão preocupado com as posições sociais. Numa sociedade em que as engrenagens são conduzidas de maneira a tornar a hierarquia algo natural, é lógico que os conflitos sejam vistos como irregularidades, como desarmônicos. Havendo um forte pacto entre fortes e fracos para garantir essa harmonia, a ideia de consideração se torna valor fundamental 43.

Nessa conjuntura, o conflito não pode só ser considerado uma crise no sistema, mas sim uma revolta que precisa ser reprimida. Uma crise seria consertada por meio de um rearranjo estrutural, uma revolta tem de ser pessoalmente circunscrita e eliminada: castiga-se o agente e mantém o sistema. Esse é o caso do rito autoritário em questão, que não se apresenta enquanto uma atualização de valores e princípios, mas sim como um repúdio a certos traços pessoais44.

É importante também ressaltar que, não só a sociedade brasileira é hierarquizante, como também que os brasileiros têm plena consciência disso, reivindicando a todo instante sua posição social, tendo preocupação com a manutenção, perda ou ameaça dessa posição. Não só isso, como às vezes, mesmo pessoas de inferioridade estrutural utilizam o sabe com quem está falando? com semelhantes, se respaldando na função do patrão ou do pai, reivindicando uma projeção social que não é sua, o que nos remete à importância dos laços afetivos na dominação que trabalhamos anteriormente: esse é o fenômeno da diferenciação sistêmica dos iguais45.

6.3 O drama social

Após essa breve análise do sabe com quem está falando? podemos começar a encará-lo enquanto drama social. Para fins de esclarecimento, “O drama social tem como ponto básico a ação que rompe com uma norma social vivida de modo quase automático, e também o conjunto de ações que desencadeiam os processos compensatórios (ou de alívio)”46. É quando a interação social se transforma em momento dramático, confronto entre duas pessoas ou grupos.

O sabe com quem está falando?, especificamente, age com a revelação de estruturas ocultas que organizam o poder – ou idealmente organizam o poder, mas que são reivindicados enquanto tal. Quando ocorre esse drama, as regras sociais são suspensas e os atores, repletos de raiva e indignação, se entregam ao confronto cara a cara buscando acabar com o adversário47.

Quando o mais forte derrota o mais fraco, essa é a prova de que o mundo é cruel, que o melhor é nos orientarmos para casa, para a família – onde as relações são afetivas e pessoais – e não para a rua, onde a crueza e a injustiça estão em seu ápice48. Interessante é também perceber que em alguns casos há uma drástica oposição entre alguém anônimo,

43 DAMATTA, 1997, p. 184. 44 Ibidem, p. 185.45 Ibidem, p. 188-193.46 DAMATTA, 1997, p. 207.47 Ibidem, p. 208-210.48 Ibidem, p. 210.

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representando um papel universal e alguém que represente o universo da ordem e da autoridade cuja identidade social é bem determinada. É o momento em que se desprezam as relações individuais que supostamente regem nossa sociedade revelando as verdadeiras condutoras do universo social: as relações pessoais de hierarquia, dominação e desigualdade. É como se os interlocutores se transformassem de sujeitos anônimos, indivíduos, em pessoas bem específicas, ou como traz DaMatta:

O que marca a situação e a torna dramática é justamente a peripécia do desvendamento de outras identidades sociais, que vem liquidar de pronto o anonimato de que está reclamando contra o representante de um sistema bem definido de manutenção da ordem. Quem se considera agredido (pela regra geral) torna-se agressor, com o aparentemente fraco e desconhecido transformando-se em forte e mais conhecido49.

Com esse tipo de possibilidade conflitual iminente, é necessário estar bem atento para a pessoa com quem falamos, o que nos leva a uma relação social íntima, até mesmo descontraída, no Brasil. A nossa cordialidade, portanto, está ligada dialeticamente à brutal lógica das identidades sociais, suas descobertas e a oscilação do sistema entre cumprir a lei e respeitar a pessoa50. A partir disso, podemos analisar o conflito entre duas éticas: a burocrática e a pessoal. O sabe com quem está falando? se apresenta enquanto tentativa de burlar, passar por cima de uma, é uma reivindicação de uma pessoa ao ser tratado enquanto indivíduo.

O sabe com quem está falando? é, portanto, uma ferramenta desveladora da realidade nua e crua. É utilizada de maneira violenta, vale ressaltar, pois é a partir da violência que é possível hierarquizar quando os outros meios – vestimenta, linguagem – falham irremediavelmente51. É o instrumento utilizado pelos superiores estruturais para que sua aparência de igual perante aquele com quem se relaciona desapareça e seja substituída por uma identidade própria e valorosa. Sendo os operadores do direito, como já foi historicamente demonstrado, alguns desses superiores estruturais, é possível perceber a manutenção dessas práticas por estes que supostamente são os defensores da legalidade e da justiça, escancarando uma grande contradição de nosso sistema.

7. Conclusão

Após compreender a formação do bacharel contemporâneo a partir de sua responsabilidade na construção do Estado Nacional, a distinção entre pessoas e indivíduos, as implicações e o funcionamento do poder simbólico, do jeito e do rito do sabe com quem está falando? é possível tirarmos algumas conclusões.

Os operadores do direito possuem muito mais poderes do que os estabelecidos em lei. Seu alto posicionamento social devido à construção histórica de uma imagem de importância, simbolizados pelos adereços típicos, pela vestimenta, pela linguagem, permitem o exercício da violência simbólica – que é insconsciente para ambos os pólos. Além disso, a consciência

49 DAMATTA, 1997, p. 211.50 Ibidem, p. 216.51 Ibidem, p. 214.

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desse alto posicionamento estrutural permite sua reivindicação constante, seja utilizando os adereços para uma possível identificação ou externalização de uma suposta seriedade, seja de maneira expressa e autoritária com quem não a identifica à primeira vista.

É primordial que os operadores do direito percebam esse mecanismo opressor em que estão inseridos e o coloquem em cheque. Os rituais jurídicos, as diversas togas solenes, a linguagem inacessível, não são somente uma tradição, são mecanismos de poder e servem para a manutenção da hierarquia social. Pouco auxiliam no alcance da justiça ou na consolidação da igualdade, liberdade. Muito pelo contrário, essa cultura jurídica só tem sido fundamental para a manutenção das estruturas de poder de nossa sociedade.

Faz-se eminentemente necessária, portanto, uma análise crítica do que é comum e diário no “universo jurídico”. Essa reflexão é essencial para que seja possível perceber os problemas da realidade atual e transformá-la. Para que seja possível desvelar as estruturas de dominação que constantemente os operadores do direito auxiliam a manter e se reproduzir – como foi buscado explanar nesse artigo – é preciso reconhecê-las e estudá-las a fundo.

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