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1 HILÉIA REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO AMBIENTAL DA AMAZÔNIA Ano 1, n. 1, v. 1

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HILÉIA REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO AMBIENTAL DA AMAZÔNIA Ano 1, n. 1, v. 1

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SUMÁRIO

1. INICIATIVAS DE PROTECCIÓN PENAL DEL MEDIO AMBIENTE EN LA UNIÓN EUROPEA Alvaro A. Sánchez Bravo.................................................................................................. pg. 5

2. DIREITOS E HUMANOS: ESPAÇOS A SEREM CONQUISTADOS...GEOGRAFIAS A SEREM CONSTRUÍDAS... Alcindo José de Sá.............................................................................................................pg.27

3. ENSAIO DO LIXO AO LUXO: A GESTÃO DOS RESÍDUOS SÓLIDOS E A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL Solange Teles da Silva, Andréa Borghi Moreira Jacinto, Clarice Seixas Duarte.........................................pg .85

4. ESTADO E OS POVOS INDÍGENAS: UMA PROPOSTA DE RELAÇÃO DEMOCRÁTICA INTERCULTURAL Fernando Antonio de Carvalho Dantas.............................................................................pg .96

5. A GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS NO ESTADO DO AMAZONAS: OS PRIMEIROS PASSOS PARA A CRIAÇÃO DO CONSELHO ESTADUAL E AS DIFICULDADES PARA A INSTALAÇÃO DOS COMITÊS DA BACIA HIDROGRÁFICA Rejane da Silva Viana.......................................................................................................pg.111

6. PROPRIEDADE INTELECTUAL E ARRANJOS PRODUTIVOS LOCAIS: A APLICABILIDADE DA LEI E O PAPEL DA SECRETARIA DE ESTADO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO AMAZONAS Serguei Aily Franco de Camargo, Genise de Melo Bentes, Fabiana dos Santos e Souza............................pg.121

7. EXIGIBILIDADE DE POLÍTICAS PÚBLICAS AMBIENTAIS E SEU CONTROLE JURISDICIONAL ATRAVÉS DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA Sebastião Ricardo Braga Braz...........................................................................................pg.145

8. O ESTATUTO DA CIDADE E A QUESTÃO DAS FAVELAS NOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS Jefferson Ortiz Matias, Dillings Barbosa Maquine, Edson Ricardo Saleme.................................. ..........pg .159

9. AS NAÇÕES INDÍGENAS E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL Edilton Borges Carneiro...............................................................................................................................pg.180

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APRESENTAÇÃO

A Hiléi@, Revista Eletrônica de Direito Ambiental da Amazônia, surge como espaço

dinâmico, destinado à apresentação e divulgação na internet das reflexões produzidas no

processo de construção do conhecimento humano, jurídico e humanístico-jurídico-ambiental,

desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da

Universidade do Estado do Amazonas.

Os contextos diversos e complexos do mundo contemporâneo, em relação constante e

paradoxal, com o acirrado processo de globalização econômica e cultural, implicam em

transformações sociais, jurídicas, econômicas e políticas, gerando novos problemas e

conflitos, especialmente no que concerne ao direito e ao seu estudo. A verticalidade do

discurso global que busca legitimar os processos de universalização da cultura do mercado

quer seja na vertente única da produção e do consumo capitalistas, transformando tudo em

mercadoria, ou, na imposição de modelos de normatividade supostamente eficazes para

proporcionar o desenvolvimento, provocam uma certa idéia de que não existe solução fora

desses parâmetros, favorecendo um renovado processo econômico neocolonial.

Nesse sentido, refletir desde os contextos da existência, significa proporcionar e criar os

espaços de lutas. Lutas pelo conhecimento, pelo direito, pela vida e dignidade humana.

Assim, este periódico científico que ora se lança como espaço para divulgação e reflexão do

direito ambiental, tem no contexto amazônico e brasileiro, e, em sentido mais ampliado, em

trocas geopolíticas e cognoscitivas mais iguais na correlação sul-norte, norte-sul, espiralando

a seara da complexidade cultural, da sócio e biodiversidade. Almeja-se, portanto, constituir-

se, pelo diálogo, em âmbito plural e heterogêneo para convergências de conhecimentos e

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alternativas, com perspectivas transdisciplinares nas abordagens e conteúdos, assim como

interinstitucional e translocal nos sujeitos.

Ademais, a riqueza humana, configurada nas diversidades sócio-culturais-ambientais,

evidenciam as imprescindíveis relações homem-natureza, pois o homem, como ser desta

integrante, a modifica, culturalizando os espaços com suas ações. Se, por um lado, a cultura

ocidental promoveu processos mecanicistas no trato com o meio que podem, segundo as

estatísticas e estudos ambientais, resultar na degradação e exaurimento dos recursos naturais,

com conseqüências drásticas na qualidade e manutenção da vida humana; por outro, a

consciência da inexorabilidade desse processo desencadeia o desenvolvimento de teorias

relacionadas a práticas que proporcionem o equilíbrio entre homem e natureza, que definam a

proteção e redisciplinem sua apropriação econômica, possibilitando, assim o desenvolvimento

sustentável.

O sentido e o alcance desta revista reside na proporção e difusão que as reflexões

alcancem a complexidade e singularidades da dimensão das relações entre o homem e o meio.

Prof. Dr. Fernando Antonio de Carvalho Dantas Coordenador do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental

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INICIATIVAS DE PROTECCIÓN PENAL DEL MEDIO AMBIENTE EN LA UNIÓN

EUROPEA

Alvaro A. Sánchez Bravo1

1. El diseño comunitario de la política medioambiental.

Los Tratados fundacionales de la CEE de 1957 no previeron la política ambiental

como materia a desarrollar por las recién creadas instituciones comunitarias. No obstante,

situaciones y circunstancias de diversa etiología propiciaron que se iniciara una reflexión

acerca de la necesaria consideración de los problemas medioambientales para una correcta

articulación de esa Europa unida que se pretendía constituir.

Las reticencias iniciales se amparaban en que las medidas de protección ambiental

supondrían un serio obstáculo al desarrollo empresarial, contrarias al principio de libre

circulación de bienes y mercancías, deviniendo una auténtica traba al comercio.

Pero, simultáneamente, el aumento de los niveles de contaminación, y sobre todo, la

constatación de que los daños ambientales no quedaban reducidos a las fronteras de un

Estado, evidenció que las legislaciones nacionales no bastaban para solucionar una problema

1 Doctor en Derecho. Profesor de Filosofía del Derecho de la Universidad de Sevilla, España. Profesor de

Política Criminal del Instituto Andaluz Interuniversitario de Criminología Director del Seminario Criminología y Medio Ambiente de la Universidad de Sevilla.Presidente de la Asociación Andaluza de

Derecho, Medio Ambiente y Desarrollo Sostenible. Profesor Colaborador del Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas.

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de tal calado, siendo necesario instituir algunos mecanismos de cooperación

intergubernamental.

Así en la década de los setenta se produjo un cambio sustancial con el reconocimiento

de que una política comunitaria de medio ambiente era tanto una necesidad fundamental

como legítima2.

La preocupación medioambiental dejó de ser un tema de interés para una minoría de

amantes de la naturaleza, para convertirse en un tema de interés general.

La labor de la Unión Europea en los últimos treinta años ha sido capital en este

sentido. Ha propiciado el acuerdo para el desarrollo de nuevas políticas ambientales, la

aprobación de nuevos marcos legislativos y la adopción de medidas realistas para su

aplicación. Ha colaborado igualmente en la elaboración de programas globales para luchar

contra la contaminación, desarrollando un programa de sensibilización de los ciudadanos

acerca de la importancia de este tema 3.

En 1992, con la adopción del Tratado de Maastricht, se consideró que el medio

ambiente no es un departamento estanco dentro de las políticas comunitarias, sino que las

decisiones adoptadas en otros ámbitos les afectan bien o mal. Es por ello que desde entonces

las políticas medioambientales deberán ser consideradas para el desarrollo de cualquier

iniciativa que puedan afectarles.

A nivel global, la Unión ha favorecido e impulsado acuerdos para luchar contra el

cambio climático, apostando por compromisos prácticos e impulsando un progreso sólido 4.

La labor desarrollada desde la Cumbre de la Tierra (Rio de Janeiro, 1992) hasta la cumbre de

2 Comisión Europea, Institut für Europäische Politik, Europa de la A a la Z. Guia de la integración, europea, Oficina de Publicaciones Oficiales de la Unión Europea, Luxemburgo, 1997, p. 99. 3 Comisión Europea, Por un futuro más verde. La Unión Europea y el medio ambiente, Oficina de Publicaciones Oficiales de la Unión Europea, Luxemburgo, 2002, p. 3. 4 WALLSTRÖM, M., Obras son amores, que no buenas razones , en Medio Ambiente para los Europeos, nº 12, noviembre de 2002, pp. 3-6.

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Johannesburg, pasando por Kioto (1997) son buena muestra de la apuesta decidida de la

Unión por una lucha sin cuartel para la defensa y protección del medio ambiente desde una

perspectiva universal e integradora.

Desde el año 1973, la Unión ha adoptado una serie de planes de acción en materia

medioambiental muy completos. En el 2001 lanzó su Sexto Plan de Acción en Materia de

Medio Ambiente. Con vigencia hasta el 2010 define siete grandes ámbitos en los que es

preciso seguir trabajando: contaminación atmosférica, reciclado de residuos, gestión de los

recursos, protección del suelo, medio ambiente urbano, uso sostenible de los pesticidas y

medio ambiente marítimo.

El Programa de Acción no pretende solo elaborar iniciativas legislativas, sino que

asumiendo una nueva perspectiva, pretende potenciar la cooperación , la información 5 y la

actuación conjunta con todos los sectores interesados.

2. El marco normativo: el incumplimiento de los Estados.

El art. 174 TUE establece que la política comunitaria medioambiental responderá a

cuatro grandes objetivos:

- conservación, protección y mejora de la calidad del medio ambiente;

- protección de la salud de las personas;

- utilización prudente y racional de los recursos naturales;

- fomento de las medidas a escala internacional destinadas a hacer frente a los

problemas regionales o mundiales del medio ambiente.

5 Directiva 2003/4/CE del Parlamento Europeo y del Consejo de 28 de enero de 2003 relativa al acceso del público a la información medioambiental y por la que se deroga la Directiva 90/313/CEE del Consejo, DOCE L 41/26, 14.02.2003.

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Por otra parte, la política de la Unión en materia medioambiental debe basarse en el

principio de cautela. Como ha señalado la propia Comisión, esto significa que en los casos de

riesgo en los que no se cuente con pruebas científicas concluyentes, pero si con un estudio

inicial que permita albergar dudas razonables sobre los posibles efectos perversos sobre el

medio ambiente y la salud, se deberá considerar la adopción de medidas al respecto 6.

Junto a él se formalizan, igualmente, los principios de prevención y preservación, el de

corrección de los atentados al medio ambiente en la fuente 7 , y el ya clásico principio de

quien contamina paga .

Todo ello en el contexto del principio que rige todos los ámbitos de actividad

comunitaria, y que no es otro que el de desarrollo sostenible 8. Con este se pretende conseguir

un equilibrio entre el desarrollo económico y social y la defensa del medio ambiente. Que la

explotación de los recursos naturales se haga de tal forma que, propiciando el progreso de los

pueblos, se proteja la propia naturaleza para que las próximas generaciones puedan seguir

prosperando.

Junto a estas mención en los Tratados, la legislación ambiental cuenta con una

trayectoria de más de 25 años 9. Desde entonces más de 200 directivas y reglamentos han

intentado poner restricciones y limitaciones a las actividades lesivas, centrándose

fundamentalmente en la protección del medio acuático, el control de la contaminación

atmosférica, las sustancias químicas, la protección de la fauna y la flora, la contaminación

6 Comisión Europea, Por un futuro más verde, cit., p. 7. 7 Se trata de desarrollar medidas tendentes a eliminar las fuentes de producción de daños ambientales; es decir, eliminar aquellas actividades que son el origen de los atentados. Lo que se pretende es prevenir, antes que reparar los daños. 8 Este principio se generalizó por primera vez a raíz de la Conferencia de Rio de 2002, en la que se fijó un doble objetivo: transformar los hábitos contaminantes del consumo en los países industrializados; y luchar contra la pobreza. 9 La Primera Directiva de medio ambiente fue la relativa a la clasificación, embalaje y etiquetado de sustancias peligrosas de 1967 (Directiva 67/548)

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acústica, la eliminación de residuos, y últimamente, la biodiversidad y el desarrollo

sostenible.

Pero, junto al principio de desarrollo sostenible, el principio de subsidiariedad 10 juega

un papel relevante que no debe obviarse. Como es conocido, este principio significa que el

desarrollo de determinadas políticas no han de ser gestionadas y desarrolladas íntegramente

por la Unión. Si los objetivos pueden alcanzarse por los Estados , la Unión no actuará. A

sensu contrario cuando quede patente la inoperancia o la insuficiencia de la actuación estatal,

el desarrollo será a nivel comunitario.

Pero en el ámbito medioambiental, esta aparente claridad en el reparto de competencias

de actuación se ve seriamente condicionada, por cuanto, como señala Zilioli 11, en este sector

del Derecho se palpa una evidente tensión entre la necesidad de políticas y soluciones

globales, homogéneas y unificadas para responder suficientemente a problemas

transnacionales, y la necesidad y reivindicación por los Estados de ámbitos de actuación para,

a través de normas propias, satisfacer necesidades sentidas a nivel nacional.

A este respecto Chicharro Lázaro 12, ha señalado como la acción comunitaria en este

ámbito presenta, entre otras, una doble justificación:

- el problema presenta aspectos transnacionales : en el sector medioambiental el carácter

transnacional o transfronterizo de los problemas es patente en numerosos casos;

- previene posibles distorsiones del mercado único: la ausencia de política comunitaria

de medio ambiente podría desembocar en la fragmentación del mercado interior, gracias a la

10 El art. 5 TCE establece: En los ámbitos que no sean de su competencia exclusiva, la Comunidad intervendrá, conforme al principio de subsidiariedad, sólo en la medida en que los objetivos de la acción pretendida no puedan ser alcanzados de manera suficiente por los Estados miembros, y , por consiguiente, puedan lograrse mejor, debido a la dimensión o a los efectos de la acción contemplada, a nivel comunitario . 11 ZILIOLI, C., L´applicazione del principio di sussidiarietà nel diritto comunitario dell´ambiente , en Rivista Giuridica dell´Ambiente, nº 10, 1995, pp. 533-534. 12 CHICHARRO LÁZARO A., La aplicación del principio de subsidiariedad al área del medio ambiente , en Unión Europea Aranzadi, año XXIX, nº 2, febrero 2002, p. 7.

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aparición o mantenimiento de legislaciones nacionales que crean trabas a la libre circulación

de bienes entre los Estados miembros.

Desgraciadamente, la realidad es que en numerosas ocasiones los problemas

medioambientales presentan una dimensión transnacional que requieren soluciones

coordinadas. Pero frente a ello todavía se alzan las voces de los Estados, celosos guardianes

de una mal entendida autonomía, y que además se amparan en cuestiones tales como la

protección de sus intereses económicos o se determinados sectores empresariales para

incumplir o abstenerse de aplicar la legislación ambiental.

Ello ha motivado que la acción individual de cada uno de los Estados sea insuficiente

para preservar convenientemente el medio ambiente. Además la transición de las previsiones

normativas comunitarias a la práctica es un proceso proceloso, cuya eficacia depende en

buena medida los Estados cumplan con su parte de responsabilidad incorporando las

Directivas a sus legislaciones internas.

La situación actual es muy insatisfactoria en este campo, produciéndose numerosos

casos de incumplimiento grave de la legislación ambiental. Ello ha llevado a la Comisión ha

proponer una serie de medidas más drásticas, en cuya consideración nos detendremos

seguidamente.

3. La opción por la protección del medio ambiente mediante el Derecho

Penal: la iniciativa de la Comisión.

La constatación de los múltiples y graves incumplimientos de la legislación

comunitaria ambiental, ha colmado la paciencia de la Comisión en su objetivo de diseñar

una política comunitaria medioambiental.

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Una de las causas fundamentales ha sido la laxitud de las sanciones establecidas por

los Estados Miembros, que no se consideran suficientes, adecuadas y disuasorias para luchar

contra los atentados al medio ambiente.

Además no todos los Estados miembros poseen en sus legislaciones penales, ni

contemplan en sus políticas criminales sanciones claramente represivas cuando de delitos

medioambientales se trata. Ello provoca un déficit de seguridad jurídica 13 palpable.

De todos es conocido como en los estados democráticos el derecho penal se considera

la última frontera, la ultima ratio, a cuyo auxilio se recurre ante sucesos (acciones y/u

omisiones) de especial gravedad que requieren el máximo reproche por vulnerar los valores y

derechos fundamentales , individuales y colectivos, que nos definen como personas y

ciudadanos.

Resulta por ello muy relevante que la Comisión Europea en sus iniciativas opte por la

adopción de políticas protectoras tan contundentes. La razón estriba, creemos que con acierto,

en la constatación de que numerosos atentados al medio ambiente, no son una cuestión menor,

o una mera infracción administrativa sino verdaderos delitos medioambientales contra los que

hay que luchar con la contundencia del derecho penal.

A ese objetivo se dirige la Propuesta de Directiva relativa a la protección del medio

ambiente por medio del derecho penal 14, y en cuyos contenidos nos detendremos.

La iniciativa se inscribe en la preocupación por una política uniforme en al defensa del

medio ambiente, y la opción por el derecho penal se contempla, pese a las reticencias de los

Estados, como veremos posteriormente, en atención a dos variables.

13 Sobre la segurida jurídica vid. PEREZ LUÑO, A.E., La seguridad jurídica, 2ª edic. revisada y puesta al día, Ariel, Barcelona, 1994. 14 Propuesta de Directiva del Parlamento Europeo y del Consejo relativa a la protección del medio ambiente por medio del derecho penal, COM (2001) 139 final. 2001/0076 (COD), Bruselas, 13.03.2001. Para seguir el iter legislativo de esta propuesta http://europa.eu.int/prelex/detail_dossier_real.cfm?CL=es&DosId=163001

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1. Principio de la prevención general. Sólo las acciones penales, a juicio de la Comisión,

tienen un efecto suficientemente disuasor. Por un lado, al representar el maximun de reproche

social, se configuran como un claro mensaje a los delincuentes. Por otro, evitan que la mera

satisfacción económica, sirva para compensar casos de enorme daño medioambiental. El

clásico principio de que quien contamina paga se ha revelado como insuficiente, por cuanto

que no ha servido para disminuir los niveles de incumplimiento de la legislación ambiental.

Muchas empresas están dispuestas a satisfacer la multas y sanciones administrativas, pues los

beneficios de su proceder lesivo siguen siendo cuantiosos.

2. Reforzamiento de las medidas de investigación y de procesamiento. Es indudable que

las medidas de investigación penal, y su efecto sobre los implicados, gozan de un naturaleza

mucho más contundente que permite asegurar la eficacia de las investigaciones. Además, la

Comisión pretende atajar con ello una cuestión flagrante, y que pone en entredicho la eficacia

y contundencia de las sanciones. Este hecho no es otro que las autoridades administrativas o

civiles encargadas de tramitar los expedientes sancionadores alas empresas contaminantes

son, en numerosos Estados, las mismas que concedieron los permisos o licencias para

desarrollar dichas actividades.

En el fondo se pretende dar cumplimiento a una vieja aspiración de los defensores del

medio ambiente, y creo que de todos los ciudadanos, y es que la justicia cabalgue por su

senda, sin interferencias espurias.

Para la consecución de tal objetivo, pueden establecerse tres reglas básicas que

delimitan el ámbito, la extensión y la vinculación de la iniciativa comunitaria: a) serán los

propios Estados miembros los que decidirán las sanciones penales conforme a su derecho

interno; b) su ámbito de aplicación se concreta en los daños intencionales al medio ambiente o

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al daño causado por negligencia grave (por tanto, no se considerara delito cualquier tipo de

contaminación); y c) la Directiva incorporará los actos que ya están expresamente prohibidos

por el derecho ambiental vigente en la Unión 15.

Conforme a su artículo 1 el propósito de la Directiva es asegurar una aplicación

efectiva del Derecho comunitario relativo a la protección del medio ambiente estableciendo

en la Comunidad un conjunto mínimo de delitos . La cuestión por tanto no es establecer una

nueva política, sino dentro de la misma línea de actuación reforzar uno de sus elementos: la

eficacia. Materialmente la actuación queda delimitada por el propio Derecho comunitario,

pues la iniciativa sólo se extiende a las actividades que incumplen el Derecho comunitario, o

las normas adoptadas por los Estados en desarrollo y cumplimiento de la legislación

ambiental (como vemos, de nuevo el principio de subsidiariedad).

La definición de que sea delito y de los elementos que la integran se contempla en el

art. 3. Se determina como principio general que serán delictivas las actividades (entendidas

como comportamiento activo y la omisión, cuando haya un deber legal de actuar, como señala

el artículo 2.b) que se cometan intencionadamente (dolo) o con negligencia grave y que

puedan ser atribuidas a personas físicas o jurídicas. Las actividades contaminantes cubiertas

son aquellas que generalmente causen o puedan causar deterioro significativo o daño

sustancial del medio ambiente. Respecto a las actividades de peligro , la Comisión señala

como se han prohibido per se en virtud de las legislaciones comunitarias,

independientemente de si hay pruebas de un impacto dañino específico al medio ambiente en

un caso concreto e individual. El Derecho comunitario considera tales actividades dañinas o

particularmente peligrosas para el medio ambiente. Por esta razón, estas actividades deben

también considerarse delitos, pues el riesgo para el medio ambiente radica en la actividad

como tal, independientemente del daño final que cause .

15 IP/01/358. Bruselas, 13 de marzo de 2001.

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La enumeración de las infracciones que merecen la calificación de delito se han

seleccionado en atención a que su infracción provoca graves daños al medio ambiente, y su

inclusión evidencia que el hecho de que las estas actividades continúen existiendo en partes

de la Comunidad es un importante indicador de que las sanciones existentes no surten siempre

el necesario efecto de disuasión 16.

Serán delitos, de acuerdo a la propuesta, las siguientes actividades:

(a) el vertido de hidrocarburos, aceites usados o lodos de aguas residuales;

(b) el vertido, emisión o introducción no autorizados de una cantidad de materiales en el

aire, el suelo o el agua y el tratamiento, vertido, almacenamiento, transporte, exportación o

importación no autorizados de residuos peligrosos;

(c) el vertido no autorizado de residuos en o dentro de la tierra o en el agua, incluida la

explotación no autorizada de un vertedero;

(d) la posesión, apropiación, daño, matanza no autorizados o el comercio de especies

protegidas de fauna y flora silvestres o de partes de las mismas;

(e) el deterioro significativo de un hábitat protegido;

(f) el comercio no autorizado de sustancias que agotan la capa de ozono;

(g) la actividad no autorizada de una fábrica en la que se llevan a cabo manipulaciones

peligrosas o en la que se almacenan o se utilizan sustancias o preparaciones peligrosas;

Esta enumeración debe completarse con el elenco de normas enumeradas en el Anexo

de la propuesta, y que colman materialmente la prohibición de actividades descritas.

Como señala la propia Comisión, a efectos de la presente Directiva, cualquier

modificación futura de las directivas enumeradas en el anexo se aplicará automáticamente a

esta directiva El objetivo no es otro que asumir una visión dinámica y de numerus apertus en

la determinación de la legislación ambiental cuyo incumplimiento generaría responsabilidades

16 Propuesta de Directiva..., cit., p. 4.

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penales. Estableciendo esta cláusula se garantiza que no se verá menoscabada la seguridad

jurídica, pero tampoco los niveles de protección ante los nuevos retos a que haya que hacer

frente.

De otra parte, esta propuesta, considerando el principio de subsidiariedad, no prevé la

regulación de las investigaciones, ni de los procesos y procedimientos penales y procesales.

Corresponde a los Estados miembros, establecidas las conductas punibles, determinar las

formas de imponer las sanciones, de acuerdo a sus especificidades normativas internas. Sólo

se impone un requisito insalvable: las sanciones serán efectivas, proporcionadas y disuasorias,

como establece su artículo 4.

En lo tocante a su dimensión subjetiva, se establece que la responsabilidad por los

hechos tipificados en el art. 3 se exigirá no sólo a los autores sino también a los cómplices

(participantes e instigadores) .

La naturaleza de las sanciones a imponer se bifurca, conforme al artículo 4, según los

responsables sean personas físicas o personas jurídicas.

En cuanto a las personas físicas, deben ser castigadas con sanciones penales, que

supondrán en los casos más graves la privación de libertad. Igualmente se establece la

imposición de multas, exclusión del derecho a los beneficios públicos o ayudas,

descalificación temporal o permanente, de la práctica de actividades comerciales, colocando

la actividad bajo supervisión judicial o liquidando la empresa del infractor.

En lo tocante a las personas jurídicas, la propia Comisión determina que es esencial

para la aplicación efectiva del Derecho comunitario que protege el medio ambiente, que

pueden ser tenidas por responsables y que se tomen en la Comunidad sanciones contra las

mismas 17. A tal efecto, debe considerarse la imposición de sanciones que no sean penales,

siempre y cuando cumplan el sacro principio ya reiterado de que sean efectivas

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16

proporcionadas o disuasorias ( se piensa en multas, supervisión judicial, decisiones de

liquidación o exclusión del derecho a beneficios o ayudas públicos).

El artículo 5 contempla la obligación de los Estados miembros de informar a la

Comisión de las medidas adoptadas para el cumplimiento de la directiva 18. El artículo 6

determina los plazos de transposición al derecho interno de los Estados miembros 19.

La propuesta se cierra con la determinación del plazo de entrada en vigor (artículo 7) y

con la clásica mención comunitaria de que los destinatarios de la directiva serán los estados

miembros (artículo 8).

Observará el lector como la propuesta de la Comisión es bastante exigua. Pero no

puede ser de otra manera. Su objetivo es articular una norma mínima de protección del medio

ambiente mediante el derecho penal. La labor se antoja titánica por las reticencias que ya se

han constatado, y que incluso han propiciado la elaboración de otras alternativas legislativas

que creo necesario considerar.

4. La contraoferta de los Estados miembros.

Los Estados miembros, agrupados en el Consejo, no han acogido con buen agrado (por

no decir con ninguno) la propuesta elaborada desde la Comisión.

17 Propuesta de Directiva..., cit., p. 5 18 Cada tres años, los Estados miembros transmitirán a la Comisión un informe sobre la aplicación de esta Directiva. Basándose en estos informes, la comisión presentará un informe comunitario al Parlamento Europeo y al Consejo. 19 (1) Los Estados miembros adoptarán las disposiciones legales, reglamentarias y administrativas necesarias para cumplir la presente Directiva más tardar el [el 1 de septiembre de 2003]. Informarán inmediatamente de ello a la Comisión. (2) Cuando los Estados miembros adopten esas disposiciones, incluirán una referencia a la presente Directiva o irán acompañadas por ella con motivo de su publicación oficial. Los Estados miembros establecerán las modalidades de la mencionada referencia. (3) Los Estados miembros comunicarán a la Comisión el texto de las disposiciones de Derecho interno que adopten en el ámbito regulado por la presente Directiva.

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Ellos también manifiestan estar preocupados por el aumento de las infracciones al

medio ambiente, su extensión transnacional, abogando igualmente por la necesidad de actuar

de modo concertado para proteger el medio ambiente a través del derecho penal.

Ahora bien, lo que no están dispuestos a asumir es que por parte de la Comisión se

intente imponer una Directiva, que según manifiestan, tras ser estudiada se llegó a la

conclusión de que no se puede alcanzar la mayoría necesaria para su adopción debido a que la

mayoría consideraba que esta propuesta superaba las competencias que el Tratado constitutivo

de la Comunidad Europea otorga a la Comunidad y que los objetivos pueden alcanzarse

mediante la adopción de una Decisión Marco basada en el Título VI del Tratado de la Unión

Europea .

Las objeciones parecen ser al procedimiento y al instrumento jurídico adoptado por la

Comisión para acometer esta política, pero realmente tras ello se esconde una opción de los

Estados miembros por mecanismos menos intrusivos en sus competencias, más propios de la

cooperación política que de la obligatoriedad jurídica.

Para ello la Decisión Marco 2003/80/JAI 20 se articula en un texto que fue la

alternativa al presentado por la Comisión, matizando, ampliando o reduciendo, según el caso,

las previsiones establecidas en la Propuesta de Directiva.

Su artículo 2 determina el elenco de actividades que deben ser objeto de prosecución y

castigo penal, pues deberán ser tipificadas como delito en cada una de las legislaciones de los

Estados miembros. Estas son:

a) el vertido, la emisión o la introducción de una cantidad de sustancias o de

radiaciones ionizantes en la atmósfera, el suelo o las aguas, que causen la muerte o

lesiones graves a las personas;

20 Decisión Marco 2003/80/JAI del Consejo, de 27 de enero de 2003, relativa a la protección del medio ambiente a través del Derecho penal, DOCE L 29, 05.02.2003.

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b) el vertido, la emisión o la introducción de sustancias o de radiaciones

ionizantes en la atmósfera, el suelo o las aguas, que causen o puedan causar su deterioro

duradero o importante, la muerte o lesiones graves a las personas, o daños sustanciales a

monumentos u otros objetos protegidos, a bienes, a animales o a plantas;

c) la eliminación, el tratamiento, el almacenamiento, el transporte, la exportación

o la importación ilícitos de residuos, incluidos los peligrosos, que causen o puedan causar

la muerte o lesiones graves a las personas, o daños sustanciales a la calidad del aire, del

suelo o de las aguas o a animales o plantas;

d) la explotación ilícita de instalaciones en donde se realice una actividad

peligrosa y que, fuera de dichas instalaciones, cause o pueda causar la muerte o lesiones

graves a las personas, o daños sustanciales a la calidad del aire, del suelo o de las aguas o

a animales o plantas;

e) la fabricación, el tratamiento, el almacenamiento, la utilización, el transporte,

la exportación o la importación de materiales nucleares u otras sustancias radioactivas

peligrosas que causen o puedan causar la muerte o lesiones graves a las personas, o daños

sustanciales a la calidad del aire, del suelo o de las aguas o a animales o plantas;

f) la posesión, apropiación, daño o matanza ilícitos o el comercio de especies

protegidas de la fauna y flora silvestres o de partes de las mismas, al menos cuando estén

amenazadas de peligro de extinción como se define en la legislación nacional;

g) el comercio ilícito de sustancias que agotan la capa de ozono.

La referencia al agua deben entenderse conforme a lo conceptuado en el artículo 1 de la

Decisión: todas las clases de agua subterráneas y superficiales, incluida el agua de lagos,

ríos, océanos y mares. Asimismo, en actividades ilícitas cabe subsumir toda infracción a una

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ley, un reglamento administrativo o una decisión adoptados por una autoridad competente,

incluidas las que hagan efectivas disposiciones vinculantes de derecho comunitario, con

objeto de proteger el medio ambiente.

Como se observará las menciones son casi idénticas a las reseñadas en la Propuesta de

Directiva, que han servido de base para la elaboración de esta alternativa 21

Las actividades referidas serán sancionadas cuando fueren cometidas dolosamente, si

bien el artículo 3 establece que sean tipificadas como infracciones penales aquéllas cuando se

cometan por imprudencia, o al menos que la imprudencia sea grave.

Al igual que la propuesta de Directiva se contempla el castigo no sólo de los autores,

sino de los partícipes o instigadores.

En cuanto a la naturaleza de las sanciones, se establece un régimen dual dependiendo

de si la responsabilidad es imputable a una persona física o a una persona jurídica.

Conforme al artículo 5 las sanciones deben ser efectivas, proporcionadas y efectivas,

incluyéndose en los casos más graves, penas de privación de libertad. Asimismo podrán

imponerse otras sanciones como prohibición del desempeño de actividades empresariales o la

fundación, gestión o dirección de empresas o fundaciones cuando los hechos causa de la

condena evidencian un alto riesgo de que el condenado pueda volver a repetir los mismos

hechos.

Las personas jurídicas, presentan una regulación más detallada. Tampoco debe causar

sorpresa este extremo, pues respecto a las personas físicas es más fácil determinar la

responsabilidad, y constituye una regulación normal en las legislaciones nacionales. Donde si

surgen discrepancias, y omisiones, es en la determinación de los mecanismos de atribución de

21 Así lo manifiesta el Considerando (5) cuando expresa: El Consejo consideró oportuno incorporar a la presente Decisión marco algunas de las disposiciones de fondo incluidas en la propuesta de directiva, en particular las que definen lo que deben hacer los Estados miembros para tipificar estas conductas como delito en su Derecho nacional.

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responsabilidad a las personas jurídicas. Si como señala la propia Decisión marco estas

infracciones pueden generar la responsabilidad no sólo de las personas físicas, sino también

de las personas jurídicas resulta evidente que una normativa que desde los Estados

miembros pretende unificar sus legislaciones no podía obviar una solución única y unificada,

aunque sea de mínimos, de la responsabilidad penal de las personas jurídicas cuando de

delitos ambientales se trate.

Siguiendo lo indicado en el art. 6.1 deberán adoptarse las medidas necesarias para

garantizar que las personas jurídicas puedan ser consideradas responsables por hechos

cometidos por cualquier persona, sea a título individual, sea como representante de un consejo

de administración, que tenga un cargo directivo basado: a) en un poder de representación; b)

una autoridad para adoptar decisiones en nombre de la empresa; o c) una autoridad para

ejercer un control sobre la empresa.

La responsabilidad no sólo se determina cuando se actúe en provecho propio de la

empresa, extendiéndose a quien actúa como cómplice o como instigador de los delitos.

Pero no sólo se castigan las conductas activas . Del mismo modo se contempla la

responsabilidad por omisión . Es decir, cuando como señala el punto 2, del precepto que nos

ocupa se determina que cada Estado miembro adoptará las medidas necesarias para

garantizar que una persona jurídica pueda ser considerada responsable cuando la falta de

vigilancia o control por parte de una de las personas jurídicas a que se refiere el apartado 1

haya hecho posible que una persona sometida a la autoridad de la persona jurídica de que se

trate cometa las infracciones señaladas en los artículos 2 y 3 en provecho de dicha persona

jurídica .

Todo ello, sin perjuicio de la responsabilidad en que pudieran incurrir las personas

físicas que sean autoras, cómplices o encubridoras de las conductas anteriormente descritas.

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Se pretende con ello que la responsabilidad de la empresa u organización no excluya o

camufle la responsabilidad de quien realiza o colabora en el delito.

Las sanciones, al igual que para las personas físicas, deben ser efectivas,

proporcionadas y efectivas, adoptando, conforme al artículo 7, la forma de multas penales o

administrativas, que podrán ir acompañadas de otras sanciones, tales como exclusión del

disfrute de beneficios y ayudas, prohibición del desempeño de actividades, vigilancia y/o

disolución judicial, y de la obligación de adoptar determinadas medidas para evitar las

conductas punibles.

El aseguramiento de las medidas reseñadas supone que los Estados miembros

deberían establecer una jurisdicción amplia en materia de delitos contra el medio ambiente

de manera que se evite que las personas físicas o jurídicas puedan eludir el enjuiciamiento

por el mero hecho de que el delito no se cometió en su territorio 22.

Con ese objetivo el artículo 8 establece que cada Estado será competente cuando la

infracción se cometa:

a) total o parcialmente dentro de su territorio, incluso cuando los efectos se

produzcan totalmente fuera;

b) a bordo a de un barco o avión que enarbole su pabellón;

c) por cuenta de personas jurídicas cuya sede central se encuentre en su territorio;

d) por uno de sus nacionales, siempre que la legislación de ese Estado miembro

disponga que la conducta sea sancionable también en el país en que haya tenido lugar, o si

el lugar donde se cometió no recayera bajo ninguna jurisdicción territorial.

No obstante, se contemplan excepciones a asumir la competencia, o a restringirla a

casos concretos, cuando de los supuestos contemplados en los epígrafes c) y d) se trate.

(¡sigue pesando mucho aún el principio de territorialidad penal!).

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Para evitar la impunidad de determinados nacionales de los Estados miembros cuando

éstos no prevean conceder la extradición se determina en el artículo 9 la obligación por parte

del Estado no extraditante de establecer su propia competencia para conocer de las

infracciones cometidas por sus propios nacionales fuera de su territorio.

Pero no basta con reconocer la competencia, sino que se obliga a los Estados a someter

los hechos a sus autoridades judiciales, pudiendo solicitar el auxilio y la cooperación

conforme a lo establecido en el Convenio Europeo de Extradición.

El 15 de abril de 2003 la Comisión europea presentó un recurso 23 contra la Decisión

Marco, basándose fundamentalmente en que las medidas que pretende imponer la Decisión se

inscriben claramente en las competencias comunitarias, por que las mismas deben

determinarse por el legislador comunitario, y no por los Estados miembros reunidos en el seno

del Consejo.

El 26 de mayo de 2005, el Abogado General del Tribunal de Justicia de la Unión

Europea, Sr. Ruiz-Jarabo Colomer, ha emitido ya sus Conclusiones 24 en las que propone la

estimación del Recurso presentado por la Comisión.

5. A modo de conclusión: la necesaria concienciación y compromiso en la defensa

de medio ambiente

Las iniciativas expuestas tienen el enorme valor de constituir la punta de lanza de una

nueva estrategia en la lucha por la defensa del medio ambiente. Muchas objeciones,

22 Decisión Marco, cit., p. 3. 23 Recurso interpuesto el 15 de abril de 2003 contra el Consejo de la Unión Europea por la Comisión de las Comunidades Europeas (Asunto C-176/03) (2003/C 135/34), DOCE C 135/21, 07.06.2003.

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comentarios, censuras y críticas podrán realizarse respecto a su contenido. Lo que sí parece

claro es la diferencia, pese a la preocupación común, en el diseño de las estrategias a

desarrollar y en la importancia de unos u otros mecanismos para llevarlas a buen puerto.

Pero es también la historia de un gran fracaso. Décadas de luchas, de normativas, de

esfuerzos parecen no haber servido para conseguir una eficaz, adecuada y unitaria defensa del

medio ambiente en el ámbito comunitario. La realidad nos golpea casi a diario con sanciones,

procedimientos de infracción y condenas a los Estados por incumplimiento, desidia, o simple

abstención en la aplicación de la normativa medioambiental. Los conceptos de soberanía y

territorialidad estatales siguen siendo enarbolados como prerrogativas intocables que impiden

una auténtica política comunitaria de defensa del medio ambiente.

Como hemos podido constatar las iniciativas consideradas no pretenden establecer una

regulación cerrada y pormenorizada de todas los problemas a considerar, se conforma con

diseñar unos estándares mínimos, como un primer paso hacia una regulación más

pormenorizada.

Ahora bien, el salto cualitativo que supone recurrir al amparo del derecho penal

merece algunas consideraciones que no deben obviarse.

El derecho penal como ultima ratio hunde sus raíces en la consideración de que sólo

los atentados más graves a los bienes e intereses individuales y colectivos son susceptibles de

someterse al reproche más contundente, a la restricción de derechos más palpable en la

libertad y el patrimonio de los ciudadanos culpables de determinados actos lesivos.

La apelación al derecho penal para la protección del medio ambiente, supone

considerarlo como uno de esos valores e intereses, como una realidad, sin la que no se

entiende la sociedad, ni los Estados, ni el propio ser humano. Si el derecho penal debe acudir

24 http://curia.eu.int/jurisp/cgi-bin/gettext.pl?lang=es&num= 79949473C19030176&doc= T&ouvert= T&seance=CONCL&where=()

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en defensa del medio ambiente es por que es tan importante, tan imprescindible, que un

ataque contra el mismo resquebraja los cimientos de nuestra propia existencia. Como ha

señalado Pérez Luño, desde las etapas iniciales de la historia el hombre acude a la

naturaleza para una mejor comprensión de su propia dimensión social 25.

Así, pues el derecho a un medio ambiente digno, y saludable, pasa a considerarse en

una nueva dimensión, digno del mayor quantum de protección por parte del ordenamiento

jurídico.

Llegado a este punto debemos seguir inquiriéndonos acerca de la relevancia de esta

nueva percepción del medio ambiente. Al igual que con otros ámbitos de la política criminal

cabe cuestionarse: ¿es, o sobre todo, será suficiente con el Derecho penal?; ¿es la única vía

que queda?

Sin recaer de nuevo en la constatación del fracaso de las formulas protectoras

ensayadas, si conviene señalar que la sola apelación al Derecho penal no bastará per se para

erradicar los atentados al medio ambiente. En primer lugar, por que el derecho penal tenderá

fundamentalmente a reprimir, a castigar una vez el daño se haya inferido. Al margen de los

clásicos fines asignados al derecho penal ( prevención general y especial), la función

preventiva requiere de otros mecanismos y de otras implicaciones. Respondemos así a la

segunda cuestión planteada: no basta sólo con el derecho penal para proteger adecuadamente

al medio ambiente.

Es evidente que el derecho penal puede jugar un papel muy importante para articular

un sistema sancionador frente a conductas que con anterioridad quedaban en la impunidad, o

en una leve sanción (generalmente económica). Pero junto a él, para asegurar que se

prevengan los atentados, deben aparecer otra variables a considerar: educación y compromiso.

25 PEREZ LUÑO, A.E., Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución, 8ª edic., Tecnos, Madrid, 2003, p. 471.

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Hay que informar a los ciudadanos de lo absolutamente imprescindible que es la

defensa del medio ambiente. No sólo por lo obvio que supone que nuestro planeta es el que

nos acoge, y que si enferma, enfermamos todos. Hay que recalcar la responsabilidad solidaria

hacia el futuro, hacia las generaciones venideras, para que puedan disfrutar de las bondades

naturales, intentado corregir y prevenir ( si es posible ) los dislates por nosotros cometidos.

Aunque parezca sorprendente, todavía amplias capas de población consideran la naturaleza y

sus recursos como algo inacabable, eterno, que siempre estará ahí, sin saber que antes había

mucho más que ver, y que, incluso lo que hoy contemplamos, no es más que la versión ajada

de una naturaleza que olvidamos, pese a ser el soporte de todo. No quisiera caer en el

pesimismo o en el drama, pero los datos son contundentes: desertización, agujero de la capa

de ozono, extinción de especies,...

La información y educación medioambiental se revela como imprescindible, para

concienciarnos todos de que no es un problema ajeno, que es un problema propio, sobre el

que hay que ponerse a trabajar entre todos, para evitar que se produzca el daño, y cuando esto

no sea por desgracia posible, que no queden impunes los culpables.

Junto a la educación, la otra variable viene determinada por el compromiso. Pero no

sólo de los ciudadanos en los términos expresados, sino también de los Estados. También

ellos deben sentir el problema como algo global, no circunscrito a los hechos acaecidos dentro

de los límites de sus fronteras territoriales.

Si no desarrollan políticos solidarias entre los Estados, sino no se comprende que el

problema es global, sino se entiende de una vez que la contaminación o el daño al medio

ambiente no conoce de fronteras, no estaremos consiguiendo nada, salvo justificar lo

injustificable o dando palos de ciego. Los responsables políticos y económicos deben

comprender que sin un pacto universal para salvar a la naturaleza no vamos a poder salvarla.

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Las iniciativas desplegadas hasta ahora evidencian las reticencias que sigue habiendo por

parte de algunos países, lo influyente de la industria, y lo poco en serio que algunos se toman

la defensa del medio ambiente.

Las iniciativas desplegadas en el ámbito comunitario, con las reservas expresadas,

tienen el valor de intentar aunar ambos elementos: el endurecimiento de las sanciones para los

criminales contra el medio ambiente, junto a la potenciación de la educación y la formación

de los ciudadanos. Como hemos observado en el propio seno de las instituciones surgen

discrepancias, formas diversas de atacar el problema, de plantear soluciones. Pero en lo que sí

existe acuerdo es la necesidad de reforzar la protección del medio ambiente.

Constatado y asumido claramente el fracaso de otras medidas protectoras ha llegado el

momento de intentar actuar con contundencia. Esperemos que las negociaciones sobre el texto

de la Propuesta de Directiva y de Decisión marco no se desvirtúen en la negociación

pendiente, y salga adelante esta propuesta.

Ahora bien, no todo acaba aquí. Al contrario, desde ese momento hay que exigir que las

medidas comunitarias adoptadas se cumplan diligente y eficazmente por los Estados

miembros. La opinión pública, a buen seguro, jugará un papel determinante en la puesta en

marcha de dichas políticas. Esperemos acontecimientos. Pero sobre todo ¡queramos a la

madre tierra!.

Universidad de Sevilla.

Verano, 2005.

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DIREITOS E HUMANOS: ESPAÇOS A SEREM CONQUISTADOS...GEOGRAFIAS

A SEREM CONSTRUÍDAS...

Alcindo José de Sá26

Um Possível Olhar Geográfico

Queiramos ou não a ciência geográfica, como área do conhecimento humano, social e

historicamente construída, oferece perspectivas de análise dos fenômenos que matizam as

transformações do mundo, já que detém sistemas de idéias imbuídas de unidade explicativa

das metamorfoses socioespaciais, a exemplo dos sistemas técnicos, científicos, informacionais

como simbiose indissociável de ações e objetos na feitura das geografias diversas. Se, no

contexto das ciências, o conhecimento geográfico ainda sofre o estigma de disciplina

embaralhada , eclética , sem consistência , na qual tudo pode ser estudado, do ambiente

físico ao meio ambiente em que se plasmam as mediações sociais, isto decorre, talvez, de

limitações ideológicas dos que situam e são situados no conhecimento. Enfim, limitações dos

que classificam o conhecimento humano em áreas estanques, na perspectiva

instrumental/produtivista como valor natural que situam seres, mas, intencionalmente,

alienando-os da possibilidade de um conhecer que recomponha a diversidade na unidade.

A propósito do uno e diverso, destaquei em outro artigo que precisamos resgatar o

entendimento do mundo a partir de um grande enredo socioespacial/histórico, com o fito de

desmascarar este contexto territorial globalista pseudo homogeneizante nas formas e

conteúdos; de uma narrativa calcada no uno geográfico (o meio técnico, científico e

26 Doutor em Geografia. Professor da Universidade Federal de Pernambuco. Professor Colaborador do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas.

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informacional manipulado pelo sistema capitalista desmaterializado ) em que na sua

totalidade funcional, na cata do lucro, mostre o seu esfacelamento estratégico/territorial

diferenciador, na lógica do desenvolvimento desigual e combinado ; quiçá, de um uno

territorial que contenha também um múltiplo no qual caibam não somente a lógica da

produção e do consumo homogeneizadora, mas também o não mercável , o não descartável,

o ócio possível , o vazio como partes das diversas temporalizações geográficas, sem

submissão a imposições totalitárias do tempo cronológico da economia global .

E um dos caminhos iniciais, ao meu ver, é o dos pensadores e demais agentes sociais

não caírem no engodo teconoburocrático de um totalitarismo empresarial que ninguém

comanda e a-espacial, como bem alertou Jabor (O Estado de São Paulo, 27/05/2003), onde

todo qualitativo tem obrigatoriamente que se permear por um quantitativo cego à diferença;

enxergar uma perspectiva relativista em que as diferenças do real (a sociedade em

movimento no e com o espaço) permaneçam heterogêneas nas suas mudanças, mas sem

perder o enfoque também do absoluto da unidade na diferença (o ideal de uma geografia

verdadeiramente humana e cidadã

por enquanto

em contraposição a uma geografia unida

apenas por uma racionalidade técnica instrumental fragmentadora).

Reforçando esta assertiva, destaca Bauman (2003,p.74) que o reconhecimento do

´direito humano´, o direito de lutar pelo reconhecimento, não é o mesmo que assinar um

cheque em branco e não implica numa aceitação a priori do modo de vida cujo

reconhecimento foi ou está para ser pleiteado. O reconhecimento de tal direito é, isso sim, um

convite para o diálogo no curso do qual os méritos e deméritos da diferença em questão

possam ser discutidos e (esperemos) acordados, e assim difere radicalmente não só do

fundamentalismo universalista que se recusa a reconhecer a pluralidade das formas que a

humanidade pode assumir [incluindo-se as geográficas], mas também do tipo de tolerância

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promovido por certas variedades de uma política dita ´multiculturalista´, que supõe a natureza

essencialista das diferenças e, portanto, também a futilidade da negociação entre diferentes

modos de vida . Enfim, a parte não pode falar pelo todo e vice-versa, pois no universo tudo é

cooperação, que supõe diversidade. Não haveria possibilidade de integração se não houvesse

partes várias e individualmente diferenciadas. Para que esta integração seja harmonia, e não

monotonia, requer-se a existência da diversidade dos indivíduos [o que acrescento, e da

diversidade dos seus espaços de vivência]...Unidade sem diversidade seria

monotonia...Diversidade sem unidade seria caos...Unidade na diversidade é harmonia...O

Cosmo é essencialmente um Universo, quer dizer, uno e diverso, um composto de unidade e

diversidade (Rohden in Spinoza, 2002,p.44).

Neste mesmo prisma, Said (2005,p.31) advoga que o trabalho intelectual deve ter como

principal objetivo a busca da promoção do conhecimento em prol da verdade e da liberdade

humana, apesar dos achaques pós-modernos de que as grandes narrativas de emancipação e

esclarecimento não têm mais vez no mundo sócio/histórico atual, pautado pela fragmentação,

fugacidade e virtualidade. Para ele de acordo com essa visão, as grandes narrativas foram

substituídas por situações locais e jogos de linguagem; agora os intelectuais pós-modernos

enaltecem a competência, e não os valores universais como a verdade e a liberdade. Sempre

achei que Lyotard e seus seguidores estão admitindo sua incapacidade preguiçosa, talvez até

indiferença, em vez de fazer uma avaliação correta daquilo que continua a ser, para o

intelectual, um enorme leque de oportunidades, apesar do pós-modernismo. Pois, de fato, os

governos continuam a oprimir abertamente as pessoas, graves erros judiciários ainda

acontecem, a cooptação e inclusão de intelectuais pelo poder continuam a calar sua voz, e o

desvio dos intelectuais da sua vocação é ainda muitas vezes uma realidade .

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O presente ensaio, de cunho compilativo, busca, tendo como pano de fundo o sistema de

ações sociais direitos humanos , tentar mostrar até que ponto o conhecimento geográfico

pode subsidiar ao entendimento deste preceito universal como fábula ideologicamente

manipulada (ou não) e, ao mesmo tempo, apontar caminhos à edificação de uma geografia na

qual os humanos conquistem e construam espaços de direito socialmente justos. Considerando

a complexidade do desafio, destaco que o artigo se pautará numa pluralidade de idéias, de

autores, de citações, destacando-se Milton Santos, Joaquín Herrera Flores, Cornelius

Castoriadis e Zigmunt Bauman, etc.

Quanto ao título, o mesmo não visa uma ciência no sentido contemporâneo e um tanto

degradado do termo

computação algorítmica e manipulação experimental

ou então no

sentido da ciência ´positiva´, da qual qualquer traço de reflexão teria sido cuidadosamente

apagada, e sim em seu sentido antigo, que se refere ao saber concernente ao homem e que

inclui todos os enigmas que a simples palavra ´saber´ suscita logo que a interrogamos.

Enigmas que se multiplicam quando lembramos que este saber do homem (genitivo objetivo,

saber sobre o homem) é também um saber do homem (genitivo subjetivo e possessivo);

portanto, que o homem é simultaneamente objeto e sujeito deste saber (Castoriadis, 2002,

p.121). Distancio-me, portanto, dos rótulos que impõem camisas-de-força ou bitolas ao

entendimento do mundo.

A propósito, neste mundo crescentemente comandado pela computação algoritma e

pelas manipulações experimentais em prol do bem-estar da nossa civilização , como explicar

tanto mal-estar social traduzido no crescente desemprego, xenofobia, pobreza, preconceito,

fanatismo, marginalização, violência, ou seja, fenômenos espacialmente expressos em

múltiplas fragmentações territoriais, a exemplo dos espaços visíveis dos bairros ricos, em

contraposição aos bairros de exclusão invisíveis (pelo menos para parcela dos que

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mandam), como favelas, alagados, presídios, etc., regiões onde os estranhos humanos não

podem se encontrar, como bem ressalta Bauman? Como entender tantos limites/fronteiras

funcionalmente concretos a expressar distanciamento na posse material e espiritual entre

classes e seres sociais, traduzidas em limites locais, regionais, nacionais e transnacionais

agressivamente fechados e longes , em um meio racional tecnicista integrador (internet,

celular, etc.)? Como situar tanta expropriação, inclusive a expropriação ao direito de viver o

espaço do próprio corpo? Em matéria recente do Jornal do Comércio (Recife, 17/08/2005),

estampava-se um índice alarmante: em 1979 o Brasil, com uma população de

aproximadamente 100 milhões de habitantes, morreram quase 8 mil pessoas por armas de

fogo; em 2004, com uma população de 182 milhões, o número chegou aproximadamente a

casa dos 40 mil. Ou seja, se no período a população aumentou em 80%, o índice de

assassinatos subiu a mais de 400%. E este quadro desalentador de barbárie, terror e de medo,

muito embora variável, parece se estender a todos os quadrantes do globo.

Buscando, como já permeado no texto, um fundamento unitário para tal panorama,

advogo como justificativa inicial, como bem já alertou Ernesto Sábato (1993), nos idos da

década de 40, a concretização geográfica do mundo máquina como uma grande engrenagem,

na qual os próprios homens são peças, formando, hoje, o que Milton Santos designa de meio

técnico, científico e informacional manipulador (o meio como máquina, trabalho morto que

demanda trabalho vivo, mas alienando o trabalhador do valor do seu trabalho) manipulado (o

meio técnico manuseado na feitura de objetos) e manipulante (como objeto manipulador, com

potenciais de manipulação, de engano) de tudo e de todos. Isto sob os auspícios do casamento

inviolável, desde a ascensão do capital mercantil, do dinheiro e da razão; dupla que no

período histórico atual, intencionalmente, demanda e cria um espaço da racionalização de

objetos e ações sociais normatizadas, tendo em vista à extração de uma mais-valia global,

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pautada na antiga lógica do desenvolvimento desigual e combinado, apesar do engodo

retórico do espaço uno.

Como hipótese inicial assevero tal proposição como a maior indutora do individualismo,

do egoísmo, do apego material e insensibilidade que hoje apregoa grande parte da

humanidade, mas também tenho ciência de que a trama é pós-moderna ; obedece a um

processo fragmentador de simulacros que encobrem uma grande narrativa de opressão e

exploração, mas também cheia de possibilidades de emancipação e esclarecimento com base

na verdade e na liberdade, quiçá libertadora. Daí o imprescindível esforço de focarmos e

desanuviarmos os processos.

Nesta investida, creio que a base inicial situa-se em situarmos a mediação do Estado-

Nação como ente de ações e concretudes sociais modernas, no bojo da fragmentação da assim

hoje chamada era software, pós-moderna. Ancorando-me em Bauman (2004,pp.157-159), na

medida em que o ´Estado de Direito´ foi se transformando, de modo gradual mas irresistível

(já que sob as constantes pressões da construção de legitimidade e da mobilização ideológica),

no Estado-Nação´, esse casamento se transformou num ménage á trois: uma trindade

constituída de território, Estado, nação. Pode-se supor que o advento dessa trindade tenha sido

um acidente histórico, ocorrido numa única e relativamente diminuta parte do globo; mas uma

vez que essa parte, embora pequena, veio a reclamar a posição de metrópole dotada de

recursos suficientes para transformar o resto do planeta em periferia, e arrogante o bastante

para esquecer ou desacreditar suas próprias peculiaridades, e como é prerrogativa da

metrópole estabelecer e impor as regras pelas quais a periferia é obrigada a viver, a

superposição/mistura da nação, Estado e território se tornou uma norma de vinculação

global .

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E aceitando ou não, todos nós estamos vinculados e sujeitos a esta norma global em

que o espaço, apesar da sua negação discursiva, é um ente concreto da soberania dotada de

poder de definir os limites da humanidade, as vidas dos seres humanos que caíram ou foram

jogados para fora desses limites e que não valem a pena . Neste prisma, o discurso e a

prática racional do Estado-Nação moderno são bastante contraditórios, pois de um lado o

mesmo incentiva a busca de homogeneidade nos padrões de consumo, de cultura, de

espaço/tempo, técnica, ciência e informação, ao mesmo tempo que as forças do mercado, sob

o guarda-chuva do Estado, ou o seu guarda-chuva, visando à acumulação capitalista ampliada,

incentivam os diferenciais valorativos de aspectos físicos, culturais, étnicos e técnicos

espraiados nos territórios como base do lucro. Não por acaso Bauman (2004,p.158) destaca

que toda aposta na pureza produz sujeira, toda aposta na ordem cria monstros. Os monstros

sujos da era de promoção da trindade território/nação/estado foram nações sem Estados [um

bom exemplo é a política fascista de Israel com a nação Palestina], Estados com mais de uma

nação [seguramente é o caso da Colômbia, Sudão, Somália, onde grupos nacionais identitários

culturalmente, ou ideologicamente, têm criado Estados paralelos] e territórios sem Estado-

nação [talvez seja bem o caso do Brasil, onde os territórios parecem carecer de Estado, como

os espaços dominados pelos poderes paralelos , bem como de nação, já que nosso povo

parece ter perdido uma linguagem básica comum]. Foi [e continua sendo] graças à ameaça e

ao medo desses monstros que o poder soberano pôde exigir e adquirir o direito de negar

direitos e estabelecer condições de humanidade que grande parte desta não poderia satisfazer

como de fato ocorreu . E continua ocorrendo, pois na trindade Estado, Nação e Território o

capitalismo parece exercer as suas chantagens de exploração que, repito, como outrora, se

pauta nas dissimetrias das escalas territoriais. Estas escalas são dosadas por diferenciais de

recursos físicos, técnicos/científicos/informacionais e humanos. Assim, se o corpo da nação

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estrutura-se por um Estado e um território sadios , os estorvos como a imigração e outras

variáveis têm que ser vistoriados e regulados pelo poder soberano para que a mesma se depure

dos indesejáveis .

Ou seja, distanciamo-nos crescentemente do preceito Kantiano de que nosso destino, em

função da esfericidade da terra, seria o de vivermos para sempre na vizinhança e companhia

de outros , já que a perfeita unificação da espécie humana por meio de uma cidadania

comum é [seria] o destino que a natureza nos reservou ao nos colocar na superfície de um

planeta esférico. A unidade da humanidade é o derradeiro horizonte de nossa história

universal (Bauman,2004,p.150). Ainda para o referido autor, muitos leitores de Kant tiveram

a chance de aprender essas assertivas há 200 anos atrás, mas o mundo, contudo, mal prestou

atenção , pois a lógica da razão e do dinheiro cada vez mais erigida territorialmente na

edificação de um meio técnico, científico e informacional demandava a fusão das nações

com os Estados, dos Estados com as soberania e desta com os territórios cercados por

fronteiras estritamente fechadas e diligentemente controladas...o mundo se ocupou em fazer

do controle dos movimentos dos seres humanos uma prerrogativa exclusiva dos poderes

estatais, em erigir barreiras àqueles que não era possível controlar e em lotá-las de guardas

atentos e fortemente armados. Passaportes, vistos de entrada e saída, alfândegas e controles de

imigração foram invenções originais da moderna arte de governar...Os filósofos podem ter

sido os principais heróis do drama lírico do Iluminismo, mas a tragédia épica pós-iluminista

quase apagou suas falas (Idem, p.150).

Ainda bem que quase! Pois nestes tempos e espaços de territórios inteligentes e

fragmentários, feitos por monstros de poderes ilimitados sobre as coisas e os homens, têm

despontado filosofias geográficas e geografias filosóficas que buscam entender e falar sobre a

supracitada tragédia; o geógrafo Milton Santos, por exemplo, em várias de suas obras,

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apercebe-se que a Geografia do presente é cada vez mais forjada por um meio

técnico/científico/informacional, monitorado pelos atores hegemônicos da globalização

capitalista, que define e redefine relações de trabalho; cria espaços de inclusão e exclusão

social; enfim, a própria geografia do mundo, que nada mais é que a extensão corpórea,

material, dos homens e suas idéias. Esta lógica de feitura geográfica, para ele, vem atribuindo

um valor descomunal ao ente meio (sistema de objetos) não como extensão diversa e unitária

para o bem do homem, mas mera máquina reprodutora de coisas que lhe sufocam como um

parasita suprime seu hospedeiro.

É um grito de alerta para uma mudança de contexto de mundo, pois como bem ressalta

Ortega y Gasset (2002,p.70), dizer que vivemos é a mesma coisa que dizer que nos

encontramos num ambientes de possibilidades determinadas. A esse âmbito costuma-se

chamar ´as circunstâncias´ . Toda vida é achar-se dentro da ´circunstância´ ou do mundo.

Porque este é o sentido originário da idéia ´mundo´. Mundo é o conjunto das nossas

possibilidades vitais. Não é, portanto, algo à parte e alheio a nossa vida, mas sua periferia

autêntica. Representa o que podemos ser; portanto, nossa potencialidade vital...O mundo ou

nossa vida possível é sempre maior que nosso destino ou nossa vida efetiva . Ou seja, o

mundo fragmentário da globalização tem nos imposto um destino, uma vida efetiva muito

aquém das nossas possibilidades vitais.

É uma filosofia geográfica densa, pautada numa geografia densa em filosofia, pois,

como assevera George (1993,p.173), outro grande geógrafo, em parte alguma o espaço

geográfico, o conjunto de locais vividos, é percepcionado como outrora à medida de um

microcosmo finito, dentro de um universo mítico. O homem contemporâneo saiu de um

quadro natural limitado e personalizado e, ao mesmo tempo, de uma sociedade fechada e

hierarquizada. Adquiriu a liberdade, perdendo as vantagens da solidariedade. Está só no

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espaço fechado dos quadros orgânicos multidimensionais, o prédio, o bairro, a cidade ou o

aglomerado, a aldeia de férias, a estrada, os transportes públicos, a fábrica, o grande armazém.

E, instintivamente, é aí que busca o significado do mundo e, ao mesmo tempo, o sentido da

vida...Não há dúvida que é à geografia que cabe responder à sua principal interrogação,

indicar-lhe onde está e quais as suas relações com o resto do mundo, qual a sua margem de

liberdade quanto aos contratempos da natureza e aos efeitos da estrutura econômica, social e

política. Ela previne-o de que não está só e que a população do mundo é animada por grandes

movimentos não coordenados, que os sintomas de riqueza mudam de lugar, que nada é

imutável, que a Terra é um local de contrastes em que uns, detentores de riquezas, têm a

possibilidade de tudo destruir, enquanto outros, em número excessivo em terras esgotadas,

não podem assegurar a própria subsistência. Qualquer conhecimento exige uma reflexão

filosófica sobre o sentido da humanidade, da sua história e do seu destino. A geografia é um

deles . Daí, creio, a pertinência de buscarmos o sentido da unidade Direitos Humanos a

partir dos contrastes, diversidades que a Terra nos propicia.

2 - Razão Instrumental e Geografia

2.1 - O Não-Lugar como Simulacro

Ortega y Gasset (2002.pp.66-75), no início do Século XX, imbuído de uma visão

premonitória, apercebe-se também da apoteose da sociedade massificada do consumo que

viria a se estender a todos os quadrantes do mundo, tendo como parâmetros o dinheiro e a

razão técnica supressora do tempo e do espaço , seja pelo capitalismo de estado ou de

mercado, já que tudo tendia ao encurtamento das distâncias, ou como posteriormente

asseverou Harvey (1993), tudo seria absorvido pela compressão espaço/tempo.

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Numa passagem aparentemente cortante para a geografia, Ortega y Gasset, ao

relembrar a densificação do mundo através das grandes descobertas territoriais e técnicas,

destaca que este aumento espaço-temporal do mundo nada significa por si só. O espaço e o

tempo físicos são o absolutamente estúpido do universo. Por isso, o culto da pura velocidade

praticada transitoriamente por nossos contemporâneos, tem mais fundamento do que

habitualmente se crê. A velocidade feita de espaço e tempo não é menos estúpida que seus

ingredientes, mas serve para anula-los. Não se domina uma estupidez a não ser com outra.

Para o homem era uma questão de honra vencer o espaço e o tempo cósmicos, que não têm o

menor sentido, e não há por que se estranhar o prazer pueril que nos dá fazer funcionar a vazia

velocidade, com a qual matamos espaço e estrangulamos tempo. Ao anulá-los, nós o

vivificamos, tornando possível seu aproveitamento vital, podemos estar em mais lugares que

antes, desfrutar mais idas e vindas, consumir em menos tempo vital mais tempo cósmico .

Esta inferição tem por base uma circunstância : a do mundo maquínico forjado pelo

capitalismo na sua ânsia mundialista e, posteriormente, globalista; mundo este esquadrinhado

em lugares concretos (muitos deles sob a égide de tempos lentos, cósmicos) para desfrute

intenso, na lógica do tempo vital do processo de acumulação capitalista, já que é da diferença

das estruturas, processos, funções e formas espaciais (Santos, 1992) e suas temporalidades,

que se forja o referido processo.

Neste prisma, apesar da tentativa à sua negação, o espaço geográfico é um estúpido

necessário , pois traduzindo a comunhão dos homens com as materialidades ambientais, é

algo inerente à sobrevivência de todas as civilizações. Esta comunhão, em grande medida,

explicita-se através das inúmeras manipulações técnicas, juntamente com o meio ambiente, ao

longo da história, pelas diversas formações sociais, visando à reprodução material das

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mesmas, bem como os seus vínculos societais e de representações simbólicas. Assim, o

espaço torna-se um ente passível de descrições das diversas temporalidades, pois é a inscrição

e corpo da própria história em movimento. Para Milton Santos (1996,p.51), o espaço é

formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de

objetos e de sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como um quadro único

no qual a história se dá. No começo era a natureza selvagem, formada por objetos naturais,

que ao longo da história vão sendo substituídos por objetos fabricados, objetos técnicos,

mecanizados e, depois, cibernéticos, fazendo com que a natureza artificial tenda a funcionar

como uma máquina. Através da presença desses objetos técnicos: hidroelétricas, fábricas,

fazendas modernas, portos, estradas de rodagem, estradas de ferro, cidades, o espaço é

marcado por esses acréscimos, que lhe dão um conteúdo extremamente técnico .

Denota-se que apesar da busca incessante ao seu extermínio , pelo capital, através do

tempo maquínico, no bojo da lógica produtivista aespacial da atual economia globalizada,

software, o espaço não somente é e sempre será um ente necessário, mas traduz e

desmascara as diversas circunstâncias, os diversos mundos ideologicamente invisíveis (o

mundo do capital especulativo e sem fronteiras , por exemplo), ou os visíveis, porém de

simulacros (o da integração mercadológica), mas apenas para os incluídos; o dos turistas,

como ressalta Bauman, no lastro da tão propalada revolução cibernética. Isto porque nunca

foram tão visíveis e vivíveis os limites e fronteiras nos diversos quadros orgânicos

multidimensionais em que se encontram os indivíduos. Este aspecto me faz recordar Ortega y

Gassete (2002, p.32) quando este afirma que nas revoluções a abstração tenta sublevar-se

contra o concreto; por isso as revoluções e o fracasso são consubstanciais. Os problemas

humanos não são abstratos, como os astronômicos e os químicos. São problemas de máxima

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concreção, porque são históricos. E o único método de pensamento que proporciona alguma

probabilidade de acerto em seu tratamento é a ´razão histórica´ que se dá no e com o espaço.

È por isso que de forma perspicaz Milton Santos (1996,p.61) acrescenta: a lei, o

costume, a família acabam conduzindo ou se relacionando a um tipo de organização

geográfica. A propriedade é um bom exemplo porque é, ao mesmo tempo, uma forma jurídica

e uma forma espacial. A evolução social cria de um lado formas espaciais e de outro lado

formas não-espaciais, mas, no momento seguinte, as formas não-espaciais se transformam em

formas geográficas. Essas formas geográficas aparecem como uma condição de ação, meios

de existência

e o agir humano deve, em um certo momento levar em conta esses meios de

existência . Reforçando esta assertiva, Edgar Morin (2002), posteriormente, destaca que o

homem cria o meio e, este, por sua vez cria o homem; são processos retroalimentadores; todas

as formas de ações abstratas políticas/jurídicas estão atreladas à dinâmica das formas e dos

conteúdos espaciais, pois toda a geografia é solidariamente, uma explicação da condição

humana, mais precisamente, das formas e vicissitudes da existência dos homens nos espaços

mais ou menos delimitados, uniformes e diversificados, num dado momento da evolução

geral dos grupos humanos e seus confrontos (George, 1993). Hoje esta circunstância se torna

mais explícita e traumática, pois a riqueza do patrimônio [geográfico] e o peso da atual ação

das tecno-economias modernas são tremendamente desiguais...É toda a herança histórica e a

acumulação das experiências técnicas, econômicas, sociais, políticas, que estão em causa,

para dar uma imagem válida da atual estado dos locais e definir as respectivas tendências

evolutivas a médio e longo prazo (Idem).

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O Espaço Real como Ente Jurídico, Político, Econômico, Histórico e Cultural

As assertivas de Pierre George são vívidas e lúcidas, pois longe de ser o estúpido do

universo , a geografia é o patrimônio sócio histórico acumulado, incluindo-se o universo

estúpido dos processos de globalização. Pois bem, no âmbito da política, que forma de ação

tem sido imposta como valor de direito humano a enquadrar a existência dos homens em

espaços mais ou menos delimitados? Faço minhas as palavras de Flores (2000,p.25): la razón

liberal se presenta bajo la forma de fuerza compulsiva de los hechos. Nada ni nadie puede

cuestionar una serie de presupuestos básicos que se consideran naturales. 1

Anteponer los

derechos a la lucha por los bienes (se ve posible y deseable realizar los más diversos bienes en

el marco de un ordenamiento globalmente neutro); 2

lo valioso de la vida se encuentra en lo

privado; 3

la acción política és un medio para llevar adelante fines económicos que no se

someten a debate; 4

la ciudadanía se reduce al goce de determinadas garantías dentro del

Estado Nación, por lo que un rechazo implícito a politizar la sociedad y a admitir una acción

política al margen del Estado. Propostas ideológicas, ficciones, que se reifican y se convierten

en procesos naturales irreversibles. Se ontologiza la acción y se la separa de los concretos en

los que se desarrolla la vida de las personas . Ou seja, a ascensão da insignificância do

cidadão consumidor, agora mero usuário, cliente, em espaços de públicos, mas não públicos,

civis, lembrando-me agora de Santos e Bauman (este ponto será retomado adiante).

Como, geograficamente, objetos e ações são algo indissociáveis, o capitalismo global

não somente tenta ontologizar as ações, mas também o próprio espaço no qual a triste vida das

pessoas usuárias e consumidoras se realizam. Esta ontologização se firma através do

pressuposto de uma geografia técnica/científica de uma racionalidade indomável, porque na

sua lógica assim deve ser. Para Castoriadis (1992) o capitalismo não é simplesmente o

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interminável acúmulo pelo acúmulo, mas a transformação implacável das condições e meios

de acúmulo, a revolução perpétua da produção, do comércio, das finanças e do consumo. O

capitalismo encarna uma significação imaginária social nova: a expansão ilimitada do

domínio racional , ou seja, a difusão de uma significação imaginária sócial [SIG] de que os

meios de acúmulos, meios geográficos naturalmente excludentes , aespaciais e atemporais

são inerentes aos nossos destinos de vida.

A Mediação Geográfico na Síntese do Tempo/Espaço Capitalista

Benjamin Franklin, certa feita, declarou que tempo é dinheiro, e pôde afirmar tal

proposição porque antes havia definido o homem como o animal que faz ferramentas . John

Fitzgerald Kenedy apregoava para os cidadãos norte-americanos que usassem o tempo como

uma ferramenta e não como um sofá (in Bauman, 2001, p.130). Em suma, o tempo se

tornou dinheiro depois de se tornar uma ferramenta (ou arma?) voltada principalmente a

vencer a resistência do espaço: encurtar as distâncias, tornar exeqüível a superação de

obstáculos e limites à ambição humana. Com essa arma, foi possível estabelecer a meta da

conquista do espaço e, com toda seriedade, iniciar sua implementação (Idem, p.130). Sim, a

razão e o dinheiro, mediados pelas ferramentas buscam incansavelmente vencer a resistência

do espaço, a sua supressão, assim como no plano das ações liberais, esta mesma razão, tente

politizar a sociedade de modo a que fique à margem do Estado. Daí a premência, como

frisado no início do texto, de enveredarmos na trama da dinâmica do meio técnico, científico e

informacional como ente a permear as experiências jurídicas, técnicas, econômicas, sociais e

políticas, enfim, a razão histórica/geográfica que na modernidade se plasma no seio do

Estado-Nação.

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Por que tal insistência em afirmar o conhecimento geográfico como instrumento de

análise da dinâmica social, sem enveredar pelo risco da tautologia? Advogo os seguintes

motivos: segmentos expressivos de intelectuais que se dizem fazer geografia continuam a

trabalhar o meio, o espaço, apenas como mero cenário da trama social, forjada pelo sistema

capitalista, com a agravante de considerar o referido sistema como um modelo imutável nos

seus processos, confundindo mundialização com globalização; já os não geógrafos que se

atêm ao fenômeno técnico, parecem esquecer que o mesmo obrigatoriamente se espacializa,

redesenhando todo o contexto das formas espaciais ou não, inclusive as jurídicas, a exemplo

dos novos recortes regionais como a União Européia e todo o seu arcabouço de novas leis e

regulações.

Aos fatos: quando da ascensão do capitalismo mercantil, e posteriormente industrial, no

rastro da primeira revolução tecnológica, houve a necessidade de absorção de novos espaços

de produção e de consumo, bem representados pelos Estados-Nações emergentes como

escalas e arcabouços para o desenvolvimento emergente da economia de mercado liberal. Para

o economista Castaldi (1999), a partir do Século XV, com a descoberta de novas terras, a

fisionomia do mundo foi adquirindo novos contornos, ocorrendo a dinamização das

economias pelo alargamento dos mercados e a ampliação do território comercial

internacional. A produção deixou de ser restrita, atendendo às necessidades dos pequenos

agrupamentos contidos nas baronias, ducados, feudos, e evoluiu para atender às solicitações

dos mercados que se ampliam com o Estado moderno absolutista .

Mas como a economia é, sobretudo, espaço político, ou território estrategicamente

manipulado pelo mercado, pelo estado e pela nação, este ménage á trois, na expressão de

Bauman, a geografia nos mostra que outros arranjos territoriais vieram a ser demandados, em

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vista da reestruturação do próprio sistema capitalista. Como exemplo estão os modelos

fordista e, posteriormente fordista/Keynesiano, com as suas grandes corporações produtivas,

regulamentações, intervenções estatais macroeconômicas de toda sorte, em grande medida de

cunho nacional, a forjarem novos processos produtivos, produtos diversificados e

massificados, relações de trabalho mais estáveis (por que não dizer mais humanos?), enfim,

mudanças geoeconômicas e geopolíticas (ascensão dos Estados Unidos como potência

imperialista hegemônica, difusão de corporações multinacionais nos países hegemonizados,

etc.). Destaca Harvey (1992) que o fordismo se aliou firmemente ao Keynesianismo, e o

capitalismo se dedicou a um surto de expansões internacionalistas de alcance mundial que

atraiu para a sua rede inúmeras nações descolonizadas...se disseminou desigualmente, à

medida que cada Estado procurava seu próprio modo de administração das relações de

trabalho, da política monetária e fiscal, das estratégias de bem-estar e de investimento

público, limitados internamente apenas pela situação das relações de classe e, externamente,

somente pela posição hierárquica na economia mundial e pela taxa de câmbio com base no

dólar . Nas palavras de Faria (2002) o tradicional Estado Keynesiano era capaz de articular

os componentes do regime de acumulação em bases nacionais, institucionalizar os conflitos e

assegurar a coesão social e o controle formal das decisões do Estado eram feitos por meio

de mecanismos jurídicos-institucionais rígidos e hierarquizados .

Não estou aqui tratando de fazer qualquer apologia ao supracitado modelo de produção,

mas deixar notório que as escalas territoriais, suas densidades técnicas, sinergias sociais como

coesão social, mecanismos jurídicos institucionais, são elementos indissociáveis, cabendo ao

espaço o seu quinhão. Repito incansavelmente: ao falarmos de custo país, não devemos

considerar tal assertiva apenas como tradutora de algo abstrato, mera numerologia. Sim, pode

se tornar número, estatística, mas antes tem que ser relevado a sua razão histórica/geográfica,

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pois todo país, todo território não é uma tabula rasa na qual qualquer razão liberal, neoliberal,

fordista/keynesiana possa se estabelecer sem as circustâncias , as nossas possibilidades

vitais de objetos e ações, fato que vai muito mais além das simples propaladas vantagens

comparativas e competitivas, pois somente são vantagens porque são possibilidades vitais, de

vida humana. O capitalismo, ou seja, a modernidade, nasceu, segundo Bauman (2001,p.131),

sob as estrelas da aceleração e da conquista de terras, e essas estrelas formam uma

constelação que contém toda a informação sobre seu caráter, conduta e destino .

A Concretude Geográfica Wetware

Ainda relevando o sentido do espaço na explicação das demais instâncias sociais

passadas e presentes, faço minhas algumas passagens do sociólogo Bauman (p.138): para ele,

no período feudal ´longe e ´tarde`, assim como perto e ´cedo´, significavam quase a mesma

coisa: exatamente quanto esforço seria necessário para que um ser humano percorresse uma

certa distancia

fosse caminhando, semeando ou arando ; era a era wetware na qual os

humanos, os bois e os cavalos que se esforçavam, se mobilizavam, punham os limites

territoriais, digamos que sob o peso do espaço. Mas o capitalismo mercantil, e posteriormente

industrial/liberal, fordista/keynesiano e agora neoliberal, como já frisado por Ortega e Gasset,

necessitavam libertar-se desse estúpido do universo. Assim, a história do tempo começou

com a modernidade. De fato, a modernidade é, talvez, mais que qualquer outra coisa, a

história do tempo: a modernidade é o tempo em que o tempo tem uma história (Bauman,

2001, p.129). E esta história, também como já ressaltado, é a história de uma nova geografia

de objetos velozes, de meios de transportes não-humanos e não-animais; não do inflexível

wetware e sim da técnica de viajar .

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A Geografia Hardware

Continuando a me ancorar nas proposições espaçiais/temporais de Bauman, o tempo

se tornou o problema do ´hardware´ que os humanos podem inventar, construir, apropriar,

usar e controlar; não do wetware impossível de esticar . Assim o tempo difere do espaço,

como já antes frisado por Breton, pois agora pode ser manipulado e mudado. Por conseguinte,

segundo Bauman (2001, pp.130-131), o tempo/espaço wetware tornava os humanos

semelhantes; o hardware os tornava diferentes...quem viajasse mais depressa podia reivindicar

mais território

e controlá-lo, mapeá-lo e supervisioná-lo -, mantendo distância em relação

aos competidores e deixando os intrusos de fora...´a conquista do espaço [ou a busca do seu

extermínio?] veio significar máquinas mais velozes. O movimento acelerado significava mais

espaço, e acelerar o movimento era o único meio de ampliar o espaço. Nessa corrida, a

expansão espacial era o nome do jogo e o espaço o seu objetivo; o espaço era o valor; o

tempo, a ferramenta . São assertivas densas e pertinentes, pois demonstram o quanto a razão

histórica é perpassada pela razão da feitura espacial que, no capitalismo, é dotada em demasia

da racionalidade instrumental.

Transpondo-me agora para um contexto mais micro e retomando os aspectos

econômicos/técnicos/espaciais da circunstância do fordismo/keynesianismo, com base nos

pressupostos de Baumam (2001,pp.132-135), o mesmo ressalta que esta era hardware, ou

tempo da modernidade pesada, configurava-se por uma geografia onde tamanho é poder,

volume é sucesso . Configurava-se um período de fábricas gigantescas e pesadas, muros

altos a protegê-las, grandes equipes de trabalho, poderosas locomotivas , gigantescos

transatlânticos . Foi o período da conquista territorial. A riqueza, o poder estavam

firmemente enraizadas ou depositadas dentro da terra

volumosos, fortes e inamomíveis

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como os leitos de minério de ferro e de carvão...O que quer que ficasse entre os postos

avançados dos domínios imperiais em competição era visto como terra de ninguém, sem

dono, como um espaço vazio

e o espaço vazio era um desafio à ação e uma censura à

preguiça...Ainda menos suportável era a idéia dos ´espaços em branco´ do globo: ilhas e

arquipélagos desconhecidos, massas de terra à espera de descoberta e colonização, os

interiores intocados dos continentes ; ainda nesta circunstância de mundo, a aventura e a

felicidade, a riqueza e o poder eram conceitos geográficos ou ´propriedades territoriais´-

atados a seus lugares, inamomíveis e intransferíveis...Riqueza e poder que dependem do

tamanho e da qualidade do hardware tendem a ser lentas, resistentes e complicadas de mover.

Elas são ´encorpadas´ e fixas, feitas de aço e concreto e medidas por volume e peso...a lógica

do poder e lógica do controle estavam fundadas na estrita separação entre o ´dentro´ e o ´fora´

e numa vigilante defesa da fronteira entre elas. As duas lógicas, reunidas em uma, estavam

incorporadas na lógica do tamanho, organizada em torno de um preceito: maior significa mais

eficiente. Na versão pesada da modernidade, o progresso significava tamanho crescente e

expansão espacial . Mas eis aparentemente um paradoxo: quando porém, chegava o

momento da fortificação do espaço conquistado, de sua colonização e domesticação, fazia-se

necessário um tempo rígido, uniforme e inflexível: o tipo de tempo que pudesse ser cortado

em fatias de espessura semelhante e passível de ser arranjado em seqüências monótonas e

inalteráveis. O espaço só era ´possuído´ quando controlado

e controle significava antes e

acima de tudo amansar o tempo´, neutralizando o seu dinamismo interno: simplificando, a

uniformidade e coordenação do tempo...o tempo rotinizado prendia o trabalho ao solo,

enquanto a massa dos prédios da fábrica, o peso do maquinário e o trabalho permanentemente

acorrentavam o capital. Nem o capital nem o trabalho estavam ansiosos para mudar; e nem

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seriam capazes disso , pelo menos até que o neoliberalismo mudasse, por alegada

incapacidade de permanência deste casamento.

Que lúcida geografia explanada por um sociólogo! David Harvey, como geógrafo, alude

ao mesmo tema, porém se atendo mais às ações, a exemplo do papel crescente das regulações

corporativas e estatais, que induzem a tal feitura espacial, micros e macros, quando da

ascensão liberal e, posteriormente, da economia reguladora. Todavia, independente das linhas

analíticas, o que mais aflora nessas longas citações de Bauman, indispensáveis para mim, é a

singular mediação das ferramentas a construírem as diversas escalas de vida, de liberdade, de

opressão, ou mesmo de morte. Relembrando George (1993), o homem da contemporaneidade

saiu do quadro natural limitado e personalizado , de uma sociedade fechada e

hierarquizada , digamos que no contexto dos diversos gêneros de vida situados em lugares

peculiares, adquirindo a noção de liberdade liberal burguesa, todavia perdendo as vantagens

da solidariedade . Mas como ressaltei no início, neste ensaio tento reflexionar, apreender e

analisar os enigmas que aprazem ou maltratam a humanidade numa perspectiva objetiva,

histórica e dialética e, neste sentido, creio que o homem de hoje não somente está perdendo a

pequena liberdade como qualquer espírito de solidariedade. Assim como no Estado de

bem-estar social , continua só no espaço fechado dos quadros orgânicos multidimensionais,

o prédio, o bairro, a cidade ou o aglomerado, a aldeia de férias, a estrada, os transportes

públicos, a fábrica, o grande armazém . Digo mais: continua só e fechado nos supracitados

quadros orgânicos multidimensionais, com o diferencial de que os mesmos se degradaram,

pois para muitos só resta a desumanidade da carência de um prédio, um bairro, uma fábrica,

enfim, da cidade como sinônimo de civilidade, de tolerância. Afinal, como disse Ortega e

Gasset, não se domina uma estupidez a não ser com outra e esta outra, claro, tem se

delineado com a proclamada e decantada economia neoliberal e seu engodo do não-lugar, pois

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o que mais tenho intuído, assim como George, é uma Terra em que uns, detentores de

riquezas, têm possibilidade de tudo destruir, enquanto outros, em número excessivo em terras

esgotadas, não podem assegurar a própria subsistência , se ataviando forçadamente a um

lugar.

A Face Geográfica Software

Como alerto nos meus cursos, o modo de produção capitalista no seu eixo da seqüência

histórica obedece a lógica da acumulação ampliada. Todavia, isto é muito pouco para

entendermos as engrenagens complexas em que se encontra a sociedade presente. Este

preceito marxista (acumulação ampliada) tem que ser rehistoricizado e reespacializado, visto

que, como explanado ao longo do texto, o modo capitalista de produção é um sistema que se

funcionaliza em modelos, do liberal ao neoliberal e, para tanto, a mais-valia, seu motor, exige

um constante rearranjo nos sistemas de objetos, do espaço, de relações sociais e de ações

normativas de toda sorte. Para Bauman (2001,pp.136-143), a transformação mais significativa

em questão [no mundo neoliberal] é a nova [nova?] irrelevância do espaço, disfarçada de

aniquilação do tempo [como assinalou Ortega y Gasset, desde o início do Século XX]. No

universo de software da viagem à velocidade da luz, o espaço pode ser atravessado,

literalmente, em ´tempo nenhum´; cancela-se a diferença entre ´longe´ e ´aqui´. O espaço não

impõe mais limites à ação e seus efeitos, e conta pouco, ou nem conta. Perdeu seu ´valor

estratégico , diriam os especialistas militares ...O tempo não é mais o ´desvio na busca´, e

assim não mais confere valor ao espaço. A quase-instantaneidade do tempo do software

anuncia a desvalorização do espaço. Na era do hardware, da modernidade pesada... o tempo

era o meio que precisava ser administrado prudentemente para que o retorno de valor, que era

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o espaço, pudesse ser maximizado; na era do software, da modernidade leve, a eficácia do

tempo como meio de alcançar valor tende a aproximar-se do infinito, com o efeito paradoxal

de nivelar por cima (ou, antes, por baixo) o valor de todas as unidades no campo dos objetivos

potenciais ... Há apenas ´momentos´- pontos sem dimensão... Não teria sido o espaço apenas

a primeira baixa na corrida do tempo para o aniquilamento?

Todavia, o próprio Bauman, respondendo a sua hipótese, alega o referido contexto seria

apenas uma condição liminar da história , já que a aniquilação do espaço ou mesmo a sua

irrelevância ainda não se realizaram, assim como a infinita volatilidade e flexibilização das

ações humanas, ou seja, a instantaneidade (ainda bem!), apesar do capital ser dotado de

ferramentas técnicas/científicas com altos graus de processamento informacional. Ainda para

o citado autor, A modernidade pesada mantinha o capital e o trabalho numa gaiola de ferro

de que não podiam escapar...A modernidade leve permitiu que um dos parceiros saísse da

gaiola. A modernidade ´sólida´ era uma era de engajamento mútuo...só se podia alugar e

empregar o trabalho humano junto com os restos dos corpos dos trabalhadores... A

modernidade ´fluida´ é a época do desengajamento, da fuga fácil e da perseguição inútil. Na

modernidade líquida mandam os mais escapadiços, os que são livres para se mover de modo

imperceptível...O trabalho sem corpo da era do software não mais amarra o capital: permite ao

capital ser extraterritorial, volátil e inconstante. A descoporificação do trabalho anuncia a

ausência de peso do capital...Volume e tamanho deixam de ser riscos...A obsessão pela

redução de tamanho é um complemento inseparável da mania de fusões...Fusões e redução de

tamanho não se contrapõem; ao contrário, se condicionam e se reforçam...É a mistura de

estratégias de fusão e redução de tamanho que oferece ao capital e ao poder financeiro o

espaço para se mover rapidamente, tornando a amplitude de sua viagem cada vez mais global,

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ao mesmo tempo que priva o trabalho de seu poder de barganha e de ruído, imobilizando-o e

atando suas mãos ainda mais firmemente .

É nesta nova circunstância histórica que desponta uma nova dialética; uma nova

contradição: se o mundo do capital tem demandado cada vez mais fluidez, flexibilidade,

velocidade, trabalho desmaterializado, o virtual, este mundo talvez não requeira o espaço, mas

é forçado a encará-lo como resistência, campo de força de embate social, assim como ente

imprescindível aos seus investimentos em diversos setores. Afinal, para mim, é uma tremenda

tautologia argumentar que o capitalismo valoriza certos espaços e passa a comandá-los nos

seus processos inclusivos e exclusivos, sem se ater as suas concretudes socionaturais ,

sociogeográficas, pois não creio que uma capitalizada imobiliária iria especular loteamentos

para usufruto de climas amenos no sertão do Cariri, região sobejamente conhecida por ser

dotada de temperaturas altíssimas; nem acredito que a mesma construiria um condomínio de

luxo no centro de uma grande favela. Outro detalhe: apesar do apregoado discurso da

flexibilização e fluidez, o capital tem induzido os desempregados, ou mesmo os

subempregados, a um atavismo territorial nunca visto. São pessoas obrigadas, pela total

exclusão de acesso às condições materiais mínimas de sobrevivência, a se fecharem nos

quadros orgânicos multidimensionais de favelas, palafitas, lugares recônditos no campo. A

sociedade em rede para grande parte dessas pessoas, sim, é que é realmente virtual.

Evidencia-se, então, uma geografia com inúmeras formas e seus respectivos conteúdos

(Santos, 1977), na qual há uma superposição de velocidades temporais, tendo uma um caráter

desmaterializante mais agressivo e alheio aos espaços dotados de produções, ritmos,

vicissitudes, cores, sons do concreto humanamente vivido, já que os tornou

informacionalmente, simbolicamente virtuais. Mas se os símbolos tornaram-se

simbolicamente virtuais, são apenas dados do espaço; elementos acrescidos ao espaço; não

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o espaço (a não ser virtualmente). Assim, o real é o próprio espaço concreto com o qual

lidamos e atribuímos inúmeros valores, inclusive a simbologia da economia espacial da

globalização.

Neste sentido e retomando Bauman (2004,p.122-125), os verdadeiros poderes que

moldam as condições sob as quais todos nós agimos hoje em dia fluem num espaço global,

enquanto nossas instituições de ação política permanecem, em seu conjunto, presas ao chão;

elas são, tal como antes locais...Como operadores globais, podem perambular pelo

ciberespaço. Mas como agentes humanos estão, dia-após-dia, confinados ao espaço físico em

que operam, ao ambiente preestabelecido e continuamente reprocessado no curso de suas lutas

por sentido e identidade. A experiência humana é formada e compilada, a partilha da vida é

administrada, seu significado é concebido, absorvido e negociado em torno de lugares. E é

nos lugares e a partir deles que os impulsos e desejos humanos são gerados e incubados, que

vivem na esperança de se realizarem, que se arriscam a se frustrar e, na verdade, com muita

freqüência se frustram...As cidades contemporâneas são campos de batalha em que poderes

globais e os significados de identidade obstinadamente locais se encontram, se chocam, lutam,

buscam um acordo que se mostre satisfatório ou pelo menos tolerável... . E essas batalhas são

batalhas socioespaciais, por espaços sociais a serem conquistados ou mesmo reconquistados,

o que passa, obrigatoriamente, por geografias também a serem construídas ou mesmo

reconstruídas, já que no bojo da crise do Estado-Nação, assim como outrora, é nos lugares e a

partir deles que os impulsos e desejos de direitos humanos são gerados e incubados. Como os

lugares expressam a dinâmica dos objetos técnicos manipulados, manipuladores e

manipulantes pelas forças sociais, no contexto da razão histórica, seguramente firma-se como

ente passível de filosofarmos sobre a condição humana.

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Dos Espaços do Direito Privado aos Espaços de Direito Humano, uma Geografia a Ser

Construída

Os Direitos Humanos como Discurso

Segundo Moura (2002,p.10), a aprovação da Declaração Universal dos Direitos

Humanos e proclamada pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, na reunião

de 10 de dezembro de 1948 (não por acaso, depois dos destroços da II Guerra Mundial),

marca um ponto de inflexão histórico que reflete a consciência de toda a humanidade , pois

consagra expressamente o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da

família humana, e dos seus direitos inalienáveis e iguais , constituindo o fundamento da

liberdade, da justiça e da paz do Mundo (preâmbulo). Consciência de toda a humanidade?

Reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana?

Bem, muito já foi dito a respeito do tema, sob os mais diversos ângulos do

conhecimento social, mas creio, como Castoriadis já destacou, que precisamos repisar temas

para que o mesmo seja ouvido. Daí o meu esforço de enfocar direitos humanos numa

perspectiva geográfica. Neste sentido comungo com Flores (pp.23-31) quando afirma que

los derechos humanos, como por lo general, todo fenómeno jurídico y político, están

penetrados por intereses ideológicos y no pueden ser entendidos al margen de su trasnfondo

cultural...Los derechos humanos deben ser estudiados y llevados a la práctica, primero, desde

un saber crítico que desvele las elecciones e conflictos de intereses que se hallan detrás de

todo debate preñado de ideología, y segundo insertándolos en los contextos sociales,

culturales e políticos en que necesariamente nacen, se reproducen y se transforman...entender

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los derechos como algo previo a la acción social supone establecer una dicotomía absoluta

entre ideales y hechos: aquellos formarían parte, bien de un mundo trascendente separado de

las realidades cotidianas, bien de una subjetividad no situada y dominada por pasiones y

deseos no racionales...los derechos humanos vistos como ideales se presentan como instancias

neutrales con respecto a lo político, mientras que los hechos sociales tendrían que ver con las

relaciones de poder

Ou seja, direitos humanos não é uma mera abstração descolada da razão histórica

espacilmente construida e vivificada. Como observa Hannah Arendt, com base em Edmund

Burke, um grande grande perigo para a humanidade reside na abstrata nudez ´de não ser

nada além de humana´ , pois os direitos do homem, supostamente inalienáveis, mostraram-

se inaplicáveis...onde quer que tenham aparecido pessoas que não eram mais cidadãs de

alguma estado soberano (in Bauman, 2003, p.151). Portanto, não podemos ontologizar o

destino dos seres humanos somente pelo ângulo das ações sociais, nem muito menos pelos

objetos geográficos, pois dissociadas, são perspectivas passíveis de interpretações

transcendentes da realidade cotidiana, a serem manipuladas ideologiamente pelas forças

históricas hegemônicas. Por isso, desde o início alertei para a necessidade, ao abordar a

temática direitos humanos, numa perspectiva espacial/geográfica, de nos atermos à escala do

Estado e sua base técnica/científica historicamente construída.

O Estado do Direito e seus Processos de Exclusão social e Fragmentação Territorial

O Estado como Status: um estado de coisas muito além do Estado

Segundo Souza Santos (p.174) a palavra Estado, status, significava originalmente um

estado de coisas, a situação em que se encontrava um reino ou uma comunidade . Então como

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posso situar hoje o Estado, o status dos Estados nacionais do mundo? No bojo de tudo o que

já foi relatado em termos de mudanças técnicas/territoriais e nos embasando no referido autor,

presenciamos hoje a multiplicidade de contratos econômicos transnacionais, cobrindo novas

áreas de atividade econômica e incluindo cláusulas até agora desconhecidas, e a proliferação

de códigos deontológicos, códigos de conduta privada respeitantes às atividades das empresas

multinacionais e das associações econômicas ou profissionais internacionais em domínios tão

diversos como transferências tecnológicas, mercados de capitais, publicidade, promoção de

vendas, estudos de mercado, seguros, assistência técnica, contratos de chave na mão, etc.

Todas estas novas formas de direito global criam espaços jurídico transnacional ou

freqüentemente colide com o espaço jurídico nacional (Idem, pp.215-216). E como Santos já

frisou, a lei, o costume, a família, acabam conduzindo a um tipo de organização geográfica.

Daí os mais variantes dilemas sociais do nosso tempo, como territórios sem lei , famílias

desintegradas, inclusive espacialmente, pois como frisa Bauman (2004,p.161) o poder de

excluir não seria um marco da soberania se o poder soberano não tivesse se unido ao

território...Em qualquer época as terras de fronteira foram conhecidas ao mesmo tempo como

fatores de deslocamento e unidade de reciclagem dos deslocados. Nada mais se pode esperar

de sua nova variedade global

exceto, é claro, a nova escala planetária de produção e

reciclagem dos problemas . Ainda para ele, não há soluções locais para problemas globais,

embora sejam locais as soluções procuradas com avidez, ainda que em vão, pelas instituições

políticas existentes, as únicas que até agora inventamos e de que dispomos coletivamente .

Formas Espaciais, Regulação e Fragmentação Espacial: a norma do capital

Bom, para mim as supracitadas premissas vêm corroborar o que estou sistematicamente

afirmando: falar de não-lugar ou desterritorialização, não passa mero engodo ideológico para

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a mais-valia do capitalismo globalizado se realizar, já que, apesar de negar a diferença,

usufrui pragmaticamente das forças locacionais/regionais do espaço social humanamente ou

desumanamente vivido. Neste sentido, a história como circunstância nos aponta para uma

razão incerta, o que, talvez, a médio e longo prazos haja soluções para problemas globais a

partir das instituições e objetos locais. Para Santos (1996,p.201) a dinâmica dos espaços da

globalização supõe uma adaptação permanente das formas e das normas. As formas

geográficas, isto é, os objetos técnicos requeridos para otimizar uma produção, somente

autorizam essa otimização ao preço do estabelecimento e da aplicação de normas jurídicas,

financeiras e técnicas, adaptadas às necessidades do mercado. Essas normas são criadas em

diferentes níveis geográficos e políticos, mas as normas globais, induzidas por organismos

supranacionais e pelo mercado tendem a configurar as normas públicas. Assim, graças à

competitividade, a tendência atual ao uso das técnicas e à implantação dos respectivos

objetos, tende a ser ainda mais anárquica do que antes .

Ou seja, como vivemos sob a égide de uma revolução

técnica/científica/informacional , lastreada por um capital que abstrai a si, via mercado, e a

própria técnica objetivada nos lugares (o que importa é inovação em si, ou seja, inovação

novidadeira de coisas e não de estruturas socais), o resultado não poderia ser outro: uma

anarquia (regulada) na dinâmica dos lugares em diversas escalas. Relembrando Ortega y

Gasset (2002), a abstração em períodos revolucionários tenta se contrapor ao concreto. Daí

as revoluções e os fracassos serem consubstanciais , pois os problemas humanos são de

máxima concreção . Neste prisma e tratando dos marginais urbanos, digamos, um dos

fracassos do neoliberalismo, Wacquant (2001,p.7) assinala: a marginalidade urbana não é a

mesma em todos os lugares e há pouco exotismo sobre ela. Seus mecanismos genéricos e suas

formas específicas tornam-se inteligíveis se estiverem firmemente ligados à matriz histórica

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da classe, do Estado e do sistema hierárquico característico de cada sociedade. No entanto, é

preciso desenvolver imagens mais complexas e diferenciadas dos ´marginais da cidade´, se

quisermos compreender corretamente sua condição social e interpretar seu destino coletivo

em contextos nacionais diferentes .

Pelo exposto, podemos asseverar que, empiricamente, um lugar mediante um conjunto

de informações tanto inerentes aos seus objetos (as enunciações que os mesmos conduzem e

que precisam ser decifrados quando de suas manipulações) quanto às normas impostas à

funcionalização dos mesmos pelos atores sociais, com a globalização, gera uma similitude de

atividades responsáveis por uma contigüidade funcional homóloga que os modela

geograficamente. Esta geografia, no entanto, apesar da semelhança no que respeita a sua

funcionalidade espacial, dota-se de paisagens diferenciadas; de subespaços com

comportamentos funcionais singulares, já que, todas as variáveis ´modernas´ não são

recebidas (´quem não for hoje profissional e empreendedor não se estabelece em nenhum

lugar) e as varáveis recebidas não são necessariamente da mesma geração, pois como feixes

de forças sociais (Santos, 1992,p.34) se exercendo em comum com os objetos, reforçam os

diferenciais dos referidos subespaços, num processo dialética de inclusão e exclusão na

pseudo tessitura uniforme do mercado.

Mas uma coisa é certa para entendermos a indissociabilidade das ações sociais com o

território, na busca do desenvolvimento de imagens mais complexas e diferenciadas com

vistas à compreensão melhor da condição social: mudanças na superestrutura , nas

verticalidades como normas, sejam globais, nacionais ou locais, regressam às infra-estruturas

por retroação, tornando-se partícipes das reestruturações infra-estruturais das formas e dos

conteúdos de todos os lugares no/do mundo. Ou seja, as mudanças jurídicas e políticas

impostas pelos grandes conglomerados produtivos, comerciais e financeiros globais, como a

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flexibilização do trabalho em todos os Estados, e a própria mobilidade produtiva, através da

terceirização, produção em lotes, etc., não modificam somente as configurações

territoriais/geográficas (setores inteiro do campo e da cidade não conseguem se modernizar,

pois não podem cobrir custos, dada a carência de competitividade por falta de domínio

tecnológico), como mudam também o seu próprio conteúdo social (a difusão do desemprego

estrutural, o subemprego, o desemprego temporário). E é neste cadinho que, como nos mostra

Wacquant (2001,p.7) se forjam a favela no Brasil, a poblacione no Chile, villa miséria na

Argentina, cantegril no Uruguai, rancho na Venezuela, banlieue na França, gueto nos Estados

Unidos; espaços situados na base do sistema hierárquico de regiões que compõem uma

metrópole, nas quais os parias urbanos residem e onde os problemas sociais se congregam e

infeccionam, atraindo a atenção desigual e desmedidamente negativa da mídia, dos políticos e

dos dirigentes do estado .

E é aqui que cabe com mais pertinênicia uma reflexão geográfica sobre o sentido da

humanidade, seus direitos, sua história e seu destino no período histórico atual, nos seus

diversos quadros orgânicos, como bem ressaltou George, a exemplo do prédio, do bairro, da

cidade ou o aglomerado, a aldeia de férias, a estrada, os transportes públicos, o grande

armazém, etc...no lastro da dinâmica das relações sociais multifacetadas. A propósito, como

se delineia a forma e o conteúdo das nossas cidades no presente? Bauman, Santos, Wackant e

outros autores têm sistematicamente mostrado as suas mazelas como a criação de espaços

cada vez mais anticivis; espaços de muros visíveis e invisíveis a segregar pessoas de um

convívio coletivo tradutor de civilidade. Isto porque a consciência, a psicoesfera

predominante, bem como a tecnoesfera moldadora dos ambientes socialmente vividos, têm

traduzido o predomínio do individualismo, da competição, entre grupos e seres como valores

efetivos ontologizados pelo capital em todos os quadrantes do mundo.

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Os Processos de Segregação

Como já frisei em outro artigo, para Sennet a civilidade tem como objetivo proteger os

outros de serem sobrecarregados com o nosso peso e o peso do capital, hoje, longe de forjar

uma tolerância entre os indivíduos com um propósito de convívio social relativamente

harmônico, instrumentaliza as pessoas e lugares no cerne de uma competição desumana, com

o objetivo abstrato da busca de uma acumulação ampliada, que reforça a intolerância, mais

que o contrário. Daí a crescente proliferação de espaços públicos, mas não civis, como

ressalta Bauman (2001,p.114). Espaços que encorajam a ação e não a interação . A propósito

dos Shopings Centers, qualquer interação dos atores os afastaria das ações em que estão

envolvidos e constituiria prejuízo, e não vantagem para eles. Não acrescentaria nada aos

prazeres de comprar e desviaria corpo e mente da tarefa...a tarefa é o consumo, e o consumo é

um passatempo absoluta e exclusivamente individual, uma série de sensações que só podem

ser experimentadas

vividas- subjetivamente. As multidões que enchem interiores dos

´templos do consumo´ de George Ritzer são ajuntamentos, não congregações; conjuntos, não

esquadrões; agregados, não totalidades...quem quer que entre em tais espaços, é ´interpelado´

enquanto indivíduo, chamado a suspender ou romper os laços e descartar as lealdades...o

templo do consumo bem supervisionado, apropriadamente vigiado e guardado é uma ilha de

ordem, livre de mendigos, desocupados, assaltantes

pelo menos é o que se espera e supõe .

Ou seja, a objetividade histórica, hoje monitorada por um capital material e financeiro

aespacial , e Estados que territorializam sinergias jurídicas, políticas e ideológicas à sua

funcionalidade, criam ambientes e relações sociais nas quais as partes interagem, mas

descartando (forçadamente) lealdades objetivas de classe, etnia, religião, solidariedade

espacial, etc..São pessoas e ambientes monitorados por um subjetivo criado por uma nova

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significação imaginária social onde o abstrato numerário mercadológico direto ou

indiretamente fragmenta conjuntos, congregações, totalidades, fazendo despontar uma

consciência , uma significação geográfica natural de que as partes, as pessoas, os shopings,

condomínios fechados, favelas, significam o todo histórico como destino traçado, quando na

realidade são engrenagens de um processo de uma razão hitórica feita, em se fazendo e a ser

feita, isto é, de uma sociedade em movimento. Reforçando a assertiva, Bauman (2001,p.14)

ressalta que hoje os padrões e configurações não são mais ´dados´, e menos ainda ´auto-

evidentes´ [coisa bem característica do fordismo/keinesianismo, período no qual o capitalismo

carecia da força de trabalho e domínio espacial]; eles são muitos, chocam-se entre si e

contradizendo-se em seus comandos conflitantes, de tal forma que todos e cada um foram

desprovidos de boa parte de seus poderes de coercitivamente compelir e restringir...Os

poderes que liquefazem passaram do ´sistema´ para a ´sociedade´ [de grupos, ´comunidades´],

da ´política´para as ´política da vida´- ou desceram do nível ´macro´ para o nível ´micro´ do

convívio social . Enfim, os padrões e configurações territoriais e socialmente vividos são

conflituosos e contraditórios, mas é um todo histórico perverso como grande enredo que

privilegia o micro como simulacro do todo, afinal é com a divisão que se reina melhor e com

mais segurança .

A Sociedade Real e Seus Simulacros

Diante do exposto, para mim é mais do que atual a citação premonitória de Ortga Y

Gasset (2002, p.9-10) no início do Século XX, quando afirmou que a convivência e

sociedade são termos equivalentes. Sociedade é o que se produz automaticamente pelo

simples fato da convivência. Espontânea e inexoravelmente origina costumes, usos, língua,

direito, poder público. Um dos maiores graves erros do pensamento´moderno´, cujos efeitos

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ainda sentimos, foi confundir a sociedade com a associação, que é, aproximadamente, o

contrário daquela. Uma sociedade não se constitui por acordos das vontades. Ao contrário

todo acordo de vontades pressupõe a existência de uma sociedade, de pessoas que convivem,

e o acordo só pode consistir em definir uma outra forma dessa convivência, dessa sociedade

preexistente. A idéia de sociedade como união contratual, portanto, jurídica, é a mais

insensata tentativa já feita de se colocar o carro na frente dos bois. Porque o direito, a

realidade ´direito´- não as idéias que o filósofo, o jurista ou o demagogo fazem dele é, se me

permitem a expressão barroca, secreção espontânea da sociedade e não pode ser outra coisa.

Querer que o direito reja as relações entre seres que não vivem previamente em efetiva

sociedade parece-me

e perdoem-me a insolência

uma idéia bastante confusa e ridícula do

que é o direito...Por outro lado, não se deve estranhar a preponderância dessa opinião confusa

e ridícula sobre o direito, porque uma das maiores infelicidades desta época é que, diante dos

terríveis conflitos públicos do presente, os povos do ocidente se encontraram munidos de

instrumentos arcaicos e pobres de noções sobre o que é sociedade, coletividade, indivíduo,

usos, lei, justiça, revolução, etc. Boa parte da perturbação atual provém da incongruência

entre a perfeição de nossas idéias sobre os fenômenos físicos e o atraso escandaloso das

´ciências morais´. O ministro, o professor, o físico ilustre e o novelista costumam ter dessas

idéias conceitos dignos de um barbeiro suburbano. Não é perfeitamente natural que seja o

barbeiro suburbano quem dê o tom ao tempo? .

Esta assertiva condensa, no meu entender, interpretações inestimáveis sobre os

inúmeros dilemas do nosso espaço/tempo (não mais do início do Século XX, mas do período

histórico atual), que estamos tentando desanuviar ao longo desse texto, com o subsídio dos

demais autores. Vejamos: assim como outrora, uma das maiores infelicidades hoje é que,

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diante dos terríveis conflitos públicos do presente, os povos do Ocidente (hoje com a

globalização, também de parcelas do Oriente) se encontram munidos de instrumentos arcaicos

e podres de noções sobre o que é a sociedade, coletividade, indivíduo, usos, lei, justiça,

revolução, etc. Hoje ainda mais pobres e podres, porque ideologiamente mais confusos. No

que toca a sociedade, se a mesma é convivência, hoje não são termos equivalentes. Se

sociedade é inexoravelmente convívio propulsor de costumes, usos, língua, direito, poder

público, em preceitos civilizados, talvez estejamos vivenciando uma anti-sociedade, espacial e

historicamente delimitada. Retomando Bauman, o peso do capital globalizado tem

desvirtuado todos esses parâmetros, pois a sociedade se traduz em associações,

comunidades, como grupos pré-moldados, pois os acordos das vontades normativas das elites

globais, são acordos de união contratual em que, infelizmente, põe o carro (as vontades

jurídicas/normativas) na frente dos bois (a sociedade); é a criação de uma sociedade como

prótese, simulacro. Todavia, esse novo acordo de vontades entre elites e comunidades,

pressupõe, lembrando-me Castoriadis (2002,p.111), a existência de uma sociedade

fragmentária que, infelizmente, comungo com o egocentrismo. Falando sobre o aumento

exacerbado do consumo e da degradação ambiental ele acrescenta: a tragédia da nossa época

é que a humanidade Ocidental [e também Oriental] está longe de se preocupar com elas .

Essa comunhão plasma o fragmento.

Mas retomando a configuração social do nosso tempo, como tem se expressada em

costumes, especificamente no Brasil? Não querendo exagerar, retomando Bauman

(2001,pp.108-123) ´comunidade´ é hoje a última relíquia das sociedades de outrora; é o que

sobra de uma vida melhor; compartilhada com vizinhos melhores, todos seguindo regras de

melhor convívio. Pois a utopia da harmonia reduziu-se, realisticamente, ao tamanho da

vizinhança mais próxima. Por isso, a ´comunidade´ é um bom argumento de vendas . Para

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Sennett in Bauman, invocam-se mais a lei e a ordem quando as comunidades estão mais

isoladas das pessoas na cidade...Durante as últimas duas décadas as cidades nos EUA

cresceram de maneira que homogeneizou as áreas étnicas; não é por acaso, então, que o medo

do estranho também cresceu à medida que essas comunidades étnicas foram isoladas .

É nesse cadinho que afloram as incongruências da nossa sociedade presente e o fosso

cada vez mais maior entre indivíduos, pois, ainda me lembrando de Bauman (2001,P.118),

que retoma Claude Lévy-Strauss, a estratégia da lógica do consumo embasa-se,

dialeticamente, na manipulação de duas culturas: uma antropoêmica e outra antropofágica. A

primeira consiste em vomitar , cuspir e expulsar os alheios incuravelmente estranhos; proibir

qualquer tipo de interação social, contato, do físico ao dialógico; essa estratégia êmica é bem

representada pelo encarceramento, assassinato e deportação. Para Bauman as formas

elevadas, ´refinadas´ (modernizadas) da estratégia ´êmica´ são a separação espacial, os guetos

urbanos, o acesso seletivo a espaços e o impedimento coletivo a seu uso . Já no que toca a

segunda, traduz-se numa ´desalienação´ das substâncias alheias e que consiste em devorar

culturas estranhas a dominante, através de cruzadas culturais e outros mecanismos de força,

tendo em vista afugentar preconceitos e supertições de costumes locais. Para o referido

autor, se a primeira estratégia visava ao exílio e ou aniquilamento dos ´outros´, a segunda

visava à suspensão ou aniquilação de sua alteridade .

Mas, seja qual for a estratégia, o que importa salientar é a profunda dialética perpetrada

por este feroz capital fragmentador do tempo presente pós ou pó-moderno: de um lado, a

busca de homogeneidade nos padrões de consumo, o que significa homogeneidade nos

padrões de renda, de cultura, comportamentos, de espaço/tempo, de técnica, ciência e

informação. De outra parte, dada a própria heterogeneidade do espaço, o capitalismo busca o

seu usufruto nos diferenciais de aspectos físicos, culturais, étnicos e econômicos, pois a

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extração da mais-valia absoluta e relativa, base do lucro acumulado, dá-se, assim como no

período moderno, tanto em cima do trabalho socialmente vivo, quanto do trabalho morto/vivo

(a tecnologia) tendo como lastro os desníveis sociais (que são regionais e locais). Este dilema

me faz lembrar Chauí (2000,pp.11), ao se reportar ao Estado-Nação moderno como

Semeiophoros, palavra grega composta de duas outras, semeion (signo) e phoros (expor,

carregar, trazer à frente), que podem tanto assinalar coisas abstratas, como concretas. Assim,

embora um semióforo seja algo retirado do circuito da utilidade e esteja encarregado de

simbolizar o invisível espacial e temporal e de celebrar a unidade indivisa dos que

compartilham uma crença comum ou um passado comum, ele é também posse e propriedade

daqueles que detém o poder para produzir e conservar um sistema de crenças ou um sistema

de instituições que lhes permite dominar o social. Chefias religiosas ou igrejas, detentoras do

saber sobre o sagrado, e chefias político-militares, detentoras do saber sobre o profano, são os

detentores iniciais dos semióforos. É nesse contexto que a entrada da mercadoria e do

dinheiro como mercadoria universal pode acontecer sem destruir os semióforos e, mais do que

isso, com a capacidade para fazer crescer a quantidade desses objetos espaciais .

Ascensão e Queda do Semióforo da Natio e da Cidadania

Vejo aqui um luminoso caminho para compreendermos ainda melhor o confuso menage

à trois, território, Estado e nação e seus instrumentos pobres e arcaicos de noções a respeito

do que seja sociedade, coletividade, indivíduo, usos, lei, justiça, revolução, etc. Reportando-se

a Hobsbawn, Chauí (2000,p.17) destaca que o sistema liberal (friso também que o neoliberal)

conflitua com a presença do Estado Nacional, pois sua ideologia contempla a realidade

sintetizada em duas referências econômicas: uma unidade mínima, o indivíduo, e uma

unidade máxima a empresa, de sorte que não parece haver necessidade de construir uma

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unidade superior a esta . Mas, paradoxalmente, a economia liberal prescindia da economia

nacional, já que o Estado detinha (detém?) o monopólio da moeda, das finanças públicas, das

atividades fiscais, além de manter o controle do aparato de segurança, visando assegurar a

propriedade privada e o aparato militar de repressão às classes populares . Para ela os

economistas liberais afirmavam por isso que a ´riqueza das nações´ dependia de estarem elas

sob governos regulares e que a fragmentação nacional, ou os Estados nacionais, era favorável

à competitividade econômica e ao progresso .

Esta fragmentação nacional, dialética e contraditoriamente, tinha que ser ungida por

valores sociais que, como já esboçado, permitissem uma comunhão de unidade entre os

indivíduos, afinal, nação, retomando Chauí (2000,pp.14-16) vem do verbo latim narcor

(narcer) e de um substantivo decorrente deste verbo, natio, significativo de um parto de

animais ou ninhadas; essa palavra, por extensão, passou a traduzir indivíduos nascidos num

mesmo lugar e de uma mesma mãe. No final da Antigüidade e início da Indade Média, a

Igreja Romana assimila o latim como língua usual e utiliza o plural nationes (nações) para se

referir aos pagãos e distinguí-los do populus Dei, o ´povo de Deus´ . A parir de então, a

palavra povo passou a ser sinônimo de grupos de indivíduos organizados institucionalmente,

que obedecia a normas, regras e leis comuns, a palavra ´nação´ significava apenas um grupo

de descendência comum...Povo, portanto, era o conceito jurídico-político, enquanto nação era

um conceito biológico . Todavia, anteriormente ao nascer histórico da nação e do estado-

nação como instâncias políticas, empregavam-se os termos povo e pátria , sendo esta

última derivada do latim pater (pai), não no mero sentido de genitor, mas uma figura

jurídica, definida pelo antigo direito romano. Pater é o senhor, o chefe, que tem a propriedade

privada absoluta e incondicional da terra e de tudo o que nela existe .

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Neste prisma, o ´pai é o dono do patrimonium´, e o senhor, cuja vontade pessoal é lei,

tendo o poder de vida e morte sobre todos os que formam seu domínio (casa em latim se diz

domus, e o poder da pai sobre a casa é o dominium) , Ainda segunda a autora, patrimônio é

o que pertence ao pai, patrício é o que possui um pai nobre e livre, e patriarcal é a sociedade

estruturada segundo o poder do pai . Essas denominações traduziam a divisão de classe

reinante em Roma, sendo os patrícios e seus representantes no senado os donos das terras e

dos escravos e o povo traduzido nos homens livres e plebeus, representado no senado pela

plebe , tendo no tribuno da plebe sua representação no senado. Para Chauí os patrícios eram

´os pais da pátria´, enquanto os plebeus eram os protegidos das pátria .

Porque mais essa digressão histórica? Porque queiramos ou não estamos e vivemos no

seio de nações e povos regidos por Estados, e aqueles que se vêem desprovidos dessas

heranças, raízes, bases territoriais, tornam-se ainda mais exclusivos; fora dos processos

sociohistóricos do tempo presente. Sim, a entrada da mercadoria e do dinheiro, hoje, como

mercadoria em bases globais, lastreada por uma tecnociência global, fragilizou, mas não

destruiu a tríade território, estado e nação; e ainda mais: reforçou e criou uma série de objetos

que redimensionaram para mais e para menos os referidos semióforos, pois quem não se

estabelece como cidadão consumidor, empreendedor individualista, de preferência com

vinculação no seio de um Estado-Nação, corre sério risco de se tornar um pária sem pátria,

enfim, sem nação, sem território e sem Estado. Vivemos o estratégico e terrível imbróglio

geopolítico de uma união contratual, portanto, jurídica, não como secreção espontânea da

sociedade, mas de uma pequena parcela da mesma, no qual o pater, o pai, dono do patrimônio

produtivo/financeiro nacional, em certa medida, é representado pelos conglomerados globais

difusos ; sua vontade é lei a ser executada pelas escalas nacionais com todos os seus

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semióforos traduzidos nos natio, nationes, pupulus, porém como fragmentos frágeis, instáveis,

de um pai com várias faces, pois já não quer ter responsabilidades de paternidade sólidas.

Neste prisma retomo Bauman (2003,p.50) quando frisa que aconteceu alguma coisa

que jamais teria ocorrido com Menênio Agripa quando instigava os plebeus a permanecerem

em Roma e a abandonarem os planos de separar-se deixando os patrícios por sua própria

conta. Agripa ficaria atônito ao saber que, no fim, não foram os plebeus, mas os equivalentes

contemporâneos dos patrícios de Roma antiga que (intencionalmente ou não, mas de qualquer

maneira sem nunca olhar para trás) decidiram pela ´secessão´, por abandonar seus

compromissos e lavar as mãos de suas responsabilidades. Os patrícios de hoje não precisam

mais dos serviços da comunidade, do pupulus; na verdade, não conseguem perceber o que

ganhariam permanecendo na e com a comunidade que já não tenham obtido por conta própria

ou ainda esperam assegurar por seu próprio esforço, mas podem pensar em muitos recursos

que poderiam perder caso se submetessem às demandas da solidariedade comunitária .

Assim, o que resta, então, é uma sociedade anti-social, na qual viceja não um espírito de

convivência, mas de associação de acordos de vontades e de poder entre grupos,

principalmente os inseridos nas redes globais que forjam a cultura cidadã pautada pelo

consumo de todos os produtos e serviços, inclusive o da segurança, e que enxergam os de

fora, o populus, os da solidariedade comunitária , como estorvos que não merecem nem as

migalhas dos frutos dos seus embates empreendedores. Isto vem corroborar que bem

entrelaçado com o desenvolvimento desigual da economia, da política e da cultura (outrora

coordenadas no quadro do Estado-Nação) está a separação do poder em relação à política; o

poder, enquanto incorporado na circulação mundial do capital e da informação, torna-se

extraterritorial, enquanto as instituições políticas existentes permanecem, como antes, locais.

Isso leva inevitavelmente ao enfraquecimento do Estado-nação; não mais capazes de reunir

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recursos suficientes para manter as contas em dia como eficiência e de realizar uma política

social independente, os governos dos Estados não têm escolha senão seguirem estratégias de

desregulamentação: isto é, abrir mão do controle dos processos econômicos e culturais, e

entregá-lo às ´forças´ de mercado´, isto é, às forças essencialmente extraterritoriais

(Bauman,p.89). Forças extraterritoriais, repito, mas que se realizam no espaço concreto; nos

territórios usados estrategicamente. Daí, me reportando George e a Ortega Y Gasset, ser mais

do que oportuno indagar, mais uma vez, sobre os seguintes pontos: o que é hoje sociedade,

coletividade, usos, lei, justiça, revolução? E como situarmos nos quadros orgânicos

multidimensionais do prédio, do bairro, da cidade, ou do aglomerado, da aldeia de férias, da

estrada e do transporte públicos, da fábrica do grande armazém?

Sociedade como Comunidade: a ascensão dos espaços do direito

Como anteriormente frisado, vivemos num quadro de quase barbárie, de crescente

anticivilidade, pois a economia globalizada tem desvirtuado o sentido de sociedade como

convivência e tolerância, a favor de uma visão da mesma traduzida em mera associação,

comunidades, grupos pré-moldados, já que o acordo das vontades normatizadas pelas elites

globais, pseudo desterritorializadas, são acordos de união contratual em que, infelizmente, põe

o carro (as vontades jurídidas/normativas) na frente dos bois (a sociedade na sua totalidade).

Este fato está na gênese da lógica dos inúmeros recortes territoriais, em todos os quadrantes

do mundo, forjando o que Bauman designa de espaços públicos, mas não civis, enfim, a

constituição de uma sociedade crescentemente fixada em guetos geograficamente delimitados,

retratando e fazendo parte, inclusive simbólicos, de uma estrutura social totalmente

perpassada pelo valor dinheiro; pela cultura do ter; cultura privatista e da indiferença.

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Nesta geografia, para as elites incluídas e voadoras...o lugar como tal pode ter perdido

sua importância...Mas mesmo os membros dessa elite precisam de intervalos nas angustiantes

e estressantes viagens, momentos de relaxamento de descanso, de reabastecimento da

capacidade de resistir à tensão cotidiana

e para isso precisam de um lugar seguro. Talvez os

outros lugares, os lugares das outras pessoas, não importem

mas aquele lugar especial, seu

próprio lugar, importa. Talvez também o conhecimento de que os lugares das outras pessoas

são maleáveis e indefensáveis acrescente urgência à necessidade de fortificar e tornar

inexpugnável aquele lugar próprio especial...O que eles procuram é o equivalente...O que eles

procuram é o equivalente do abrigo nuclear pessoal; o abrigo que procuram chamam de

´comunidade´. A ´comunidade´ que procuram é um ´ambiente seguro´ sem ladrões e à prova

de intrusos. ´Comunidade´´ quer dizer isolamento, separação, muros protetores e portões

vigiados (Bauman, 2003,p.103).

Ou seja, a elite voadora forja uma geografia em que paralelamente a privatização do

interno, seu lugar de estada, seja a casa, o hotel, ou a chácara, também privatiza o externo

como base material, como fonte de acúmulo de dinheiro e poder, nas geografias dos shopings,

parques temáticos, hotéis, sistemas comunicacionais, hidrelétricas, sistemas de engenharia de

toda ordem, enfim, apossa-se de toda fonte territorial de renda. O que fica fora desses pontos e

corredores a ligarem esses pontos, são concebidos como territórios ocos, territórios sem

sentido, territórios estiolados. Nesta união contratual privatista a relação custo/benefício é

demasiada favorável a referida elite, mesmo ao custo de vigilância (privada) cada vez mais

crescente, pois para esta comunidade o ônus da segurança ainda é mais oportuno que o ônus

da convivência e tolerância com a comunidade de fato , já que demandaria divisão de renda

para inversões em território ocos, indispensáveis à consciência cidadã. Diante deste

panorama, o que viceja, especificamente no urbano, são guetos comunitários , micro

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territórios privados nas brechas do que restou da sanha especulativa de interesse também

privado

e só - do capital da elite voadora. E assim, incivilizadamente, o território é montado

numa lógica perversa por uma sociedade em que a convivência passa a ser de

associações, guetos, de comunidades pautadas por acordos das vontades , especificamente

das elites de júri, pois como nos alerta Lazzarato e Negri (2001, p.65), praticamente todas as

funções políticas (tanto a construção das mediações sociais de produção e do consenso quanto

as formas de mediação entre a produção e o social, a produção de subjetividade, a organização

do espaço público) são assumidas pela empresa. Não existe mais autonomia possível para o

social, o político, a comunicação [o espacial]. Eles são completamente subordinados à lógica

da empresa .

Mas cabe ressalvar que nesse acorde de vontades o Estado do Direito é um Estado de

Direito mix em que, como ressaltado anteriormente, as formas de direito global criam espaços

jurídicos transnacionais que colidem com os espaços jurídicos nacionais , mas sempre em

favor das primeiras. Neste contexto acirram-se as discrepâncias, pois no rastro dos espaços

jurídicos tansnacionais flexíveis , criam-se cada vez mais territórios rígidos, seguros,

vigiados para o capital e seu séquito, ao mesmo tempo que enrigesse o território dos

excluídos. Para esses há a penalidade não só da insegurança trabalhista, tendo como lastro os

códigos de conduta privada respeitantes as atividades das empresas multinacionais, mas a

vigilância policial do que sobrou do resquício do Estado-Nação, além dos cães de guarda, da

vigilância privada, das câmeras, enfim, de todo o aparato segurador dos guetos; e para os

transgressores desse pandemônio: a lei local; o sistema jurídico nacional.

Daí mais uma vez a pertinência das assertivas de Bauman (2003,pp. 104-105): o bairro

seguro concebido com guardas armados controlando a entrada; o gatuno e suas variantes

substituindo os primeiros bichos-papões modernos do mobile vulgus, e juntamente

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promovidos à posição de inimigos públicos número-um; uma equiparação das áreas públicas a

enclaves ´defensáveis´ com acesso seletivo; a separação em lugar da negociação de vida em

comum; a criminalização da diferença residual

essas são as principais dimensões da atual

evolução que a nova concepção de ´comunidade se forma...Dada a intensidade do medo, se

não existissem estranhos eles teriam que ser inventados. E eles são inventados, ou

construídos, diariamente: pela vigilância do bairro, pela tevê de circuito fechado, guardas

armados até os dentes. A vigilância e as façanhas defensivas/agressivas que ela engendra

criam seus próprios objetos. Graças a elas, o estranho é metamorfoseado em alienígena, numa

ameaça. As ansiedades esparsas e flutuantes ganham um núcleo sólido. O antigo sonho da

pureza, que há não tanto tempo embalou a visão da sociedade ´perfeita´ (transparente,

previsível, livre da contingência), tem agora como projeto principal a ´comunidade do bairro

seguro´. O que aparece no horizonte da longa marcha em direção à ´comunidade segura´

(comunidade como segurança) é um mutante bizarro do´gueto voluntário´ .

Em síntese, por falta de uma real convivência, e a ascensão da sociedade como mera

associação sem a mínima vida em comum, a mesma induz à proliferação de comunidades

depuradas de civilidade, pois já não toleram minimamente a diferença; e no lastro desse

processo a sociedade/comunidade dos viajantes lança mão de vários artefatos: um, como já

vislumbrado no texto, é a razão instrumental que cria o sistema técnico, científico e

informacional como objetos perfeitos , inteligentes, num processo de retroalimentação, que

perpassa o processo produtivo, tornando cada vez mais residual o trabalho humano corpóreo.

Este resíduo torna-se um móbile vulgus de ansiosos e esparsos inimigos públicos, pois

constituem-se de gatunos a perturbar a ordem dos incluídos. Para a manutenção dessa

ordem, também é requisitada a mesma razão científica plasmada na vigilância pela tv de

circuito fechado, armas sofisticadas, etc. Todavia, o que é mais significativo na manutenção

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dessa ordenamento territorial é o mix autoritário das ações jurídicas tanto globais (não

devemos esquecer que a luta contra do terror, a deportação de indesejáveis, são embasadas em

preceitos jurídicos legítimos ) quanto locais, pois a lei nacional continua sendo implacável

com os preguiçosos e vagabundos, que se rebelarem com o status quo privado estabelecido. ,

A propósito deste mix, quando das ações de revide dos EUA, após os ataques de 11 de

setembro, leis e ordens executivas restringindo os direitos à privacidade e livre

movimentação passaram com uma velocidade e de uma maneira tal que deixariam Joe

McCarthy verde de inveja . Mal os EUA tinham completado três meses de guerra e já tinham

sido promulgadas legislações e ordens executivas assinadas, estabelecendo tribunais

militares secretos para submeter à prova cidadãos não americanos; culpa imposta por

associação à imigrantes; lançamento de um esforço maciço para rastrear 8.000 jovens

muçulmanos; autorização do procurador geral de manter presos indefinidamente estrangeiros

sob mera suspeita; expansão do uso de escutas e buscas secretas; permissão do uso de

evidências secretas em procedimentos de imigração que os estrangeiros não podem confrontar

ou refutar; autorização do Departamento de Justiça de sobrepor-se aos juízes de imigração;

destruição da confidencialidade da relação cliente-advogado, permitindo ao governo ouvir as

conversas; e perfil racial e étnico institucionalizado (Bello, 2003,p.39)

Neste contexto, a saída, em especial para os desvalidos, tem sido o refúgio na

comunidade pequena , na comunidade do engodo multiculturalista/essencialista, a lutar

(quando lutam!) por migalhas atiradas, também pela comunidade pequena, porém poderosa,

dos guetos ricos dos condomínios fechados. A comunidade do engodo leva, lembrando-me de

Bauman, ao gueto voluntário com a pretensão de servir a causa da liberdade (os condomínios

fechados), enquanto os guetos reais, os formados pelos móbile vulgos, implicam na negação

da liberdade. Nesta situação sem alternativas, o destino sem saída do morador do gueto...faz

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com que a ´segurança da mesmice´ [o gueto dos voadores] seja sentida como uma gaiola de

ferro

apertada, incapacitante e à prova de fuga. E essa falta de escolha num mundo de livre-

escolha é muitas vezes mais detestada que o desmazelo e a sordidez da moradia não

escolhida. Os que optam pelas comunidades cercadas tipo gueto podem experimentar sua

´segurança de mesmice´ como um lar; as pessoas confinadas no verdadeiro gueto vivem em

prisões (Bauman, 2003,p.107). O certo é que nesta disputa que se retroalimenta e se acirra,

parece...que a pulverização do espaço público e sua saturação por conflitos intercomunitários

é precisamente o tipo de ´superestrutura´ (ou seria melhor chamá-la de ´subestrutura´?) que a

nova hierarquia de poder servida pela estratégia do desengajamento precisa, e aberta ou sub-

repticialmente cultivará se puder. A ordem global precisa de muita desordem local ´para não

ter o que temer´ (Bauman, 2003,p.96).

O Indivído sem Direito na Comunidade do Direito

Como frisei no início do texto, o indivíduo, o ser social hoje se encontra mergulhado em

inúmeras limitações e uma delas é imposta pela fragmentação das ciências morais . Estas

classificam o conhecimento humano em áreas estanques, compartimentadas, na perspectiva

instrumental/produtivista da ideologia neoliberal como valor naturalizado que situam seres,

mas, intencionalmente alienando-os da possibilidade de um conhecer que recomponha a

diversidade do conhecer e do viver humano na existência unitária dos seus fenômenos. Esta

alienação conduz, indubitavelmente, a uma fragilidade dos indivíduos a barganharem direitos

cidadãos e para superá-la se faz necessário fugirmos das incongruências entre a perfeição de

nossas idéias sobre os fenômenos físicos e o atraso, ou mesmo o descaso, no que respeita as

ciências humanas/morais ; a indiferença em refletir e ponderar os limites da racionalidade

científica na construção de uma cidade e um Estado de direito civilizados, ou seja, a

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construção de espaços nos quais as pessoas possam fruir com relativa eqüidade. Fica evidente

que esta fragmentação do saber se atrela à fragmentação do fazer produtivo que, por sua vez,

liga-se à fragmentação do perceber, do viver e do construir espaços geográficos humanos. É

um tremendo jogo de instrumentação ideológica em reforço do individualismo.

Sobre este ponto Castoriadis (1992, pp.88-107) frisa que por mais que os cientistas

participem do processo de decisão, só podem influenciar associando-se a clãs ou ganhando a

confiança de uma das corjas político-burocráticas, que disputam entre si o poder, e usam os

prêmios científicos e técnicos, como emblemas e bandeiras, ou muito mais freqüentemente

precisam de ´especialistas´ para vestir cientificamente opções já feitas e motivadas por outras

razões...Todo mundo

liberais, marxistas, ricos, pobres, instruídos, analfabetos

creu, quis

crer, crê sempre e quer sempre crer que a tecnociência é quase onisciente, e seria quase

inteiramente boa, se malvados não a desviassem de seus objetivos autênticos ...Portando, esta

crença ultrapassa de longe toda dimensão de interesses ´particulares´ ou de ´manipulação .

Ela diz respeito ao núcleo imaginário do homem moderno, da sociedade e das instituições que

ele criou e que o criam . Mas no mundo real assim que saem do laboratório, os cientistas são

homens como os outros, tão vulneráveis à ambição, ao desejo de poder, à bajulação, à

vaidade, às influências, aos preconceitos, à cobiça, aos erros de julgamento e às tomadas de

posição irrefletidas, como qualquer outro que seja. Por isso, como podíamos prever, o imenso

progresso da saber positivo e de suas aplicações não se acompanhou de um milímetro de

progresso moral, nem entre seus protagonistas nem entre seus cidadãos ...Neste contexto de

um lado, a tecnociência produz constantemente ´poder´, no sentido limitado da capacidade

efetiva de fazer. De outro lado, com a evolução da sociedade contemporânea, esse poder não

podia ser ´utilizado´ de outra maneira, e por ninguém mais a não ser quem utiliza, isto é, por

Ninguém. Não há tecnocracia, nem cientocracia. Longe de formar um novo grupo dominante,

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cientistas e tecnologistas utilizam os Aparelhos de poder existentes (a rigor, fazem parte

deles) e esses aparelhos exploram, é certo, e oprimem quase todo mundo, mas não dirigem

realmente nada .

Neste sentido, e me reportando a outras passagens, infiro das proposições de Castoriadis

que vivemos em um novo contexto histórico no qual não é a base material, a infra-estrura que

determina a superestrutura jurídico/política, mas é o contrário, a superestrutura (ou

subestrutura com diz Bauman) que dita a infra estrutura. Como frisou Ortega y Gasset,

querer que o direito reja as relações entre seres que não vivem previamente em efetiva

sociedade parece-me

e perdoe-me a insolência

uma idéia bastante confusa e ridícula do

que é o direito , muito embora seja este direito científico , positivo que hoje impera. Ou

seja, o direito como norma pragmática fria e calculista antecipando e ditando

comportamentos, juntamente com a ciência técnica/científica/informacional desprovida de

qualquer progresso moral e a serviço de um capitalismo novidadeiro com poderes

anônimos , têm induzido a um processo de fragmentação, alienação pessoal e territorial em

que o ministro, o professor, o físico ilustre e o novelista costumam ter dessas idéias conceitos

dignos de um barbeiro suburbano . È essa força onipresente e onisciente bem orquestrada

pelo mercado globalizado que nos impele a um individualismo não mais atrelado parâmetros

mínimos de contrato social moralmente justos, mas sim a uma cultura do salve-se quem

puder.

Neste cadinho, como sugere Castoriadis (2002), cria-se o ambiente propício à ascensão

da insignificância em todas as instâncias sociais: dos insignificantes nos micro-poderes

acadêmicos aos insignificantes nas corporações e nos poderes dos Estados-Nacionais. São

insignificantes significativos, pois são esteios às estratégias de poder do Ninguém , da nova

elite global pseudo invisível e pseudo a-espacial . Como bem ressaltou Raffestin (1992), o

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verdadeiro poder é aquele que quer ver sem ser visto, e o poder da nova economia

neoliberal vê hoje no individualismo alienado o seu grande trunfo de poder. Corroborando as

profecias de Sábato nos anos 40, hoje somos verdadeiramente peças numa grande engrenagem

técnica, agora com a ilusão/alienação de que o céu é o limite aos nossos propósitos

individualistas do ter. Ou melhor, retomando Ortega y Gasset, se o mundo ou nossa vida

possível é sempre maior que o nosso destino ou nossa vida efetiva , vivemos num ambiente

de possibilidades determinadas, no qual a circunstância da ideologia reinante do consumo nos

transpõe sempre ao mundo da nossa vida de possibilidades individuais, quase ou nuca

realizáveis, em um mundo prenhe de capacidades vitais. Enfim, é a ascensão do insignificante

numa circunstância histórica onde o individualismo é imposto num grau de intencionalidade

fria e calculista jamais visto.

No entanto, autores como Castoriadis, Said e outros, têm apontado caminhos para

sairmos desta camisa de força, destacando especificamente o trabalho do intelectual nesta

empreitada. Para tanto, esse não deve ser um mero funcionário, nem um empregado

inteiramente comprometido com os objetivos políticos de um governo, de uma grande

corporação ou mesmo de uma associação de profissionais que compartilham uma opinião

comum. Em tais situações, as tentações de bloquear o sentido moral, de pensar apenas do

ponto de vista da especialização ou reduzir o ceticismo em prol do conformismo são muito

grandes para serem confiáveis. Muitos intelectuais sucumbem por completo a essas tentações

e, até certo ponto, todos nós. Ninguém é totalmente auto-suficiente, nem mesmo o mais livre

dos espíritos...Portanto, o problema para o intelectual é tentar lidar com as restrições do

profissionalismo moderno...sem fingir que elas não existem ou negando sua influência, mas

representando um conjunto diferente de valores e prerrogativas (Said, 2005,pp.86-90). O

referido autor chama essa atitude de amadorismo, literalmente uma atividade que é

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alimentada pela dedicação e pela afeição, e não pelo lucro e por uma especialização egoista

estreita...O intelectual tem de circular, tem de encontrar espaço para enfrentar e retrucar a

autoridade e o poder, pois a subserviência inquestionável à autoridade no mundo de hoje é

uma das maiores ameaças a uma vida intelectual ativa, baseada em princípios de justiça e

eqüidade .

Enfim, estamos numa circunstância histórica em que, inegavelmente, as forças

chantagistas do capital pseudo territorial nunca foram tão fortes; elas estão espraiadas em

todos os quadrantes da terra e em todas as instâncias sociais; ou como nos propõe Milton

Santos, são inúmeras verticalidades normativas sociais que se esbatem nas horizontalidades

territoriais, num processo de comunhão em que afloram as sincronias e diacronias dos lugares

à lógica do espaço/tempo da economia global. Esta lógica, como tentei mostrar ao longo do

texto, é uma lógica perversa na qual tenta bloquear qualquer sentido moral de justiça e

eqüidade, em prol de um conformismo pautado no discurso da cultura do ter, elaborada nos

Aparelhos ideológicos dos Estados e conglomerados globais, mas não tendo, ou não criando,

as engrenagens de inclusão individual e coletiva na megamáquina racional do consumo

mundializado. Esta, no entanto, apesar de comandada pela computação algoritma e

manipulações experimentais, não bloqueia por completo o sentido da geografia humana e da

história, pois relembrando, mais uma vez, Ortega y Gasset, os problemas humanos não são

abstratos...são problemas de máxima concreção, porque são históricos . E é, ao meu ver, a

dialética entre o discurso do cidadão consumidor e a máxima concreção histórica do indivíduo

cada vez mais sem direito algum, sem cidadania, que despontam os inúmeros

questionamentos, como vimos ao longo do texto, sobre sociedade, espaço, tempo, técnica,

ciência, indivíduo, usos, lei, justiça e revolução, nos quadros orgânicos multidimesionais das

diversas escalas geográficas.

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E de maneira sintética e sem pieguices, amadorista como frisa Said, a concreção

histórica do presente parece desanuviar uma sociedade não como sinônimo de pessoas que

convivem e que estabelecem acordos de vontades e sim de uma sociedade como comunidade,

coletividade, ou seja, convivências estabelecidas por acordos de vontade, uniões contratuais,

portanto, jurídicas, dentro de normas positivas impostas autoritariamente na manutenção no

status quo da comunidade dominante dos desterritorializados globais. Esta relação social

lastreia o indivíduo com uma significação imaginária social extremamente individualista em

que o mesmo parece estar contido no social, mas sem conter o social.

Nesta complexidade a ciência reforça esta significação imaginária, pois ao fragmentar

em demasia o saber em prol da especialização produtivista, racionaliza e calculiza o

indivíduo, alienando-o da possibilidade de construir uma sociedade civilizada, ou seja,

tolerante e menos usurária. Para este indivíduo, hoje, tudo é valor de uso, porque tudo é valor

de troca; o dinheiro e a mercadoria se tornaram a medida de tudo a ser usado, incluisive

e

como

das relações humanas. Relembrando Sábato, é uma sociedade do homem coisa,

objeto. A realidade justiça, a realidade direito, infelizmente, como alertou Ortega y Gasset,

não é mais secreção espontânea da sociedade; não é expressão da sociedade cidadã, mas

idéias calculistas que filósofos, juristas e demagogos fazem dela a serviço da comunidade dos

turistas globais; dos viajantes globais. Afinal, todos os preceitos jurídicos neoliberas são

impostos e os países que não acatá-los serão punidos com desinvestimentos e ficarão à

mercê (ainda mais) de seus destinos. E a revolução? Esta parece que se resume hoje a

revolução técnica/científica/informacional como lastro da cultura do ter como essência do

ser.

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Não é mais a revolução significativa da implementação de um ideal de mudança nas

estruturas sociais em prol de uma sociedade verdadeiramente civilizada, pois a geopolítica

da economia global articulou uma conspiração, não no sentido policial, mas no sentido

etimológico: tudo isto ´respira junto´, sopra na mesma direção, na direção de uma sociedade

na qual toda crítica perde a sua eficácia...As vozes discordantes ou dissidentes não são

abafadas pela mídia, as redes de cumplicidade são praticamente onipotentes. As vozes

discordantes ou dissidentes não são abafadas pela censura ou pelos editores que não ousam

publicá-las, elas são abafadas pela comercialização geral...A marginalidade passa a ser algo

reivindicado e central, enquanto a subversão é uma curiosidade interessante que completa a

harmonia do sistema. A sociedade contemporânea tem uma capacidade terrível de abafar toda

verdade divergente, seja fazendo com que se cale, seja fazendo dela um fenômeno entre

outros, comercializado como os outros...Há traição por parte dos próprios críticos ao seu papel

de críticos; há a traição por parte dos autores em relação à sua responsabilidade e ao seu rigor;

e há a vasta cumplicidade do público, que está longe de ser inocente nesta questão, visto que

ele aceita o jogo e se adapta ao que lhe dão. O conjunto é instrumentalizado, utilizado por um

sistema ele mesmo anônimo. Tudo isto não é obra de um ditador, de um punhado de grandes

ou de um grupo de formadores de opinião

é uma imensa corrente sócio-histórica que

caminha nesta direção e faz tudo se tornar insignificante (Castoriadis, 2002, pp.100-101).

Tento ser mais otimista!...

A Luta do Indivíduo por Espaços de Direito

Repito: é da dialética da máxima concreção histórica do indivíduo sem cidadania, ou

seja, sem espaço cidadão, em contraposição ao discurso racionalista da inclusão abstrata do

indivíduo insignificante, pelo também abstrato mercado, apregoado pelos cidadãos globais

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desterritorializados , que aflora a síntese do verdadeiro mundo, o mundo como conjunto

das nossas possibilidades vitais . Neste não cabe apenas a sociedade dos homens coisas

racionalmente trabalhados, mesmo porque a abstração, rememorando Ortega y Gasset, tenta

sublevar-se contra o concreto; a razão histórica/espacial como processo dinâmico que

assoma eventos dotados de incertezas, emoções, sublevações, revoltas, enfim, o espaço/tempo

feito, sendo feito e a ser feito.

É neste mundo e nesta circunstância que surgem a crítica ainda pertinente, a arte como

sublimação da alma, as insurgências micro e macros espaciais, conformismos, adesões,

cooptações, exclusões, confinamentos, opressão, enfim, recortes territoriais de vivências que

impelem os indivíduos a buscar e conquistar espaços, em vista da feitura de geografias

verdadeiramente humanas, ou seja, espaços civilizados, justos e equânimes. Portanto, o

direito humano , ou seja, a realidade ´direito´, repetindo mais uma vez a brilhante expressão

de Ortega y Gasset, não as idéias que o filósofo, o jurista ou o demagogo fazem dele , é

secreção espontânea da sociedade; é a expressão da autêntica cidadania. Isto significa dizer

que, apesar da opressão ideológica do capital global e suas mediações corporativas e de

Estado, através de Aparelhos repressores tradicionais, indivíduos e comunidades

forçosamente segregadas e fragmentadas vêm lutando em maior o menor intensidade por seus

reais direitos socialmente humanos; das prisões foras dos presídios às prisões dentro dos

presídios, os embates sociais têm se dado com maior ou menor intensidade, e em todos eles

dois grandes enredos históricos se comungam e se fundem: a luta pela liberdade e conquista

de espaços mais justos.

É um embate difícil e até agora vencido (por enquanto, daí o pessimismo reinante)

pela comunidade dos turistas globais, porque os dois desenvolvimentos

o colapso das

demandas coletivas por redistribuição (e em termos mais gerais a substituição dos critérios de

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justiça social pelos do respeito à diferença reduzida à distinção cultural) e o crescimento

selvagem da desigualdade

estão intimamente relacionados...Libertar as demandas por

reconhecimento de seu conteúdo redistributivo permite que a crescente ansiedade individual e

o medo gerados pela precariedade da vida na ´modernidade líquida´ sejam canalizados para

fora da área política

único território onde poderiam se cristalizar numa ação redentora e

radical

bloqueando suas fontes sociais...Um dos aspectos mais originais dessa mudança é a

separação entre ´a questão do reconhecimento´ e a da distribuição. Demandas por

reconhecimento tendem hoje em dia a ser apresentadas sem referência à justiça distributiva.

Quando isso acontece, suposições tácitas também são feitas, mas, ao contrário da suposições

de Weber, elas são contrafactuais. O que se supõe, afinal, é que ter assegurado legalmente o

direito de escolha significa ser livre para escolher

o que não é o caso. No caminho de uma

versão ´culturalista´ do direito humano ao reconhecimento, a tarefa não realizada do direito

humano ao bem-estar e uma vida vivida com dignidade se perdeu (Bauman, 2003, p.81). Ou,

porque não dizer, está se perdendo, porque as demandas por redistribuição feitas em nome da

igualdade são veículos de integração, enquanto que as demandas por reconhecimento em

meros termos de distinção cultural promovem a divisão, a separação e acabam na interrupção

do diálogo (idem,p.70). Por isso, como diz Friedaman (in Buaman, 2003,p.70), na

decadência do modernismo, o que sobra é simplesmente a própria diferença, e sua

acumulação . Não há falta de diferença: ´uma das coisas que não está desaparecendo são as

fronteiras. Ao contrário, parecem se erigidas em cada esquina de cada uma das vizinhanças

decadentes de nosso mundo´ .

Como a fronteira pode ser traçada tanto como limite rígido entre sistemas relacionais de

poder entre territórios dissimétricos, ou como área em avanço por conquista de novos espaços

ou de dominação, opressão ou cidadania, creio, ou tento ainda crer que o direito humano ao

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bem-estar e a uma vida vivida territorialmente dignas encontram-se nas circunstâncias

históricas do reino das possibilidades. Porque, e ainda retomando Bauman, toda aposta na

moderna pureza deságua (ou desaguou) na sujeira, e esta no tempo presente é representada em

nações sem Estado, Estados com mais de uma nação e territórios sem Estado. Temendo essas

fragmentações os poderes soberanos tentam exigir e adquirir o direito de negar direitos e

estabelecer condições de humanidade , mesmo não concedendo essas condições. Daí a

miríade de conflitos individuais e comunitárias, alienados ou não, atabalhoados ou não, em

busca de direitos a condições humanas.

David Harvey chama esses emergentes e sufocados embates territoriais de espaços da

esperança; Milton Santos denomina de espaços da contra racionalidade global. Todavia,

independente das adjetivações, são espaços substantivos de vida; de flamejar a razão histórica

como processo não meramente econômico e de racionalidade técnica instrumental, porque

esta breca solidariedades mais amplas. Como a estrutura socioespacil é cada vez mais

excludente, o que presenciamos é resgate paulatino de um padrão familiar, de vizinhança,

medieval , no qual a maior parte da população pobre, isto é, com famílias numerosas,

abarcando parentes que não se limitavam apenas aos pais e filhos e que incluíam também

sobrinhos, tios, avós, [vizinho], etc. se unem . Isto é constatável em várias regiões carentes

do mundo, onde a coabitação favorece auxílios recíprocos, fundamentais para os grupos mais

necessitados. Os lucros que o pertencimento a um grupo proporciona estão na base da

solidariedade que o torna possível´ (Oliveira, 2004.p.50). Talvez esteja nesse resgate social

(mesmo à força) de espírito retrógrado, medieval de solidariedade, a possível recomposição

e reconfiguração de uma geografia na qual os homens possam se encontrar; reaprender a

civilidade, a tolerância e a luta, enfim, a reenxergar as vantagens da solidariedade nos quadros

orgânicos multidimensionais dos Estados, da cidade, do bairro, do prédio, dos parques, das

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estradas, da fábrica, afinal os homens e mulheres do presente se distinguem de seus pais

vivendo num presente ´que quer esquecer o passado e não parece mais acreditar no futuro´.

Mas a memória do passado e a confiança no futuro foram até aqui os dois pilares em que se

apoiavam as pontes culturais e morais entre a transitoriedade e a durabilidade, a mortalidade

humana e a imortalidade das realizações humanas, e também entre assumir a responsabilidade

e viver o momento . (Bauman, 2001,p.149).

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ENSAIO DO LIXO AO LUXO: A gestão dos resíduos sólidos e a proteção do

patrimônio cultural

Solange Teles da Silva27

Andréa Borghi Moreira Jacinto28

Clarice Seixas Duarte29

A expressão do lixo ao luxo , presente no imaginário social e expressa em músicas, em

atividades de reciclagem em produtos da moda e da arte, denota a percepção de um elo que

pode ser explorado também entre categorias do pensamento jurídico e das políticas públicas: a

gestão de resíduos sólidos e a proteção do patrimônio cultural. Em ambas as esferas, trata-se

de bens, produtos sócio-culturais, criados e reproduzidos em sistemas sociais, econômicos e

políticos. A distinção entre essas esferas nota-se nos fins e modos como os indivíduos de cada

sociedade e a própria coletividade em determinado momento se relacionam com elas

em um

caso, trata-se daquilo que se quer jogar fora, que se quer eliminar, que envolve o perigo, algo

que se quer excluir e colocar à margem do espaço social, ou ao menos do espaço privado, os

resíduos sólidos (o lixo). De outro, indica-se aquilo que ser quer preservar e proteger como

patrimônio, guardar com memória e elogiar como elemento caro de identidades coletivas, é o

que determina a identidade de um povo, o patrimônio cultural material e imaterial (o luxo).

Este ensaio é o resultado inicial de reflexões apresentadas no Curso de Extensão

Oficina: Diálogos entre normas e fatos: do lixo ao luxo, realizada em 23, 24 e 30 de novembro de 2005 no Programa de Mestrado em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (Manaus) e co-organizada pelas Professoras Doutoras Andréa Borghi Jacinto Moreira e Solange Teles da Silva. Cf. Anexo Programa da oficina. As autoras desenvolverão e aprofundarão a temática em artigo a ser posteriormente divulgado. O nosso agradecimento a todos aqueles que participaram e contribuíram para fomentar essas reflexões. 27 Doutora em Direito Ambiental pela Universidade de Paris I, Pantheon-Sorbonne, Professora do Mestrado em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas, Coordenadora do Projeto Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado: a gestão de resíduos sólidos no Estado do Amazonas - FAPEAM/CNPq. 28 Doutora em Antropologia pela Universidade de Brasília, Professora do Mestrado em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas, Coordenadora do Projeto Patrimônio cultural e o direito humano ao meio ambiente ecologicamente equilibrado - FAPEAM/CNPq. 29 Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo, Professora do Mestrado em Direito Ambiental da Universidade, pesquisadora no projeto Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado: a gestão de resíduos sólidos no Estado do Amazonas - FAPEAM/CNPq.

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Tanto em um caso, como no outro, a construção de políticas públicas passa necessariamente

pela identificação do objeto real dessas políticas, ou seja, a relação entre indivíduos, grupos e

tais bens: resíduos sólidos e patrimônio cultural; como também demanda a ampliação do

diálogo e da participação dos vários setores sociais envolvidos e afetados por tais políticas.

As reflexões possíveis entre resíduos sólidos e patrimônio cultural passam assim pela

percepção social do que não se deseja, do que se busca descartar e daquilo que se busca ter,

abrigar e proteger. Trata-se de identificar como indivíduos e coletividade se apropriam dos

recursos naturais, transformam os mesmos em bens cobiçados ou em algo indesejado,

incômodo e já sem utilidade. Assim, a história dos resíduos e do patrimônio cultural se

inscreve na própria história da civilização, possibilitando sua continuidade histórica.

Analisando os restos do passado, os arqueólogos podem compreender como vivia uma

determinada sociedade; de geração em geração a transmissão de conhecimentos tradicionais

permite a preservação de saberes peculiares de grupos de uma determinada sociedade.

Estudando o que se considera resíduo sólido e patrimônio cultural, os sociólogos podem

identificar através de indicadores sociais quais são os bens, objetos-símbolos das sociedades

contemporâneas. Já os antropólogos podem evidenciar o que está no lugar (patrimônio

cultural) e o que está fora de seu lugar, fora da ordem (resíduos sólidos).30

É certo que nem a produção de resíduos sólidos nem a produção cultural não constituem

fatos novos, mas o que há de novo é a modificação dos comportamentos dos seres humanos

tanto em relação ao patrimônio cultural quanto no que diz respeito aos resíduos sólidos,

demonstrando preocupação em relação à necessidade de assegurar o direito de todos ao meio

ambiente ecologicamente equilibrado. E nesse sentido, o direito surge como um instrumento

para regular tais relações na busca da minimização de conflitos.

30 COCHIN, Yann; LHUILIER, Dominique. Des déchets et des hommes. Collection sociologie clinique. Paris : Desclée de Brouwer, 1999, p. 16.

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Se por um lado é fácil fazer do patrimônio cultural objeto de estudo, pois se trata

daquilo que deve ser protegido, possibilitando resguardar a memória e identidade de um povo;

por outro lado, fazer dos resíduos sólidos um objeto de estudo não é tão fácil assim, pois se

está diante do que é inconveniente, do que se quer livrar-se, dos restos, do que se deseja fazer

desaparecer. Os resíduos constituem assim o traço negativo da atividade humana, o

patrimônio cultural significa o seu traço positivo, 31 daquilo que se ambiciona legar às

gerações futuras. Contudo, em ambos os casos há uma articulação necessária: o que se busca

determinar é a relação existente entre os indivíduos e a coletividade com tais bens, relação

que apresenta dilemas, conflitos, pontos de interesses divergentes e convergentes. Essas

relações são construídas culturalmente, ou seja, os bens em determinada sociedade possuem

valores e significados que podem ser diferentes para outra sociedade e mesmo no seio de uma

dada sociedade tal valoração pode variar. A nossa herança cultural, portanto, nos condiciona a

reagir de determinada forma,32 incluindo em nossas relações objetos, modos de fazer e ações

que expressam nossa identidade e excluindo os restos, aquilo que tem um valor negativo sobre

certos aspectos do ciclo vital.33 Assim, qualquer política pública na esfera de gestão dos

resíduos sólidos ou proteção do patrimônio cultural estará estreitamente relacionada aos

comportamentos dos indivíduos e a sociedade de consumo.

Em termos legais, a Constituição Federal de 1988 define quais os bens que integram o

patrimônio cultural brasileiro, como os bens materiais e imateriais, que tomados

individualmente ou em conjunto, são portadores de referência à identidade, à ação, à memória

dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (art. 216 CF/88). É possível,

31 Algumas tradições, todavia, se anteriormente eram aceitas, hoje constituem uma afronta ao direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e são proibidas pela Constituição Federal de 1988, como é o caso da briga de galo, considerada pratica que submete animais a crueldade (art. 225, § 1º, VII CF/88). 32 LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 18ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. 33 COCHIN, Yann; LHUILIER, Dominique. Op cit.p. 17.

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portanto, definir o patrimônio cultural como um todo orgânico que expressa a identidade do

país, incluindo as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações

científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais

espaços destinados às manifestações artístico-culturais; bem como os conjuntos urbanos e

sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e

cientifico (inc. I a V do art. 216 CF/88). Esse todo orgânico busca-se proteger e preservar para

transmissão às futuras gerações.

Com o objetivo de assegurar a todos o meio ambiente ecologicamente equilibrado, as

normas no ordenamento jurídico brasileiro tratam, ainda que de forma não sistematizada, a

questão dos resíduos sólidos. O conceito legal de resíduos sólidos34 encontra-se na Resolução

CONAMA n° 05/93, a qual estabelece em seu art. 1°, que, de acordo com a norma NBR

10.004, da Associação Brasileira de Normas Técnicas, definem-se como resíduos sólidos

aqueles que no estado sólido e semi-sólido, resultam de atividades humanas, tais como a

atividade industrial, a doméstica, a hospitalar, a comercial, a agrícola, a de serviços e a de

varrição. Incluem-se na definição de resíduos sólidos os lodos provenientes de sistemas de

tratamento de água, aqueles gerados em equipamentos e instalações de controle de poluição,

bem como determinados líquidos cujas particularidades tornem inviável o seu lançamento na

rede pública de esgotos ou corpos d água, ou exijam para isso soluções técnica e

economicamente inviáveis, em face da melhor tecnologia disponível. Pode-se, portanto,

constatar que os resíduos sólidos resultam da atividade humana e podem conter material

34 Cf. Parecer do Relator Ivo José e substitutivo 1 PL203/91 que institui a Política Nacional de Resíduos, seus princípios, objetivos e instrumentos; estabelece diretrizes e normas de ordem pública e interesse social para o gerenciamento dos diferentes tipos de resíduos sólidos, define seus instrumentos e dá outras providências apresentado em 14/12/2005 à Comissão Especial destinada a apreciar e proferir parecer ao Projeto de Lei nº 203, de 1991, que "dispõe sobre o acondicionamento, a coleta, o tratamento, o transporte e a destinação dos resíduos de serviços de saúde" e apensados.

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reciclável, com potencial econômico, diferentemente do lixo, que não possui mais nenhuma

possibilidade de reutilização.

Tais conceitos são determinados em função da própria realidade social e é possível

identificar em tais definições um elemento comum: tanto o patrimônio cultural quanto os

resíduos sólidos são gerados a partir das atividades humanas. Nesse sentido, é fundamental

analisar o espaço no qual são gerados

espaço público, espaço privado, ou ainda a formação

de novos espaços comuns

bem como as responsabilidades de cada um que gerou e/ou está

em posse ou é proprietário desse bem (resíduo sólido ou patrimônio cultural).

A construção e implementação de políticas públicas relativas à gestão de resíduos

sólidos e ao patrimônio cultural tende assim a ganhar força e efetividade ao assumir as

conexões, interdependências e tensões entre aquilo que se quer excluir, e o que se quer

preservar e proteger. Os resíduos sólidos podem ser transformados em matéria prima para

outra atividade ou em novos objetos. Catadores e catadoras de materiais recicláveis vem se

organizando no Brasil e também em Manaus, buscando através dos resíduos sólidos sua

inclusão social. Alguns dos obstáculos apontados pela Associação de Catadores Recicláveis

(ACR) é a dificuldade de escoamento do material para as fábricas e o fato que o mercado não

se abre para a ACR. Destaque-se o papel fundamental de programas da Prefeitura Municipal

de Manaus e Caritas em apoio aos catadores e catadoras de materiais recicláveis, na busca de

sua inserção e inclusão social.

Finalmente, é importante enfatizar a necessidade da difusão da informação, como

pedra angular de qualquer política publica de gestão dos resíduos sólidos e de proteção do

patrimônio cultural, sobretudo na era do descartável. Entretanto, para divulgar determinados

dados é primordial a construção de uma base sólida de informações. O Município de Manaus,

por exemplo, vem desenvolvendo uma base de dados para poder ter uma base histórica

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confiável de 12 (doze) meses, que permitirá então prosseguir na estruturação da gestão dos

resíduos sólidos urbanos, adotando-se um plano de gerenciamento integrado de resíduos

sólidos urbanos. No mesmo sentido, seria interessante que a coleta e a sistematização de

informações sobre o patrimônio cultural do Estado integrassem a memória dos casos dos

locais nos quais foram encontrados vestígios da população indígena (urnas funerárias, como é

o caso da Praça D. Pedro II) e também o saber peculiar dos Raizeiros no Mercado Adolpho

Lisboa. Também importante destacar a necessidade de democratização da discussão sobre

conhecimentos tradicionais associados a recursos genéticos, integrando a visão diferenciada

das populações indígenas nessa questão.

Dentre as linhas de ação na interação entre universidade, sociedade civil e poder público

para apoiar, formular e aperfeiçoar políticas publicas nessas searas encontra-se a difusão das

informações através de eventos como a oficina realizada no Programa de mestrado em Direito

Ambiental da UEA, como também o desenvolvimento de relações com a mídia, propiciando,

por exemplo através do Aprovar a propagação de informações sobre gestão de resíduos

sólidos e proteção do patrimônio cultural. Há assim a necessidade de um movimento em prol

da proteção do patrimônio ambiental do Estado, movimento que deve ser construído com a

participação de todos e para tanto deve iniciar-se com a democratização das informações.

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REFERENCIAS

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Fundamental e Princípio da Atividade Econômica in Figueiredo, Guilherme José Purvin (org). Temas de Direito Ambiental e Urbanístico. São Paulo: Max Limonad, pp. 91-102.

GEERTZ, Clifford (1978). A interpretação das culturas. Rio de Janeiro:Zahar. ____________(1998). O saber local

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Jorge Zahar Ed., 2005. RODRIGUES, José Eduardo Ramos (1998). A Evolução da Proteção do Patrimônio Cultural

Crimes contra o Ordenamento Urbano e o Patrimônio Cultural in Figueiredo, Guilherme José Purvin (org). Temas do Direito Ambiental e Urbanístico. São Paulo: Max Limonad, pp. 199- 225.

ROUÉ, Marie (2000) Novas perspectivas em etnociência: saberes tradicionais e gestão dos recursos naturais in Etnoconservação

novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos. Antonio Carlos Diégues (org). São Paulo: Nupaub Usp; Hucitec.

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Anexo Programa da Oficina: Diálogos entre normas e fatos: do lixo ao luxo

1ª. parte: Introdução à Oficina Do lixo ao luxo: reflexões sobre a gestão de resíduos e

patrimônio cultural

pressupostos, articulações e dilemas (23/11/05)

- Relato sobre atividade dos Projetos (PPP/FAPEAM/PPGDA-UEA)

- Apresentação dos resultados dos subprojetos (bolsistas)

- Debate

Nesse bloco, junto à apresentação da proposta da oficina e de alguns de seus

pressupostos teórico-metodológicos, pretende-se relatar e discutir atividades desenvolvidas e

resultados de dois projetos de pesquisa, executados no âmbito do Programa de Pós-Graduação

em Direito Ambiental, dos quais participaram também graduandos do curso do Direito, como

bolsistas. Trata-se dos Projetos: Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado: a

gestão de resíduos sólidos no Estado do Amazonas sob coordenação da profa. Solange Teles

da Silva, e Patrimônio cultural e o direito humano ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado , sob coordenação da Profa. Andréa Borghi Moreira Jacinto, ambos apoiados pela

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas. Estão, nesse bloco, previstas

apresentações e resultados dos sub-projetos desenvolvidos pelos bolsistas. O debate

estimulado entre os participantes, expositores ou não, terá como eixo da discussão a reflexão

sobre a prática da pesquisa em direito.

1ª. PARTE.

Relato sobre atividades dos Projetos (PPP/FAPEAM/PPGDA

UEA):

* Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado: a gestão de resíduos sólidos

no Estado do Amazonas coordenação: Prof. Solange Teles da Silva

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* Patrimônio cultural e o direito humano ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado coordenação: Profa. Andréa Borghi Moreira Jacinto

2ª PARTE: APRESENTAÇÃO DE RESULTADOS/ SUBPROJETOS dos Bolsistas

* LucianoMoura Maciel

Pelo Caminho das ervas: patrimônio cultural e conhecimento tradicional entre

Ervateiros, Herbanários e Raizeiros no Mercado Adolpho Lisboa, Manaus .

Projeto: Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado: a beleza e o cuidado

com o corpo na composição do patrimônio cultural imaterial

Bolsista Patrimônio cultural

* Hernane Pereira Machado

Projeto: Políticas publicas em matéria de resíduos sólidos: a sociedade civil organizada

Bolsista Gestão de Resíduos

* Raquel Almeida Freire

Projeto: Praça D. Pedro II: sobre o direito a diferentes memórias

Bolsista Patrimônio cultural

* Conceição Raquel Melo Sabat

Projeto: Resíduos sólidos industriais

Bolsista Gestão de Resíduos

* Fabiana Zappia de Azevedo

Projeto: Legislação estadual relativa à proteção do patrimônio cultural: levantamentos

preliminares (trabalho em conjunto com prof. Heloysa Simonetti)

Bolsista Patrimônio cultural

* Paola Silva Souza

Política Municipal de Gestão de Resíduos Sólidos

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Bolsista Gestão de Resíduos

* Luciene Pohl

Projeto: Patrimônio Cultural e Direito Ambiental: contribuições para consolidação do

grupo de Pesquisa / Patrimônio Cultural Indígena e Conhecimento Tradicional

Bolsista Patrimônio cultural

2ª. Parte: Normas e Fatos em Perspectiva: apresentação de convidados(24/11/05)

- Projetos do poder público e da sociedade civil;

- Professores da UEA e participantes do Programa de Pós-Graduação em Direito

Ambiental

- Debate

Um segundo momento da oficina, buscando ampliar relações e diálogos entre a pesquisa

acadêmica e dimensões práticas da realidade socioambiental amazônica, prevê a apresentação

de casos e projetos vinculados ao Poder Público e à Sociedade Civil, com a participação de

convidados, representando instituições e organizações/ associações ligados aos temas da

gestão de resíduos e do patrimônio cultural. Essa sessão prevê, além da participação dos

convidados, também exposição de trabalhos de professores, mestres e mestrandos (Direito/

Direito Ambiental

UEA) sobre os temas do patrimônio cultural e da gestão dos resíduos

sólidos.

Apresentação de projetos do poder público e sociedade civil

* Lucineide Pereira de Araújo Alves

Instituto Internacional Amazônia Viva Amazônia Viva

Programa Social Exercendo cidadania com a arte de reciclar

* Paulo Ricardo Rocha Farias

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Secretário Municipal

Secretaria Municipal de Limpeza e Serviços Públicos - SEMULSP

* Andréa Nogueira Correa

Assessora de Inclusão Social

SEMUSLP

Panorama do Movimento Local dos Catadores de Materiais Recicláveis

Arquiteta

* Lázaro Mario Tavares da Silva

Presidente da Associação dos Catadores Recicláveis ACR/ Manaus

* Andréa Bitencourt Prado e Ricardo Berwanger Franco de Sá

Relato sobre o Inventário das Referenciais Culturais dos Povos Indígenas do Alto Rio

Negro IARN (Fase I)/ IARN Manaus (Fase II)

Consultora IPHAN

* Educação Patrimonial/ SEMED/ IPHAN

* George Humberto e Paulo Roberto

Projeto Reciclo UEA/ Curso de Turismo

3ª. parte: Debate Aberto, Síntese das Discussões, produção de documento final. 30/11/05

O último momento da Oficina propõe uma atividade mais prática e reflexiva, que

sintetize os principais pontos da oficina e identifique, a partir do material trabalhado durante o

encontro, problemas e desafios na elaboração de políticas públicas nas áreas de gestão de

resíduos e patrimônio cultural no Estado do Amazonas, e eventualmente proponha algumas

linhas de ação na interação entre universidade, sociedade civil e poder público.

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ESTADO E OS POVOS INDÍGENAS: UMA PROPOSTA DE RELAÇÃO

DEMOCRÁTICA INTERCULTURAL

Fernando Antonio de Carvalho Dantas35

1. Contextualização

A sociedade brasileira sempre foi multicultural. Os povos indígenas fazem parte e

compõem o mosaico dessa multiculturalidade. Entretanto, a correspondente diversidade de

culturas que representam estiveram, ao longo da história, ocultadas sob o manto da

desconsideração humana, da homogeneização e da invisibilidade. Essas formas de exclusão

ganharam perfil normativo, integrando o sentido das instituições sociais, jurídicas e políticas

nacionais. Deste modo, se institucionalizou a exclusão das diferenças étnico-culturais

indígenas pela inferiorização, negação, integração e, contemporaneamente, pela inefetividade

das normas constitucionais de reconhecimento.

O longo processo de colonização e de construção do Estado Nacional brasileiro, teve

nas práticas sociais e institucionais etnocentristas respaldadas pelo direito moderno

positivado, um dos mais eficazes mecanismos de exclusão.

A Política Indigenista do Estado legitimou práticas genocidas, etnocidas e

epistemicidas, responsáveis pela depopulação e pelo desaparecimento ou descaracterização de

numerosas culturas e povos indígenas. Legitimou, também, a negação e a invisibilidade

35 Professor e Coordenador do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas UEA. Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Professor convidado do Programa de Doutorado Direitos Humanos e Desenvolvimento da Universidad Pablo de Olavide de Sevilha, Espanha. Membro do Conselho Diretor da Fundação Iberoamericana de Direitos Humanos.

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jurídica, social e cultural, ao normalizar conceitos depreciativos como bárbaros, selvagens e

silvícolas ou generalizantes e reducionistas como índios.

As proposições que serão apresentadas ao final deste documento buscam contribuir para

o processo de retirada do cenário social, político e jurídico brasileiro dos instrumentos legais,

institucionais, discursivos e interpretativos que impedem de ver a realidade concreta

a

realidade dos povos indígenas e suas relações com a sociedade e o Estado

buscando a

construção e formalização de um espaço estatal complexo, aberto, plural e multicultural.

Nesse sentido, é importante destacar que a apreensão parcial que o direito moderno

positivado faz da realidade social, por meio de mecanismos de poder que valoram e

privilegiam uma determinada forma de vida, de organização e práticas sociais como boas,

com a conseqüente juridicidade amparada pelo Estado, possibilitou, ao longo da história do

direito no Brasil, a exclusão das pessoas indígenas e suas sociedades, suas vidas, seus valores

e suas formas diferenciadas de construção social da realidade do espaço jurídico-político

nacional.

Assim sendo, os colonizadores desconsideraram a existência de povos autóctones, com

organizações sociais e domínio territorial altamente diversificados e complexos, negando aos

seus membros a qualidade de sujeitos, motivo pelo qual justificavam a invasão e tomada

violenta do território, a escravização, as guerras, os massacres o ocultamento sócio-cultural e

a invisibilidade jurídica.

A invisibilidade jurídica e política, primeiro no direito colonial, e, posteriormente, no

nacional, articulava-se, em ambos, pelos fundamentos jusnaturalistas. A formulação jurídica

moderna do conceito de pessoa enquanto sujeito de direito, fundado nos princípios liberais da

igualdade e liberdade que configuram o individualismo, foi o modelo adotado pela

juridicidade estatal brasileira, estampado no Código Civil de 1916. A força desse modelo

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racionalista gerou a noção de sujeito abstrato, descontextualizado, individual, formalmente

igual e classificou as pessoas indígenas diminutivamente, entre os sujeitos de relativa

incapacidade, ou pessoas em transição da barbárie à civilização.

Essa categoria transitória de pessoa, que perpassou o tempo e diferentes regimes

políticos, fundamentou a legislação especial denominada de Estatuto do Índio o que

justificava a tutela, também especial, exercida pelo Estado por meio de processos e ações

institucionais voltadas para a integração dos povos indígenas à suposta homogeneidade da

comunhão nacional, no intento de transformar, pela assimilação, os índios em não índios. Foi

esse o propósito que orientou a criação de órgãos estatais voltados para a implementação da

Política Indigenista, como o Serviço de Proteção aos Índios

SPI na década de 1910 e a

Fundação Nacional do Índio FUNAI, no final da década de 1960.

A Constituição de 1988, do ponto de vista político e jurídico-formal, provoca uma

ruptura no regime do ocultamento e da invisibilidade ao conceber que as pessoas indígenas e

suas sociedades configuram diferenças étnico-culturais. Isto ocorre pelo reconhecimento

indissociável dos índios e suas organizações sociais, seus usos, costumes, tradições, direito ao

território, à educação especial e capacidade postulatória.

Apesar de ter mantido a indeterminação terminológica (índios), esse reconhecimento

constitucional implica num novo paradigma para a subjetividade indígena como coletiva e

diferenciada, porque baseada na organização social de cada povo, enquanto conjunto de

representações simbólicas. Implica, também, numa pluralização do direito ao impor, pela

força normativa da Constituição, abertura e conseqüentes desdobramentos no que tange à

configuração do contexto social, político, jurídico e institucional dos direitos diferenciados

indígenas decorrentes desse reconhecimento.

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Portanto, o marco constitucional determina um novo tempo e espaço de direitos, não

mais marcado pela exclusão social, política e jurídica e sim pela inclusão constitucional das

pessoas e povos indígenas em suas diferenças, valores, realidades e práticas sociais no âmbito

do direito instituído, com permanentes e plurais possibilidades instituintes.

Evidentemente, o reconhecimento constitucional dos índios e suas organizações sociais

de modo relacionado, configura, juridicamente, um novo sujeito indígena, diferenciado,

contextualizado, concreto, coletivo, ou seja, sujeito em relação com suas múltiplas realidades

sócio-culturais, o que permite expressar a igualdade a partir da diferença.

O marco constitucional desse reconhecimento, em razão da dificuldade de espelhar

exaustivamente a grandiosa complexidade e diversidade que as sociedades indígenas

representam, está aberto para a confluência das diferentes e permanentemente atualizadas

maneiras indígenas de conceber a vida com seus costumes, línguas, crenças e tradições,

aliadas sempre ao domínio coletivo de um espaço territorial.

Assim, tanto político como juridicamente o novo paradigma para reger as relações entre

os povos indígenas e o Estado

assenta-se em base constitucional - do sujeito diferenciado

indígena e suas sociedades. Esse novo sujeito insere-se conflituosamente, tanto no âmbito

interno dos Estados nacionais quanto em nível mais amplo, no contexto atual dos Estados e

mundo globalizados, confrontando-se com a ideologia homogeneizante da globalização, que

não reconhece realidades e valores diferenciados, pois preconiza pensamento e sentido únicos

para o destino da humanidade, voltados para o mercado.

Entretanto, as lutas emancipatórias de resistência contra esse processo apontam para

novos caminhos de regulação e emancipação, exigindo conformações mais plurais e

multiculturais para os Estados, e, especificamente, mudanças nas Constituições, situadas,

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atualmente, em perspectiva com o direito internacional dos direitos humanos e,

conseqüentemente, de toda a legislação infra-constitucional, bem assim as ações do Estado.

Deste modo, os direitos constitucionais indígenas devem ser interpretados partindo-se de

uma hermenêutica constitucional aberta, em reunião com os princípios fundamentais do Estado

brasileiro e os valores culturais dos povos indígenas, no sentido de promover a vida e a dignidade

humanas sem nenhuma distinção excludente. Por outro lado, relacionados com o conjunto

integrado e indivisível dos direitos humanos, civis, políticos, sociais, econômicos e culturais,

assim como às convenções, tratados e documentos jurídicos internacionais ratificados pelo Estado

brasileiro.

Para que isto ocorra, torna-se imperativo efetivar esses direitos, o que significa dar vida

às normas constitucionais pelo caminho interno da prevalência e expansão destas normas

sobre todo o ordenamento jurídico e, externamente, pela participação política dos índios e de

suas organizações formais, tanto nas esferas de poder do Estado, federal e federado e em nível

municipal, como nas ações públicas institucionalizadas que lhes interessem. Este pode

constituir um dos caminhos para a construção de uma sociedade plural e participativa, em que

o espaço para todos seja garantido e, conseqüentemente, o dissenso possibilite o exercício

cotidiano da democracia e do seu poder instituinte sempre renovado.

O reconhecimento constitucional das diferenças sócio-culturais indígenas representa um

marco libertário na histórica trajetória de negação e invisibilidade dos povos indígenas

brasileiros. Entretanto, reconhecer, somente no plano formal, a natureza plural e multicultural

que conforma a sociedade brasileira não é tudo.

É necessário a efetivação dos direitos diferenciados e a construção de espaços de lutas

pelos direitos mediados pelo diálogo intercultural.

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O diálogo intercultural, portanto, se configura como um espaço e um instrumento da

nova cidadania indígena, diferenciada, multicultural, dinâmica, criativa e participativa no

sentido de construir e reconstruir os direitos diferenciados indígenas e, como conseqüência,

criar, também, contextos institucionais plurais e heterogêneos onde a convivência democrática

possibilite o desenvolver das ações da vida sem opressão, sem exclusão.36

Assim sendo, idéias novas se impõem, como de Estado e sociedade multiculturais,

direito de propriedade comunal à terra, autonomia de gestão e desenvolvimento, pluralidade

de formas culturais de manifestação da vida e construção de realidades sociais, sistemas

alternativos e especiais de jurisdição indígena inter-relacionados com o sistema estatal,

cidadania diferenciada e, por último, âmbitos públicos heterogêneos, onde a participação

política dos povos indígenas fomentem a democracia e possibilitem inverter o curso da

história dos povos indígenas brasileiros e suas relações com o Estado, devolvendo a

dignidade e a esperança para esses povos.

2. Proposições

O atual contexto de reconhecimento jurídico das diferenças étnico-culturais que os

povos indígenas configuram, determinante no plano político das ações públicas porque

constitucional, requer desdobramentos no plano institucional por meio do diálogo intercultural

36 PANIKKAR, Raimundo. Sobre el dialogo intercultural. Salamanca: Editorial San Esteban, 1990, p. 50-53. Sobre o modo dialógico de tratar as posições conflitivas o autor faz as seguintes considerações: uma sociedade pluralista somente pode subsistir se reconhece, em um momento dado, um centro que transcende a compreensão dela mesma por cada membro ou pela sua totalidade; o reconhecimento desse centro é algo dado que implica um certo grau de consciência que difere segundo o espaço e o tempo; o modo de manejar um conflito pluralista não é uma das partes tentando discursivamente convencer a outra, nem pelo procedimento dialético, senão pelo diálogo dialógico; discussão, oração, palavras, silêncio, decisões, acomodações, autoridade, obediência, exegese de regras e constituições, liberdade de iniciativa, rupturas, são atitudes próprias de tratar o conflito pluralista; há um contínuo entre multiformidade e pluralismo e a linha divisória situa-se em função do tempo, lugar, cultura, sociedade, resistência espiritual e flexibilidade; o problema do pluralismo não pode ser resolvido pela

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que possibilite a eficácia do RECONHECIMENTO através da EFETIVAÇÃO com o

conseqüente espaço de PARTICIPAÇÃO.

A reforma do Estado para incluir as demandas dos povos indígenas é tema recorrente

nos movimentos sociais desses povos e nos seus fóruns de debate.

Encabeça as preocupações indígenas, manifestada no documento elaborado pelos

participantes do Seminário Bases para uma nova política indigenista 2002: o que

esperamos do governo Lula a partir de janeiro de 2003 , a necessidade de aperfeiçoar o

sentido da relação entre o Estado e os povos indígenas que deve, iniludivelmente, ser fundada

no comando constitucional dos direitos diferenciados reconhecidos. Segundo as lideranças

indígenas, a efetividade do reconhecimento implica, por um lado, em reestruturação das

instâncias administrativas do Estado responsáveis pela condução da Política Indigenista e, por

outro, a criação de âmbitos públicos de participação direta dos povos indígenas na elaboração

e gestão dessa política.37

Esse é, também, o sentido de atuais teorias que propugnam pela participação dos povos

ou grupos historicamente excluídos. Para YOUNG o âmbito público democrático deveria

manutenção de uma postura unitária; o trânsito da pluralidade para a multiformidade e, desta ao pluralismo pertence às dores crescentes da criação e ao verdadeiro dinamismo do universo. 37COIAB COORDENAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS DA AMAZÔNIA LEGAL, APOIME

ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO NORDESTE, MINAS GERAIS E ESPÍRITO SANTO e LACED LABORATÓRIO DE PESQUISA EM CULTURA, ETNICIDADE E DESENVOLVIMENTO/MUSEU NACIONAL/UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO. Bases para uma nova política indigenista: o que esperamos do governo Lula a partir de janeiro/2003. 1 CD-ROM. Participaram do seminário, quarenta e três lideranças representantes de diferentes povos indígenas (Jecinaldo B. Cabral-Sateré Mawe, Edilson Melgueiro-Baniwa, José Augusto Peres- Baré, Clóvis Rufino Reis-Marubo, Nino Fernandes-Ticuna, Cecílio Corrêa-Mura, Obadias B. Garcia-Sateré Mawé, Clóvis Ambrósio-Wapixana, Carlos Brandão-Shanenawa, Antenor da Silva-Karitiana, Miguel dos Santos-Munduruku, Lourenço B. Milhomem-Krikati, Escrawen Sompré-Xerente, Agnelo Temrité Wadzatsé-Xavante, Miquelina Machado-Tucano, Ariné Waiana Apalai-Apalai, Gersem Luciano-Baniwa, Euclides Pereira-Macuxi, Azelene Inácio-Kaingang, Francisca Novantino-Paresi, Antônio Ricardo da Costa (Dourado)-Tapeba, Antônio Pessoa Gomes (Caboquinho)-Potyguara, Etelvina Santana da Silva (Maninha)-Xucuru-Kariri, Agnaldo Francisco Santos-Pataxó Hã-Hã-Hãe, Marcos Luídson de Araújo-Xucuru, Lindomar Santos Rodrigues-Xocó, Ervaldo Santana Almeida-Tupinikim, Valdemar Adilson-Krenak, Wilson Jesus de Souza-Pataxó, Jeová José Honório da Silva-Wassú-Cocal, Sandro Emanuel Cruz-Tuxá, Rosângela Queiroz-Xucuru-Kariri, Antônio Claudino-Kaingang, Ary Paliano-Kaingang, Pedro Cornélio-Kaingang, Olívio da Silva-Guarani, Silvio Paulo-Kayowá, Wanderley Dias Cardoso-Terena, Argemiro da Silva-Guarani, Ernesto da Silva-Guarani, Vilmar Moura-Guarani, Mariano Justino Marcos-Terena, Vitor Aurape Peruare-Bakairi) e suas respectivas instituições formais de representação.

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103

prover de mecanismos para o efetivo reconhecimento e representação das vozes e

perspectivas particulares daqueles grupos constitutivos do ambiente público que estão

oprimidos e em desvantagem. Tal representação de grupo implica a existência de mecanismos

institucionais e recursos públicos que apóiem: a auto-organização dos membros do grupo de

modo que estes alcancem uma autoridade coletiva e um entendimento reflexivo de suas

experiências e interesses coletivos no contexto social; a análise de grupo e as iniciativas

grupais para a proposta de políticas em contextos institucionalizados, nos quais os que tomam

decisões estão obrigados a mostrar que suas deliberações levaram em conta as perspectivas de

grupo; o poder de veto para os grupos a políticas específicas que afetem diretamente a um

grupo, tais como, política sobre direitos reprodutivos para as mulheres e política sobre o uso

da terra para os povos indígenas.38

Assim sendo, como ponto de partida para iniciar-se um processo renovado e

democrático de relação entre o Estado e os povos indígenas, pautado pelo reconhecimento

constitucional da diversidade étnico-cultural desses povos, necessário se faz, como princípio:

a) articular, urgentemente - coordenado pelo Estado - o diálogo com os

povos indígenas por meio de suas organizações e associações

representativas formais e, também, caso algum povo não se encontre ou

sinta-se representado por essas organizações que seja partícipe por meio

de suas lideranças legítimas, de acordo com suas organizações

tradicionais;

b) tal diálogo deverá se constituir no espaço de construção da Política

Indigenista e da definição das ações públicas, tendo como principais e

38 YOUNG, Iris Marion. La justicia y la política de la diferencia. Madrid: Ediciones Cátedra, 2000, p. 310.

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104

primordiais protagonistas e interlocutores os povos indígenas e suas

organizações, com voz e poder de decisão e, quando solicitado e

indicado por esses povos, atuem, na condição de assessores e

consultores, entidades da sociedade civil, pessoas ou instituições de

reconhecido prestígio ético e científico que desenvolvam,

historicamente, atividades na defesa dos povos indígenas;

c) instituir o Conselho Nacional de Política Indigenista, integrado

paritariamente por representantes indígenas, de entidades do Estado e da

sociedade civil, com a competência de mediar os poderes e deveres do

Estado e dos povos indígenas;

d) garantir a efetivação dos direitos territoriais indígenas, com a proteção

daquelas já regularizadas e demarcação de todas as terras cujos

processos não foram concluídos e/ou iniciados, como dever

constitucional;

e) garantir a assistência e promoção do desenvolvimento pautando-se no

direito humano ao desenvolvimento atendidas as especificidades

culturais de cada povo e sua dinâmica, bem assim adotar medidas de

proteção e reconhecimento da exclusividade do domínio dos direitos

culturais e intelectuais dos povos indígenas.

2.1 Medidas estruturais para mudança no plano político-administrativo:

a) criação da Secretaria Especial das Relações Interétnicas Interiores com os Povos

Indígenas, como órgão da administração pública federal direta, responsável pela

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articulação política das ações do Estado destinadas aos povos indígenas, assessorado

por um Conselho Indígena e cabendo aos povos indígenas indicar o seu titular e os

membros do Conselho;

b) institucionalização transitória da Conferência Nacional dos Povos Indígenas,

coordenada pelas organizações e pessoas indígenas em consórcio com o Estado,

como espaço de construção da Política Indigenista e de deliberação sobre a forma e

os mecanismos de representação desses povos nos âmbitos formais do Estado;

c) elevação dos Postos Indígenas à categoria de Autonomias Culturais Indígenas,

com a competência para o desenvolvimento das ações assistenciais, com orçamento

próprio previsto em fundo especial da União e autonomia de gestão de acordo com o

que deliberar cada sociedade;

Acreditamos que, tendo esses apontamentos iniciais

não exaustivos, nem

suficientemente detalhados - como ponto de partida, o Estado brasileiro poderá desencadear

um exemplar processo democrático e participativo de inclusão dos povos indígenas, pela via

do reconhecimento e transferência de poder, princípios inarredáveis dos direitos das pessoas e

sociedades humanas.

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A GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS NO ESTADO DO AMAZONAS: OS

PRIMEIROS PASSOS PARA A CRIAÇÃO DO CONSELHO ESTADUAL E AS

DIFICULDADES PARA A INSTALAÇÃO DOS COMITÊS DA BACIA

HIDROGRÁFICA

Rejane da Silva Viana39

INTRODUÇÃO

A regulamentação do inciso XIX do art. 21 da Carta Magna, 40 dada pela Lei Federal n°

9433, promulgada em 8 de janeiro de 1997, conhecida como a Lei das Águas, instituiu a

Política Nacional de Recursos Hídricos e o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos

Hídricos e para a implementação tanto do Sistema como da Política Nacional de Recursos

Hídricos, foi criado em 1998 o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, instância colegiada

máxima do sistema .

A Lei das Águas reconhece os recursos hídricos dotados de valor econômico41 e propõe

uma gestão participativa e baseada no planejamento partindo da própria bacia hidrográfica.

O Estado do Amazonas, através da Secretaria Estadual do Meio Ambiente,

Secretaria Adjunta de Recursos Hídricos e com o apoio da Agência Nacional de Águas - ANA

começa a delinear os seus instrumentos jurídicos administrativos com a finalidade de executar

uma política estadual a partir da criação do Conselho Estadual de Recursos Hídricos e dos

comitês de Bacia.

39Mestranda em Direito Ambiental do Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado do Amazonas, representante do corpo discente e bolsista da FAPEAM. 40 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. 41 Hoje se paga pela distribuição e tratamento.

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112

1 - O PLANO NACIONAL DE RECURSOS HÍDRICOS: POLÍTICA E SISTEMA

A Secretaria de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente

SRH/MMA,

criada em 1995, elaborou em 1997 o Plano Nacional de Recursos Hídricos, previsto na lei n°

9433/97, que o define como Plano Diretor com função de orientação e implementação da

política nacional e o gerenciamento destes recursos.42

A Política Nacional de Recursos Hídricos traça as diretrizes ou os caminhos a

serem seguidos e propõe a adequação da gestão de recursos hídricos às diversidades físicas ,

bióticas, demográficas, econômicas, sociais e culturais das diversas regiões do país 43,

portanto uma gestão que deverá considerar as peculiaridades de cada região num

planejamento para a gestão compartilhada, através dos seguintes instrumentos, constantes no

art. 5° da Lei das Águas:

I - Os Planos de Recursos Hídricos: Nacional, Estaduais e de Bacia Hidrográfica; II - O enquadramento dos corpos de água em classes, segundo os usos preponderantes; III - A outorga dos direitos de uso de recursos hídricos; IV - A cobrança pelo uso dos recursos hídricos; V - A compensação a municípios; (vetado) 44

VI - O Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos.

O Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos coordena a gestão

integrada das águas, implementando a política Nacional de Recursos Hídricos, que planeja e

controla o seu uso e cuja formação consta nos incisos I a V do art. 33 da mesma lei:

42 Lei n° 9433/97 art.6°. 43 Lei n° 9433/97 art.3°II. 44 O instrumento está previsto no art.5°, mas no art. 24 o detalhamento do instrumento foi vetado.

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I - Conselho Nacional de Recursos Hídricos; IA - Agência Nacional de Água45

II - Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos dos Estados e do distrito Federal; III - Os Comitês de Bacia Hidrográfica; IV - Órgãos dos poderes Públicos federal, estadual, do Distrito Federal e municipal cujas competências se relacionem com a gestão de recursos hídricos; V - As Agências de Água .

Com a finalidade de implementar o Plano Nacional de Recursos Hídricos, em 2003

através da resolução n° 32 do CNRH46 o Brasil foi dividido metodologicamente em 12 regiões

hidrográficas, a saber:

1. Região Hidrográfica Amazônica47

2. Região Hidrográfica do Tocantins-Araguaia

3. Região Hidrográfica Atlântico Nordeste Ocidental

4. Região hidrográfica do Parnaíba

5. Região Hidrográfica Atlântico Nordeste Oriental

6. Região Hidrográfica do São Francisco

7. Região Hidrográfica do Atlântico Leste

8. Região Hidrográfica Atlântico Sudeste

9. Região Hidrográfica do Paraná

10. Região Hidrográfica do Paraguai

11. Região Hidrográfica do Uruguai

12. Região Hidrográfica Atlântico Sul

45 ANA,criada em 2000, responsável pela Outorga, Fiscalização e Cobrança. 46 Conselho Nacional de Recursos Hídricos 47 Na resolução n° 32 a região Hidrográfica Amazônica é constituída pela área da bacia hidrográfica do rio Amazonas situada em território nacional, rios da ilha de Marajó e dos situados no estado do Amapá que deságuam no Atlântico.

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Para entender todo esse sistema de modelo descentralizado, no entender de Paulo

Affonso Leme Machado, devemos considerar a bacia hidrográfica como unidade territorial de

atuação e de planejamento onde se buscarão as prioridades de uso, passando aos planos

estaduais e finalmente aos planos do país com as prioridades nacionais.48

2-CONSELHOS ESTADUAIS DE RECURSOS HÍDRICOS

Embora a Lei das Águas seja de 1997, segundo dados da ANA, atualmente apenas 21

estados dispõem de Legislação Estadual49, 13 estados50, apenas com comitês de bacias e com

Plano Estadual de Recursos Hídricos em operacionalização, ou seja, dispondo de todos os

instrumentos em funcionamento existem apenas o Distrito Federal e 8 estados da Federação:

São Paulo, Goiás, Bahia, Sergipe, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, sendo

este último, o único com sistema de cobrança pelo uso dos recursos hídricos51. O Rio de

Janeiro recentemente aprovou a lei que autoriza a cobrança.

A lei estadual que estabelece a Política de Recursos Hídricos do Estado do Amazonas é

de 2001 e no segundo semestre de 2004 iniciou-se a votação para a formação do Conselho

Estadual de Recursos Hídricos do Estado do Amazonas.

48 MACHADO, Paulo Afonso Leme Machado. Direito Ambiental Brasileiro. 11ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003.p.438. 49 RS, SC, PR, SP, RJ, ES, MG, BA, SE, AL, PE, PB, RN, CE, PI, MA, TO, GO, DF, MT, MS. 50 Comitês de Bacia: CE (07), PE (06), AL (01), SE (01), MT (01), GO (01), MG (17), ES (02), RJ (01), SP (21), PR (05), SC (12), RS (16). 51 A Bacia do Paraíba do Sul tem a cobrança, porém trata-se de competência federal, pois envolve 3 estados.

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115

3 - A FORMAÇÃO DO CONSELHO DE RECURSOS HÍDRICOS DO ESTADO DO

AMAZONAS

Em Agosto de 2004, ocorreu o I Workshop de Recursos Hídricos do Amazonas, mais

precisamente entre 17 e 20 de agosto, presentes representantes das mais diversas instituições,

onde muitas apresentaram resultados de estudos a fim de fazer um diagnóstico, identificando

os problemas hídricos do estado do Amazonas.

O Conselho Estadual foi proposto com uma composição com 43 membros,

representando os mais diferentes segmentos: sendo 6 instituições federais; 14 instituições

estaduais; 09 usuários; 05 instituições de ensino e pesquisa; 05 da sociedade civil, com

representação indígena e 3 municipais, estando prevista uma vaga para cada comitê de bacia,

à medida que forem sendo institucionalizados.

A Proposta de Formação do Conselho Estadual do Amazonas foi resultado de

um debate e posterior votação feita pelos membros das entidades presentes52. A proposta foi

examinada pelo Executivo Estadual e aprovada praticamente em sua integra sendo instituído,

para o estado do Amazonas o Conselho Estadual de Recursos Hídricos através do Decreto

Estadual n 25.037, de 01 de junho de 2005.

52 A Universidade do estado do Amazonas esteve representada pelo Programa de Pós-Graduação em Direito ambiental na pessoa de seu Coordenador Dr. Fernando de Carvalho Dantas e da Representante do Corpo discente, tendo sido assegurado assento e voto da Universidade na proposta de formação do Conselho Estadual de Recursos Hídricos, confirmado no Decreto Estadual 25037 de 01/06/2005.

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116

4 - PROCESSO DE INSTALAÇÃO DOS COMITÊS DE BACIAS HIDROGRÁFICAS

E AS DIFICULDADES PARA SUA CRIAÇÃO NO AMAZONAS

A Proposta para divisão da Bacia Hidrográfica do Estado do Amazonas em Comitês de

Bacia foi resultado de um trabalho de equipe elaborado dentre outros, pelo professor Dr.

Albertino Carvalho da Universidade Federal do Amazonas - UFAM e pelo professor Dr.

Sérgio Bringel do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia - INPA sugerindo a criação

inicial de 9 comitês53.

Os estudos elaborados no decorrer do ano de 2003 e primeiro semestre de 2004

mostraram que mesmo agrupando municípios pelas similaridades, o número de comitês não

poderia ser inferior a nove, mas sem descartar as eventuais subdivisões, sendo que num

primeiro momento um número elevado de também dificultaria o gerenciamento e a

elaboração das políticas locais e concluiu-se da seguinte forma:

I

Comitê da Bacia do Rio Negro Inclui 04 (quatro) municípios: São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro, Barcelos e Novo Airão. II

Comitê da Região Hidrográfica do Médio Solimões/Japurá abrange 08 municípios: Japurá, Maraã, Fonte Boa, Uarini, Alvarães, Tefé, Coari e Codajás. III

Comitê da Região Hidrográfica do Alto Solimões abrange 08 municípios: Atalaia do Norte, Benjamin Constant, Tabatinga, São Paulo de Olivença, Amaturá, Santo Antônio do Içá, Tonantins e Jutaí. IV

Comitê Região Hidrográfica Vale do Juruá que abrange 07 municípios: Guajará, Ipixuna, Envira, Eirunepé, Itamarati, Carauari e Juruá. V

Comitê da Região Hidrográfica do Rio Purus que abrange 07 municípios: Boca do Acre, Pauiní, Lábrea, Canutama, Tapauá, Anori e Beruri. VI

Comitê da Bacia do Rio Madeira compreende 06 municípios: Apuí, Humaitá, Manicoré, Novo Aripuanã, Borba e Nova Olinda do Norte. VII

Comitê da Região Careiro-Autazes, compreende a porção da margem direita do Rio Amazonas e inclui 07 municípios: Anamã, Caapiranga, Manacapuru, Manaquiri, Careiro da Várzea, Careiro e Autazes.

53 O projeto de estudos se encontra na Secretaria Adjunta de Recursos Hídricos do Estado do Amazonas com detalhamentos e recomendações elaboradas pelo grupo de trabalho.

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117

VIII

Comitê da Região Hidrográfica Manaus, compreende áreas

localizadas na margem esquerda do rio Amazonas. Inclui 05 municípios: Manaus, Rio Preto da Eva, Presidente Figueiredo, Itacoatiara, e, Iranduba. IX

Comitê da Região Baixo Amazonas. Compreende, na margem

esquerda do rio Amazonas que inclui 10 municípios: Urucará, São Sebastião do Uatumã, Itapiranga, Silves, Urucurituba, Boa Vista do Ramos, Barreirinha, Parintins, Nhamundá e Maués.

A Lei das Águas trata dos comitês nos artigos 37 a 40, definindo suas competências no

art. 38 dentre as quais destacamos:

II- Arbitrar em primeira instância os conflitos relacionados aos recursos hídricos; III- Aprovar plano de recursos hídricos da bacia; IV-. Acompanhar a execução dos planos e propor ajustes e adequações; VI- Estabelecer os mecanismos de cobrança pelo uso da água e sugerir valores a serem cobrados.

Os Comitês de bacias do Estado do Amazonas por se tratarem em sua maioria de Rios

Federais estarão vinculados ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos

CNRH, conforme

estabelece em sua resolução nº.05, de 10 de junho de 2000, assim sua aprovação sempre será

submetida ao CNRH, e, se aprovada, será efetivada por Decreto do Presidente da República,

mesmo que seja delegada a competência permanece esta exigência e a própria ANA teria

grandes dificuldades em desempenhar a sua função de fiscalizar, e não dispondo de

condições, provavelmente nem autorizará a constituição do comitê.

Constatam-se assim as dificuldades de operacionalização em que não estaria garantida a

representatividade efetiva dos membros de comitês de bacia, bem como uma assessoria

adequada da própria Agencia Nacional de Águas.

Esta idéia fica confirmada quando se atenta para as exigências legais na implantação

dos comitês, por exemplo, nos artigos 11 e 12 da resolução n°05 do CNRH.

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O Secretário-Executivo do CNRH terá 30 (trinta) dias, para dar posse aos respectivos

Presidente e Secretários Interinos, com mandato de até 06 (seis) meses, com competência

exclusiva de coordenar a organizar a instalação do Comitê;

1. Divulgação para toda a bacia.

2. Mobilização orientada para os setores usuários, sociedade civil e poder público.

3. Inscrições e habilitações

4. Processo eleitoral.

5. Instalação do Comitê (posse dos membros e eleição da Diretoria)

A distância inviabilizaria o cumprimento das etapas obrigatórias estabelecidas na

resolução, tanto no momento da instituição do Comitê de caráter interino, como no momento

da instituição do processo eleitoral e da instalação do presidente e secretários eleitos.

Quanto à autogestão das agências de água, como explica Paulo Afonso Leme Machado,

sua viabilidade financeira não pode ser buscada no orçamento da União, dos Estados e dos

Municípios 54. Para que seja implementado esse modelo e a bacia possa promover esta

autogestão, a etapa posterior deverá incluir a cobrança dos recursos hídricos, que dará a

viabilidade financeira ao modelo.

Só não podemos esquecer que em muitos dos grandes espaços amazônicos nem sequer

existem usuários e os que existem possivelmente se enquadrariam no conceito de uso

insignificante, portanto fora da esfera de cobrança.

Nas Palavras de José Afonso da Silva, que considerou o Sistema Nacional de Recursos

Hídricos uma organização complexa, pela grande quantidade de órgãos que o integram [...]

tornando o sistema muito complicado e burocratizado55 . Soma-se a esta burocratização a

idéia de que no estado do Amazonas não existem problemas pela própria abundância do

54 MACHADO, Paulo Afonso Leme. Recursos Hídricos Direito Brasileiro e Internacional. São Paulo: Malheiros, 2002 p.115.

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recurso, o que não é verdade, quantidade não garante a qualidade e a percepção de que temos

esse bem em gigantesca quantidade acaba nos deixando excessivamente despreocupados,

como se ele fosse infinito.

CONCLUSÃO

Na lei das Águas, há um fortalecimento do município na figura dos comitês, mas com as

dificuldades de operacionalização facilmente percebida, quer seja pelos grandes espaços a

serem gerenciados ou nas distâncias a serem vencidas para a simples participação numa

reunião do Conselho Estadual. Diante disto, como garantir a representatividade efetiva dos

segmentos? A justificada importância do município é colocada de forma incontestável por

Celso Fiorillo: é o município que passa a reunir efetivas condições de atender de modo

imediato às necessidades locais, em especial em um país como o Brasil, de proporções

continentais e cultura diversificada 56, mas como garantir o atendimento das necessidades

locais ou mesmo como fiscalizar a atuação dos Comitês mais longínquos?

A questão não é simples, a própria Lei n° 9433/97 em seu inciso II do art. 3° propõe a

adequação da gestão de recursos hídricos às diversidades físicas, bióticas, demográficas,

econômicas, sociais e culturais das diversas regiões do país .

Certamente não foram consideradas a peculiaridades da região amazônica, que deverão

ser reavaliadas para que não haja a exploração inconseqüente deste bem tão precioso e para

que o seu gerenciamento seja feito através políticas mais efetivas e verdadeiramente

aplicáveis.

55 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2002.p.141. 56 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004.p.70.

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120

REFERÊNCIAS

ANA. disponível em:<http://www.ana.gov.br/mapainicial/pgMapaA.asp> acesso em:10 fev. 2005. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. BRASIL. Lei n°9433/97. Brasília, DF: Senado Federal, 1997. FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Saraiva,2004 MACHADO, Paulo Afonso Leme Machado. Direito Ambiental Brasileiro. 11ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. MACHADO, Paulo Afonso Leme. Recursos Hídricos Direito Brasileiro e Internacional. São Paulo: Malheiros, 2002. SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2002.

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121

PROPRIEDADE INTELECTUAL E ARRANJOS PRODUTIVOS LOCAIS: A

APLICABILIDADE DA LEI E O PAPEL DA SECRETARIA DE ESTADO DE

CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO AMAZONAS.

Serguei Aily Franco de Camargo57

Genise de Melo Bentes58

Fabiana dos Santos e Souz59

1. INTRODUÇÃO

A Lei Estadual nº 2.783, de 31 de janeiro de 2003 criou a Secretaria de Estado de

Ciência e Tecnologia (SECT). A SECT tem a missão de formular e gerir as políticas estaduais

de Ciência e Tecnologia, buscando articular esforços e fazer com que o conhecimento

produzido nas universidades, centros de pesquisa e laboratórios seja revertido em alternativas

eficazes para a promoção do desenvolvimento sustentável, humano e solidário.

A proteção ao conhecimento científico e tradicional, produzido no Estado do Amazonas

passou a fazer parte da agenda da SECT com o PPA 2004-2007 (Programas e Ações da

SECT), que tem como prioridade o desenvolvimento Estadual e regional de Redes Temáticas,

entre as quais, a Rede Norte de Propriedade Intelectual, Biodiversidade e Conhecimento

Tradicional (RNPIBCT).

O objetivo da RNPIBCT seria, principalmente, articular diversas instituições

interessadas no tema propriedade intelectual, formando um fórum para resolução de conflitos,

capacitação de recursos humanos e captação/gestão de recursos financeiros. Nesse contexto, a

SECT tem desenvolvido ações visando criar espaços de articulação, principalmente no

57 Professor do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do estado do Amazonas. Bolsista Gestão em C&T/A FAPEAM. 58 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do estado do Amazonas. Bolsista da FAPEAM.

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Amazonas, para os atores da Região. Até o momento, a SECT tem contado com a

participação das instituições públicas e privadas, da sociedade civil organizada e das

representações de povos e comunidades tradicionais interessadas no debate60, facilitando o

desenvolvimento de ações cooperativas para a compreensão do sistema de propriedade

intelectual e suas interações com a biodiversidade e o conhecimento tradicional permitindo

um aprendizado conjunto e integrador.

Assim, a SECT coloca como prioridades institucionais: a disseminação e o

desenvolvimento dos mecanismos de proteção da propriedade intelectual e dos conhecimentos

tradicionais associados ao uso da biodiversidade; o fomento a criação de núcleos de gestão e

comercialização de tecnologia; a proposição de mecanismos que viabilizem a transformação

de tecnologias de bancada em produtos comerciais; a indução e fomento a realização de

estudos teóricos no campo da propriedade intelectual e comercialização de tecnologia; a

identificação e articulação para a formulação de propostas de estudos complementares aos

projetos cooperativos em temas vinculados à propriedade intelectual; promoção de eventos,

em especial junto a povos indígenas, quilombolas e comunidades locais.

Dentro destas prioridades, uma segunda linha de ação da SECT surgiu com a criação de

proposta de projeto, em outubro de 2002, do Núcleo de Gestão Tecnológica Compartilhada

(NGTC) e a realização de estudos complementares aos Arranjos Produtivos Locais (APL s)61

do Estado do Amazonas.

59 Bolsista Gestão em C&T/A FAPEAM. 60 Agência Brasileira de Inteligência/ABIN, Sistema de Proteção da Amazônia/SIPAM, Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária/EMBRAPA, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas/FAPEAM, Fundação Estadual dos Povos Indígenas/FEPI, Fundação Centro de Análise, Pesquisa e Inovação Tecnológica/FUCAPI, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia/INPA, Ministério do Meio Ambiente/MMA, Universidade Federal do Amazonas/UFAM, Universidade do Estado do Amazonas/UEA, Grupo de Trabalho Amazônico/GTA, entre outros. 61 Arranjos Produtivos Locais podem ser definidos como aglomerações territoriais de agentes econômicos, políticos e sociais, com foco em um conjunto específico de atividades econômicas e que apresentam vínculos e interdependência (Lemos, 2003)

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123

Os APL s fazem parte do Programa Plataformas Tecnológicas para a Amazônia Legal, e

são iniciativas do Governo Federal, por meio do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT)

em parceria com os governos estaduais, com o intuito de solucionar os gargalos

tecnológicos62 de áreas prioritárias selecionadas em cada Estado. O Programa se apresenta em

forma de Plataforma Tecnológica por ser um processo de comunicação e negociação entre

todos os atores envolvidos no desenvolvimento tecnológico, objetivando identificar os

problemas dos diversos setores e gerar demandas por projetos cooperativos para resolver os

problemas indicados (MCT, 2000).

O Governo Estadual do Amazonas através das ações da Secretaria de Estado do

Desenvolvimento Econômico (SEDEC), extinta em 2002, reuniu pessoas de vários setores

para selecionar áreas prioritárias, relacionadas ao desenvolvimento tecnológico da região.

Dessa forma, ocorreu a indicação dos seguintes APL s: fitoterápicos e fitocosméticos,

fruticultura, madeira e piscicultura.

Após a definição dos mencionados APL s, foi realizado um mapeamento da situação

setorial de cada um, onde foram detalhados as cadeias produtivas, os gargalos tecnológicos e

suas possíveis soluções. Vinculados aos APL s, foram contemplados com recursos da

Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) em 2002 os seguintes projetos cooperativos:

Programa de Criação de Matrinxã em Canais de Igarapé de Terra Firme: aplicação em nível

de subsistência e empresarial (PROCIMA); Tecnologia para Cultivo de Tambaqui

(Colossoma macropomum) e Matrinxã (Brycon cephalus) a Nível Familiar (TANRE);

Beneficiamento da Castanha do Brasil (BENECAST); Desenvolvimento de Dois Produtos

Fitoterápicos e Um Fitocosmético a partir de Espécies Amazônicas (VMCC).

62 Os gargalos tecnológicos são obstáculos de ordem técnica, que existem ou surgem ao longo da cadeia produtiva, que obsta o desenvolvimento do arranjo produtivo local (MCT, 2000).

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No início de 2003, SECT assumiu o papel da antiga SEDEC em relação aos APL s,

como interveniente nos projetos cooperativos, que são objetos de convênio com a FINEP e

FUCAPI.

O projeto cooperativo PROCIMA tem como finalidade geral desenvolver tecnologia de

produção de alevinos e a criação intensiva de matrinxã em canais de igarapés de terra firme

em pequenas e médias propriedades. O projeto TANRE visa adaptar a tecnologia de tanques-

rede para o cultivo de tambaqui e matrinxã ao nível familiar. O projeto BENECAST tem o

escopo de desenvolver tecnologia para o aproveitamento e/ou industrialização de produtos da

castanha do Brasil. O projeto VMCC se propõe a solucionar os gargalos tecnológicos de

validações botânica, química e biológica, com a finalidade de industrialização e

comercialização das espécies muirapuama (Ptycopetalum olacoides Benth. Olacaceae) e

chichuá (Maytenus guianensis Klot. Celastraceae), visando inclusive os registros junto a

Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) como medicamentos fitoterápicos novos

e do crajirú (Arrabidaea chica Verlot. Bignoniacea), como fitocosmético.

Com a implementação do NGTC no Estado do Amazonas em 2004, foram contratados

dois projetos cooperativos do APL Madeira: Caracterização dos Resíduos Madeireiros e

Desenvolvimento de Tecnologias para seu Aproveitamento (APROREM) e Modelo de

Integração de Produtores de Madeira do Estado do Amazonas (MIPMEA). O APROREM tem

como finalidade desenvolver alternativas para utilização adequada e racional dos recursos

naturais da região agregando valores econômicos ao resíduo produzido pelas indústrias

madeireiras, bem como implementar o Núcleo de Design Tropical Amazônico da FUCAPI,

para apoiar o desenvolvimento regional, a geração de ocupação e aporte de renda para as

populações tradicionais da Amazônia. Enquanto que o MIPMEA busca fortalecer o segmento

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125

de fornecimento de matéria-prima florestal. Os estudos complementares aos projetos

cooperativos abordam os temas de propriedade intelectual, fruticultura e piscicultura.

Cabe ao NGTC/SECT agregar recursos financeiros, informação e conhecimento que

contribuam para o gerenciamento produtivo dos projetos cooperativos63, bem como a

transferência para a economia local das soluções tecnológicas apresentadas por estes projetos

e o gerenciamento dos mencionados estudos complementares.

Desde janeiro de 2005, a SECT/NGCT tem executado um projeto64 com a finalidade de

desenvolver um estudo sobre propriedade intelectual, como forma de fortalecimento aos

APL s.

Nesse contexto, percebe-se que as ações da SECT, relacionadas à propriedade

intelectual, dividem-se em dois eixos: a consolidação de uma rede e o apoio aos projetos

vinculados aos APL s, por meio de estudo complementar sob propriedade intelectual na

gestão do NGTC.

No primeiro caso, a SECT, desenvolveu um projeto de Gestão de C&T, financiado pela

FAPEAM, com o objetivo de catalisar ações e/ou demandas institucionais coletivas para o

exercício dos direitos de propriedade intelectual no Estado. Este projeto foi desenvolvido em

escala piloto no município de Manaus, visando à capacitação de recursos humanos e a

articulação institucional entre os atores regionais mencionados acima. Estas ações de

capacitação (consubstanciadas nas oficinas e palestras do I Encontro da Rede Norte de

Propriedade Intelectual, Biodiversidade e Conhecimento Tradicional) objetivaram formar

agentes multiplicadores, permitindo que os próprios interessados realizassem ações de

conscientização e proteção à propriedade intelectual.

63 Projetos Cooperativos podem ser definidos como sendo um conjunto de projetos que persegue o mesmo fim, identifica potencialidades de recursos e estrangulamentos da intervenção, identifica e ordena projetos, define o âmbito institucional, sinaliza os recursos a serem utilizados (MCT, 2000).

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No segundo caso, a SECT por meio do NGTC, desenvolve um estudo jurídico

complementar ao projeto cooperativo VMCC, executado pelo INPA e parceiros. A demanda

deste projeto cooperativo relaciona-se à sua adequação formal, para o cumprimento de

requisitos legais, visando à obtenção de autorização do Conselho do Patrimônio Genético

(CGEN)65, para acesso ao patrimônio genético com a finalidade de bioprospecção (objetos de

pesquisa e repartição de benefícios com os detentores locais/comunitários), nos termos da MP

2.186-16/01.

Assim, passaremos à descrição detalhada destes dois casos, com o objetivo de delimitar

o papel da SECT neste cenário, analisando na seqüência a aplicabilidade do marco legal da

propriedade intelectual à realidade do Estado do Amazonas.

2. CONTEXTO POLÍTICO E DESAFIOS PARA O ESTADO DO AMAZONAS

O contexto jurídico que envolve o tema propriedade intelectual é bastante amplo. Este

trabalho não tem por objetivo discorrer sobre todo o marco legal referente ao assunto, mas

analisar as ações da SECT para superar entraves locais presentes em diversos setores da

economia do Estado do Amazonas. Sinteticamente, pode-se afirmar que a proteção aos

direitos de propriedade intelectual no setor empresarial/industrial, representado no Amazonas

pelo Pólo Industrial de Manaus (PIM), é prática tradicional. O registro de marcas e o depósito

de patentes são práticas comuns e muito difundidas no meio. O principal entrave local nesse

aspecto é a carência de mão-de-obra especializada para acompanhamento dos processos junto

ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), e falta de articulação entre este setor e

64 Estudo Complementar aos Projetos Implementados nos Arranjos Produtivos do Estado do Amazonas: Propriedade Intelectual , coordenado por Genise de Melo Bentes. 65 Instituição criada pela Medida Provisória 2186-16/01, responsável por autorizar o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado.

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demais segmentos atuantes no desenvolvimento biotecnológico. No entanto existem no estado

empresas que terceirizam este tipo de serviço (e.g. FUCAPI), atuando tanto no esclarecimento

dos trâmites legais e burocráticos necessários à obtenção de patente(s) ou registro de

marca(s), como também auxiliando na elaboração de projetos conforme as normas do INPI.

A biotecnologia surge como segmento altamente expressivo no contexto internacional e

também no Estado. Segundo Haddad & Rezende (2002), políticas econômicas de incentivo à

indústria de base biotecnológica seriam alternativas para o desenvolvimento sustentável da

Amazônia, devido ao baixo impacto ambiental dessas atividades e o alto valor agregado dos

produtos. Ainda de acordo com os mesmos autores, soma-se a estes fatores a identidade

regional da utilização da biodiversidade, como característica econômica.

A bioprospecção, envolvendo ou não acesso ao conhecimento tradicional associado à

biodiversidade, representa outro entrave local. As instituições que desenvolvem ações neste

campo esbarram em procedimentos extremamente burocráticos para autorização de execução

de projetos. O acesso ao CGEN, a partir das instituições locais, ainda é precário tanto pela

desinformação em relação à legislação, quanto pela falta de recursos humanos especializados

e de articulação político-institucional.

Do outro lado se encontram populações locais, que segundo Castro (2000) são capazes

de identificar com enorme riqueza de detalhes as diferenciações de fauna e flora no interior da

floresta, além de distinguir uma série de processos complexos inerentes ao ecossistema de

florestas tropicais úmidas, e por estas razões alegam a autoria de informações apoderadas,

segundo as mesmas, de forma ilegal por grandes empresas, sem o estabelecimento de acordos

ou contratos e repartição de benefícios.

A fim de legitimar esta situação, a MP 2186-16/01 foi regulamentada pelo Decreto nº

3.945/01, modificado pelo Decreto nº 4.946/03 e pelo nº 5.439/05. Em junho de 2005, adveio

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o Decreto nº 5.459/05 que regulamentou o artigo 30 da referida MP, disciplinando as sanções

aplicáveis às condutas e atividades lesivas ao patrimônio genético e/ou ao conhecimento

tradicional associado.

No entanto, ela não prevê um protocolo base definitivo para os procedimentos de

repartição de benefícios, ficando estes ainda ao encargo de serem definidos pelas empresas e

comunidades detentoras de conhecimento (Azevedo e Silva, 2005). A questão principal a ser

respondida não caminha em direção ao debate entre adeptos do sistema patentário tradicional

(e.g. INPI e OMPI) e defensores do sistema sui generis (Araújo & Capobianco, 1996; Laird,

2002; Lima, 2003; Santilli, 2005). A discussão engloba aspectos da aplicabilidade prática da

lei (principalmente da MP 2186-16/01 e textos relacionados) à realidade amazonense, tendo

como agente facilitador local a SECT.

3. REDE NORTE DE PROPRIEDADE INTELECTUAL, BIODIVERSIDADE E

CONHECIMENTO TRADICIONAL: UM BREVE HISTÓRICO.

A criação da RNPIBCT foi precedida de eventos em Manaus e Belém. Estes eventos

reuniam diversas instituições, criando espaços de articulação e discussão, que culminaram na

idéia de uma rede regional de propriedade intelectual.

O primeiro evento aconteceu em Manaus, em agosto de 2003. O I Seminário de

Propriedade Intelectual, Ciência e Conhecimentos Tradicionais Associados da Amazônia , foi

organizado pelo Escritório de Negócios do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia

(INPA) e reuniu diversas instituições da região norte, marcando o inicio das discussões no

Amazonas.

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129

O segundo evento aconteceu aproximadamente um mês depois, em Belém. O seminário

Saber Local/Interesse Global: Propriedade Intelectual, Biodiversidade e Conhecimento

Tradicional no Amazonas foi realizado pela Federação das Indústrias do Estado do Pará

(FIEPA), Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG) e Centro Universitário do Pará (CESUPA).

O objetivo deste evento foi impulsionar a criação de uma rede de propriedade intelectual, que

resultou concretamente na idéia da RNPIBCT. Deste seminário participaram instituições de

todo o Brasil66. Entre os presentes, foi definido que o principal objetivo da rede seria permitir

a articulação entre as instituições atuantes na área de propriedade intelectual da Região Norte,

facilitando o desenvolvimento de ações cooperativas voltadas à formulação e implementação

de políticas institucionais.

3.1. AÇÕES PARA A CONSOLIDAÇÃO DA REDE NORTE NO ESTADO DO

AMAZONAS

Em outubro de 2003 foi elaborada uma Carta de Intenções , em ação conjunta da

FUCAPI, INPA e FAPEAM. Em síntese, o conteúdo desse documento trata do marco legal

em propriedade intelectual e justifica a criação da RNPIBCT, como peça fundamental para

impulsionar o desenvolvimento sustentável da Amazônia. Os eixos centrais da rede são:

66 A Rede de Propriedade Intelectual e Comercialização de Tecnologia do Rio de Janeiro (REPICT), ABIN, AMAZONLINK, Comissão Executiva do Plano de Lavoura Cacaueira (CEPLAC) da Superintendência Regional da Amazônia Oriental (SUPOR), CESUPA, EMBRAPA/PA, FAPEAM, FUCAPI, Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (IEPA), Instituto Indígena Brasileiro de Propriedade Intelectual (IMBRAPI), INPA, Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), Universidade Federal do Pará (UFPA), Instituto do patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), MPEG, SECT, Universidade do Estado do Pará (UEPA), Universidade Federal Rural do Amazonas (UFRA), Núcleo de Estudos e Análise sobre Propriedade Intelectual (NEAPI/FEPI), Organização Indígena da Bacia do Içana (OIBI), Organização Extrativista Yawanauá de Agricultores do Rio Gregório (OEYARG) e o GTA.

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Difusão da cultura e incentivo à proteção da propriedade intelectual e dos

conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade;

Formação de recursos humanos;

Apoio aos núcleos institucionais de propriedade intelectual;

Apoio à transferência de tecnologia e;

Captação e gestão de recursos financeiros.

Em março de 2004 os trabalhos para a realização do I Encontro de Rede Norte em

Manaus tiveram início. Os passos iniciais seguiram em direção à formação de comissões

estaduais (uma de cada Estado da Rede) para auxiliar na organização do evento.

Em maio de 2004 a SECT lançou edital para selecionar projetos, através do Programa

de Gestão em Ciência e Tecnologia (PGCT). Dentre as linhas estabelecidas no edital, uma

previa seleção de projeto em propriedade intelectual, com o objetivo de capacitar agentes

multiplicadores, visando beneficiar as comunidades tradicionais, através da proteção dos seus

conhecimentos tradicionais. Subsidiariamente, o projeto deveria auxiliar na articulação e

desenvolvimento da Rede Norte de Propriedade Intelectual67.

A SECT, através do projeto selecionado no edital PGCT, a partir de agosto de 2004,

trabalhou com a FUCAPI, ABIM, SIPAM, SEBRAE, UFAM, INPA e UEA, para captar

recursos e organizar o I Encontro da Rede Norte de Propriedade Intelectual, Biodiversidade e

Conhecimento Tradicional . O encontro ocorreu em Manaus entre 28 e 31 de março de 2005,

contando com o apoio de instituições nacionais e do Amazonas. Deste evento participaram

representantes de diversos estados brasileiros. Nesta oportunidade, também foi realizada

67 O projeto escolhido foi: Desenvolvimento de instrumentos institucionais catalisadores de ações para a difusão do exercício dos direitos de propriedade intelectual , coordenado por Serguei Aily Franco de Camargo e executado na SECT entre julho de 2004 e junho de 2005.

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131

reunião dos representantes estaduais da Rede, a fim de cuidar de sua efetiva implementação,

organização e atribuições dos integrantes.

4. PRINCIPAIS RESULTADOS OBTIDOS

4.1. PROPRIEDADE INTELECTUAL E RNPIBCT

O objetivo formal do I Encontro da Rede Norte para a SECT foi a aproximação de

instituições, representantes de populações tradicionais, governo e indústria, para discutir os

mecanismos de proteção da propriedade intelectual e dos conhecimentos tradicionais

associados ao uso da biodiversidade. Especificamente, estabeleceu-se que o encontro deveria

contribuir com a capacitação de agentes formadores de opinião entre indígenas, ribeirinhos e

quilombolas (para disseminar conhecimentos nas comunidades interioranas do Estado);

capacitar os membros da Rede Norte nos aspectos jurídicos e sócioambientais da proteção aos

conhecimentos tradicionais (aumentando o poder da disseminação cultural do tema entre os

diversos Estados). O público presente foi composto de membros da Rede Norte,

representantes da sociedade civil organizada, de populações tradicionais indígenas e não-

indígenas, gestores públicos, comunidade acadêmica, empresas e agências de fomento à

pesquisa68. A programação desenvolvida durante o evento está descrita na Tabela 1 abaixo.

68 Especificamente: comunidade acadêmica em geral, CESUPA, FUCAPI, FUNAI, IEPA, MPEG, UFPA, ABIN, FEPI, COIAB, CEPLAC, UFRA (SANTARÉM), IPHAN, GAENC, SEBRAE, CEMEN, GTA, INPA, SETEC-AP, AMAZONLINK, IBAMA, INBRAPI, PROBEM/SDS/MMA, Cgen/MMA. O número de inscritos no encontro contabilizou 302 pessoas, mas apenas 197 realmente compareceram nas atividades realizadas.

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Tabela 1. Programação do I Encontro da Rede Norte de Propriedade Intelectual,

Biodiversidade e Conhecimento Tradicional.

OFICINAS (28 e 29/03/2005)

1. Propriedade Intelectual e Financiamento a Projetos de Pesquisa & Inovação:

implicações jurídicas.

2. A universidade e empresa: experiências em transferência de tecnologia.

3. Povos indígenas e o conhecimento tradicional associado ao uso da biodiversidade.

REUNIÕES, PALESTRAS E MESAS REDONDAS (29, 30 e 31/03/2005)

1. Reunião da Rede Norte

Pauta: escolha de logomarca; indicação da sede do próximo encontro; definição de

representações estaduais; elaboração de agenda de ações prioritárias e financiamentos.

2. Palestra REPICT

3. Mesa: Propriedade Intelectual, Biodiversidade e Conhecimentos Tradicionais:

cenário internacional e nacional.

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4. Mesa: Limites Éticos e Jurídicos da Propriedade Intelectual em Face da Utilização

Sustentável da Biodiversidade e dos Conhecimentos Tradicionais.

5. Mesa: A Repartição de Benefícios Perante a Necessidade do Desenvolvimento

Científico e Tecnológico com Responsabilidade Sócio-Ambiental.

6. Mesa: Questões Éticas no Âmbito da Propriedade Intelectual para o Diálogo

Multicultural.

A oficina Propriedade Intelectual e Financiamento a Projetos de Pesquisa & Inovação:

implicações jurídicas contou com a participação de 67 pessoas. Em síntese as recomendações

dos participantes foram:

1. Criação de um banco de informações para evitar apropriação indevida

do conhecimento tradicional associado ou não à biodiversidade. O objetivo deste

banco seria a identificação dos saberes tradicionais. Essa proposta de criação de um

banco de dados vem sendo muito discutida na literatura (c.f. Diegues, 2000), onde o

grande entrave parece ser definir quais seriam as formas de acesso a este banco de

dados. Haveria restrições quanto ao acesso? Caso isto ocorresse, quais seriam estas

restrições?

2. Adaptação da legislação aos diferentes tipos de pesquisas e instituições

com objetivos e estruturas diversos;

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134

3. Assessoria às comunidades tradicionais, no que se refere às regras

atuais de proteção à propriedade intelectual; e a criação e implementação de política

de formação de agentes multiplicadores.

Quanto às situações específicas do Termo de Anuência Prévia e Contrato de Repartição

de Benefícios, argumentaram sobre a falta de regulamentação específica do CGEN. Segundo

o grupo de estudo, as avaliações processuais (no CGEN) deveriam ser realizadas por técnicos

da área. Os Institutos de Pesquisa e de Ensino deveriam ser amparados jurídica e

financeiramente no desenvolvimento de seus projetos, principalmente quando envolvem

acesso a conhecimentos tradicionais.

Recomendaram que o CGEN simplificasse os procedimentos de licenciamento, quando

os projetos já estivessem previamente aprovados nos comitês de análise de agências

governamentais de fomento, como FAPEAM, FAPESP, CNPq e FINEP. Apontaram a falta de

regulamentação sobre conhecimentos tradicionais e plantas medicinais, o que inibe o aporte

de financiamento por particulares, pelo alto risco de impactos negativos na repartição de

benefícios e no comprometimento da imagem, se ligada a biopirataria69.

A oficina Universidade e Empresa: experiências em transferência de tecnologia ,

ocorreu com a participação de 59 pessoas. Em síntese, os participantes recomendaram que

interação universidade/empresa deveria favorecer a oferta de mão-de-obra especializada e

conhecimento técnico (por parte da universidade), visando suprir demandas das empresas em

recursos humanos e inovação tecnológica. O ajuste entre oferta e demanda deveria ser

realizado de acordo com a elaboração de estudos sobre potencial econômico (por setor de

69 De acordo com Souza (2003), pode-se entender que foi caracterizado o crime de biopirataria em caso de pesca proibida (sem a autorização do IBAMA), com a intenção de transportar os animais para o exterior. No caso citado, houve concurso formal entre o art. 34, parágrafo único, inciso III da Lei 9.605/98 e o art. 334, § 3º. do Código Penal Brasileiro.

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atividades); incentivos para financiamento das pesquisas (demanda induzida pela

SECT/FAPEAM).

A terceira e última oficina Povos indígenas e conhecimento tradicional associado ao

uso da biodiversidade ocorreu com a participação de 76 pessoas. Os resultados das

discussões foram recomendações para o estabelecimento de uma rede de assistência jurídica

as populações tradicionais com respeito à propriedade dos conhecimentos tradicionais,

implementação de um projeto de extensão para esclarecer as populações tradicionais sobre o

valor econômico de seu conhecimento, criação de núcleos de propriedade intelectual nos

centros de pesquisas e nas universidades e criação de núcleos jurídicos para assessoria a

estudos de viabilidade de projetos de P&D.

A reunião dos integrantes da Rede Norte resultou nas seguintes deliberações:

1. Objetivos: promover a função social da propriedade intelectual, o uso

sustentável da biodiversidade e criação mecanismos jurídicos diferenciados para a

proteção dos conhecimentos tradicionais na Amazônia.

2. Eixos de atuação: formação e capacitação de recursos humanos; difusão

da função social da propriedade intelectual; apoio aos núcleos de propriedade

intelectual.

3. Formalização: elaboração de carta geral de orientação e procedimentos.

4. Comitê Gestor com mandato de dois anos: que deve garantir a

observância dos princípios da Rede; tomar decisões em caráter de urgência; gerenciar

a elaboração dos produtos da rede; servir de fórum de resolução de conflitos e; decidir

sobre os pedidos de filiação.

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5. Comissões da Rede: os estados devem compor Comissões Estaduais,

para propiciar maior adesão e articulação entre seus afiliados.

6. Secretaria Executiva com mandato de 3 anos: responsável pela gestão

de informações.

7. Afiliados da Rede: instituições públicas e privadas de ensino (ou não),

sem fins lucrativos e representações de comunidades tradicionais com direito à voz e

voto. Demais colaboradores não terão direito a voto.

As demais atividades do evento (mesas e debates) transcorreram conforme a

programação exposta na Tabela 1. Entretanto, devido ao caráter meramente expositivo dos

debates, os resultados da participação do público não puderam ser medidos ou sintetizados da

mesma forma que nas oficinas e na reunião da Rede70.

4.2. ARRANJOS PRODUTIVOS LOCAIS

Foi realizado um estudo complementar em relação ao tema Propriedade Intelectual nos

projetos implementados pelos APL S do Amazonas com apoio do NGCT. O presente estudo

complementar, no primeiro momento, realizou um diagnóstico dos entraves jurídicos dos

projetos cooperativos, para sistematizar a legislação aplicável, a doutrina e a jurisprudência,

com o objetivo de propor meios para resolver os entraves relativos à propriedade intelectual.

Em apenas dois APL s foram identificados problemas relacionados à propriedade intelectual,

é o caso dos arranjos VMCC e BENECAST.

No projeto cooperativo VMCC a demanda está ligada ao cumprimento de requisitos

para obtenção de autorização do CGEN, para acesso ao patrimônio genético. Os provedores

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que ocupam as áreas abrangidas pelo projeto são fornecedores de matéria-prima. O que se

busca é a legalização da atividade para o desenvolvimento do projeto de pesquisa. O projeto

BENECAST ainda não possui demanda jurídica, entretanto, é possível que no futuro este APL

possa apresentar como entrave o acesso aos produtos florestais, no caso específico a castanha-

do-brasil, em terras de titularidade indefinida. Dessa forma, a ênfase do presente trabalho

recairá sobre acesso ao patrimônio genético e propriedade intelectual relacionados ao projeto

VMCC.

5. DISCUSSÃO

5.1. ACESSO AO PATRIMÔNIO GENÉTICO E MEDIDA PROVISÓRIA 2186-16/01

Conforme mencionado, o projeto cooperativo VMCC, demanda o acesso ao patrimônio

genético para fins de bioprospecção. Os requisitos para a obtenção da autorização de acesso

ao patrimônio genético para fins de bioprospecção estão relacionados no Decreto nº 4.946/03,

que alterou e acrescentou dispositivos no Decreto nº 3.945/01, que regulamenta a MP 2186-

16/01, bem como as resoluções elaboradas pelo CGEN. Devido ao grande número de

exigências burocráticas, tem sido difícil e moroso aos interessados cumprir todos os

requisitos. Talvez por este motivo, até o final de agosto de 2005, o CGEN tenha concedido

apenas quatro autorizações para acesso ao patrimônio genético para fins de bioprospecção e

desenvolvimento tecnológico (Extracta Moléculas Naturais SA71, Quest Internacional do

70 O registro de tudo encontra-se em uma coleção com nove DVDs, depositada na SECT. 71 Autorização especial concedida por meio da Deliberação nº62 do CGEN para constituição e manutenção de coleção ex situ que visa a atividades com potencial de uso econômico.

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Brasil Ltda72, Natura Inovação e Tecnologia de Produtos Ltda.73 e Superintendência da Zona

Franca de Manaus74). Esta situação se repete no Amazonas, onde a FEPI atrasou o início da

execução de diversos projetos de pesquisa e extensão (em parceria com o INPA) financiados

pela FAPEAM, por dificuldades na obtenção do consentimento das comunidades indígenas

afetadas. Nesse sentido, Ana Cláudia Freitas Chaves (Assessora da Presidência da FEPI,

comunicação pessoal), mencionou que os principais entraves nos processos de licenciamento

dos projetos no CGEN foram: problemas técnicos com as traduções dos projetos nas línguas

nativas e; alto custo e complexidade logística das viagens da equipe de pesquisadores a

campo, para mobilização e consulta às comunidades indígenas.

5.2. ENTRAVES LOCAIS

O artigo 31da MP 2186-16/01 dispõe sobre propriedade intelectual, declarando que a

concessão do direito de propriedade industrial pelos órgãos competentes, sobre processo ou

produto obtido a partir de amostra de componente do patrimônio genético, fica condicionada à

observância da referida MP, devendo o requerente informar a origem do material genético e

do conhecimento tradicional associado, quando for o caso. O projeto VMCC visa obter três

produtos a partir do acesso ao patrimônio genético, restando clara a aplicabilidade do

mencionado artigo 31.

No caso prático do projeto VMCC, a proteção da propriedade intelectual dos produtos

desenvolvidos passa, preliminarmente, por implicações jurídicas de diversas ordens. A

72 Autorização concedida por meio da Deliberação nº 78 do CGEN para acessar amostras de componentes do patrimônio genético. 73 Autorização concedida por meio da Deliberação nº 94 do CGEN para acessar componente do patrimônio genético da espécie breu branco (Protium pallidium) proveniente da Reserva Estadual de Desenvolvimento Sustentável Iratapuru, no Estado do Amapá

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realização do termo de anuência prévia e do contrato de utilização do patrimônio genético e

repartição de benefícios com o proprietário da área, onde o recurso biológico será coletado

pressupõe a titularidade da terra, fato que pode ser colocado como entrave prático, visto que

um dos graves problemas da Amazônia brasileira é a questão fundiária.

As exigências legais para obtenção de autorização de acesso ao patrimônio genético

causaram um grande impacto nas instituições de pesquisa, organismos financiadores e

agências de fomento, que não estavam preparados para enfrentar o novo panorama jurídico. O

surgimento desses entraves burocráticos, no caso específico do Amazonas, acarretou a

paralisação de projetos (e.g. projeto VMCC).

No Estado do Amazonas, uma das dificuldades observadas é a organização de núcleos

de apoio internos nas instituições de pesquisa. Há uma evidente carência de profissionais

especializados em propriedade intelectual e aspectos jurídicos da biotecnologia. Isso faz com

que as instituições não assumam inteiramente a responsabilidade sobre a obtenção de

autorizações, direcionando tacitamente esses encargos aos coordenadores de projetos. O

pesquisador acaba assumindo a tarefa para que a pesquisa não sofra interrupções das

atividades e desembolsos. Outro fator a se considerar são os projetos aprovados e/ou

contratados antes de 2005, que não previam recursos para obtenção de autorização do CGEN,

e nem adaptavam os cronogramas, integrando o lapso de tempo necessário à obtenção das

autorizações. Atualmente, a FAPEAM já integra em seus formulários de solicitação de

fomento, questões específicas sobre a necessidade de autorização do CGEN e de outras

instituições, resta apenas prever em seus editais, recursos para a realização dos procedimentos

administrativos, além do tempo destinado aos trâmites.

74 Autorização especial concedida por meio da Deliberação nº 117 do CGEN para constituição de coleção ex situ que vise atividade com potencial de uso econômico para implementação do projeto Criação do Banco de Biodiversidade do Centro de Biotecnologia da Amazônia.

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Por fim, um entrave que permeia todo o quadro apresentado é a falta de informação

sobre propriedade intelectual e acesso ao patrimônio genético na região. Esta carência foi uma

das principais justificativas para a SECT apoiasse a execução do projeto vinculado PGCT,

sobre propriedade intelectual e proteção aos conhecimentos tradicionais. Nesse sentido, foi

observada a ação integradora das duas linhas de atuação da SECT (PGCT e NGTC) no I

Encontro da Rede Norte.

6. CONSTATAÇÕES FINAIS E RECOMENDAÇÕES

A ação da SECT, no âmbito da propriedade intelectual, se divide em dois setores:

intervenção (PGCT

articulação de rede de Propriedade Intelectual, capacitação de recursos

humanos e captação e gestão de recursos financeiros) e pesquisa (apoio aos APL s e seus

projetos cooperativos por meio de estudos complementares, promovendo interface do

Governo do Estado e Associação Brasileira das Instituições de Pesquisa Tecnológica -

ABIPTI).

A articulação regional da Rede Norte teve que superar a fricção do espaço amazônico e

restrições financeiras e logísticas, que impediram, em alguns casos, a realização de reuniões

entre os membros. Em parte, as discussões do grupo progrediram virtualmente, por meio de

lista de discussões on-line, que facilitou a coalizão de interesses interestaduais e

interinstitucionais, permitindo o panorama de articulação político-institucional que se tem no

2º. semestre de 2005.

No início de 2005 a Rede enfrentou um período de crescimento e estruturação, a fim de

atingir as metas propostas na Carta de Intenções elaborada pela FUCAPI, INPA e FAPEAM.

Concretamente, a Rede ainda necessita de ampliação de infra-estrutura, criação de logomarca e

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formalização de um manual de orientações procedimentais para seus membros (conforme

resultados da reunião de março de 2005 em Manaus).

O papel de instituição facilitadora local, desempenhado pela SECT, na construção do

encontro da Rede Norte foi fundamental. O planejamento e a construção do evento foram

democráticos, com decisões tomadas horizontalmente entre as principais instituições

parceiras75, minimizando eventuais efeitos hierárquicos e de grupos de interesse. Os fatos se

distribuíram por um longo espaço de tempo, onde se buscou o consenso entre todos os

membros. Devido à insuficiência de recursos financeiros para a execução do evento, as

instituições parceiras locais, por intermédio da SECT buscaram patrocinadores, o que

provocou maior aproximação entre a equipe de organização.

O nível técnico do evento foi bom, conforme avaliações dos realizadores e dos

participantes, entretanto, devido ao desconhecimento da temática na região, a participação não

correspondeu ao esperado. A reunião da Rede Norte, durante o evento, foi produtiva, uma vez

que, foram decididas pendências sobre sua constituição e critérios para ingresso na rede.

Foram redefinidos objetivos, funções, metas, integrantes e prazos para estabelecimento de

comissões estaduais e comitê gestor.

No âmbito do estudo complementar sobre propriedade intelectual, apesar de ainda não

ter sido concluído, constatou-se que a MP 2186-16/01 foi duramente criticada pelos

pesquisadores, que a consideraram como um empecilho ao avanço científico e tecnológico

regional (por burocratizar excessivamente a execução de projetos que envolvem acesso ao

patrimônio genético e conhecimento tradicional associado). Nesse sentido, a implementação

de núcleos e/ou departamentos de propriedade intelectual nas instituições de ensino e pesquisa

e demais instituições públicas e privadas envolvidas com a temática, poderiam minimizar os

entraves legais constatados.

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Por fim, diante do exposto, cabe sintetizar recomendações que possam contribuir com

ações do Governo do Estado, implementadas pela SECT, com o objetivo de superar os

entraves locais relacionados à proteção dos direitos de propriedade intelectual e do

conhecimento tradicional associado ao uso da biodiversidade:

1. Proporcionar a aproximação da Superintendência da Zona Franca de

Manaus (SUFRAMA), através do apoio à criação e implementação de uma rede

estadual de propriedade intelectual, em consonância com os Projetos Prioritários do

Comitê das Atividades de Pesquisa e Desenvolvimento na Amazônia (CAPDA).

2. Atuar junto ao INPI a fim de que sejam oferecidos, no Estado, cursos de

capacitação técnica em propriedade intelectual, como forma de atender à demanda

regional do PIM, por recursos humanos especializados.

3. Apoiar à capacitação de recursos humanos do interior do Estado.

4. Apoiar a adequação dos editais da FAPEAM às exigências legais para

obtenção de licenças do CGEN (previsão de recursos financeiros e dilação de prazos).

5. Apoiar a implementação de assessoria jurídica em núcleo de

propriedade intelectual na FAPEAM (a fim de possibilitar estudos de viabilidade

jurídica de propostas).

6. Apoiar a troca de experiências sobre propriedade intelectual entre

NGTC e FAPEAM.

75 FUCAPI, ABIN, FEPI, SIPAM, INPA, UFAM, Genius Instituto de Tecnologia, SEBRAE, MMA e UEA.

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AGRADECIMENTOS

Os autores gostariam de agradecer ao Programa de Pós-Graduação em Direito

Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas, à Fundação de Amparo à Pesquisa do

Estado do Amazonas, à Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia, ao Núcleo de Gestão

Tecnológica Compartilhada, ao Banco da Amazônia e a Profa. Dra. Andrea Borghi Moreira

Jacinto (PPGDA/UEA), pelas críticas e sugestões que permitiram o aprimoramento do texto.

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REFERÊNCIAS

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EXIGIBILIDADE DE POLÍTICAS PÚBLICAS AMBIENTAIS E SEU CONTROLE

JURISDICIONAL ATRAVÉS DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA

Sebastião Ricardo Braga Braz76

1 Considerações iniciais

O Estado Social de Direito brasileiro, por expressa previsão constitucional plasmado

no art. 1º, III (a dignidade da pessoa humana) combinado com o art. 3º, III (erradicar a

pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais) e IV (promover

o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras

formas de discriminação), deve buscar o bem estar-coletivo e a vida digna a todos os

cidadãos.

A dignidade da pessoa humana, dentre outras condições, é alcançada por um meio

ambiente sadio e equilibrado, o qual se constitui em um direito e um dever fundamental,

em conformidade com o comando inserto no art. 225 da Constituição Federal de 1988.

O meio ambiente, além da qualificação de fundamentalidade, insere-se como um

direito social constitucional, vinculando o administrador público a implementar políticas

sociais e ambientais com o escopo de alcançar aquele desiderato, através da qualidade

ambiental necessária à mantença da vida na Terra.

76 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do estado do Amazonas.

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146

Nessa perspectiva, incumbe ao administrador a implementação de políticas públicas

na área ambiental, vez que, o direito e o dever fundamental ao meio ambiente importam

em um dever de agir de todos, especialmente o Poder Público, aglutinador, por excelência,

de recursos financeiros para o desempenho de tais atividades.

Assim, o Estado tem a obrigação de oferecer prestações positivas aos cidadãos, com

o fito de garantir o meio ambiente saudável, não se admitindo um não-fazer, em

decorrência do qualificado atributo de fundamentalidade e, ainda, por tratar-se de um

direito de cunho social, integrante da ordem social constitucional.

A inércia e/ou conduta inadequada do Executivo no desempenho de políticas

públicas ambientais ocasiona a sua judicialização, até porque nenhuma lesão ou ameaça de

direito pode ser furtada da apreciação pelo Poder Judiciário, direito fundamental de acesso

à jurisdição consagrado no art. 5º, XXXV da Constituição Federal de 1988.

O processo de judicialização de políticas públicas importa no desenvolvimento

doutrinário de argumentação contrária a sua possibilidade, especialmente sob as seguintes

alegações: a) inexistência de direito público subjetivo; b) intromissão do Judiciário em

questões afetas tipicamente ao Executivo; e c) discricionariedade administrativa na escolha

de políticas a serem viabilizadas. Tais obstáculos serão objeto de análise e reflexão a

seguir.

2 Existe um direito público subjetivo a políticas públicas ambientais?

O direito e o dever fundamentais ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de

uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida das presentes e futuras gerações,

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147

gizado no art. 225 da Constituição Federal de 1988, imprescindível à existência de vida digna,

constitui um direito público subjetivo exigível judicialmente contra o Estado para a

implementação de políticas públicas ambientais?

Por direito público subjetivo entende-se o poder da vontade humana que, protegido e

reconhecido pelo ordenamento jurídico, tem por objeto um bem ou interesse77.

Por ser uma ferramenta que decorre do princípio da inafastabilidade do controle

jurisdicional, o direito público subjetivo impõe ao cidadão acionar o Estado-juiz para que o

mesmo determine uma conduta de dar, fazer ou não fazer algo em benefício de um particular.

No campo da proteção ambiental, o direito público subjetivo ao meio ambiente sadio e

equilibrado encontra suas balizas fincadas no art. 225 da Constituição Federal de 1988, razão

pela qual, em havendo inércia do Poder Público na implementação de Políticas Públicas

ambientais, incumbe aos atores sociais legitimados acionar o Poder Judiciário para corrigir tal

irregularidade, para concretizar o princípio da existência digna e a sobrevivência humana.

A problemática da existência de um direito público subjetivo ao meio ambiente e de

políticas públicas conecta-se diretamente com base na norma constitucional e independe de

qualquer ato de intermediação legislativa. Em decorrência disso, o Estado está sob um dever

constitucional de agir, não se admitindo a omissão na viabilização de políticas públicas.

3 Argumentos jurídicos contrários a uma intervenção do Poder Judiciário

A Constituição Federal de 1988 reconhece a existência dos Poderes da República, tendo

em conta a necessidade de especialização das funções a serem desempenhadas na complexa

estrutura do Estado contemporâneo brasileiro.

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A especialização de funções dos Poderes da República brasileira constitui um dos

principais argumentos daqueles que defendem a não judicialização de Políticas Públicas.

Por outro lado, o Judiciário brasileiro, quando chamado a analisar demandas judiciais

exigindo que têm por objeto direitos sociais, ou quando controla a aplicação de políticas

públicas, especialmente em matéria de proteção ambiental, deve romper com sua tradição

formalista, individualista e conservadora, que não mais encontra apoio na legislação

constitucional e no estágio democrático atual, e, efetivamente, participar do processo de

desenvolvimento sócio-ambiental do país, garantindo e concretizando ativamente os reclamos

do Estado Social de Direito78.

A Constituição Federal de 1988 cravou as estacas dos instrumentos judiciais

garantidores do direito fundamental ao meio ambiente, como a ação civil pública, o mandado

de segurança, o mandado de injunção e a ação popular. Entretanto, os Tribunais nem sempre

têm reconhecido o potencial desses instrumentos, especialmente quando o assunto demanda

exigibilidade de políticas públicas79.

Nesses casos, dificilmente o Judiciário reconhece a omissão do Executivo e do

Legislativo, pronunciando-se favoravelmente àquelas demandas, prevalecendo à falsa idéia de

que a intervenção do Judiciário em questões políticas80 representaria uma extrapolação de seu

77 JELLINEK, G. Sistema dei diritti pubblici subbietivi. Milano, 1910, p. 10, apud DUARTE, Clarice Seixas. Direito público subjetivo e políticas educacionais. São Paulo Perspec. Apr./June 2004, vol.18, n.2, p.113-118. ISSN 0102-8839, p. 1 78 COSTA NETO, Nicolau Dino de C. e. Proteção jurídico do meio ambiente, 2003, p. 106 e s; COELHO, Paulo M. da C. Controle jurisdicional da Administração Pública, 2002, p. 131 e s, apud KRELL, Andréas J. Discricionariedade Administrativa e proteção ambiental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 60 79 DUARTE, Clarice Seixas. Tese de Doutorado 80Sobre a natureza política das atividades exercidas pelos juízes, são esclarecedoras as observações de Dalmo

Dallari, por chamarem a atenção para o fato de que a maioria dos juízes, ao afirmarem que são apolíticos, acreditando que essa característica é indispensável para sua imparcialidade e independência, estão, na verdade, cometendo o equívoco de atribuir à palavra política o sentido estreito de política partidária. Na realidade, segundo o autor o reconhecimento da politicidade do direito nada tem a ver com opções partidárias e nem tira, por si só, a autenticidade e a legitimidade das decisões judiciais. Bem ao contrário disso, o juiz consciente dessa politicidade fará um esforço a mais para conhecer e interpretar o direito, considerando sua inserção necessária num contexto social, procurando distingui-lo do direito abstrato ou do que é criado artificialmente para garantir privilégios, proporcionar vantagens injustas ou impor sofrimentos com base exclusivamente

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papel, uma intervenção indevida em assuntos orçamentários, alçada daqueles que foram

eleitos para isso.

Essa falsa idéia só encontrava sustentação jurídica no art. 68 da Constituição Federal de

1934, o qual vedava expressamente ao Poder Judiciário conhecer de questões exclusivamente

políticas. Na vigência da Constituição Federal de 1988, tal entendimento não se sustenta, em

razão do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, com assento no art. 5º,

XXXV.

Sobre a legitimidade do juiz para controlar políticas públicas, Lênio Streck81 salienta

que após a Carta Magna de 1988 as inércias do executivo e falta de atuação do legislativo

passam a poder ser supridas pelo judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos

previstos na Constituição que estabeleceu o Estado Democrático de Direito, leitura que deve

ser compatibilizada com o art. 129, III que dispõe sobre a Ação Civil Pública.

Andréas Krell82 afirma ser cada vez mais necessário à revisão do dogma da separação

dos poderes em relação ao controle dos gastos públicos e da prestação dos serviços sociais

básicos no Estado Social, tendo em conta que os Poderes Legislativo e Executivo no Brasil se

mostram incapazes de garantir um cumprimento racional dos respectivos preceitos

constitucionais.

Ainda dentre os obstáculos comumente interpostos à possibilidade de controle judicial

dos direitos fundamentais de caráter social, dentre os quais se inclui o direito ao meio

numa discriminação social (DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 85 e 94).

81STRECK, Lênio Luiz. In 1988-1998, uma década de Constituição; As constituições sociais e a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental, p.323. 82KRELL, Andréas. Controle Judicial dos serviços públicos básicos na base dos direitos fundamentais sociais. A Constituição Concretizada Construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado 2000, p 29.

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ambiente ecologicamente equilibrado, identifica-se àqueles relacionados a defeitos aparentes

nas disposições normativas que os enunciam, o que, supostamente, lhes tornariam direitos

desprovidos de exigibilidade. Estes defeitos dizem respeito à alegada ineficácia das normas

constitucionais definidoras de direitos prestacionais, bem como a lacunas aparentes, por vezes

detectáveis no texto da norma, o que pode ser rechaçado por uma leitura atenta e sintonizada

com o §1º do art. 5º, combinada com o art. 1º, III (fundamento republicano da dignidade da

pessoa humana), ambos da Constituição Federal de 1988, que dispõe sobre o princípio da

aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais,

especialmente daquelas que viabilizam a dignidade da pessoa humana.

O comando do art. 225 da Constituição Federal de 1988 é uma norma veiculadora de

um direito fundamental e social, sendo normas jurídicas auto-aplicáveis e não meras

exortações ao Administrador Público para a implementação de políticas públicas ambientais.

A norma definidora de direito social, a não ser que especifique minuciosamente o

procedimento a ser adotado para a satisfação daquele direito, faculta à Administração uma

gama de procedimentos aptos a assegurá-los, um campo de ação dentro do qual se move a

discricionariedade do agente público. A extrema difusão deste campo de ação, para a corrente

que se opõe aos direitos sociais, desaconselha a imposição judicial de prestações positivas, já

que o magistrado teria de eleger, consoante um juízo político que não lhe é próprio, a ação a

ser implementada.

A discricionariedade na implementação de políticas públicas constitucionais da ordem

social (como o direito ao meio ambiente), só poderá ser exercida nos espaços, eventualmente,

não preenchidos pela Constituição ou pela lei, não podendo a Administração ou entes

delegados valer-se de conceitos normativos tidos como fluídos ou permeáveis a várias

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interpretações, pois esses deverão ser preenchidos por interpretação de acordo com os

fundamentos e objetivos da República, estabelecidos na Constituição83.

Reforçando o entendimento acima, tem-se que na aplicação dos conceitos

indeterminados, a Administração Pública não deve agir somente de acordo com a legalidade,

mas deve proceder de forma útil, para realizar os princípios e valores constitucionais e

operacionalizar uma legitimação substancial84.

Um outro argumento suscitado em detrimento dos direitos prestacionais é o chamado

limite fático da reserva do possível , ou seja, a existência de recursos financeiros escassos

para a implementação de políticas públicas.

Nesse particular, o obstáculo não mais diz respeito a possíveis defeitos no dispositivo

positivador do direito social ao meio ambiente, mas sim ao dado concreto de que tais

situações jurídicas exigem, para sua efetivação, o dispêndio de recursos financeiros, que o

Estado detém de forma limitada.

Registre-se que, a concreta garantia de direito fundamental sobrevém dos meios

financeiros estatais disponíveis. A impossibilidade econômica se apresenta como limite

necessário

da garantia (prestacional) dos direitos fundamentais. Tal argumento não resiste

diante da premência do direito ao meio ambiente umbilicalmente conectado à implementação

da dignidade da pessoa humana.

A questão da escassez de recursos como limite para o reconhecimento pelo Estado

Social do direito às prestações, no caso vertente, Políticas Públicas Ambientais, sempre

desafiou os operadores do direito. Pode o Direito oferecer uma resposta segura para situações

em que os recursos sejam limitados? Pode apontar uma solução para as prioridades que o

83 FRISCHEISEN. Luiza Cristina Fonseca. Políticas Públicas - A responsabilidade do administrador e o Ministério Público. São Paulo: Editora Max Limonad, 2000, p. 147 84 OHLWEILER, Leonel. Direito Administrativo em perspectiva, 2000, p. 127, apud KRELL, Andréas J. Discricionariedade Administrativa e proteção ambiental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 60

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Estado deva atender ou não em um cenário de falta de meios econômicos para a satisfação de

todos?

Respostas às indagações acima necessitam ser pensadas e repensadas à luz dos

princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, do meio ambiente ecologicamente

equilibrado e, por fim, diante da expressa disposição lançada na Carta Magna, a qual deve

servir de premissa de que o artigo 5º, § 1º, abrange todas as normas de direitos fundamentais

garantidos pela Lei Maior, sendo insustentável a tese defendida de que os direitos sociais a

prestações não têm eficácia plena e não são imediatamente aplicáveis.

O direito ao meio ambiente não se trata de mera norma programática, como quiseram

argumentar alguns juristas no passado85. Tanto assim é verdade que Dalmo Dalari, em recente

pronunciamento, afirmou que até mesmo José Afonso da Silva revisou seu pensamento

anterior para considerar, atualmente, como norma constitucional aplicável, o dispositivo

garantidor da saúde (direito de cunho social, com mesmo grau do direito ao meio ambiente),

protegido que está pelo Princípio da Satisfação Progressiva86.

Na doutrina internacional, Abramovich identifica como obstáculos à justiciabilidade dos

direitos econômicos, sociais e culturais a problemática da identificação do conteúdo da

conduta devida, a restrição da atuação do Poder Judiciário frente a questões técnicas e

políticas, a ausência de mecanismos processuais adequados para a tutela dos direitos

econômicos, sociais e culturais e, por fim, a ausência de tradição de controle judicial na

matéria87, obstáculos esses que serão analisados à luz da doutrina constitucional pátria.

85 José Afonso da Silva é exemplo de jurista que já defendeu no passado a categoria classificatória denominada norma constitucional programática. 86 No dia 19.9.2004, no auditório do Supremo Tribunal Federal, o jurista Dalmo Dalari proferiu palestra sobre Controle de Constitucionalidade e Direitos Humanos, onde afirmou que há muita omissão injusta que depende de iniciativas. São omissões inconstitucionais, disse ele. Ao finalizar a aula, deu ênfase ao perfil do novo profissional do direito, a partir da idéia de Direito como instrumento de Justiça. 87 ABRAMOVICH, Víctor; COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles. Madrid: Editorial Trotta, 2002, p. 121 e ss.

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4 Atuação do Ministério Público potencializando a judicialização de políticas públicas

ambientais

A constitucionalização do direito ao meio ambiente e a incumbência de sua proteção ao

Poder Público e à coletividade implicou o aumento considerável de ações de cobrança

direcionadas ao Estado, com o fito de implementar políticas públicas ambientais.

Tais cobranças são levadas a efeito pelos cidadãos, associações, organizações não-

governamentais e, principalmente, pelo Ministério Público.

O Ministério Público, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, ganhou

papel relevante no cenário da República brasileira, como instituição permanente, essencial à

função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime

democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, na dicção do art. 127 da Lei

Maior.

Para a consecução do seu desiderato, o mesmo texto constitucional o instrumentalizou

com o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do

meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, consoante art. 129, III da Lex Mater,

instrumentos processuais ratificados no texto constitucional e originados da Lei n. 7.347/85

Lei da Ação Civil Pública. Dessa forma, a legitimidade do Ministério Público surge da

harmonização do art. 127 como o art. 129, III.

Nessa linha, considerando que os direitos sociais, dentre os quais encontra-se o direito

ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, realiza-se pela efetiva implantação das

diretrizes da ordem social-ambiental-constitucional (art. 225), o Ministério Público está

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legitimado a exigir da Administração Pública o efetivo cumprimento dos comandos

constitucionais concretizadores do direito e dever fundamental ao meio ambiente.

O não agir (omissão) ou a ação de forma não razoável para atingir a finalidade

constitucional (desvio de finalidade)88 por parte do Estado são passíveis de controle judicial

através de Ação Civil Pública ajuizada com o fito de obter, em boa parte, condenação na

obrigação de fazer, consistente na implementação de políticas públicas ambientais.

A ação civil pública é, portanto, o principal instrumento processual, utilizado por

excelência pelo Ministério Público, para juridicizar a demanda coletiva pela implementação

de direitos assegurados pela ordem social constitucional89, sem embargo da possibilidade da

obtenção de ajustamento de condutas, celebrados através de termos próprios, pela via de

solução extrajudicial.

5 Conclusão

O Estado Social de Direito tem por fim último viabilizar o bem-estar da sociedade,

tarefa de índole constitucional e que deve ser concretizada através de políticas públicas

harmonizadas com os dispositivos da Carta Maior.

Uma das maneiras de proporcionar o bem-estar social é através da implementação de

políticas públicas ambientais, com o fito de proporcionar as presentes e futuras gerações a

sadia qualidade de vida.

Os administradores públicos, entretanto, muitas vezes não concretizam as diretivas

constitucionais e, em outros casos, quando entendem que devem implementar políticas

88 FRISCHEISEN. Luiza Cristina Fonseca. Políticas Públicas - A responsabilidade do administrador e o Ministério Público. São Paulo: Editora Max Limonad, 2000, p. 125-126 89 FRISCHEISEN. Op. Cit., p. 126-127

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públicas sustentam a existência de discricionariedade administrativa na escolha de qual delas

devem executar.

Em decorrência do aspecto mencionado acima (omissão e/ou execução de política

pública dissonante dos princípios constitucionais por parte do Executivo), surge a necessidade

de controle judicial de políticas públicas.

O controle judicial de políticas públicas ambientais é de sobremodo qualificado, em

razão do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado inserir-se no seleto rol de

direitos fundamentais e, portanto de aplicabilidade imediata.

Por outro lado, ainda remanesce no direito brasileiro obstáculos na execução do controle

judicial de políticas públicas, especialmente os que sustentam a ofensa ao princípio da

separação de poderes, a ineficácia das normas constitucionais e, ainda, a limite fático da

reserva do possível.

Argumentos que não resistem a uma análise sistemática da Constituição Federal de

1988, com sua força e unidade vinculativa dos Poderes Executivo e Legislativo na consecução

dos programa políticos escolhidos pelos constituintes de 1988, especialmente do princípio da

inafastabilidade do controle jurisdicional, o qual também é um direito fundamental de todo

cidadão.

Além da própria Carta Magna encartar o direito ao meio ambiente como direito

fundamental, a mesma trouxe mecanismos para a sua proteção e implementação, sobretudo

através da Ação Civil Pública.

A ação civil pública, com assento constitucional, constitui, por excelência, a ferramenta

disponibilizada pela Constituição Federal de 1988, para o questionamento de políticas

públicas não ou insuficientemente implementadas pelo Executivo, não se admite que posições

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ideológicas de governantes temporários inviabilizem o programa definido pela constitucional,

repita-se, de aplicabilidade imediata.

Para o questionamento judicial de políticas públicas a Carta Magna elenca um rol de

legitimados, dentre os quais se destaca o Ministério Público, órgão com raiz constitucional e,

principal potencializador da juridicização de políticas públicas, contribuindo para a

efetividade do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

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REFERÊNCIAS

ABRAMOVICH, Víctor; COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles. Madrid: Editorial Trotta, 2002;

DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996

DUARTE, Clarice Seixas. Direito público subjetivo e políticas educacionais. São Paulo Perspec. Apr./June 2004, vol.18, n.2, p.113-118. ISSN 0102-8839;

FRISCHEISEN. Luiza Cristina Fonseca. Políticas Públicas - A responsabilidade do administrador e o Ministério Público. São Paulo: Editora Max Limonad, 2000;

KRELL, Andréas. Controle Judicial dos serviços públicos básicos na base dos direitos fundamentais sociais. A Constituição Concretizada Construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado 2000;

_____________________. Discricionariedade Administrativa e proteção ambiental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004;

STRECK, Lênio Luiz. In 1988-1998, uma década de Constituição; As constituições sociais e a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental.

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O ESTATUTO DA CIDADE E A QUESTÃO DAS FAVELAS NOS MUNICÍPIOS

BRASILEIROS

Jefferson Ortiz Matias90

Dillings Barbosa Maquiné91

Edson Ricardo Saleme92

Favelas e subúrbios são comuns em quase todas as cidades brasileiras. Isso não somente

nos grandes centros urbanos. Até mesmo em municípios de pequeno porte pode-se encontrar

tais habitações coletivas. Elas trazem consigo imensa carga de problemas. Isso não somente

no aspecto urbanístico, como também social, econômico e, por diversas vezes, político.

Não raro, o problema torna-se mais agudo em municípios onde a segurança é

comprometida, as opções de emprego são menos abundantes ou há um forte êxodo rural para

a capital melhor desenvolvida.

Esse quadro é ainda mais comum em cidades que atinjam elevados patamares

habitacionais. Não há como se precisar números, visto que a realidade prova o quanto as

estatísticas contradizem o que de fato ocorre. Isto porque municípios de pequeno porte podem

adquirir grupamentos de pessoas ou até mesmo serem formados, grande parte, por elas.

Observa-se que as municipalidades não logram manter, com serviços adequados, a

grande comunidade que por vezes cresce em seu seio. Esta situação, então, serve para que a

própria população excedente migre para as áreas mais remotas da cidade, criando seu habitat

90 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do estado do Amazonas. 91 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do estado do Amazonas. 92 Professor do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do estado do Amazonas.

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160

em locais de difícil acesso ou mesmo criando seu próprio solo em detrimento a áreas verdes

ou florestas locais.

Com a edição do Estatuto da Cidade, Lei 10.257/2001, tem-se o aconselhamento de

uma nova concepção do uso do solo urbano, em que a propriedade apareça redefinida em seu

conteúdo, em função da necessidade premente de disciplinar, ordenar o assentamento humano

nas cidades.

Segundo Queiroz Ribeiro, as forças populares e progressistas da sociedade brasileira

levaram quase quarenta anos para obter o reconhecimento da questão urbana. Assim, o

Estatuto da Cidade foi aprovada em momento histórico em que são afirmadas e ampliadas as

características concentradoras da nossa urbanização, ao mesmo tempo em que novas forças,

mais poderosas, tomam assento no poder urbano corporativo.93

Segundo últimos levantamentos do IBGE - dados de 2000 - 81,2% da população

brasileira vive em áreas urbanas, sendo que há 40 anos este percentual era de 40%. Esta

migração do campo para a cidade se deu em busca de melhores oportunidades de vida,

expectativa que na maioria das vezes não é correspondida.

Porém, o que realmente gerou ao redor das atuais urbes foi um cinturão de pobreza e

miséria, sem as mínimas condições de habitabilidade, com pessoas vivendo em condições

sub-humanas, sem condições adequadas de vida.

De acordo com o IBGE, em 56,5% de todos os municípios com população entre 50 mil

e 100 mil habitantes, existem favelas, o mesmo acontecendo em 79,9% daqueles com

população entre 100 mil e 500 mil habitantes. 94

93 QUEIROZ RIBEIRO, Luiz César. O Estatuto da Cidade e a questão urbana brasileira. In Reforma Urbana e Gestão Democráca. Promessas e desafios do Estatuto da Cidade. QUEIROZ RIBEIRO, Luiz César, CARDOSO, Adauto Lucio

Organizadores. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

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161

A migração gerou em volta dos grandes centros urbanos um fenômeno de favelização .

De tal sorte que, em todos os municípios com mais de 500 mil habitantes, é possível encontrar

favelas. E, por último, um dado estatístico que marca definitivamente a precariedade na

habitação em nosso País é o fato de que as favelas são encontradas em 27,6% dos municípios

brasileiros, ou seja, em mais de 1.300 municípios.

CRESCIMENTO

DA

POPULAÇÃO

URBANA

NO

BRASIL

ANO POPULAÇÃO URBANA (%)

1900____________ 9,40

1920 ___________10,70

1940 ___________31,24

1950 ___________36,16

1960 ___________44,93

1970 ___________55,92

1980___________ 67,59

1990 ___________75,59

2000 ___________81,23

Fonte. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE

94 Fonte: IBGE, Resultados da Amostra do Censo Demográfico 2000 - Malha municipal digital do Brasil: situação em 2001. Rio de Janeiro:

IBGE, 2004.

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162

Os demais dados existentes sobre este assunto apenas confirmam que os fatos acima

arrolados são públicos e notórios nas principais aglomerações urbanas no Brasil. Tem-se, a

seguir, a sucessão de ocorrências que urgem medidas a serem adotadas no âmbito

urbanístico:

a) Excessivo crescimento populacional decorrente de fatores das mais diversas ordens, como: industrialização, aumento da população, busca por melhores condições de vida.

b) Assentamento desordenado da população, sem qualquer planejamento ou medida capaz de trazer condições adequadas de habitabilidade.

c) Assentamento não apenas de forma desordenada mas iníqua, realizado sob o domínio do que se denomina segregação residencial, por força da qual as populações carentes e de baixa renda são remetidas às periferias do espaço urbano, em condições precárias de vida.

d) Considerável atividade especulativa, na qual o proprietário do solo urbano, utilizando a sua faculdade de não-uso, institui um banco de terras em seu benefício. Aguarda momento propício para alienar as glebas estocadas, locupletando-se, destarte, com as mais-valias resultantes dos investimentos de toda a comunidade.

Todo este contexto sócio-cultural indica a urgente expectativa de implementação de

políticas públicas no bojo das quais se ordene a adequada utilização do solo urbano,

concretizando as diretrizes constitucionais e legais.

Isso se embasa no fato de que, hodiernamente, não se fala apenas em função social da

propriedade. Trata-se de princípio mais ajustado às necessidades sociais: a função social da

cidade, como garantia do bem-estar de seus habitantes. Claro que as tais funções sociais

decorrem da função que lhe comete o plano diretor respectivo, para as urbes que atingem

vinte mil habitantes, nos termos do parágrafo segundo do art. 182 da CF. Dessa forma, cria-se

uma política de desenvolvimento urbano adequada, que garanta o bem-estar de cada um dos

habitantes e de todos, conjuntamente.

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163

Justamente neste contexto que se insere o importante diploma legal do Estatuto da

Cidade, como principal diretriz normativa, no intuito de adequar a concreta ordenação

urbanística aos parâmetros constitucionalmente dispostos.

A formação das cidades brasileiras têm como característica básica a criação de espécie

de circuito de acumulação urbana, cujo fundamento seria a apropriação de diversos tipos de

renda urbana proporcionada pelas desigualdades existentes. A partir dessas premissas existe a

conseqüente realidade externada por meio das populosas periferias, favelas, mocambos, entre

outros. São locais formados por um habitat precário em termos de condições construtivas,

localização e acessibilidade aos serviços urbanos necessários à manutenção de razoável

qualidade de vida.

Estes circuitos constituem a versão urbana da aliança estrutural e histórica entre a

propriedade da terra e o capital, base econômica do poder do atraso, responsável pela nossa

lenta e seletiva modernização, manutenção das desigualdades sociais e pela subordinação

política das camadas populares.

Da vigência desta aliança resultou um modelo de cidade no qual a dinâmica de

crescimento é a permanente reprodução da escassez de solo urbano, fundamento da

apropriação de várias formas de renda urbana e de reprodução permanente da irregularidade,

ilegalidade e precariedade do habitat popular.

A continuidade da expansão das fronteiras urbanas, como mecanismo de regulação do

conflito social distributivo, implica no deslocamento de amplas parcelas da população para as

zonas mais longínquas das metrópoles, onde moradores hipossuficientes repetem o processo

de loteamento e autoconstrução das casas. O resultado é a transformação da precarização em

exclusão pela desconexão do trabalhador do acesso mercado de trabalho. Seria como, em

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164

contrapartida à exclusão do bojo das cidades, o cidadão, sem opções, passaria a criar seu

próprio ambiente.

Como resultado concreto e nos termos indicados pelo IBGE, tem-se cerca de 9% da

população metropolitana morando em setores onde prevalece forte ou extrema precariedade,

em termos de serviços de saneamento básico. São 6 milhões de pessoas vivendo à margem

dos padrões mínimos de acesso, água, esgoto e coleta de lixo. Nas cidades localizadas fora

das áreas metropolitanas, a marginalização urbana atinge 21 milhões de pessoas.

A subnormalidade habitacional medida pelo IBGE aumentou cinco vezes entre 1991 e

2000. Levantamentos apontam assustadores índices de crescimento de moradias em favelas:

na grande São Paulo, 20% da população mora em favela, quando em 1970 era apenas de 1%;

na cidade do Rio de Janeiro, este percentual se eleva a 28%, em Salvador 33% e em Belém

50%. Nos últimos dez anos, a população das sete regiões metropolitanas saltou de 37 para 42

milhões de habitantes e suas periferias conheceram uma taxa de crescimento de 30%,

enquanto que as áreas urbanas mais centrais não cresceram no mesmo período mais de 5%.

Por outro lado, o fato de apenas cerca de 16% das moradias construídas no Brasil

corresponderem à oferta gerada pelo segmento formalizado, no qual a construção e o

financiamento são atividades organizadas, nos permite avaliar a extensão da exclusão do

mercado.

A Cidade de Manaus e as Invasões

A cidade de Manaus, capital do Amazonas, por exemplo, vive um drama particular,

resultado de um misto de êxodo rural, desemprego, miséria e, ainda, oportunismo político. As

populações interioranas, carentes de infra-estrutura e empregos em seus respectivos

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municípios, dirigem-se à cidade mais industrializada na procura de melhores condições de

vida que a urbe industrializada pode lhes proporcionar.

A escassez de oportunidades, mais evidentes durante a década de 90 com a diminuição

de incentivos e investimentos no Pólo Industrial de Manaus, não diminuiu a migração do

trabalhador para a Capital que, por absoluta falta de estruturação urbana, conduziu tais

pessoas às áreas periféricas.

É exatamente nesse ponto que se inicia o problema social atrelado ao oportunismo

político. Na falta de espaços populares para a moradia, a condução às áreas periféricas tem

sido feito de maneira desordenada e irresponsável. O espaço utilizado para as chamadas

invasões , geralmente, é um terreno de pouca ou nenhuma utilização, não sendo diferenciado

a sua natureza pública ou privada. Porém, grandes propriedades têm sido invadidas em anos

eleitorais com denúncia de terem sido organizadas por políticos locais.

Essas lideranças políticas, com um mínimo de esforço logram fornecer àquela

comunidade carente ainda em formação, um espaço, ferramentas e materiais para a construção

de pequenas casas e até alimentos, garantindo ali a sua fixação. Certamente tais favores são

retribuídos ali mesmo com recadastramento eleitoral e com um posterior agradecimento

àquela liderança nas urnas.

Contudo, os problemas gerados por aquele oportunismo político já estão, a esta altura,

configurados. Desde problemas ambientais gerais como desmatamento desenfreado e

poluição de igarapés nas redondezas da invasão até entraves puramente urbanísticos como

aumento desordenado da população, descumprimento do Plano Diretor e de outras políticas

públicas voltadas para a urbanização.

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O fato é que a nova comunidade já está instalada não pretende e tampouco quer sair

daquela localidade. Isso repercute em um segundo momento do oportunismo político. As

autoridades já constituídas dos diversos Poderes constituídos, impossibilitados de dar as

costas ao problema da invasão, promovem, não a retirada, mas a urbanização do local. Leva-

se em conta, certamente, que a melhoria das condições de vida daquelas pessoas, mesmo que

simbólica, pode lhes manter nos cargos eletivos e promovê-los à categoria de benfeitores

locais.

Desta forma, ocorre a legalização das invasões que, ao invés de serem repudiadas,

transformam-se em fonte de formação de novos bairros periféricos.

O descaso ambiental deste tipo de operação é tão grande que vai de encontro a qualquer

regra de planejamento urbano. Por exemplo, o conjunto Nova Cidade, no município de

Manaus foi concebido como uma solução ao problema das invasões que ocorriam em suas

redondezas. A idéia era urbanizar o local antes de haver uma invasão generalizada.

Disponibilizou-se considerável número de casas populares a quem não dispunha de moradia.

O projeto foi entregue no ano de 2004 (ano eleitoral), amplamente divulgado pelo

governo estadual. Observou-se que, em seu próprio material publicitário, ficava evidente um

equívoco primário: o local não dispunha de árvores ou de áreas verdes. O local não passava de

um emaranhado de casas e ruas em um terreno árido, sem qualquer beneficiamento capaz de

proporcionar condições razoáveis de habitação coletiva.

O projeto em tela, pelo visto, ignora a excessiva temperatura do Município de Manaus

que, nos meses de setembro e outubro, atinge facilmente 40º C. Ignora também qualquer

aspecto relacionado a uma razoável qualidade de vida dos munícipes, bem como a

importância da existência de áreas verdes para a saúde física e mental da população urbana.

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O problema intensificou-se no ano de 2004, quando forte chuva, comum nos meses do

verão amazônico, assolou a cidade e causou danos consideráveis no conjunto Nova Cidade.

Houve desabamentos, destelhamentos e destruição de diversos bens pessoais dos moradores.

Especialistas afirmaram, à época, que tudo poderia ter sido evitado se houvesse no local

quantidade razoável de árvores que pudessem conter a ira dos ventos chuvosos, além de

abrigar as pessoas quando necessário.

A ação dos ventos nada encontrou no seu caminho que pudesse detê-la. Outro não

poderia ser o resultado senão a devastação local e tantos outros danos causados pelas fortes

chuvas de verão. O caso referido oferece exemplo do que não se deve fazer em termos de

planejamento urbano ou de desenvolvimento sustentável.

Observa-se que a regularização de favelas no Brasil tem sido algo comum em sua

história. Desde os anos 20, conforme comprovam os dados do IBGE, as favelas não param de

crescer. A concentração urbana é cada vez maior e a infra-estrutura local esgota-se

rapidamente deteriorando a qualidade de vida. Com o advento do Estatuto da Cidade, em

2001, criou-se uma ferramenta de urbanização à disposição dos municípios para a

regularização de tais áreas.

Instrumentos de Regularização das Favelas Estatuto da Cidade

Com o advento do Estatuto da Cidade em 2001 já se vislumbra novos tipos de

condições de urbanização.Certamente o Estatuto apenas veio regulamentar e ratificar o que já

era definido na Constituição e até mesmo nas leis infraconstitucionais no que diz respeito a

políticas ambientais e direitos de propriedade. Porém, outras inovações surgiram, colocando à

disposição do Poder Público uma série de opções a serem utilizadas.

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Posto isto, pode-se falar em usucapião especial do imóvel urbano. O Estatuto repetiu a

norma da CF já conhecida: o sujeito que possui como área sua, o solo urbano de 250 m2, por

cinco anos ininterruptamente, sem oposição, utilizando para sua moradia ou de sua família,

adquirindo o domínio deste, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

É o famoso usucapião,

conhecido como usucapião "pro moradia".

Essa regra é diferente da Constituição apenas porque se referiu às áreas urbanas. Isso

porque na lei o legislador preferiu referir-se à área ou edificação urbana e apenas deixou claro

que o imóvel edificado pode ser objeto de usucapião, então efetivamente o imóvel já está

construído, se não há o usucapião "pro moradia." Isso é apenas uma manifestação da regra

constitucional.

A novidade quanto ao usucapião é o chamado usucapião punitivo, esta é a grande

inovação. As áreas ocupadas, onde se localizam as chamadas favelas ou invasões possuem

bem mais do que mais de 250 m2, de que trata o usucapião constitucional urbano.

O legislador possibilitou que esta área, como um todo, fosse adquirida por todas as

pessoas que a ocupem coletivamente, criando assim, o usucapião num condomínio entre esses

habitantes, possibilitando que haja a regu1arização da situação dessas pessoas em relação a

esse bem imóvel.

Satisfeitos os requisitos, observa-se que o usucapião será julgado procedente para o fim

de deferir a cada morador daquela comunidade uma fração ideal de propriedade daquele

imóvel por inteiro, que é uma solução bastante inteligente da lei, para dar título a essas

pessoas, mesmo porque, essa fração ideal está registrada no Registro de Imóveis, e poderá,

inclusive, alienar essa fração de imóvel e será um patrimônio que ele tem e será também um

objeto de sucessão.

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A intenção deste instituto, aparentemente, seria a de auxiliar a regularização dessas

ocupações e áreas em que os moradores não conseguem obter título hábil a legitimá-las. Na

prática, porém, este instituto serviria para transformar as favelas em bairros, regularizando

situações irregulares e fortalecendo a Administração junto à opinião pública. Seria, portanto,

uma poderosa arma política, legitimada pela lei federal.

Sobre o usucapião coletivo, incide a discussão sobre a função social da propriedade,

sendo necessária uma avaliação bastante acurada por parte do Poder Público para se definir e

delimitar o uso e a posse coletiva de determinado espaço urbano. Sobre este último tema, será

objeto de muitas dúvidas e discussões, no futuro, mas não se pode abstrair o fato de, com a

crescente favelização em grandes cidades, serem necessárias medidas para solucionar a

moradia de hipossuficientes.

O usucapião especial foi inicialmente previsto na Lei nº 6.969/81 e confirmada para as

áreas urbanas através do art. 183 da Constituição Federal. Outrossim, seus prazos devem

atender a alguns requisitos básicos, tais como: a área máxima de até 250 m2; a

impossibilidade do morador ser proprietário de outro imóvel, e a finalidade, pois o imóvel

deve, imperiosamente, ser destinado à moradia.

O usucapião coletivo traz à luz algumas discussões. Em primeiro lugar, são inúmeras as

dificuldades em ser comprovado, pois são exigidos diversos documentos que nem sempre são

acessíveis aos usucapientes. Em segundo lugar, é medida de rito sumário, prevendo o Estatuto

da Cidade a justiça e a assistência judiciária gratuitas.

Entretanto, o cerne das discussões refere-se aos moradores de loteamentos clandestinos

ou irregulares, que não conseguem registrar seus títulos de compras nos órgãos competentes.

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Esta somente permite o registro quando a situação do imóvel fica regularizada, o que se torna

um impasse para o morador destas áreas.

Entretanto, causa estranheza definir o usucapião de quem mora nas favelas e não definir

o usucapião das pessoas que habitam o lugar para fins profissionais como uma oficina ou um

bar, assumindo que a interpretação poderia ser extensiva também ao estabelecimento

comercial, se seguirmos a interpretação atual do art. 5o, XI, da Constituição, que também

entende como asilo inviolável do indivíduo a casa e também seu local profissional.

No caso da prova que teria de fazer o indivíduo de não possuir outro imóvel urbano ou

rural, temos que essa verificação seria, no mínimo, prejudicada, no caso concreto. É claro, se

o indivíduo reside ali há mais de cinco

anos efetivamente é pouco provável que seja

proprietário de outro imóvel. Porém, tem-se notícias de uma pequena indústria se instalando

nas comunidades recém-formadas, comprando e vendendo terrenos de invasão, esperando os

mesmos valorizarem no mercado, ou melhor, tornarem-se regulares.

Difícil afirmar que esta atividade tem origem nas próprias pessoas das favelas

periféricas ou sofrem estas de assédio por especuladores de fora. Mesma dificuldade de se

afirmar que uma família tem ou não propriedade em outra favela na mesma cidade.

Importante salientar o estipulado no parágrafo terceiro do art. 10º do Estatuto da Cidade

que, a cada possuidor é atribuída igual fração de terreno, independentemente da ocupação

efetiva. Desta forma, determina-se que a fração ideal deve ser idêntica a todos moradores,

salvo se houver documento dos próprios moradores sobre a concordância das frações ideais

diferenciadas em cada caso.

Esse condomínio pela lei é indivisível, é um condomínio especial, possui características

do condomínio do Código Civil que prevê a indivisibilidade. Qualquer condômino a qualquer

momento tem direito potestativo de exigir a divisão do bem com a venda da coisa comum. No

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condomínio especial, as regras a serem aplicadas em relação a administração e outros

aspectos vão ser as regras do Código Civil, de condomínio indivisível, salvo na hipótese de

haver execução de uma urbanização posterior nesta área e, ainda assim temos que, na

urbanização, os condôminos têm de deliberar favoravelmente à extinção do condomínio, por

um quorum de 2/3 de aprovação.

A ação de usucapião especial urbano pode ser proposta pela Associação de Moradores

da comunidade como substituto processual, o que é uma legitimação extraordinária,

regularmente constituída.

O segundo instituto é o direito de preempção, regulada no art. 21 da Lei. Segundo ele, é

dado ao Poder Público Municipal o direito de preferência na aquisição de imóveis que tenham

sido objeto de alienação onerosa, por parte do seu proprietário em áreas definidas

especialmente numa lei especial para tal fim.

O Município delimitaria, por exemplo, a área necessária para assentamento de

população de baixa renda. Edita-se lei municipal ratificando tal intenção e qualquer pessoa

naquela localidade que alienar sua propriedade terá que dar preferência ao Município.

Desta forma, excetuando a complicada e já antiga relação de preferência entre o Poder

Público e o comprador eventual, teremos outra poderosa arma de urbanização, que tanto pode

ser utilizada para coibir a proliferação de novas favelas, como pode ser utilizada para a

formação de mais aglomerações periféricas nas cidades se não for aplicada juntamente com

normas de urbanização adequadas.

Tem-se, por último, um instituto ainda não muito explorado juridicamente, que é o da

transferência do direito de construir, previsto no art. 35 do Estatuto. É também denominada

operação urbana interligada. Se o proprietário possui um imóvel considerado necessário para

fins de implantação de equipamentos urbanos e comunitários, preservação de interesse

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histórico, paisagístico, cultura, ocupação de áreas por população de baixa renda, nestes casos,

o proprietário, sofrendo uma restrição com relação ao uso, a propriedade, pode obter do Poder

Público, o direito de construir em outro local ou alienar o seu direito de construir para outra

pessoa.

É ainda um instituto eivado de incertezas, uma vez que sua operacionalização em muito

se assemelha com a desapropriação. Também pode ser utilizado como meio de se criar novas

áreas de preservação e, com isso, facilitar a invasão das mesmas. Pode também servir para

regularizar uma situação de uma invasão ocorrida em propriedade privada, ocasionando uma

intervenção direta dos Poderes Públicos no direito de propriedade, mais uma vez discutindo-

se a constitucionalidade do Estatuto.

Relativamente ao problema das favelas brasileiras, por ser algo comum aos municípios

brasileiros, é algo que está longe de ser solucionado. Ao contrário, sua densidade apenas

aumenta com o passar dos anos. Como se observa no Estado com maior massa populacional

favelada, o Rio de Janeiro, como indicam as estatísticas, teve sua origem em promessas

políticas. Não houve planejamento contínuo a fim de oportunizar melhores condições de vida

a seus moradores e sequer meios de ascenderem em sua condição sócio-econômica. Ao

contrário. As favelas formam verdadeiros núcleos individualizados. As atividades que

desenvolve é conseqüência direta da desídia política administrativa que relegou seus

habitantes a condições desfavoráveis de vida e sem condições de se ajustarem ao padrão

existente naquela municipalidade.

A medida que se aumentam as desigualdades sociais, o desemprego, o êxodo rural e o

estado de miséria da população periférica, cada vez mais serão criadas novas áreas de favelas

na cidade, de uma maneira desenfreada, completamente diferente das políticas urbanas que se

deveria implantar.

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Para exemplificar, um instituto como o do usucapião coletivo, poderia servir para

regularizar uma área ocupada por muito tempo de forma irregular e torna-la parte da

coletividade urbana. Contudo, o mesmo instituto pode servir para facilitar a regularização de

favelas e ocupações ilegais sempre eivadas de interesses políticos e econômicos que escapam

ao interesse coletivo.

A facilidade na legalização de favelas e invasões ilegais apenas serviriam, nestes casos,

para a proliferação de mais e mais áreas a serem ocupadas, loteadas e vendidas ente os

próprios invasores, gerando, inclusive, um mercado negro de imóveis para pessoas de baixa

renda.

Neste instituto em particular, o legislador também não previu a possibilidade de criar

condições de incluir, no condomínio formado pelo usucapião coletivo, os estabelecimentos

comerciais existentes. Estes, sem dúvida, fazem parte de qualquer comunidade já estabelecida

ou mesmo em formação.

Há ainda o problema da divisão de terras de uma maneira desigual, com a possibilidade

de demarcação pelos próprios moradores do que seria, para eles, a parcela ideal. Um conceito

que, certamente, geraria polêmica no momento em que fosse levantada a discussão.

A formação desse condomínio, contudo, não daria diretamente ao morador o domínio

sobre a propriedade que habita, ao contrário do que se poderia imaginar, pois o bem

usucapido é indivisível.

Destarte, constata-se que a Administração Pública Municipal em geral ainda não se deu

conta, ao menos em sua grande maioria, ao longo de mais quatro anos de publicação do

Estatuto, quais são os novos instrumentos colocados à sua disposição.

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Pode-se ainda alegar falta de verbas, desinteresse político, entre outros argumentos em

prol da omissão municipal em face de tais institutos. Como referido, tais instrumentos podem

representar armas importantes na urbanização ou de solução ao caos urbano-social instalado

nas diversas municipalidades espalhadas no território nacional.

CONCLUSÕES

A partir dos anos 20 houve a proliferação de favelas no Brasil. Seu surgimento, como

indicado, foi devido à promessas de políticos inescrupulosos, com fins unicamente

imediatistas, sem qualquer cunho social ou urbano. Os espaços foram crescendo e sua

população multiplicando-se. Conseqüentemente, problemas urbanos, ambientais, sociais,

trabalhistas, também multiplicam-se.

A vigente Constituição buscou mecanismos adequados para regularizar a situação

existente. Estipulou princípios ambientais e urbanísticos com vistas a um melhor

aproveitamento do espaço urbano, bem como buscou institucionalizar meios adequados de

vida em inúmeros dispositivos da ordem econômica e social.

O Estatuto da Cidade criou diversos mecanismos em prol da urbanização das cidades e

regularização de favelas. Contudo, os municípios brasileiros não estão empregando

adequadamente seus institutos. Os planos diretores, freqüentemente, não são observados.

Constata-se, portanto, omissão de autoridades que, alegando falta de recursos, não

modernizam ou urbanizam seus municípios a fim de elevá-los a um patamar digno no que se

refere à qualidade de vida de seus munícipes. As favelas seguem crescendo e,

proporcionalmente, também cresce o número de autoridades inescrupulosas que atuam nesse

sentido. Trazem pessoas inocentes sem qualquer planificação a longo prazo ou condições

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condignas de vida para se manterem no local. Exaurem o meio ambiente urbano e provocam a

mais variada gama de problemas sociais que exsurgem naturalmente de seu seio.

Cabe à sociedade a fiscalização e a tentativa de refreamento de atos que possam gerar

novas favelas, incentivadas ou não por autoridades inescrupulosas. A Constituição possui

institutos adequados à urbanização e o Estatuto da Cidade veio a complementá-la no sentido

de se criar espaços urbanos racionalizados e com adequado aproveitamento.

Fazendo uso dos mecanismos constitucionais e legais, tanto a Administração quanto a

sociedade civil organizada estarão aptas a caminhar juntas rumo à construção de uma

verdadeira cidade sustentável.

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REFERÊNCIAS

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REIS, Miguel; LISO, Carlos Henrique. A concessão de direito real de uso na regularização fundiária. Direito Urbanístico. Edésio Fernandes (org.). Belo Horizonte: Del Rey. 1998. p. 124/125.

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QUEIROZ RIBEIRO, Luiz César. O Estatuto da Cidade e a questão urbana brasileira. In Reforma Urbana e Gestão Democráca. Promessas e desafios do Estatuto da Cidade. QUEIROZ RIBEIRO, Luiz César, CARDOSO, Adauto Lucio

Organizadores. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

SAULE JÚNIOR, Nelson. O Tratamento Constitucional do Plano Diretor com instrumento de Política Urbana. Direito Urbanístico. Edésio Fernandes (org.). Belo Horizonte: Del Rey. 1998. p. 50/51.

____________ Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro. Ordenamento Constitucional da Política Urbana. Aplicação e Eficácia do Plano Diretor. Porto Alegre: Fabris. 1997. p.

MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente

Doutrina

Prática

jurisprudência

Glossário. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 42.

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177

LISTA DE SIGLAS

1. A Rede de Propriedade Intelectual e Comercialização de Tecnologia do Rio de Janeiro

(REPICT)

2. Agência Brasileira de Inteligência (ABIN)

3. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA)

4. Amazonlink.org (AMAZONLINK)

5. Arranjos Produtivos Locais (APL s)

6. Associação Brasileira das Instituições de Pesquisa Tecnológica (ABIPTI)

7. Beneficiamento da Castanha do Brasil (BENECAST)

8. Caracterização dos Resíduos Madeireiros e Desenvolvimento de Tecnologias para seu

Aproveitamento (APROREM)

9. Centro Universitário do Pará (CESUPA)

10. Comissão Executiva do Plano de Lavoura Cacaueira (CEPLAC, pertencente à

Superintendência Regional da Amazônia Oriental - SUPOR)

11. Comitê das Atividades de Pesquisa e Desenvolvimento na Amazônia (CAPDA)

12. Conselho do Patrimônio Genético (CGEN)

13. Tecnologia para Cultivo de Tambaqui (Colossoma macropomum) e Matrinxã (Brycon

cephalus) a Nível Familiar (TANRE)

14. Desenvolvimento de Dois Produtos Fitoterápicos e Um Fitocosmético a partir de

Espécies Amazônicas (VMCC)

15. Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA)

16. Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP)

17. Fundação Centro de Análise, Pesquisa e Inovação Tecnológica (FUCAPI)

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18. Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM)

19. Fundação Estadual dos Povos Indígenas (FEPI)

20. Grupo de Trabalho Amazônico (GTA)

21. Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM)

22. Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (IEPA)

23. Instituto do patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)

24. Instituto Indígena Brasileiro de Propriedade Intelectual (IMBRAPI)

25. Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA)

26. Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI)

27. Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT)

28. Ministério do Meio Ambiente (MMA)

29. Modelo de Integração de Produtores de Madeira do Estado do Amazonas (MIPMEA)

30. Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG)

31. Núcleo de Estudos e Análise sobre Propriedade Intelectual (NEAPI, pertencente à

FEPI)

32. Núcleo de Gestão Tecnológica Compartilhada (NGTC)

33. Organização Extrativista Yawanauá de Agricultores do Rio Gregório (OEYARG)

34. Organização Indígena da Bacia do Içana (OIBI)

35. Pólo Industrial de Manaus (PIM)

36. PPA (Programas e Ações da SECT 2004-2007)

37. Programa de Criação de Matrinxã em Canais de Igarapé de Terra Firme: aplicação em

nível de subsistência e empresarial (PROCIMA)

38. Programa de Gestão em Ciência e Tecnologia (PGCT)

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39. Rede Norte de Propriedade Intelectual, Biodiversidade e Conhecimento Tradicional

(RNPIBCT)

40. Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia (SECT)

41. Secretaria de Estado do Desenvolvimento Econômico (SEDEC)

42. Sistema de Proteção da Amazônia (SIPAM)

43. Superintendência da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA)

44. Universidade do Estado do Amazonas (UEA)

45. Universidade do Estado do Pará (UEPA)

46. Universidade Federal do Amazonas (UFAM)

47. Universidade Federal do Pará (UFPA)

48. Universidade Federal Rural do Amazonas (UFRA)

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180

AS NAÇÕES INDÍGENAS E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Edilton Borges Carneiro95

1. Introdução

Para resolver problemas importantes como a proteção do meio ambiente, direitos das

minorias, cidadania, inclusão social e principalmente o propalado, desejado, almejado e

imprescindível desenvolvimento sustentável, não poderão deixar de ser equacionadas e

resolvidas às questões indígenas.

Na leitura deste artigo, ver-se-á questões como a importância e o papel fundamental da

terra para continuidade e conservação dos povos indígenas, com enfoques em questões como

a auto-sustentabilidade, condição de sine qua non para a dignidade de um povo, que durante

muito tempo, e ainda hoje embora de forma menor, sofre um processo de tutela pela FUNAI

Fundação Nacional do Índio, sendo tratados como incapazes de se autogerir e

conseqüentemente, desenvolver-se enquanto nação.

Abordar-se-á a questão do manejo auto-sustentável de suas terras pelos índios, as

polêmicas geradas para sua implementação nos diversos meios institucionais nacionais e

internacionais, com vistas à comercialização de produtos obtidos a partir dos recursos

naturais, bem como a fundamentação jurídica e legal destes direitos e garantias, na busca da

manutenção de um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Não se pretende com isto esgotar o tema, mas lançar mais sementes para reflexão sobre

o mesmo, na busca de soluções justas que permitam entre outras coisas, a dignidade da pessoa

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181

humana96, construir uma sociedade livre, justa e solidária97, promover o bem de todos, sem

preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação98, e

a autodeterminação dos povos99 indígenas, direitos estes insculpidos na nossa Constituição

Federal.

2. O Valor da Terra

Para as Nações Indígenas a Terra não é apenas o local de onde retiram o necessário

para sua subsistência, existe toda uma relação, ou melhor, inter-relação entre a terra, a cultura,

o modo de ser, viver, suas crenças e seus mitos. É uma relação muito íntima, note-se que

dentro de um quadro onde os desflorestamentos ocorrem em quantidade cada vez maiores, nas

áreas demarcadas como terras indígenas essa quantidade é significativamente menor, ou seja,

a biodiversidade amazônica é muito mais preservada , e a um custo muito mais baixo, onde há

índios vivendo e que têm interesse pelas mesmas.

É comum ouvir-se no meio político e empresarial brasileiro o jargão há muita terra para

pouco índio , o que além de ser um desrespeito a esses povos que foram os primeiros

habitantes das terras brasileiras, é um desrespeito e afronta aos princípios e preceitos contidos

na Constituição da República Federativa do Brasil. Constituição esta, que em seu Capítulo

VIII

Dos Índios, asseguram-lhes os direitos de proprietários originários das terras que

tradicionalmente ocupam100, direitos originários estes que segundo João Mendes Júnior101, são

95 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do estado do Amazonas. 96 Artigo 1°, inciso III da CF/88, promulgada em 05/10/1988. 97 Artigo 3°, inciso I da CF/88, promulgada em 05/10/1988. 98 Artigo 3°, inciso IV da CF/88, promulgada em 05/10/1988. 99 Artigo 4°, inciso III da CF/88, promulgada em 05/10/1988. 100 Artigo 231, caput da CF/88, promulgada em 05/10/1988 101 Os indígenas do Brasil, seus direitos individuais e políticos. São Paulo: Edição Fac-similar, Typ. Hennies Irmãos, 1912.

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direitos indígenas sobre as terras, e que configuram direito congênito, um direito histórico que

precede a constituição do Estado.

O conceito de Estado-nação surgiu no continente americano como uma forma de

agrupamento social e geográfico, mas no seu desenvolvimento, converteu-se em uma forma

hegemônica de controle territorial, logo se difundindo por todo o mundo.102 O Estado

brasileiro, em virtude da adoção deste conceito, tem dificuldades de reconhecer os territórios

indígenas em razão do princípio da soberania, que considera ameaçada.

Terras indígenas é uma categoria jurídica que originalmente foi estabelecida pelo Estado

brasileiro para lidar com os povos indígenas dentro do marco da tutela.103

Não é com discursos como o anteriormente citado, que se irá solucionar as graves e

injustas questões indígenas. Com a promulgação da Constituição de 1988, houve um

reconhecimento constitucional do direito originário dos indígenas as terras por eles

tradicionalmente ocupadas104, significando, como já visto anteriormente, que antecedem até a

própria criação do Estado brasileiro.

As Nações indígenas e suas comunidades têm uma relação histórica com as suas terras.

Terras não só no sentido de espaços físicos, áreas, mas também o meio ambiente, o modo de

vida, a cultura, e todas as formas com que se inter-relacionam com as mesmas. Essas

populações e comunidades indígenas são ainda, apesar de em vários momentos da história

nacional terem sido quase dizimadas, um percentual significativo da população nacional.

A Carta Magna de 1988 traz ainda no mesmo já mencionado artigo 231 o seguinte: em

decorrência do reconhecimento originário de suas terras, compete a União demarcá-las,

102 Cf. ANDERSON, Benedict. Imagined communities: Reflections on the origin and spread of nationalism. In. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. LITTLE, Paul E. Série Antropologia 322. Brasília: DAN/UnB, 2002. p. 6. 103 LITTLE, Paul E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. Série Antropologia 322. Brasília: DAN/UnB, 2002. p. 13. 104 Artigo 231 e seus parágrafos, CF/88, promulgada em 05/10/1988.

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proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Logo se deflui de suma importância o processo

demarcatório, a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios será

fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida, que

elaborará, em prazo fixado na portaria de nomeação baixada pelo titular do órgão federal de

assistência ao índio105, estudo antropológico de identificação. 106

A terra como propriedade privada inexiste para as sociedades indígenas, não podendo

desta forma ser objeto de propriedade individual. A terra e os recursos naturais delas

retirados, são de propriedade das comunidades, razão pela qual, praticamente inexiste

escassez socialmente provocada dos recursos.107

As demarcações de terras indígenas são realizadas levando-se em consideração critérios

antropológicos e socioambientais da ocupação das mesmas. Assim, ao mesmo tempo em que

lutam para retirar de suas terras os não-indígenas, como forma de preservar seu modo de vida

diferenciado, se organizam com o apoio de algumas ONG s para superar desafios, como por

exemplo à auto-sustentabilidade, tendo conseguido alguns avanços nesta área.

O texto constitucional é bastante claro, e consta ainda em seu arcabouço que as terras

além de destinarem-se a posse permanente dos povos indígenas, cabe-lhes o usufruto

exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nela existentes108.

De tudo exposto, vê-se o valor da terra para os povos indígenas, por este motivo torna-se

necessário que o Poder Público efetivamente conclua as demarcações ainda pendentes, e a

proteção constitucionalmente garantida de sua propriedade e seus bens.

105 FUNAI Fundação Nacional do Índio, criada pelo Governo Federal em 1967. 106 Artigo 2° do Decreto 1775/96, que dispõe sobre procedimento administrativo para demarcação de terras indígenas 107 RAMOS, Alcinda Rita. Sociedades Indígenas. São Paulo: Editora Ática. 1986, pp. 13-16. 108 BRASIL, Constituição Federal da República Federativa do. Artigo 231, § 2°. Promulgada em 05/10/1988

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Tendo em vista a inter-relação entre o meio natural e seu desenvolvimento sustentável e o bem estar cultural, social, econômico e físico das populações indígenas, os esforços nacionais e internacionais de implementação de um desenvolvimento ambientalmente saudável e sustentável devem reconhecer, acomodar, promover e fortalecer o papel das populações indígenas e suas comunidades .109

3. Auto-sustentação

Os povos indígenas querem o desenvolvimento de suas comunidades, porém tem

enfrentado sérias dificuldades em razão do preconceito e discriminação, principalmente por

parte dos políticos que não admitem, nem reconhecem o seu direito a uma forma diferenciada

de vida, considerando que suas terras demarcadas são um empecilho para o desenvolvimento

regional e nacional.

A falta de fiscalização aliada à certeza de impunidade e ausência de controle tem

permitido uma grande degradação das terras indígenas, com a extração de madeira e minérios

de forma ilegal pelos não-índios, algumas vezes com a participação de alguns índios

cooptados pelos primeiros.

As populações e comunidades indígenas retiram da natureza tudo o que é necessário

para seu sustento já há bastante tempo, e não só o seu sustento físico, como também o

cultural. E tem feito isto, de modo racional e sustentável, o que a nossa civilização defende há

tanto tempo, porém não consegue sair do discurso. Eles têm demonstrado que a natureza

possui não só um valor cultural como histórico.

109 Agenda 21 - Capítulo 23 - RECONHECIMENTO E FORTALECIMENTO DO PAPEL DAS

POPULAÇÕES INDÍGENAS E SUAS COMUNIDADES

Disponível em: www.preservacaolimeira.com.br . Acesso em: 16 MAI 2004.

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Phillippe Descola110 diz: é perfeitamente exato que as populações indígenas da

Amazônia e das Guianas souberam aplicar estratégias de uso dos recursos que, mesmo

transformando de maneira durável seu meio ambiente natural, não alteravam os princípios de

funcionamento, nem punham em risco as condições de reprodução deste meio ambiente.

O desenvolvimento sustentável, que como visto, já é utilizado e difundido a partir da

própria cultura indígena, tem casos em que, se aliam aos conhecimentos tradicionais os

conhecimentos científicos dos não-índios, e são satisfatórios os resultados, como por exemplo

o manejo sustentável na Terra Indígena Raposa Serra do Sol em Roraima. Lá as comunidades

manejam 27 mil cabeças de gado, como parte do projeto Uma vaca para o índio , que se

tornou uma das principais fontes de segurança alimentar, mas está associado à criação de

outros animais de pequeno porte, a produção de pequenas roças comunitárias, principalmente

de mandioca, que serve para produção de farinha, biju e caxixi ou pajuaru111.

Existem nas populações indígenas, setores organizados que procuram resistir à

devastação e o seu conseqüente aniquilamento, fundamentando as suas posições em um uso

sustentável dos recursos naturais, como um projeto de desenvolvimento, embora por este

motivo encontrem-se constantemente sob ameaças e risco de morte. Essas populações já

contam com inúmeras experiências que devem ser reproduzidas e valorizadas pelos nossos

doutores e técnicos, sobretudo em áreas como a agricultura, pesca e manejo florestal, que

dependem de uma vontade política e democrática para serem implementadas.

110 Ecologia e Cosmologia . In. Diegues, Antonio Carlos (org). Etnoconservação

novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos. São Paulo: Anna Blume: NUPAUB/USP, Husitec, p. 150. 111 Bebidas tradicionais dos povos indígenas da terra indígena Raposa Serra do Sol em Roraima.

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Não há dúvidas de que os índios da Amazônia têm extraordinário conhecimento

empírico das inter-relações complexas entre organismos em seu meio ambiente e de que eles

aplicam este conhecimento em suas estratégias de subsistência. 112

4. O Manejo sustentável em terras indígenas

Uma questão que vem causando uma discussão polêmica entre os próprios índios,

antropólogos, ambientalistas, juristas, instituições públicas e organizações não-

governamentais, é o direito das populações indígenas explorarem os recursos naturais em suas

terras para fins comerciais.

A questão como se pode ver, decorre da falta de uma interpretação clara da legislação

pertinente ao assunto, hoje em vigor, pois é necessária a adoção de políticas públicas com a

finalidade de apoiar o desenvolvimento sustentável das comunidades indígenas.

Durante muito tempo, o argumento usado por aqueles que se posicionavam

contrariamente a este tipo de exploração, fundamentava-se na possibilidade de que se

permitindo a venda de recursos naturais como madeira, minérios, etc., ocorreria a invasão das

terras indígenas por estranhos, provocando uma degradação do meio ambiente e um grande

impacto cultural. Outro argumento utilizado era o de que como as terras indígenas são de

propriedade da União, as florestas e os recursos naturais nela existentes também o seriam em

virtude do princípio Acessorium sequitur principale , constante do nosso Código Civil.

Necessário se faz esclarecer que este argumento não encontra validade no mundo

jurídico, em razão do que se deflui da leitura do texto constitucional, em que os direitos

112 DESCOLA, Phillippe. Ecologia e Cosmologia . In. Diegues, Antonio Carlos (org). Etnoconservação

novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos. São Paulo: Anna Blume: NUPAUB/USP, Husitec, p. 156.

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indígenas não têm sua interpretação à luz do direito comum, porque a proteção dos direitos

indígenas deve ser norteada pela natureza diferenciada de sua cultura.

Seria de uma enorme falta de lógica, que a Constituição reconheça aos povos indígenas

seu direito originário sobre suas terras, e ao mesmo tempo retire-lhes o direito de decidir

como viver nas mesmas. Segundo Roberto A. O. Santos, deve-se notar, porém, que não se

pode interpretar a Constituição como se ela tratasse seus destinatários de modo irônico ou

desleal, dando, por exemplo, às populações indígenas um presente de grego: outorgar-lhes o

usufruto, por um lado e por outro, interditar-lhes o gozo das riquezas da terra113.

Como poderiam ser garantidos os direitos constitucionais de reconhecimento de sua

organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, se não lhes forem dados os direitos

de existência? E existência pressupõe busca de desenvolvimento de novas potencialidades,

técnicas, o florescer de sua cultura que rotulamos como tradicional, e para que possam

combinar com a cultura dos não-índios, trazendo soluções alternativas, existe a necessidade

de processos de migrações, empréstimos, trocas comerciais, para que não fiquem excluídos e

se processe um intercâmbio cultural, sem que aja aniquilamento de uma cultura114 pela outra.

Pelo que se pode inferir do exposto até o momento, as comunidades indígenas tem um

saber acumulado sobre os ciclos naturais, dentre eles, só a título de exemplificação, podemos

citar a reprodução e migração da fauna, a influência da lua na atividade de corte de madeiras,

da pesca, do manejo dos recursos naturais e conservação de espécies. Somando-se a isto

técnicas desenvolvidas pelos não-índios podem tornar mais eficazes ainda o aproveitamento

dos recursos naturais existentes em suas terras, com benefícios a toda população nacional,

113 SANTOS, Roberto A. O. A parceria pecuária em terras indígenas. In. Os Direitos Indígenas e a Constituição. São Paulo: Fabris, 1993. 114 Deve-se neste contexto, entender cultura como o somatório de valores, costumes, modo de ser e viver.

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realizando um outro preceito constitucional, o da função social da propriedade, porque

desenvolverá uma relação de produção sustentável, social e ambientalmente.

Diante dos preceitos constitucionais expostos, observe-se, que havendo um zoneamento

com a definição das áreas a serem exploradas, e as necessárias à preservação do meio

ambiente, fazendo-se ainda um inventário para que sejam identificadas e classificadas as

espécies existentes, ou seja, que se realize o estudo para o manejo sustentado das áreas, com

vistas a garantir o uso pelas gerações futuras, nada impede a comercialização de madeira e

outros recursos naturais das terras indígenas pelas suas comunidades, sendo essencial à

implantação deste manejo, como forma de manutenção de um ambiente ecologicamente

equilibrado.

5. Conclusão

A proibição de comercialização pelas Nações Indígenas dos produtos extraídos dos

recursos naturais existentes em suas terras, parece além de uma ilegalidade à luz dos preceitos

constitucionais e normas infraconstitucionais115, uma injustiça social e ambiental, não só

porque embora não podendo ser utilizadas pelos índios, esses recursos estão sendo destruídos

pelos não-índios, e como já dito anteriormente, algumas vezes com a cumplicidade dos

próprios índios, que diante da falta de uma política pública que lhes garantam o direito

expresso na Constituição, bem como diante da necessidade de auto-sustentabilidade, se vêm

levados ao cometimento de barbáries por falta de melhor opção.

Não pode se admitir a pretensão do Estado, de que apenas utilizando-se do seu poder

de polícia, proteja as comunidades indígenas, pois isto está bastante afastado da realidade. É

115 Lei 6001 de 1973 Estatuto do Índio; Lei 4771 de 1965 Código Florestal; Medida Provisória 1956-55; e outras.

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necessário que as comunidades indígenas possam de fato produzir e usufruir suas riquezas, o

que está assegurado na Constituição Federal.

Urge que sejam reconhecidos os valores, conhecimentos tradicionais e práticas de

manejo de recursos dos povos indígenas, com vistas a promover um desenvolvimento que

além de sustentável, seja também saudável.

Não existe nenhuma dúvida de que as Nações Indígenas têm um extraordinário

conhecimento, que classificamos como empírico e chamamos de tradicional, das inter-

relações, no mais das vezes complexas, dos organismos que compõem o seu meio ambiente, e

de como aplicam este conhecimento em suas estratégias de subsistência.

Em uma situação atualmente de confronto, temos de um lado o conhecimento que

denominamos de científico, oriundo do modelo comteniano, e de outro o conhecimento

tradicional, que além de desconhecer, despreza o denominado conhecimento tradicional ou

ainda, empírico. Instala o que se pode chamar de poder da ciência moderna, criando modelos

de ecossistemas, fazendo a administração dos recursos naturais com base na chamada

capacidade de suporte, baseada em informações pseudocientíficas, que na maioria das vezes

não trazem resultados que sequer possam ser classificados como satisfatórios.

No modelo atual, a cada dia se afasta mais o etnoconhecimento da pesquisa científica,

isto como forma de excluir as comunidades tradicionais que tem sua base sobretudo em uma

relação simbólica entre homem e natureza.

Finalmente a implantação do desenvolvimento sustentável nas terras indígenas, com a

permissão de comercialização dos produtos extraídos pelos índios, se justifica pela proteção e

garantia constitucional, mas não só por esta, também pelo reconhecimento do grande

conhecimento tradicional, adquirido pelo respeito às condições naturais, pela garantia dos

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seus direitos históricos a seu território, e também quem sabe uma redefinição pelos nossos

cientistas das suas atuais relações com a natureza.

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REFERÊNCIAS

Agenda 21 - Capítulo 23 - RECONHECIMENTO E FORTALECIMENTO DO PAPEL DAS POPULAÇÕES INDÍGENAS E SUAS COMUNIDADES

Disponível em:

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