hernán rivera letelier e o romance de folhetim: uma proposta de
TRANSCRIPT
0
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
HERNÁN RIVERA LETELIER E O ROMANCE DE FOLHETIM: UMA PROPOSTA
DE CONSCIÊNCIA HISTÓRICA
GISLAYNE SILVA DE OLIVEIRA
Rio de Janeiro
2012
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
HERNÁN RIVERA LETELIER E O ROMANCE DE FOLHETIM: UMA PROPOSTA
DE CONSCIÊNCIA HISTÓRICA
GISLAYNE SILVA DE OLIVEIRA
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos-Literaturas Hispânicas). Orientador: Víctor Manuel Ramos Lemus.
Rio de Janeiro Fevereiro 2012
2
HERNÁN RIVERA LETELIER E O ROMANCE DE FOLHETIM: UMA PROPOSTA
DE CONSCIÊNCIA HISTÓRICA
GISLAYNE SILVA DE OLIVEIRA
ORIENTADOR: PROFESSOR DOUTOR VICTOR MANUEL RAMOS LEMUS
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Literaturas Hispânicas). Aprovada por: Presidente, Prof. Doutor Víctor Manuel Ramos Lemus Prof. Doutor Luís Alberto Nogueira Alves - UFRJ Prof. Doutor Ary Pimentel – UFRJ Prof. Doutor João Roberto Maia da Cruz – FIOCRUZ - Suplente
Prof. Doutor Miguel Angel Zamorano Heras - UFRJ - Suplente
Rio de Janeiro Fevereiro 2012
3
SINOPSE
Esta dissertação tem como objetivo a análise de Santa María de las flores negras de Hernán Rivera Letelier, como um folhetim, de modo a delimitar as semelhanças e as diferenças entre história e ficção num projeto de construção de uma consciência histórica.
4
FICHA CATALOGRÁFICA
Oliveira, Gislayne Silva de.
Hernán Rivera Letelier e o romance de folhetim: uma proposta de consciência
histórica/ Gislayne Silva de Oliveira. – Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras, 2012.
vii, 100f. Orientador: Víctor Manuel Ramos Lemus. Dissertação (Mestrado) - UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de Pós-
graduação em Letras Neolatinas, 2012. Referências Bibliográficas: f. 102-106. 1. Hernán Rivera Letelier 2. Literatura Chilena 3. Novo Romance Histórico 4. Folhetim 5. Pós-ditadura. I. Lemus, Víctor Manuel Ramos. II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. III. Título.
5
RESUMO OLIVEIRA, Gislayne Silva de. Hernán Rivera Letelier e o romance de folhetim: uma proposta de consciência histórica. Rio de Janeiro, 2012. Dissertação (Mestrado em Literaturas Hispânicas) – Faculdade de Letras – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.
A presente dissertação tem o objetivo de mostrar como a interpretação feita por
Hernán Rivera Letelier em abordar em seu romance um fato histórico dos mineiros chilenos
ocorrido no início do século XX, pode contribuir no que diz respeito ao papel da literatura
como instrumento de análise do processo histórico. Neste caso, o romance analisado será
Santa María de las flores negras que retoma o massacre dos mineiros na Escola Santa María.
Em seu relato, Rivera Letelier põe como narrador um personagem fictício que sobreviveu ao
massacre, fazendo com que a história já conhecida pelo imaginário chileno, seja contada
desde outra perspectiva. Será destacado que, para ficcionar esse episódio, Hernán Rivera
Letelier utilizou técnicas narrativas do realismo europeu do século XIX, o folhetim. Também
será observado que a curta experiência socialista vivida pelos trabalhadores no governo da
Unidade Popular com Salvado Allende, foi determinante para uma consciência política no
Chile, que anos mais tarde passaria por mais um grande confronto com os militares na década
de setenta. Este trabalho mostra que, para a construção de uma consciência política, Rivera
Letelier entende que em seu país, massacres aos mineiros como o de Iquique, o golpe de 11 de
Setembro de 1973, deixando para trás o sonho de um governo democrático, não pode ficar
esquecido, pois, por meio dessas frustradas experiências, está o germe da verdadeira luta de
classes. A pesquisa enfatiza o fato de que, Santa María de las flores negras é publicado nos
anos pós-ditatoriais, próximo ao centenário do massacre e no momento em que o país vivia o
“Milagre Chileno”. Ao ficcionar esse episódio dos mineiros, Rivera Letelier abre discussão
tendo em vista a multiplicidade de representações criadas por ele, com a intenção de
apresentar um texto literário que não apenas dissesse mais do mesmo, e sim, um relato
simples que pudesse alcançar um maior número de leitores. Essa discussão levará à conclusão
de que sua ficção propõe uma reflexão do presente destinada a compreender a luta social e
política, que hoje os trabalhadores e setores populares empreenderam contra a atual
dominação capitalista neoliberal.
Palavras – Chave: 1. Hernán Rivera Letelier 2. Literatura Chilena 3. Novo Romance Histórico 4. Folhetim 5. Pós-ditadura
6
ABSTRACT OLIVEIRA, Gislayne Silva de. Hernán Rivera Letelier e o romance de folhetim: uma proposta de consciência histórica. Rio de Janeiro, 2012. Dissertação (Mestrado em Literaturas Hispânicas) – Faculdade de Letras – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.
This thesis aims to show how the interpretation made by Hernán Rivera Letelier in his
novel to address a historical fact of the Chilean proletariat occrred in the early twentith
cebtury, can provide further input regarding the role of literature as an analytical tool the
historical process. In this case, the novel will be examined Santa María de las flores negras
that behind the massacre of miners in the Escola Santa María. In his report, as the narrator
puts Letelier a survivor of the massacre, so that history has ever known by the imagery of
Chile, is told from another perspective. It will be noted that, to ficcion that episode, Hernán
Rivera Letelier used narrative techniques of the XIX century european realism, the serial. It
will also be observed that the short lived socialist experiment by workers in the Popular Unity
government with Salvador Allende, was crucial to the beginning of a political consciousness
in Chile, which years later would for another major confrontation with the military in the
seventies. This work shows that, for the construction of a political consciousness, Rivera
Letelier understood that in his country, the miners as the massacres of Iquique, the coup of
September 11, 1973, leaving behind all dream of a government for everybody, not may be
forgotten, because, through these frustrating experiences, is the germ of the real class struggle.
The research emphasizes the fact that Santa María de las flores negras is published in the
post-dictatorial, near the centenary of the massacre and the time when the country was
“Chilean Miracle”. The fictionalization this history of struggle of the proletariat, Rivera
Letelier open discussion in view of the multiplicity of representations created by him, with the
intention of presenting a literary text that not only tell more of it, and yes, a simple story that
could reach a greater number of readers. This discussion will lead to the conclusion that the
text proposes a reflection of this. One reflection aimed at understanding the social and
political struggle that today’s workers and poor people waged against the current neo-liberal
capitalist domination.
Key words: 1. Hernán Rivera Letelier, 2. Chilean Literature, 3. New historical roman, 4. Serial, 5. Post-dictatorship.
7
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 08 2. CAPÍTULO 1: SANTA MARIA DE LAS FLORES NEGRAS E O ROMANCE HISTÓRICO NO CHILE
17
2.1 O ROMANCE HISTÓRICO CLÁSSICO 17 2.2 O NOVO ROMANCE HISTÓRICO 20 2.3 O ROMANCE HISTÓRICO NO CHILE 26 2.4 HISTÓRIA E MEMÓRIA NOS ANOS PÓS-DITATORIAIS 36 2.5 O CENÁRIO ECONÔMICO EM SANTA MARIA DE LAS FLORES NEGRAS
39
3. CAPÍTULO 2: SANTA MARIA DE LAS FLORES NEGRAS E O ROMANCE FOLHETIM
44
3.1 A LITERATURA DE FOLHETIM 44 3.2 HERNÁN RIVERA LETELIER E O MERCADO EDITORIAL 68 4. CAPÍTULO 3: HERNÁN RIVERA LETELIER: UM ESCRITOR E SEU TEMPO
70
4.1 A HISTÓRIA FRENTE À FICÇÃO 70 4.2 DE SALVADOR ALLENDE AOS ANOS DEPOIS DO GOLPE 78 4.3 A CANTATA POPULAR SANTA MARÍA DE IQUIQUE E A MÚSICA DE PROTESTO DOS ANOS SESSENTA
82
5. CAPÍTULO 4: RIVERA LETELIER: UM ESCRITOR DO DESERTO 87 5.1 A TRAJETÓRIA LITERÁRIA DE HERNÁN RIVERA LETELIER 87 6. CONCLUSÃO 97 7. BIBLIOGRAFIA 102
8
1. INTRODUÇÃO
O deserto de Atacama, norte do Chile, é o cenário constante dos romances de um
escritor que cresceu nas minas salitreiras, com a história de sua família ligada à extração do
salitre e que começou sua carreira literária escrevendo poesia para concursos regionais. Leitor
da poesia de Nicanor Parra e Pablo Neruda, da narrativa de Juan Rulfo, José Donoso, Gabriel
García Márquez, Leopoldo Marechal, Julio Cortázar e fascinado pela linguagem de Juan José
Aréola, o chileno Hernán Rivera Letelier (1950), autor de La reina Isabel cantaba rancheras
(1994), seu primeiro romance, Himno de ángel parado en una pata (1996), Fatamorgana de
amor con banda de música (1998), Santa María de las flores negras (2002), El Fantasista
(2006), Mi nombre es Malarrosa (2008), La contadora de películas (2009), El arte de la
Resurrección (2010), entre outros, ficcionaliza histórias que nascem do imaginário popular do
pampa, com exceção do romance Santa María de las flores negras no qual retoma um fato
histórico: o massacre de mineiros em 1907, na cidade de Iquique, norte do Chile.
As histórias de Rivera Letelier buscam por meio de um discurso linear, direto, sem
ambiguidades, levar uma reflexão aos seus leitores de como esse “passado” ainda está
presente em um Chile que experimentou uma curta e frustrada experiência socialista com
Salvador Allende, seguida de um golpe que levou o país a dezessete anos de ditadura com
Augusto Pinochet e que hoje é tido como modelo aos países latino-americanos por sua
política neoliberal.
Esta pesquisa terá como foco principal o romance Santa María de las flores negras
(2002), publicado às vésperas do centenário do massacre dos mineiros, no governo do
socialista Ricardo Lagos, momento no qual o Chile passava por transformações políticas,
sociais e econômicas. Em meio a essa “euforia nacional” na qual o Chile abre suas portas ao
9
investimento estrangeiro e ao mesmo tempo investe em programas sociais, os chilenos
parecem “esquecer” fatos como os dos mineiros em Iquique.
A história contada em Santa María de las flores negras tem duração de onze dias.
Inicia com as primeiras paralisações nas usinas, a organização da greve, a agitação dos
anarquistas na conscientização dos mineiros para que aderissem ao movimento que os levaria
a Iquique, cidade na qual poderiam discutir com as autoridades, soluções para a exploração do
trabalho nas minas pelas empresas norte-americanas.
Ao percorrer as páginas do romance, é observada além da discussão proposta pelo
autor na escolha do tema, a existência de um cuidado em preservar aquilo que já foi dito por
historiadores ou mesmo por outros chilenos ligados às artes, como a música de protesto que
originou grandes festivais nos anos sessenta e a poesia popular. Durante anos, Rivera Letelier
entrevistou familiares dos que morreram no massacre, assim como também é conhecedor de
outros textos anteriores ao seu sobre o fato, como o de Eduardo Devés, Los que van a morir te
saludan (1989), e o de Pedro Bravo Elizondo, Santa María de Iquique 1907: Documentos
para su historia (1993). Esses dois textos aparecem em Santa María de las flores negras de
forma indireta, mas interligados por um único personagem: Olegario Santana.
Da cultura popular está a “Cantata Santa María de Iquique”, escrita e musicada pelo
músico chileno Luis Advis no final dos anos sessenta em homenagem aos mineiros mortos.
Conhecida e reconhecida por seu valor histórico, a Cantata é interpretada pelo grupo musical
Quilapayún. A epígrafe que abre o romance corresponde ao primeiro verso da “Cantata Santa
María de Iquique”, o que adianta claramente a função que o texto assumirá: “Señoras y
señores/ venimos a cantar/ lo que la historia/ no quiere recordar”. A cantata permanece até
os dias de hoje na sensibilidade coletiva dos chilenos.
Ao dar início ao romance com um trecho da Cantata popular “Santa María de
Iquique”, Rivera Letelier põe no universo da ficção um episódio trágico do imaginário
10
nacional. A cantata é uma das obras mais significativas na história da música popular chilena,
uma vez que em seu conjunto, constitui um documento histórico, não pela história contada e
cantada, mas pelo contexto no qual foi composta: o advento do governo popular de Salvador
Allende. A cantata pertence à Nueva Canción Chilena (NCCH), a música de protesto e se
projeta como épica proletária em testemunho das lutas dos trabalhadores chilenos.
Outra manifestação da cultura popular é dada pela imagem de um “poeta cego” que
leva o nome de Rosario Calderón recitando poemas populares durante toda a travessia dos
mineiros pelo deserto. Esses versos protestavam contra a exploração trabalhista e falavam da
impiedosa vida no deserto: “... soy la flor negra y callada que crece con su dolor” .
Hernán Rivera Letelier busca em passagens do texto como: “éramos el más
formidable espejismo visto alguna vez por ojos humanos en esas desamparadas soledades
pampinas”; “habíamos ido descubriendo el alma oculta del páramo, como el tornasolado
color mineral de los cerros; o la diafanidad prodigiosa de sus cielos nocturnos, siempre
ahítos de estrellas y luminosidades misteriosa” (RIVERA LETELIER, 2007, p.49),
aproximar o leitor de Santa María de las flores negras do cenário árido do deserto de
Atacama.
O relato é contado por um narrador coletivo, um “nós” que assume a voz dos mineiros
mortos que clamam pela memória “da mais infame atrocidade do proletariado universal”.
Dividido em três partes, o que pode ser entendido também como três fases do confronto nas
quais Rivera Letelier não põe título. Na Primeira parte, com a apresentação dos personagens e
suas respectivas descrições físicas e psicológicas, o narrador vai informando ao leitor as
estratégias articuladas pelos grevistas das várias usinas para reivindicarem melhores
condições de trabalho e salário aos donos das empresas salitreiras e às autoridades locais
chilenas. A força da escrita de Hernán Rivera Letelier que propõe uma reflexão política e
questiona abusos das oligarquias, provoca o leitor das páginas de Santa María de las flores
11
negras a pensar nas mudanças que ocorreram na sociedade com as lutas sindicais desde o
conflito em Iquique, ainda no início do século XX, 1907, ao momento em que o livro é
publicado, quase cem anos depois.
Hernán Rivera Letelier escreve sobre o cotidiano dos mineiros no interior das usinas,
nos acampamentos montados próximos a esses lugares em condições subumanas de
sobrevivência devido ao controle das oligarquias e do capital estrangeiro que explorava o
trabalho nas minas. No entanto, em todas as usinas já existia um sindicato dos trabalhadores
com seus respectivos líderes, os quais em Santa María de las flores negras, Rivera Letelier
utilizou figuras da própria historiografia como os anarquistas José Brigg, Luis Emilio
Recabarren e os irmãos Ruiz. Estes, participaram ativamente das lutas proletárias no Chile no
final do século XIX e no romance assumem os mesmos papéis que exerceram na história.
A Segunda parte, narra a partir do décimo sexto dia de greve. Os mineiros já se
encontram em Iquique, alojados na Escola Santa María, uma grande casa de madeira
construída nos tempos em que a cidade pertencia à República do Peru. O texto de Rivera
Letelier segue em um crescente, pois aqui narra a formação de um Comitê Central dentro da
Escola com representantes das distintas usinas. Esse Comitê composto por esse seleto grupo,
cumpriria a função de representá-los nas negociações com as autoridades e os industriais.
Também a chegada de mineiros vindos da Bolívia, Argentina e Peru, intensificou a
paralisação somando uma quantidade de grevistas além do que estava previsto e com isso
ganhando uma maior proporção.
De forma indireta, utilizando a voz narrativa de um personagem, Hernán Rivera
Letelier põe em seu texto histórias que falam sobre o domínio do capital estrangeiro nas minas
do norte chileno. A visão política de cada personagem no texto desencadeando muitas vezes
conflitos de ideias como o pessimismo do personagem Olegario Santana que desde o início
pressente que toda aquela manifestação irá terminar mal a começar pela alegoria do primeiro
12
parágrafo, no qual Rivera Letelier apresenta o personagem ao leitor: “Sobre el techo de la
casa, recortados contra la luz del amanecer, los jotes semejan un par de viejitos acurrucados,
vestidos de frac y con las manos en los bolsillos” (RIVERA LETELIER, 2007, p.11). A esse
personagem é atribuída uma simbologia negativa dentro do texto, pois conhecedor da força
militar, Olegario Santana lutou na Campanha de 79, conflito entre Chile, Bolívia e Peru por
disputa de território no final do século XIX. Contrária à ideia de Olegario Santana está
Gregoria Becerra, uma matriarca que acredita na força da revolução e que para ela sonhar já é
uma forma de luta. José Pintor, personagem que critica o clero, instituição dominante dentro
dos acampamentos, está sempre à procura de uma forma de culpar a Igreja e os industriais
pela miséria em que vivem. Contrastando com esses três personagens aparecem os jovens
Liria María, Idilio Montaño e Juan de Dios que vivem em mundo à parte, indiferentes aos
acontecimentos que os cercam.
A Terceira Parte, narra o conflito dos trabalhadores com os militares. As frustradas
tentativas de negociação com as autoridades não desanimavam os grevistas que acreditavam
que deveriam permanecer em Iquique e levar a luta adiante. Na tarde do dia vinte e um de
dezembro, o general Roberto Silva Renard personagem real na História militar do Chile, deu
ordem aos militares para que invadissem a Escola Santa María.
Hernán Rivera Letelier, ao contar suas histórias, retoma e desenvolve o tradicional
realismo europeu dos séculos XVIII e XIX utilizando a técnica do folhetim, definindo
claramente os que impõem e fazem valer o regime, e os que sofrem as consequências dele. A
inexistência de ambiguidades em seus livros é clara. Compromete-se a ficcionar um dos
problemas sociais de sua época: a luta de classes, a relação entre exploradores e explorados,
na tentativa de “dizer” ao presente que a experiência vivida pelos trabalhadores nos três
primeiros anos da década de setenta com Salvador Allende não pode ser esquecida.
13
Nascido na década de cinquenta, o autor viveu em um Chile pré e pós-ditatorial. Seus
romances, por meio de suas histórias, ficcionam a vida de exploração dos trabalhadores das
minas que mesmo em uma região castigada pela aridez, sobrevivem. A história contada por
Rivera Letelier em Santa María de las flores negras reporta uma época em que os
movimentos trabalhistas não estavam organizados como estão hoje, não existiam sindicatos,
muito menos leis trabalhistas que os favorecessem. Rememorar esse massacre, assim como
ficcionar uma época de exploração e injustiças sociais que ainda perpetuam nos dias atuais na
história trabalhista do Chile, faz com que o texto de Rivera Letelier não apenas conte a
história de milhares de trabalhadores que foram fuzilados pelas tropas do exército quando
lutavam por melhores condições de trabalho, mas sim, propõe uma reflexão do presente
destinada a compreender a luta social e política que hoje os trabalhadores e setores populares
seguem com manifestações como greves e paralisações contra a atual dominação capitalista
neoliberal. A imagem de um país próspero, moderno, à frente de seu tempo, guarda feridas em
sua história ainda não cicatrizadas porque continuam abertas. Manifestações não somente de
trabalhadores insatisfeitos com o que recebem por seu trabalho, como também estudantes
fazendo protestos nas ruas do Chile por Reformas na educação, seguem sendo “caladas” de
forma violenta. Ao “sinalizar” um fato marcante da história do movimento trabalhista, Rivera
Letelier coloca seu texto no universo do “Novo Romance Histórico latino-americano” e leva
seus leitores, a compreenderem por uma outra ótica, como a das liras populares, como a da
“Cantata Santa María”, um dos episódios da história dos mineiros chilenos.
Pertencente à geração de autores que tiveram seus romances publicados não apenas no
Chile, mas também em outros países, Hernán Rivera Letelier ganhou repercussão no início
dos anos 90, com a publicação de La reina Isabel cantaba rancheras (1994), romance que foi
traduzido a outros idiomas. Sucesso de vendas por editoras como Planeta e Alfaguara, Rivera
Letelier desperta o interesse em seu estudo pela simplicidade de sua escrita contrastando com
14
o complexo panorama social do Chile. É uma geração pós-golpe militar, pós-trauma, que
segundo o historiador chileno Rodrigo Cánovas diagrama em seus romances uma paisagem
nacional fundada nas contradições existenciais e ideológicas de uma comunidade nacional em
crise.
A relevância dessa pesquisa deve-se a uma aproximação ao universo literário de um
autor já reconhecido em seu país e na história da atual literatura hispano-americana como
também a importância e valorização de seus textos na formação da consciência histórica
chilena.
A pesquisa tem por objetivo analisar alguns pontos relevantes dentro da narrativa de
Hernán Rivera Letelier como: sua localização dentro da proposta do “Novo Romance
Histórico” de Seymour Menton e no cenário do romance histórico no Chile; a busca por uma
consciência histórica em seu país por intermédio da ficção, e seu engajamento no cenário
atual da literatura hispano-americana.
No primeiro capítulo, pretende-se localizar Santa María de las flores negras dentro da
nova proposta do “Novo Romance Histórico latino-americano” de Seymour Menton. O estudo
se estenderá tendo como base o trabalho da professora Antonia Viu Bottini sobre o romance
histórico no Chile. Para esta, o romance histórico chileno segue caminho distinto ao dos
demais países hispano-americanos. A experiência socialista no governo da Unidade Popular
com Salvador Allende seguida de um golpe militar em setembro de 1973, dividiu a produção
dos escritores em um “antes” e um “depois” do golpe. Estes, buscam no “passado imediato” o
combustível para suas histórias.
No capítulo seguinte, será observada a técnica narrativa utilizada por Rivera Letelier
em seus romances: o folhetim. De origem francesa, o folhetim era publicado de forma
fragmentada em jornais atingindo uma grande quantidade de leitores devido à simplicidade de
suas histórias. Sucesso no mercado editorial, o autor de Santa María de las flores negras
15
segue com esse gênero popular dividindo opiniões entre escritores e os consumidores de seus
romances.
Na sequência, será estudada a importância do escritor comprometido com sua
sociedade na busca por uma consciência política. Santa María de las flores negras fala do
massacre de mineiros no início do século XX, um fato da história chilena já conhecido pelo
imaginário popular, não só pelos livros de História, mas também pela “Cantata Santa María
de Iquique” escrita em 1969 por Luis Advis e interpretada pelo grupo musical Quilapayún na
década de setenta. A Cantata é parte do projeto Nueva Canción Chilena, movimento
partidário ao governo da Unidade Popular que sofreu repressões do governo autoritário de
Augusto Pinochet. Rivera Letelier põe em discussão momentos da história política e
econômica do Chile, abordando um fato do “passado” para compreender o “presente”.
Para concluir, uma aproximação à trajetória literária de Hernán Rivera Letelier que
teve como mestres os autores: Manuel Rojas Sepúlveda, Juan Rulfo, Nicanor Parra, Leopoldo
Marechal, Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, entre outros. Alguns
desses escritores tiveram suas obras em destaque nos anos sessenta e setenta. A chamada
literatura do “boom”, como ficou conhecida, se deve a rápida popularização de alguns dos
autores citados acima. Resulta que o “boom” desfrutou de importantes apoios comerciais, em
especial por parte da editora espanhola Seix Barral. Entre outras características, essa literatura
valorizava a experimentação da linguagem e a renovação das estruturas narrativas. Em sentido
contrário aos romances do “boom”, no que se refere a experimentos de linguagem e estruturas
narrativas, os romances de Rivera Letelier seguem uma estrutura linear apresentando como
cenário os acampamentos das minas do salitre e com uma leitura de consumo massivo
centrada na trilogia: literatura, cinema e música. Com essa proposta, Rivera Letelier alcança
um grande número de leitores que por meio de Santa María de las flores negras remontam-se
ao ano de 1907 para experimentar o ideal de uma revolução também vivida anos mais tarde
16
no governo de Salvador Allende. Para Rivera Letelier, esses momentos da história política do
Chile não podem ser esquecidos, ao contrário, devem estar presentes na memória da
sociedade e contribuir na formação de uma consciência política dos chilenos.
17
2. CAPÍTULO 1
SANTA MARÍA DE LAS FLORES NEGRAS E O ROMANCE HISTÓRICO NO CHILE
La recomposición del pasado que opera la literatura es casi
siempre falaz. La verdad literaria es una y otra la verdad histórica. Pero, aunque esté repleta de mentiras – o, más bien, por ello mismo – la literatura cuenta la historia que la historia que escriben los historiadores no saben ni pueden contar.
Porque los fraudes, embaucos y exageraciones de la literatura narrativa sirven para expresar verdades profundas e inquietudes que sólo de esta manera sesgada ven la luz. (VARGAS LLOSA, 2003, p.26).
2.1 O ROMANCE HISTÓRICO CLÁSSICO
O romance histórico clássico, cujo paradigma segundo Georg Lukács é ditado pela
obra de Walter Scott, surge em um contexto no qual o pensamento histórico predominante se
alimenta do entusiasmo com uma apreensão realista do mundo (LUKÁCS, 2011, p.34). O
romance histórico publicado no século XIX aparece em um momento no qual uma série de
transformações sociais, políticas e econômicas, ocorridas na Europa, fazem com que as
massas populares se sintam em um processo ininterrupto de mudanças com consequências
diretas sobre a vida de cada indivíduo. A Revolução Francesa (1789), a Revolução de 1848, a
consolidação do sentimento nacional, ascensão e queda de Napoleão Bonaparte e suas
conquistas de territórios pelo continente europeu, propiciam a compreensão da existência
como algo historicamente determinado, e a visão de que a história afetando o cotidiano do
indivíduo é algo que lhe concerne em termos imediatos.
18
Na França, como mostra Georg Lukács em seu livro O romance histórico, é somente a
partir das revoluções burguesas citadas acima e da dominação napoleônica que o sentimento
nacional torna-se propriedade das massas. As origens do romance histórico são localizadas em
dois momentos: no romance social do século XVIII e na nova percepção da história que nasce
na Europa transformada pela Revolução Francesa.
Desde sua origem no século XIX, no romance histórico aparece uma mistura de ficção
e história. No entanto, o tipo de história que se escreveu durante muito tempo não estabelecia
fronteiras tão claras entre imaginação e realidade, nem mesmo o rigor da observação e a
aspiração de pretender atingir a um público leitor. Georg Lukács, atribui aos romances de
Walter Scott seu interesse em justificar a “excepcionalidade” dos acontecimentos e da atuação
dos personagens históricos, em virtude do particular de cada época, ou seja, buscando uma
reflexão sobre a história como processo. (VIU, 2007, p.77).
O romance histórico integra o elenco das grandes narrativas de consolidação do
sentimento nacional e, ao mesmo tempo, de legitimação do impulso universal do Ocidente. O
século XIX, contribuiu para a construção da tradição européia, ou seja, a construção de
imagens de um passado privilegiado que fundamentasse as atitudes culturais do presente, e
lançasse as bases de uma autoridade das nações do continente europeu. Com a Europa
assumindo o centro da cultura mundial, o romancista vai buscar o passado como palco das
forças motrizes da história, para evidenciar a experiência desta como processo de evolução. O
narrador extrai da história os materiais para urdir ficções e repensar a tradição cultural
nacional, para resgatar o que foi deixado às margens pelo discurso historiográfico. (VIU,
2007, p.79).
Na América Latina, o século XIX também foi marcado pelo surgimento de uma
literatura de fundação. Sua origem, nos países hispano-americanos reside na tradição das
19
crônicas de conquista, assim como no exemplo europeu de Walter Scott. A influência deste,
sentida em toda a América Hispânica por meio de suas obras traduzidas, desatou segundo
Amado Alonso, “a febre do romance histórico”. (ALONSO, 1942, p.143.)
Por outra parte é de fundamental importância lembrar que em 15 de janeiro de 1929 é
lançado o primeiro número da revista francesa Annales, originalmente chamada Annales
d’histoire économique et sociale, tendo por modelo os Annales de Géografhie de Vidal de la
Blanche, que levará à chamada Nova História. A revista foi planejada desde o seu início, para
ser algo mais do que outra revista histórica. Ela pretendia exercer uma liderança intelectual
nos campos da história social e econômica. Propunha uma nova representação do tempo
histórico:
Na perspectiva da “longa duração”, o tempo histórico é representado como “dialética da duração”. Os eventos são inseridos em uma ordem não sucessiva, simultânea. A relação diferencial entre passado, presente e futuro enfraquece-se, isto é, a representação sucessiva do tempo histórico é enquadrada por uma representação simultânea. As “mudanças humanas” endurecem-se, desaceleram-se. (GURIEVITCH, 1929, p.23).
É esta nova representação do tempo histórico que permite a renovação teórico-
metodológica da história, pois, é a partir dela que se distinguem novos objetos, que se
formulam novos problemas. Seus principais representantes foram: Marc Bloch e Lucien
Febvre.
Para abordar essas realidades humanas, a história teve de se renovar quanto às técnicas e métodos. A renovação dos objetos exigirá a mudança no conceito de fonte histórica. A documentação será agora relativa ao campo econômico-social-mental: é massiva, serial revelando o duradouro, a longa duração. Os documentos referem-se à vida cotidiana das massas anônimas, à sua vida produtiva, às suas crenças coletivas. Os documentos não são mais ofícios, cartas, editais, textos explícitos sobre a intenção do sujeito, mas listas de preços, de salários, séries de certidões de batismo, óbito, casamento, nascimento, fontes notariais, contratos, testamentos, inventários. (GURIEVITCH, 1929, p.23).
A maior contribuição do grupo dos Annales foi expandir o campo da história por
diversas áreas. O grupo ampliou o território da história, abrangendo áreas inesperadas do
comportamento humano e a grupos sociais negligenciados pelos historiadores tradicionais.
20
Essas extensões do território histórico estão vinculadas à descoberta de novas fontes e ao
desenvolvimento de métodos para explorá-las.
A crise ocorrida no discurso histórico e na ficção latino-americana na década de
sessenta, quando o repúdio pelas convenções literárias realistas e o recurso de novas técnicas
e procedimentos é uma maneira de revolucionar a literatura que enfatiza o compromisso do
escritor com a Revolução Cubana (1959), e cria um vínculo entre a série literária e a série
social política. A intertextualidade, o humor, a paródia, a “carnavalização” os mais diversos
jogos linguísticos, o entrecruzar de discursos e a Nova História, são recursos da renovação de
um romance que se reconhece já como artefato, de uma construção de plurais e ambíguos
significados que se apresenta com uma nova linguagem. É nessa repulsa diante da linguagem,
estruturas e visões herdadas do passado que se situa o germe do “Novo Romance Histórico”
que também se revelará contra um legado já arcaico: o da história e seu discurso e o do
romance histórico tradicional.
2. 2 O NOVO ROMANCE HISTÓRICO
O estudo de Seymour Menton sobre o “Novo Romance Histórico” em seu livro: La
nueva novela histórica de la América latina, 1979 – 1992, revisa algumas definições do
romance histórico tradicional. Para Seymour Menton todo romance é histórico uma vez que
capta o ambiente social de seus personagens (MENTON, 1993, p.32). Em seu texto, expõe
outras definições do romance histórico como a de Leon François Hoffmann. Para este, os
fatos específicos tirados do passado determinam ou influem no desenvolvimento do
argumento do enredo. (MENTON, 1993, p.32). No entanto, o objetivo do trabalho de
Seymour Menton é comprovar o predomínio de romances históricos latino-americanos de
21
1979 a 1992, e que principalmente, o momento histórico argumentado esteja localizado em
um passado não experimentado diretamente pelo autor. (MENTON, 1993, p.32).
Seymour Menton dá uma definição de “Novo Romance Histórico” por meio do
estudo de um grupo de romances escritos a partir de 1979 até 1992, que parecem se distanciar
do modelo tradicional de Walter Scott e coincidir em uma série de características formais e
ideológicas.
A causa para tais mudanças seria o despertar de uma consciência “anti-colonizadora”
(MENTON, 1993, p.32), em intelectuais e escritores intensificada com a aproximação do
quinto centenário do descobrimento da América em 1992.
Dentro do corpus mais representativo do grupo de romances estudados por Seymour
Menton estão: El arpa y la sombra (1979), de Alejo Carpentier, El mar de lentejas (1979), de
Antonio Benítez Rojo, La guerra del fin del mundo (1981), de Mario Vargas Llosa, Los
perros del paraíso (1983), de Abel Posse, e Notícias del imperio (1987), de Fernando del
Paso.
Seymour Menton lista seis características que não necessariamente devem ser
encontradas em sua totalidade em um único romance. São elas: a) impossibilidade de
conhecer a verdade histórica ou a realidade, o caráter cíclico da história; b) a distorção
consciente da história mediante omissões, exageros ou anacronismos; c) ficcionalização de
personagens históricos; d) presença da metaficção; e) intertextualidade, o palimpsesto; f) o
carnavalesco, a paródia e a heteroglosia. (MENTON, 1993, pp.42-46 passim).
Apesar do estudo de Seymour Menton começar com romances históricos datados a
partir de 1979, o autor enfatiza em seu texto a publicação trinta anos antes da data que
delimita seu corpus o romance El reino de este mundo (1949), do cubano Alejo Carpentier.
No período em que este esteve em Paris, frequentou junto com Miguel Ángel Asturias, um
círculo de poetas e pintores surrealistas e, como ocorre com Asturias, o toque mágico do
22
surrealismo lhe ajuda a descobrir o “real maravilhoso” da América. Em uma viajem ao Haiti
confirma sua convicção de que na América o surrealismo resulta cotidiano, corrente e
habitual.
Aunque se trata de una historia muralística de la lucha por la independencia de Haití desde mediados del siglo XVII hasta el primer tercio del siglo XIX, cuyos protagonistas históricos están ligados por la figura mítica o tal vez histórica de Ti Noel, la historia de Haití está subordinada a la cuestión filosófica de la lucha por la libertad y la justicia social en todas las sociedades pese a los muchos obstáculos y pese a la improbabilidad de conseguirlas. (MENTON, 1993, p.38).
Nesse romance de Alejo Carpentier, os acontecimentos são narrados desde a rebelião
de MacKandal até o reinado de Henri Chistophe. O cenário é o Haiti, lugar visitado por
Carpentier em 1943. A ação leva o leitor desde o final do século XVIII (antes da Revolução
Francesa), até as primeiras décadas do século XIX. Trata-se da revolta dos escravos que
termina com a dominação colonial da França e da subida ao poder e posterior queda de Henri
Christophe, o primeiro rei negro do continente que passa pela escravidão e se converte em
ditador. Os oitenta anos que vão desde as primeiras revoluções dos escravos durante o período
colonial, até as lutas pela independência do Haiti estão narrados pela perspectiva de Ti-Nöel,
escravo negro a serviço de um fazendeiro francês na ilha de Santo Domingo. Ao privilegiar a
perspectiva do escravo, Alejo Carpentier está favorecendo um ponto de vista contrário ao da
visão colonialista do passado do Haiti.
Com a publicação de El reino de este mundo (1949) na primeira metade do século XX,
segundo o estudo de Seymour Menton, é antecipado em trinta anos o auge do “Novo
Romance Histórico”. (MENTON, 2003, p.38). O romance El reino de este mundo não
representa tão somente um antecessor do “Novo Romance Histórico latino-americano”,
significa uma mudança na maneira de abordar acontecimentos da história vistos a partir de
novas perspectivas.
A síntese do “real–histórico” e do “maravilhoso” que aparecem em El reino de este
mundo (1949), marca uma maneira de ser do romance histórico latino-americano, à qual irá
23
desconstruir imagens criadas pelo modelo europeu. Nesse sentido, o tema da representação
ganha importância uma vez que questiona ditas imagens e principalmente por quem são
vistas. A imagem do europeu, por exemplo, resulta “caricaturesca” desde a perspectiva latino-
americana mediante a apropriação grotesca do poder com a qual é vista a figura de Henri
Christophe ao se transformar no primeiro rei negro da ilha de Santo Domingo, como também
mostra uma imagem deformada do poder e do luxo das autoridades coloniais. (HARSS, 1966,
p.63-65, passim).
Outras importantes obras são publicadas como Yo el Supremo (1974) do paraguaio
Augusto Roa Bastos. A pedra angular da construção dessa narrativa é a criação do
personagem que dá nome ao romance, figuração fictícia de um personagem real: o doutor José
Gaspar Rodríguez de Francia (1766 – 1840), que foi durante vinte e seis anos (1814 – 1840),
seu primeiro Presidente. A grande virtude desse romance é sua capacidade inventiva, apoiada
em uma documentação histórica posta de maneira convincente, porém com uma enorme
liberdade. A história real está subordinada à história fictícia, ou seja, o mundo que se inventa
a partir dela. Como define José Miguel Oviedo:
La clave está en el concepto de que el acto de contar y las formas discursivas que éste adopta son parte inextricable de la Historia, que la palabra es más real que la misma realidad y que ésta no tiene otro modo de revelarse. Lo narrado y la narración existen en un solo momento y fuera de él se disipan, pierden el sentido y vuelven a la nada o al caos. Aquí la palabra dictador recobra su ambivalencia: el que manda y ordena, y el que dicta y escribe por mano propia y ajena. Por eso la gran contrafigura del relato es la de Patiño, el diligente amanuense y secretario del dictador que recoge ¿puntualmente? su palabra, su pensamiento vivo. (OVIEDO, 2007, p.92).
Como Yo el Supremo (1974), também é publicado outro romance de Alejo Carpentier:
El recurso del método (1974) que precede por um ano apenas a El otoño del patriarca (1975)
de Gabriel García Márquez.
A princípio dos anos oitenta do século XX, Ángel Rama assinalou novas tendências na
literatura latino-americana. Por uma parte, a recuperação do realismo, o testemunho e o
romance não-ficcional indicavam o reingresso à história entendida como a realidade ou a
24
condição social e política imediata dos novos romances. Por outra, o discurso histórico
entendido como a “reconstrução do passado” estava em um período de crise, diz Ángel Rama,
referindo-se aos romances publicados depois de 1973. Durante os anos setenta, as ditaduras
militares na Argentina, Uruguai, Chile e Brasil se superaram no abuso dos direitos humanos e
isso repercutiu diretamente na literatura dos escritores desses países.
Ao afirmar a crise no discurso histórico na ficção latino-americana, Ángel Rama
destaca dois fenômenos independentes e ao mesmo tempo relacionados. Primeiramente, se
refere à manifestação concreta de uma crise histórica no romance, segundo evidencia a lista
preparada por Seymour Menton, na qual a produção do romance histórico é bastante escassa e
provém principalmente dos autores já consagrados como Mario Vargas Llosa em
Conversación en la Catedral (1970), Augusto Roa Bastos com Yo el Supremo (1974); Alejo
Carpentier com Concierto Barroco (1974) e El arpa y la sombra (1979). Em seguida, Ángel
Rama aponta em direção a uma mudança do discurso ficcional sobre a história ao
“abandonar” o modelo historicista romântico da reconstrução de períodos passados, para
“edificar” vastas estruturas interpretativas do extenso tempo latino-americano e do extenso
espaço do continente. (RAMA, 1981, 15-20). Yo el Supremo ilustra esta tendência cuja
novidade
no radica en la recuperación del pasado sino en el intento de otorgar sentido a la aventura del hombre americano mediante bruscos cortes del tiempo y del espacio que ligan analogicamente sucesos dispares, sociedades disímiles, estableciendo de hecho diagramas interpretativos de la historia. (RAMA, 1981, p.20).
Ángel Rama expõe um novo uso e uma nova percepção do discurso histórico na
literatura latino-americana que assume características já não mais de reconstrução de
acontecimentos passados, mas sim, uma construção e interpretação de macro-estruturas nas
quais se fecha uma visão global do destino continental. Essa mudança de paradigma anuncia o
advento do “Novo Romance Histórico”. (RAMA, 1981, p.p 23-25, passim).
25
Ao separar seu corpus de romances publicados entre 1979 a 1992, em seu estudo sobre
o “Novo Romance Histórico”, Seymour Menton destaca a ausência deste no Chile.
La excepción nacional más notable a esta tendencia parece ser Chile, donde Martes Tristes (1985) de Francisco Simón, es tal vez el único ejemplo de NNH. El fenómeno puede explicarse por la mayor preocupación de los novelistas chilenos contemporáneos por el pasado inmediato, o sea el golpe militar contra el gobierno de Allende en 1973, la dictadura de Pinochet y la experiencia en el exilio de varios novelistas. En cambio, la escasez de la NNH en Chile también podría atribuirse a la preferencia chilena tradicional por novelar de un modo realista el mundo contemporáneo. (MENTON, 1993, p.47).
Seymour Menton em sua análise expõe uma ausência de romances chilenos que
agrupem em seus textos características do “Novo Romance Histórico”. No entanto, os anos
que antecederam ao golpe militar de 1973, e que proporcionaram aos chilenos uma
experiência socialista, marcou a produção literária dos escritores que viram em seu ofício uma
oportunidade de buscar estruturas discursivas que dessem conta da dura realidade na qual o
país se encontrava, e que permitissem articular opiniões sobre o presente.
É possível identificar no país, no que se refere ao romance histórico, uma
heterogeneidade na produção de escritores contemporâneos. Romances como Soñé que la
nieve ardia (1975), de Antonio Skármeta, El paso de los gansos (1975), de Fernando Alegría,
En este lugar sagrado (1977), de Poli Délamo e Martes Tristes (1987), de Simón Rivas,
constituem tentativas desses escritores em exteriorizar alguns elementos chave para a
compreensão de um dos capítulos trágicos da história política chilena.
Nos países hispano-americanos esse interesse pela história acompanhado de uma
renovação no romance histórico tradicional, também resulta evidente ao observar a produção
literária do continente, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, em
romances que já são referências na narrativa contemporânea: El reino de este mundo (1949),
de Alejo Carpentier, Yo el Supremo (1974) de Augusto Roa Bastos, Terra Nostra (1975) de
Carlos Fuentes, La guerra del fin del mundo (1981) de Mario Vargas Llosa por exemplo. No
entanto, ao se buscar romances históricos no interior de distintos países hispano-americanos,
26
os títulos vão se tornando menos conhecidos e difíceis de classificar com características
comuns.
2. 3 O ROMANCE HISTÓRICO NO CHILE
Este capítulo terá como base o estudo realizado pela professora chilena Antonia Viu
Bottini em seu livro Imaginar el pasado decir el presente, publicado no ano de 2007, que
traça um panorama sobre o romance histórico chileno atual a partir de sua tradição. Para isso,
analisa a presença de determinados gêneros literários nos romances chilenos como a biografia
romanceada e o folhetim, na busca pela origem do romance histórico em seu país, e como este
vem sendo desenvolvido no contexto atual. Para a realização desse estudo diacrônico, Antonia
Viu teve como guia o trabalho de Eva Löfquist sobre o romance histórico no século XIX no
Chile.
Para Eva Löfquist, mais de um quarto da produção romancista do século XIX
anterior à Guerra do Pacífico é histórica, o que representa um projeto de consolidação
nacional idealizado por intelectuais como José Victorino Lastarria. A fundação de jornais
como El Progreso em 1942, foi de fundamental importância para a propagação do romance
histórico, pois nele eram publicadas de forma fragmentada as traduções dos romances
europeus como também os que eram escritos no país durante o século XIX. Fundamental
importância é dada aos tradutores e escritores estrangeiros que chegam ao território chileno
nesse período. A primeira tradução feita no país foi de Os três Mosqueteiros de Alejandro
Dumas. Também são traduzidos ao espanhol os romances de Walter Scott como Ivanhoe
(1819).
No que diz respeito ao reconhecimento do primeiro romance histórico escrito no
Chile, a crítica fica dividida entre três obras: El Inquisidor mayor (1852), de Manuel Bilbao;
27
La novia del hereje (1946), de Vicente Fidel López, argentino exilado no Chile durante o
governo de Rosas; e Durante la Reconquista (1897), de Alberto Blest Gana. Com o trabalho
realizado por Eva Löfquist no estudo do romance histórico no Chile durante as décadas que
vão de 1843 a 1879, demonstra-se significativo o interesse dos escritores do período pela
ficção histórica tendo como destaque o gênero folhetim.
Como anticipa la división propuesta por Löfquist entre novelas históricas de tendencia folletinesca y de tendencia social dentro del período que estudia, la exploración de la historia en busca de argumentos interesantes y no necesariamente con intenciones patrimoniales o ideológicas (didácticas, sociales, o directamente políticas), se remonta a los orígenes de la ficción histórica en Chile. (VIU, 2007, pp.124:125).
Importante característica do romance histórico do século XIX no Chile, sinalizado por
Eva Löfquist, é a pluralidade de discursos entre os quais se destaca: o de valorização da
história por meio de digressões do narrador ou pela voz de algum personagem, como também
o discurso patriótico justificando a necessidade de Independência, criticando o poder e o
controle da Igreja e da metrópole, a Espanha. (VIU, 2007, p.125).
Segundo Antonia Viu, o romance histórico no Chile segue caminhos diferentes ao dos
outros países hispano-americanos. Características citadas no estudo realizado por Seymour
Menton como os elementos baktinianos (paródia, carnaval, dialogismo,
heteroglosia), não são muito frequentes nos romances chilenos. Ao contrário, a ficção
histórica no Chile está mais próxima de sua realidade imediata. (VIU, 2007, p.153).
É importante observar que o Chile, país que viveu um período ditatorial com o
governo militar de Augusto Pinochet, a transição da curta experiência socialista, ditadura e
pós-ditadura com que se organizou sua história política, proporcionou uma mudança ou uma
modificação substancial no imaginário nacional. A partir de então, o romance histórico desse
país e o discurso dos escritores gira em torno de sua história com estreita relação com a
ideologia de cada um. Os autores buscam no “passado imediato” algum “remédio” aos
problemas sociais, culturais, econômicos, políticos e educacionais. Com isso, os romances
28
que abordavam momentos da história no Chile seguiam uma orientação contrária ao estudo de
Seymour Menton, pois para ele a problemática do “tempo” segue a definição de Anderson
Imbert: “Llamamos novelas históricas a las que cuentan una acción ocurrida en una época
anterior a la del novelista”. (MENTON, 1993, p.33).
No caso do Chile, os romances históricos publicados a partir da década de setenta têm
em sua grande maioria como “pano de fundo” o golpe de 1973. No entanto, Antonia Viu
considera em seu estudo a delimitação de Seymour Menton, porém, amplia essas
considerações ao universo da ficção histórica escrita no Chile. Seu corpus abrange romances
publicados desde Martes Tristes (1985), de acordo com Seymour Menton, até Herencia de
fuego (2003) de Juanita Gallardo, e principalmente, inclui em sua lista Santa María de las
flores negras (2002). A persistente desigualdade social foi fonte e origem de conflitos sociais
e políticos que se traduziram em protestos, greves e repressões. O massacre de trabalhadores
da Escola Santa María constitui um desses episódios.
Analisando Santa María de las flores negras à luz dos estudos de Seymour Menton,
faz-se necessário deixar de fora características como o carnavalesco ou a paródia. No
entanto, a intertextualidade, o palimpsesto e a ficcionalização de personagens históricos estão
presentes. Hernán Rivera Letelier conta a história do massacre pela perspectiva dos grevistas.
Olegario Santana, Domingo Domínguez, José Pintor, Gregoria Becerra, Idilio Montaño, Liria
María e Juan de Dios.
Peter Burke, em seu livro A escrita da História, afirma que a base filosófica da nova
história é a ideia de que a realidade é social ou culturalmente construída. A história tradicional
oferece uma visão de cima, no sentido de que tem sempre se concentrado nos feitos dos
“grandes homens, estadistas, generais ou ocasionalmente eclesiásticos” (BURQUE, 1992,
p.12). O movimento da história “vista de baixo” levanta uma discussão que também reflete
29
uma nova determinação para considerar mais seriamente as opiniões das pessoas comuns
sobre seu passado do que costumavam fazer os historiadores profissionais.
A história “vista de baixo” pode desempenhar um papel importante neste processo,
recordando que nossa identidade não foi estruturada somente por monarcas, primeiros-
ministros ou generais (BURQUE, 1992, p.38). No romance, os personagens “comuns”
interagem com personagens “históricos” que foram ficcionalizados como: John Thomas North
(o rei do salitre), Julio Guzmán, Carlos Eastman, o presidente do Chile na época: Pedro
Montt, o sacerdote Martín Rucker e o general Roberto Silva Renard. Essa ficcionalização de
personagens históricos é um dos traços que Seymour Menton aponta como característicos do
“Novo Romance Histórico”.
Durante três anos Rivera Letelier esteve recopilando dados, entrevistando familiares
dos que morreram no massacre a fim de tornar presente quase cem anos depois, não apenas o
fato como tem sido registrado na historiografia oficial, mas trazer ao universo da ficção
essa tragédia do proletariado chileno, tendo como uma de suas fontes o depoimento de
descendentes das vítimas, pessoas que perderam parentes. Para Peter Burke:
A história “vista de baixo” abre a possibilidade de uma síntese mais rica da compreensão histórica, de uma fusão da história da experiência do cotidiano das pessoas com a temática dos tipos mais tradicionais da história. Ela proporciona também um meio para reintegrar sua história aos grupos sociais que podem ter pensado tê-la perdido, ou que nem tinham conhecimento da existência de sua história. A história vista de baixo pode desempenhar um papel importante neste processo, recordando-nos que nossa identidade não foi estruturada apenas por monarcas. (BURQUE, 1992, p.31).
A ficcionalização do discurso historiográfico aparece em grande medida como uma
estratégia que revela e “descobre” o passado a partir de novas perspectivas, revitalizando as
bases tradicionais, buscando chaves que iluminem o presente. Apropriando-se da História, os
textos contemporâneos postulam uma narrativa questionadora que se situa sobre a aceitação
das “verdades” absolutas. De modo que a tematização da História já não se concretiza tão
30
somente a partir da veracidade do texto, ou mesmo de uma fiel representação de um
determinado segmento da realidade.
Hernán Rivera Letelier, que até bem antes de começar a escrever romances trabalhou
na extração do salitre e a história de sua família, assim como a maioria das histórias dos
trabalhadores chilenos está ligada à mineração, escreve Santa María de las flores negras
pondo como personagens principais a homens e mulheres que já despertavam para uma
consciência política. Inicia a história apresentando aos leitores, Olegario Santana, um mineiro
viúvo de cinquenta e sete anos, vive em uma casa de alojamento na companhia de um casal de
urubus que cria desde que nasceram. Todos os dias fuma quarenta cigarros da marca
“Yolanda”.
Sobre el techo de la casa, recortados contra la luz del amanecer, los jotes semejan un par de viejitos acurrucados, vestidos de frac y con las manos en los bolsillos. Estáticos como figuras de veletas, y nimbados por un vaho de podredumbre, parecen dormir hondamente uno junto al otro. Sin embargo, cuando desde el interior de la vivienda, por un forado en el techo, les son arrojados los primeros trozos de carnaza, enarcan nerviosamente sus cabezas coloradas y, emitiendo sus guturales gruñidos de aves carroñeras, se dan a una barullosa rapiña sobre las planchas de zinc. A sus cincuenta y siete años, Olegario Santana nunca ha visto una mujer de verdad con un rostro tan bello como ese. Además, no entiende por qué diantres el solo nombre Yolanda le trae la imagen de una mujer fatal, una de esas hembras desmelenadas de pasión que evocan los viejos en las calicheras mientras trituran piedras bajo un sol tan ardiente como sus delirios. (RIVERA LETELIER, 2007, p.12).
Rivera Letelier tem a intenção de aproximar o leitor de seu romance da linguagem do
“homem do deserto”, com seu timbre forte e marcante. A voz narrativa que conduz toda a
trama é de um grevista que fala de “dentro”, um narrador onisciente que apresenta ao leitor
todos os personagens e conhece suas histórias. É um narrador coletivo, indivíduo escondido
atrás de um “nós” que assume a voz dos trabalhadores mortos. O “protagonismo” se divide
entre vários personagens, porém é sintetizado em uma figura central, Olegario Santana, herói
individual e mártir coletivo.
Ao mesmo tempo em que apresenta a vida rotineira e comum de Olegario Santana,
apresenta uma versão do massacre dos trabalhadores na Escola Santa María desde a sua
31
origem. O relato tem a duração de onze dias, começando em dez de dezembro, início da greve
nas usinas e termina em vinte e um de dezembro com a morte dos mineiros. Está dividido em
três partes nas quais não há título. Com a leitura do texto de Rivera Letelier, entra-se em um
universo de miséria, fome, desigualdade social, exploração e sede de justiça.
Tras una segunda pitada a su cigarrillo, rehace su camino, cavilante. Algo no encaja bien en la carreta del día. De pronto, casi llegando a las primeras calicheras, un grupo de hombres se le aparece desde unos acopios y rodeándolo y mirándolo con recelo, le espetamos hoscamente que si acaso el asoleado del carajo no sabía que ayer en la noche se declaró la huelga general en San Lorenzo. «Ayer, martes 10 de diciembre de 1907, año del Señor», le recalcamos guasonamente, por si el viejito de los jotes no estaba enterado ni de la fecha en que vivía. (RIVERA LETELIER, 2007, p.14).
Característica do romance histórico chileno contemporâneo, segundo Antonia Bottini
Viu, é a utilização de um referente histórico que dividiu a sociedade em dois momentos: o
golpe de Estado de 1973 e a ditadura instaurada. Os dois provocaram ainda que somente no
campo da narrativa, uma remoção genérica que implicou na busca de estruturas discursivas
que abrangessem dita realidade.
O chamado “boom” de publicações do romance latino-americano, momento em que os
escritores desse grupo apresentavam uma literatura cujos postulados deveriam estar aliados a
uma proposta revolucionária no aspecto político, econômico e social no final da década de
sessenta e início da década de setenta, coincidiu no Chile com os anos da experiência
socialista, que enfrentaria forte reação dos militares com o golpe. Segundo Fernando Moreno,
historiador e crítico literário, a literatura chilena nesse momento se volta para o testemunho,
assume uma função de denúncia e resistência. (MORENO, 2002, pp.271-278, passim).
Posteriormente, e iniciado o chamado período de “transição”, já depois do golpe, uma parte da
narrativa chilena continua indagando a história, voltando ao “passado” na tentativa de
questionar o “presente”. A data de 11 de Setembro de 1973 divide a história da literatura no
Chile em dois momentos: antes de 1973 e depois. Também origina uma divisão espacial, pois,
nesse momento, se distingue os escritores que optaram ou se viram obrigados a abandonar o
32
país e os que permaneceram no território e que, apesar das condições sociais em que o país se
encontrava, continuaram desenvolvendo seu trabalho literário.
No ano de 1975, o chileno Antonio Skármeta publica o romance Soñé que la nieve
ardía. Nesse momento, o Chile vive sob o regime de Pinochet e o texto é iniciado em seu país
e concluído na Argentina durante o exílio. Esse romance explora as condições sociais na
cidade de Santiago às vésperas do regime militar mediante a descrição da vida e dos
ideais de um grupo de jovens proletários, urbanos e politicamente comprometidos. O
personagem principal é Arturo, um jovem que chega a Santiago do interior e busca por fama e
riqueza como jogador de futebol profissional. Coincidência ou não, Hernán Rivera Letelier
também escreve um romance impregnado pela atmosfera do futebol: El Fantasista (2006). O
emprego do futebol como metáfora simbólica resulta bastante original uma vez que utiliza a
cultura popular em um romance, não apenas para aproximar os leitores, mas também para
criticar o individualismo e a competição do regime capitalista imposto pela ditadura. O
futebol como “ópio” para manipular a população enquanto o regime torturava e reprimia.
O Romance Histórico no Chile denuncia os mecanismos de representação que operam
no discurso historiográfico oficial, desarticulando suas imagens para mostrar os “vazios” de
uma história parcial. Em consequência disso, ela também representa, o que sugere o caráter
instável e provisório, fruto da representação que exerce um determinado discurso ao
enfrentar-se com o passado. A representação de um determinado momento da história não
possui nem chegará a possuir a verdade sobre dito passado, mas propõe um olhar
contemporâneo ao momento histórico que faz referência dentro da ficção. Um romance, assim
como a história, que serve para “explicar” a realidade, também serve para manipulá-la ou para
integrar uma ideia do passado ao presente, porém nunca será a realidade. Não se trata de fixar
uma imagem mais precisa do passado, mas sim de desmontar toda imagem como algo instável
e provisório.
33
O “Novo Romance Histórico” no Chile propõe fazer uma nova leitura da história em
virtude de um presente “fracturado” que significa a interrupção da democracia a princípios
dos anos setenta. Articular uma visão do passado desde a perspectiva dos setores
marginalizados, de desconstruir a história para denunciar as condições de produção que
determinaram sua escrita, ou mesmo de repensar o passado à luz do que se encontra no
presente. (VIU, 2007, p.127).
Outros livros também relatando o massacre de 1907 foram escritos como Los que van
a morrir te saludan (1997) do historiador chileno Eduardo Deves Valdés, citado no texto, e o
que o próprio Rivera Letelier cita em suas entrevistas: Santa María de Iquique 1907:
Documentos para su historia de Pedro Bravo Elizondo.
Hay un libro fundamental que me sirvió de mucho y que lo escribió un iquiqueño: Pedro Bravo Elizondo. Él es historiador, profesor, ahora hace clases en Estados Unidos. Él se dedicó a investigar esta matanza porque su abuelo estuvo ahí, entonces publicó un libro que se llama Santa María de Iquique 1907: Documentos para su historia (DIBAM), ese libro es importantísimo. Bravo hizo el trabajo que yo tendría que haber hecho y en el que me habría demorado unos diez años. Siempre digo que es como si él lo hubiese hecho para mí especialmente, por eso trato en todas las entrevistas de hacerle un homenaje al autor de este libro. Yo no lo conozco, pero le mando mis saludos desde todas partes.1
Pondo novamente em paralelo o estudo feito por Antonia Viu e Seymour Menton, este
em seu corpus destaca a ausência de “Novo Romance Histórico” no Chile até a data de 1993,
afirmando que os escritores chilenos estão voltados a um passado imediato: o golpe de 1973 e
anos de ditadura. Menciona portanto em seu trabalho o romance Martes Tristes (1985), de
Francisco Simón Rivas, como romance histórico publicado até a conclusão do seu estudo. O
de Antonia Viu sobre o “Novo Romance Histórico” no Chile, ao contrário de Seymour
Menton, observa que os romances históricos chilenos apresentam um paradigma diferente
uma vez que:
La publicación de más de una veintena de novelas históricas en el país desde que Menton hiciera esta afirmación desmiente el interés exclusivo por lo social en desmedro de lo histórico y muestra, a la vez, que la preocupación por el pasado
1 http://www.archivochile.com/Historia_de_Chile/sta-ma2/4/stamacult00009.pdf (Fonte acessada em 21/07/09).
34
inmediato puede seguir estando presente aún cuando se la evoque a través de la invocación de tiempos más remotos. (VIU, 2007, p. 91).
Em conclusão à sua observação sobre a presença significativa de “Novo Romance
Histórico” no Chile, Seymour Menton justifica como uma possível escassez de ditos
romances a preferência chilena tradicional em ficcionar de forma realista a sociedade
contemporânea. (MENTON, 1993, p.47).
Somados ao romance Santa María de las flores negras, os romances de Hernán Rivera
Letelier apresentam como cenário principal de seus enredos o universo das minas do salitre
sempre pela perspectiva dos mineiros, abordando temas como prostituição, música, cinema,
política, futebol, religião entre outros. O tempo está localizado no final da década de sessenta
e início da década de setenta, momento no qual o Chile vive uma curta experiência socialista
com Salvador Allende membro do partido da Unidade Popular (UP), antes da tomada do
poder por Augusto Pinochet.
A contar a partir do ano de publicação de seu primeiro romance: La reina Isabel
cantaba rancheras (1994), o Chile vive outro momento político com o Presidente eleito
Eduardo Frei. Porém os anos sessenta e setenta ficaram marcados no imaginário popular pelas
lutas dos trabalhadores, pelo impulso na modernização do país iniciado no governo de
Salvador Allende, como também os duros anos de medo, censura e repressão vividos pelos
chilenos com o golpe militar de 1973. Santa María de las flores negras, que cita um momento
histórico do Chile e que pelas características do estudo de Seymour Menton é histórica, pois,
traz características como: a ficcionalização de personagens históricos, a intertextualidade, e
um “passado” não experimentado pelo autor; esse “passado”, distante ou imediato citado nos
romances de Rivera Letelier propõem ao leitor contemporâneo uma leitura de seu “presente” a
partir das experiências, vividas por ele ou não, em seu contexto histórico-social.
Para Juan José Saer, em seu livro: El concepto de ficción, não existem romances
históricos, tal como se denomina o romance cuja ação transcorre no passado e que pretende
35
reconstruir uma época determinada. Essa reconstrução do passado não passa de uma simples
projeção, pois, não se reconstrói nenhum passado, simplesmente se constrói uma visão do
passado que é própria do observador e que não corresponde a nenhum grande feito histórico
preciso. (SAER, 1997, pp. 16-17, passim).
Voltar ao passado é comum dentro da narrativa chilena e o tema da ditadura, assim
como todas as questões que a envolvem como torturas, exílio, mortes, queima de jornais,
desaparecimento de líderes sindicais e as lutas trabalhistas, costuram a grande maioria dos
romances históricos chilenos. Uma das propostas do “Novo Romance Histórico” é a de que a
escrita contemporânea é a narrativa de uma nova reflexão do que ficou “às margens” pelo
discurso da História. O romancista tenta preencher os “silêncios” da História ou mesmo,
“gritar ao presente”, lutas e revoluções que parecem esquecidas ou que se quer deixar
esquecer.
A pretensão de escrever romances históricos ou de estar lendo esses romances resulta
em confundir a realidade histórica com a imaginação arbitrária de um passado, nas palavras
de Saer, “perfeitamente improváveis”. (SAER, 1997, pp.9-17, passim). Rivera Letelier,
portanto não tende a evadir-se do presente com a retomada de um fato histórico ocorrido na
primeira metade do século XX, mas que ao fazê-lo, torna o “presente” mais compreensível
mediante um distanciamento metafórico em direção ao “passado”. Com esse retorno ao
passado, o romance propõe uma reflexão sobre o Chile atual. O interesse pela história na
narrativa contemporânea se pode constatar em uma grande quantidade de romances dos mais
distintos autores e nos mais diversos contextos geográficos e culturais. O romance do século
XX se propôs a diversas leituras do passado que vão desde a homenagem à paródia do
discurso historiográfico. (VIU, 2007, p.232).
O romance histórico recente no Chile proporciona em suas diversas manifestações
uma variedade de tipologias que foram estudadas como subgêneros independentes, entre elas
36
está o “folhetim histórico” (VIU, 2007, p.76). Este, faz parte de uma tendência popular na
narrativa histórica do século XIX, na qual o elemento histórico aparece paralelo a histórias
sentimentais e de aventuras, que desde de sua origem, teve como virtude atrair leitores
pertencentes às massas.
2.4. HISTÓRIA E MEMÓRIA NOS ANOS PÓS-DITATORIAIS
Solo hay historia de lo grandilocuente, de lo visible, de actos que terminan en catedrales y desfiles, por eso es tan banal el sentido de la historia que se construyó para consumo oficial. Los perros del paraíso, Abel Posse.
Rivera Letelier se propõe a narrar a partir de uma “perspectiva democrática da
memória”. Segundo Hugo Achugar, uma memória democrática que tentasse contar a história
do país, ou da ditadura pela qual passou este país, ou da restauração, ou do conjunto da
história nacional, deveria contar a história como uma história múltipla e, por isso mesmo,
contraditória. (ACHUGAR, 2006, p.161). O desafio é, e continua sendo, uma história que não
seja fragmentária, que não tenha um ponto de vista que silencie ou que esqueça os outros, que
seja, portanto, democrática. A “memória democrática”, seguindo o pensamento de Hugo
Achugar, não pode permitir-se o esqueciemento. (ACHUGAR, 2006, p.162). A memória,
sobretudo quando além disso, é uma memória nacional, enfrenta o desafio da construção da
identidade. Para Daniel Mato, as identidades são produtos de ações sociais e não de
fenômenos naturais, nem tampouco reflexo das condições materiais (MATO, 1994, p.18).
Trata-se, no entanto, de construções permanentes em toda sociedade, não isentas de conflitos
e disputas. Uma identidade cultural em processo de formação segue sempre em busca de
novas formas de consolidação.
37
Em Santa María de las flores negras, Hernán Rivera Letelier apresenta personagens e
acontecimentos pertencentes ao passado histórico do Chile. No entanto, põe em evidência
problemas vinculados ao âmbito dos comportamentos culturais dos trabalhadores das minas
do salitre no deserto de Atacama. O autor tenta construir em suas páginas o sentir de uma
coletividade por meio do “canto”, o “falar” desses trabalhadores.
Escrito no ano de 2002, ano em que o Chile vive um processo chamado: “Milagre
Chileno” no governo de Ricardo Lagos vinculado ao partido socialista e eleito presidente em
2000, Santa María de las flores negras chega às livrarias de Santiago com um enorme
sucesso de vendas. O Chile, pioneiro na liberalização econômica, seu capitalismo globalizado
tem como principal sustentáculo ideológico o neoliberalismo, que basicamente propõe total
liberdade às leis de mercado e mudanças no papel do Estado, limitando a intervenção deste na
esconomia. Percorreu um variado ciclo político, que inclui a economia agrária, a mineira e seu
componente operário, a democracia política, a ditadura militar e um regime “híbrido” entre
estas duas últimas, instalado desde 1990. País que faz fronteira com Bolívia, Argentina e
Perú, o Chile vai ao longo de sua história social e política nacional dando pouca ênfase a
tragédias como a da Escola Santa María de Iquique. O personagem José Santos Elizondo em
conversa com Olegario Santana após o massacre afirma
Que despúes los mandamases van a querer echar tierra sobre esta masacre horrenda, pero ahí estarán ellos entonces para contársela a sus hijos y a los hijos de sus hijos, para que éstos a su vez se lo transmitan a las nuevas generaciones. Esto lo tiene que saber el mundo entero compañerito, dice emocionado el hombre. (RIVERA LETELIER, 2007, p.269).
Para Hugo Achugar, a chave está no “monumento”. O que este representa, ou melhor, o que
este contribui para a construção da memória de um país. No monumento e naquilo que vem
atrás dos que construíram o monumento (ACHUGAR, 2006, p.168).
Sin embargo, los que caímos en la escuela —junto a los que murieron después a causa de sus heridas, y a los que se fueron muriendo con el tiempo, de pura tristeza—, sabemos bien que, aunque se esgrima toda clase de pretextos para negar o justificar esta aniquilación feroz, y los responsables pasen a convertirse en héroes patrios, y con el tiempo se llegue a bautizar calles, plazas y regimientos con
38
sus nombres, con el nombre del general asesino —que ordenó hacer fuego sin tener nada que reprimir, sólo impresionado por el agitar de las banderas y la gritería de la muchedumbre— y con el nombre del presidente cómplice que lo premió enviándolo de agregado militar a Alemania —«Ha cumplido usted con los deberes inherentes a su cargo en forma que hace honor a su criterio y energía», le expresó solemnemente al comunicarle su designación— que aunque se eche mano a todo para olvidarnos —incluso a la ignominia de levantar un monumento al capitalismo sobre la fosa en que descansan nuestros huesos—, sabemos que nuestra muerte no será del todo inútil, y que más tarde o más temprano será cantada y contada al mundo entero, y el mundo entero sabrá que esta matanza perpetrada un 21 de diciembre de 1907, en los recintos de la Escuela Santa María. (RIVERA LETELIER, 2007, p.284).
O monumento como símbolo unindo passado e futuro informa aos que chegarem
depois o que aconteceu, fazendo com que tempo e esquecimento sejam vencidos e a memória
mantida. A proposta de Rivera Letelier, noventa e cinco anos depois do massacre, próximo ao
seu centenário, foi publicar um romance em que ele próprio, como filho de trabalhador
mineiro, escreve a memória do salitre que segundo Hugo Achugar “como um lugar a partir de
onde se fala”. (ACHUGAR, 2006, p.167). Reproduz o cotidiano dos trabalhadores de
“dentro”, uma maneira de contar um fato que já é conhecido, porém, desde outra perspectiva.
Personagens “comuns” como Olegario Santana, um velho que vive com dois urubus em uma
casa muito pobre no alojamento de uma usina de extração do salitre. Pessimista, não acredita
que com a greve o problema dos mineiros irá ser solucionado. Gregoria Becerra, também
viúva e mãe de dois filhos, ao contrário de Olegario Santana acredita que a força de todos, a
luta por melhores condições de trabalho pode mudar o cenário de exploração no qual estão
vivendo há anos. Liria María e Idilio Montaño, o jovem casal que vive um romance durante a
travessia pelo deserto, estão em um mundo à parte, de sonhos e planos futuros bem distantes
da dura realidade em que se encontravam.
Escrever um romance citando o massacre dos mineiros na Escola Santa María em
1907, assim como toda uma época de exploração e injustiças sociais que ainda perpetuam nos
dias atuais na história trabalhista do Chile, faz com que seu texto não apenas conte a história
de milhares de trabalhadores que foram fuzilados pelas tropas do exército quando lutavam por
melhores condições, mas sim propõe uma reflexão do “presente”. Avaliar o passado é central
39
na construção da memória como uma forma de refletir o futuro. Uma reflexão destinada a
compreender a luta social e política que hoje os trabalhadores e setores populares
empreenderam contra a atual dominação capitalista neoliberal. No neoliberalismo, o Estado
tem o papel de institucionalizar os mercados e se descompromete, em grande parte, com os
investimentos sociais, reduzindo cada vez mais suas obrigações.
Memória e poder se entrelaçam na era “pós-moderna”. O poder manipula a memória.
Para Daniel Mato, as identidades são produtos de processos sociais de construção simbólica e,
portanto, se diferenciam umas das outras na maneira como são construídas (MATO, 1994,
p.19). As identidades se constroem a partir das representações. Com efeito, o massacre na
Escola Santa María constitui um ponto de inflexão e de ruptura na história política das lutas
sociais dos trabalhadores e dos setores nacionais do Chile.
2. 5. O CENÁRIO ECONOMICO EM SANTA MARÍA DE LAS FLORES NEGRAS
LOS HOMBRES DEL NITRATO
Yo estaba en el salitre, con los héroes oscuros, con el que cava nieve fertilizante y fina
en la corteza dura del planeta, y estreché con orgullo sus manos de tierra.
Ellos me dijeron: "Mira, hermano, cómo vivimos,
aquí en «Humberstone», aquí en «Mapocho», en «Ricaventura», en «Paloma»,
en «Pan de Azúcar», en «Piojillo»".
Y me mostraron sus raciones de miserables alimentos,
su piso de tierra en las casas, el sol, el polvo, las vinchucas,
y la soledad inmensa.
40
Yo vi el trabajo de los derripiadores, que dejan sumida, en el mango
de la madera de la pala, toda la huella de sus manos.
Yo escuché una voz que venía desde el fondo estrecho del pique,
como de un útero infernal, y después asomar arriba una criatura sin rostro,
una máscara polvorienta de sudor, de sangre y de polvo.
Y ése me dijo: "Adonde vayas, habla tú de estos tormentos,
habla tú, hermano, de tu hermano que vive abajo, en el infierno".
Pablo Neruda
Rivera Letelier apresenta como cenário político de seu romance o Chile do início do
século XX às vésperas do primeiro centenário da independência nacional, e em consequência
disso, “a questão social” no país não poderia ser mais presente. Nas minas do salitre do Chile,
prata, carvão e cobre nas empresas portuárias, nas fábricas de Santiago, Valparaiso, Viña del
Mar, Concepción e outras cidades, uma classe trabalhadora que começava a aderir às
ideologias do socialismo e do anarquismo, encontrava-se em plena formação. Desde 1930,
diante da proliferação de greves e movimentos de protesto, o Estado preocupado com a
manuntenção da ordem social, reagiu às reivindicações proletárias com sucessivos massacres.
Nas primeiras décadas do século XX, a economia chilena era incentivada pelo capital
estrageiro e o imperialismo inglês financiava a mineração do salitre. Essa relação de
exploradores e explorados perpetuou por gerações. A política de dominação influenciou nos
costumes e principalmente na maneira de pensar do povo chileno que se via diante da pobreza
das regiões salitreiras com a falta de escolas, de hospitais, segurança no trabalho, melhores
salários, e do lado oposto a riqueza dos que detinham o poder. O poder e o dinheiro
representado pelas grandes empresas multinacionais controlado pelas mãos de estrangeiros,
que vindo de países mais desenvolvidos e industrializados, exploravam a classe operária.
41
A indústria mineradora concentra grandes contingentes de trabalhadores em zonas
desérticas, cenário de Santa María de las flores negras e de quase todos os romances de
Hernán Rivera Letelier. A exploração do salitre requereu a transferência de grande número de
trabalhadores do centro e do sul do país. Pelas características áridas da zona salitreira, esses
trabalhadores dependiam totalmente de abastecimento externo. A concentração da
classe operária favoreceu o desenvolvimento das organizações dos trabalhadores, desde suas
primeiras formas de associação cooperativa até os partidos políticos de esquerda.
A organização operária no Chile começou a desenvolver-se na segunda metade do
século XIX, de forma mais concentrada depois da Guerra do Pacífico e do incremento da
exploração do salitre. Depois da vitória na Guerra do Pacífico, se produz no Chile, graças à
guerra civil de 1891, o triunfo de ideias parlamentarias sobre o presidencialismo. A política
das três décadas seguintes se apoiou em um novo período de crescimento fundamentado nas
exportações, devido ao enorme volume que alcançou o comércio do salitre acompanhado de
uma inevitável diversificação social cujos principais sintomas foram o surgimento da classe
média, ainda pequena, e um movimento trabalhista militante. Na entrada do século XX
multiplicaram-se os choques com as forças do governo, que não reconhecia o direito legal de
existência das organizações operárias. O massacre da Escola Santa María logo no início do
século surge como um dos marcos do processo de acirramento da classe operária.
O tema da guerra do Pacífico (1879 – 1883) é constante nos romances históricos do
Chile e Rivera Letelier não o deixa de lado. Após a Guerra do Pacífico com o Peru e a Bolívia
o país estendeu seu território para o norte e incorporou as riquezas do salitre e do cobre. A
consequência mais importante da guerra do Pacífico foi a incorporação da exploração do
salitre cujas minas se encontravam concentradas nas zonas integradas ao território chileno. O
eixo da economia do país muda da agricultura para a mineração, cujo controle do capital
estava com os ingleses. O domínio do capital estrangeiro ao único produto de maior
42
exportação, que era o salitre, designado como o “ouro branco” foi exposto no texto de Hernán
Rivera Letelier como tema de uma conversa entre os grevistas. Como uma história narrada
dentro de outra, é apresentado ao leitor John Thomas North, o rei do salitre. Esse industrial
provocou a queda de Balmaceda, o último presidente que tinha como projeto de governo
nacionalizar o salitre. A presença de estrangeiros no governo chileno também é mencionada,
assim como as alianças que eram formadas para explorar e “sabotar” qualquer projeto de
valorização do produto nacional aproveitando-se das relações comerciais estabelecidas entre
Chile e Peru com a guerra do Pacífico.
O monopólio estrangeiro se apoderou das usinas de maior produção e todo o lucro era
destinado ao mercado externo. Ao Chile só era reservado o direito de exportar, condição que
sofreu pouquíssima evolução de 1907 aos dias atuais. A organização operária no Chile
começou a desenvolver-se na segunda metade do século XIX, de forma mais concentrada
depois da guerra do Pacífico e do aumento da extração do salitre.
Em várias conversas no interior da escola, os trabalhadores mais velhos contavam a
história do salitre aos mais jovens como uma maneira indireta encontrada por Rivera Letelier
de abordar a história, o que faz com que o leitor relativize a “veracidade” histórica do texto.
Ese rastacueros inglés es el mejor ejemplo de lo que les digo. Se llamaba John Thomas North y se hacía llamar el "Rey del Salitre". Ese plebeyo soberbio fue el que instigó y facilitó armas y libras esterlinas (para conseguir la caída de Balma-ceda, el último presidente honrado de Chile, quien, previendo los atropellos de los industriales extranjeros, tenía proyectado nacionalizar el salitre. Y pensar, mis queridos jóvenes, que cuando ese aventurero llegó a Valparaíso traía apenas veinte mugrosas libras en el bolsillo. Primero trabajó de mecánico en el ferrocarril de Caldera por cuatro pesos diarios, y luego se vino a la pampa, en donde fue contratado como jefe de máquinas en la oficina Santa Rita. Aquí conoció a otro súbdito inglés llamado Roberto Harvey, alto funcionario del gobierno chileno, individuo sin escrúpulos que, abusando de la autoridad de que lo revestía el alto puesto que le había confiado el gobierno, se asoció a Thomas North para trabajar en la oficina La Peruana. Amparados por el Banco de Valparaíso, el par de bribones se dedicó, más que a trabajar la oficina, a especular con los títulos salitreros expedidos por el Perú. Confiados en la rectitud del gobierno de Chile para cumplir sus compromisos como vencedor de la Guerra del Pacífico, North y Harvey adquirieron gran cantidad de títulos a muy bajo precio. Después, al reconocer el gobierno el derecho de propiedad de dichos títulos, hizo ricos de la noche a la mañana a estos especuladores del carajo. (RIVERA LETELIER, 2007, p.132).
43
O salitre era uma mercadoria especulativa e a saúde da indústria dependia da fortuna
econômica dos principais clientes do Chile: Alemanha, Estados Unidos, França e Bélgica.
Dado que o salitre era essencial na produção de explosivos, o comércio do salitre foi o
verdadeiro motor da economia chilena durante muitas décadas. Equiparando os dois
momentos entre a economia chilena em 1907 e hoje, percebe-se que ambos são períodos de
grande bonança econômica para a classe dirigente. Hoje como há mais de cem anos atrás, o
Estado e a classe dirigente dispõem de enormes riquezas. Antes era a exportação do salitre e
hoje é a exportação de cobre e outros recursos naturais.
44
3. CAPÍTULO 2
SANTA MARÍA DE LAS FLORES NEGRAS E O ROMANCE FOLHETIM
3.1 A LITERATURA DE FOLHETIM
A literatura folhetinesca surgiu na França em resposta a um público consumidor. Lida
por todos, aumentou significativamente a tiragem dos jornais em que era publicada, atingindo
seu ponto máximo durante o romantismo. O “folhetim histórico” tem sua origem no folhetim
francês, uma das formas de publicação vigentes no século XIX que ao ser implementado no
Chile permitiu a divulgação de um considerável número de romances europeus e locais que
apresentavam um caráter histórico. Em seguida, é usado o termo “romance de folhetim” para
definir textos que apesar de não serem publicados de forma fragmentada, conservavam as
características de composição que a publicação em fascículos exigia para manter a expectativa
do leitor. (VIU, 2007, p.76).
Seu início data da pós-revolução burguesa de julho de 1830, a qual coincide com o
estouro do romantismo, já então na fase chamada “romantismo social”. Vai desembocar no
não menos romântico estouro da Revolução de 1848, suas glórias republicanas em fevereiro e
o massacre operário em junho. Acontece o golpe de 18 de Brumário de Luis Napoleão
Bonaparte e o romance-folhetim, censurado por uns tempos, vai ressurgir com a etiqueta
pejorativa de “romance popular”.
Como características, o romance-folhetim põe um narrador que conduz a narrativa, e
em alguns casos, é parte integrante e conhecedor de todo o enredo. No aspecto formal é
comum o uso de repetições, ordem cronológica linear dos acontecimentos e a estrutura binária
45
de fortes oposições maniqueístas: pobres bondosos e malvados aristocratas. Os personagens
tornam-se “tipos”, guardando sempre as mesmas características. A unidade assim conseguida
na repetição mecânica permite a leitura rápida sem exigir esforço do leitor.
Entre os romances folhetinescos, os argumentos costumam ser de caráter
“sentimental” quando o eixo principal da narração é um conflito amoroso em que o desenlace
está precedido por um ou vários obstáculos que dilatam ou impedem a união entre o casal
protagonista; ou de “aventuras”, em que o protagonista é o eixo que articula uma série de
peripécias encadeadas que o colocam em situação de perigo que deverá superar (MEYER,
1996, p.74).
O romance-folhetim se refere a narrativas que têm seus enredos inspirados em
acontecimentos históricos, que oferecem aventuras ou mesmo um cenário propício para um
conflito amoroso, sem que isso signifique uma reflexão sobre o passado ou as condições
sociais ou históricas que deram lugar a esses acontecimentos. Segundo Marlyse Meyer os
personagens dos romances de folhetim estão divididos em dois blocos: há o bom nobre e o
horrível vilão.
O caráter folhetinesco do romance também provém de que o folhetim era de caráter
popular. Um historiador do movimento operário, Edouard Dolléans, situa entre 1830 e 1871 o
duro caminho de luta para a organização operária. São esses também os marcos que, a grosso
modo, assinalam diferentes aspectos do romance-folhetim. Seu nascimento, elaboração,
apogeu, morte e ressurreição, coincidem com três séries de datas 1836 – 1850,
1851 – 1871 e 1871 – 1914. Seus personagens passam por simplificações que os anteriores
não conheciam, como a clareza nas descrições psicológicas em determinar bons e maus, e o
relato das “tragédias populares”. Rivera Letelier, portanto, se utiliza desse recurso para
conduzir seu romance.
46
Os personagens de Santa María de las flores negras seguem fieis às suas
características do começo ao fim. Olegario Santana com seu traje negro, aves de mau agouro
que o acompanham durante sua trajetória simbolizando além do pessimismo que demonstra
desde o início da greve, o domínio das autoridades locais e estrangeiras.
Santa María de las flores negras não foi publicado em fascículos, como o folhetim do
século XIX, porém, apresenta características deste gênero literário. O uso de uma linguagem
mais acessível, histórias e personagens que fazem com que o leitor se identifique com elas,
conduzem a um romance de fácil consumo.
Hernán Rivera Letelier utiliza o “folhetim histórico”, um gênero literário em moda no
século XIX, abordando em sua ficção um tema sócio-político, o massacre de mineiros no
início do século XX, publicando esse texto no século XXI, às vésperas do centenário do
massacre e no momento em que o país vive um período de ascensão com Reformas sociais no
governo de Ricardo Lagos. A divisão do romance em três partes, como em um folhetim, a
epígrafe extraída da letra da “Cantata Santa María de Iquique”, os personagens com perfis
determinados: o positivo e o negativo, o bem e o mal compõem o universo da ficção e
determinam o público que pretende atingir. “Señoras y señores, venimos a contar/ aquello
que la historia no quiere recordar”.
Tema recorrente na narrativa chilena mencionado por Seymour Menton em seu estudo
sobre o romance histórico hispano-americano é o que remete a um passado imediato. A
experiência do governo da Unidade Popular com o presidente Salvador Allende seguida
pelo golpe de 1973 e a ditadura instaurada, norteiam grande parte dos romances publicados no
Chile a partir da década de setenta. A remissão à história do passado é lida como metáfora do
presente, para oferecer outra versão, reforçando os laços entre a literatura e mímesis histórica.
O discurso da História é um dos impulsores do texto ficcional contemporâneo, principalmente
no que se refere ao “trauma” sofrido pelos anos de ditadura nos países latino-americanos.
47
No caso do Chile, que fez com que sua sociedade sentisse o peso de um regime
autoritário, a ditadura do general Augusto Pinochet (1925 – 2006), é considerada como uma
das ditaduras mais sangrentas dos países latino-americanos. País que teve grande parte de seus
intelectuais, entre eles escritores ativos, forçados ao exílio. Com isto, o imaginário é
enriquecido e aprofunda-se ao mergulhar no referente e reescrevê-lo dialeticamente, para
assim transgredir os códigos do realismo canônico dialogando com o passado, tornando-o
presente, permitindo que a ficção colabore com o fortalecimento da memória e construção da
história nacional.
Na visão de Juan José Saer, os escritores que fazem ficção não fazem para
confundir o leitor, e sim para assinalar o caráter duplo da ficção que mescla de um modo
inevitável o empírico e o imaginário. O paradoxo próprio da ficção reside em que se recorre
ao falso, e faz para aumentar sua credibilidade. Em comparação com a historiografia que
costuma ser a expressão da ideologia oficial, o romance apresenta possibilidades que
ultrapassam as da época (baseada nas verdades “inquestionáveis” do passado). História e
ficção são discursos que se encontram por suas práticas, a ficção a organizar a História e esta,
uma narrativa em que os fatos são construções de sentido e não acontecimentos irrefutáveis.
(SAER, 1997, p.11).
A questão das relações da literatura, através da ficção, com a História, é um dos
temas contemporâneos essenciais do processo indagador dos países hispano-americanos sobre
um passado que oferece as explicações do presente, e potencializa os caminhos de um futuro.
O romancista ao tentar ficcionalizar o discurso da História faz com que suas ideias cheguem
de forma abrangente a um grande número de leitores.
Em Santa María de las flores negras, a história e a ficção se entrelaçam, se unem
para questionar um presente que já se distancia dos verdadeiros ideais revolucionários vividos
em um curto e frustrado período socialista encabeçado por Salvador Allende. Aos moldes
48
realistas, Hernán Rivera Letelier transporta seu público leitor, composto no início de sua
carreira literária, principalmente pelos mineiros e por pessoas que têm suas raízes familiares
ligadas a extração do salitre, a um universo imaginário fincado na cultura popular, no
folhetim, nas cantatas populares e nas lutas de classe. Hernán Rivera traz ao século XXI um
dos massacres vividos pelos trabalhadores no início do século XX e que por muitos anos foi
lembrado pela “Cantata Santa María de Iquique”. O tema já é conhecido pelo imaginário
popular, a luta de classes, a exploração dos mineiros pelo capital estrangeiro, a miséria, o total
desacordo entre a vida desses mineiros nos acampamentos das usinas e a vida dos
trabalhadores do restante do país.
Esteticamente, o realismo propõe que o trabalho do autor tenha correspondência
com o real, um esforço por colocar o mundo objetivo, a forma que o representa e a
experiência vivenciada pelo leitor no momento da leitura, em um mesmo plano. Em suas
origens, o realismo europeu foi uma tentativa de descrever a vida contemporânea,
principalmente a vida urbana contemporânea, ainda que retomando características do
romantismo, como a pintura dos personagens em situações típicas do espaço geográfico no
qual se localizam. O realismo hispano-americano, no entanto, expõe como forte característica
sua clara intenção moral, e tem uma grande importância na literatura de protesto, atuando sob
a forma documental, ou seguindo uma linha de pensamento socialista que reflete
principalmente a luta de classes e a exploração de trabalhadores. (FRANCO, 1987, p.210). Ao
representar no seu texto a linguagem popular, a descrição do ambiente, no caso, do deserto de
Atacama, tanto aproxima o leitor que não convive com aquele cenário, como também o leva a
criar uma imagem do local:
Más allá sólo se extiende la soledad infinita de las arenas y la ilusión fatídica de los espejismos del desierto”; “arriba, en el cielo, dejándose llevar cada vez más alto en las corrientes de aire tibio, los jotes comienzan a alejarse hacia el interior de la pampa en busca de carroña, mientras sus sombras, entrecruzándose en el suelo, van rayando la blancura infinita de las planicies salitreras. (RIVERA LETELIER, 2007, p. 15).
49
Sete personagens que representam um grupo social específico conduzem o fio
narrativo. Cada um com características bem marcadas e traçadas para o desenvolvimento do
texto que levará ao que Rivera Letelier propôs para sua obra: uma reflexão sobre o Chile atual
aos moldes de um sistema neoliberal que conduz a sociedade ao consumo massivo. Uma
sociedade que ao olhar para o futuro prefere deixar esquecidas as verdadeiras lutas sociais, o
sentido da revolução trabalhista que levou a morte e ao exílio mártires da revolução socialista.
Na construção de sua ficção, Hernán Rivera Letelier em Santa María de las flores
negras também se cerca de detalhes da época como quando faz referência ao jornal El Pueblo
Obrero que foi incendiado intencionalmente quando era dirigido por Osvaldo López, um
grande jornalista, militante e poeta chileno do início do século XX. O mesmo que segundo a
voz narrativa do texto, um “sobrevivente do massacre”, escreveu o romance socialista
Tarapacá, que “enjuicia al clero y a la oligarquía y se adelanta en el tiempo a este gran sueño
de unidad que ahora mismito estamos viviendo los trabajadores pampinos” (RIVERA
LETELIER, 2007, p.36). Esse trecho extraído do romance coloca em evidência a intenção do
livro e para quem está escrito. Põe a voz coletiva que narra o texto, para contar fatos que
foram estopim para o desencadeamento das lutas dos trabalhadores no Chile no início do
século XX, e que o leitor contemporâneo, ao estar em contato com esse texto, possa
estabelecer evidências e fazer comparações com os dias atuais: o que mudou de lá pra cá? Um
olhar crítico ao presente por intermédio de lentes que refletem o passado.
Uma das características do romance realista é a utilização de uma linguagem sem
“rebuscamento”, clara, objetiva e o mais próximo do coloquial. Os romances de Rivera
Letelier possuem um universo próprio: a região norte do Chile, o deserto de Atacama, a vida
miserável no interior dos acampamentos das usinas de extração do salitre e a busca incansável
de representar em seus textos a linguagem que mais se aproxima da oralidade dos
trabalhadores. Um fato importante que já foi mencionado anteriormente, mas que não pode
50
ser deixado de lado é o de que Hernán Rivera Letelier trabalhou durante sua adolescência em
uma usina, e que com isso conheceu de perto as injustiças dessa camada da sociedade que
explora em seus romances. Santa María de las flores negras explora a linguagem dos
“pampinos”, porém com uma sonoridade poética marcante como no poema recitado por um
dos grevistas o qual é apresentado aos leitores como o poeta cego Rosario Calderón.
Soy el obrero pampino/ por el burgués explotado/ soy el paria abandonado/ que lucha por su destino; / soy el que labró el camino/ de su propio deshonor/ regando con su sudor/ estas pampas desoladas; / soy la flor negra y callada/ que crece con su dolor...” (RIVERA LETELIER, 2007, p.37).
Logo na primeira página do romance é apresentado Olegario Santana, um
personagem introspectivo, solitário, que guarda um segredo que só será revelado ao final do
romance. Um possível ex-combatente da Campanha de 79, momento histórico frequente
mencionado na literatura chilena, cinquenta e sete anos, veste-se sempre de preto e vive na
companhia de dois urubus. A única coisa que faz é explodir, triturar e carregar pedras com
uma religiosidade jamais vista:
Nadie sabe en qué se gasta lo que gana. El único malbaratamiento que se le conoce públicamente son los cuarenta Yolanda que se fuma al día, y que le tienen los dientes y sus negros mostachos de alambre manchados de nicotina. (RIVERA LETELIER, 2007, p.13).
É pessimista em relação à greve dos mineiros, pois acredita que jamais o poder das
oligarquias irá ceder aos pedidos dos grevistas, e que toda reivindicação será inútil. O mais
curioso é que mesmo desacreditando na força da revolução, Olegario segue os companheiros
em uma épica odisseia pelo deserto de Atacama rumo a Iquique:
De un día para otro, nuestro movimiento de reivindicación proletaria tomaba una fuerza inesperada, se convertía en uno de esos gigantescos remolinos de arena que diariamente cruzaban las llanuras pampinas. Era por fin la unión de los trabajadores salitreros que esperábamos y soñábamos desde hacía años. (RIVERA LETELIER, 2007, p.28).
Uma verdadeira caravana de homens, mulheres e crianças que atravessavam uma das
paisagens mais inclementes para exigir seus direitos trabalhistas.
51
Ufanos de esta gesta proletaria, nuestro paso era el paso ronco de los astros en su tránsito por el universo. Como el trueno de una nueva aurora levantándose libre en las comarcas de la pampa, según recitaría después, llorando de pura humanidad, don Rosario Calderón, el poeta ciego. (RIVERA LETELIER, 2007, p. 47).
Olegario é um observador atento, cauteloso, uma figura racional, e por percorrer
toda a caminhada no deserto com seu paletó de cor negra, sem tirá-lo para nada, representa
uma simbologia de negatividade, como o voo dos urubus sobre o telhado da sua casa nas
primeiras linhas do texto. Do início ao fim sua postura diante da greve é negativa e está certo
de que toda aquela manifestação será inútil e acabará com uma enorme tragédia.
Sua figura é marcante, um personagem forte que destaca no texto uma determinada linha de
pensamento em relação à greve:
Debo decirle que siempre he sido un pesimista del carajo – comienza a confesarse Olegario Santana- . Pero eso me lo ha enseñado la vida. Si estoy aquí es solo por inercia. Todo esto que se está haciendo, la huelga, los mítines, la marcha a través del desierto, querer levantar y unir a la pampa en una gran lucha contra la explotación, me parece un sueño imposible. (RIVERA LETELIER, 2007, p.173).
Domingo Domínguez, cinquenta e dois anos, é um dos personagens mais populares
da usina de São Lourenço. Nele, está aflorada a paixão pela música não só popular, mas
também erudita, traço marcante na cultura popular chilena e que Rivera Letelier tem a
intenção de reproduzir na maioria de seus relatos. Domingo Domínguez é sócio ativo do
quadro artístico da Filarmônica, segundo diretor da sociedade de veteranos de 79, porta-
estandarte da confraria da Virgem de Carmem, presidente da comissão de ornamentação e
limpeza das festas pátrias e representante do time de futebol da usina. Figura emblemática e
caricaturesca que não perde o bom humor mesmo diante de tanta miséria. Em seus discursos
durante a greve, Domingo Domínguez não se mostra nem pessimista, tampouco otimista. Sua
posição é a de que é preciso fazer justiça e para isso ali estão:
Mis palabras son la expresión sincera del obrero que, vegetando en las candentes arenas del desierto, como ha dicho el mismo señor abogado, ha venido aquí nada más que a reclamar justicia. No somos una tracalada de salvajes sin Dios ni ley, ni traemos bandera de exterminio para nadie, sólo queremos algo tan simple como que se nos pague un salario justo, a tipo de cambio de 18 peniques, que es la cosa más legítima del mundo. (RIVERA LETELIER, 2007, p.191).
52
Com o personagem José Pintor, viúvo, Rivera Letelier abusa da crítica ao clero. O
casal de urubus de Olegario Santana é visto por José Pintor como os sacerdotes que sempre se
vestem de cor negra. Esse personagem em vários momentos da história refere-se à instituição
sempre de forma pejorativa e como uma propagadora do analfabetismo no interior das usinas.
Tamanho é o repúdio, que coleciona letras de canções, acrósticos e toda classe de poesias
publicadas principalmente na imprensa trabalhista que ridiculariza os sacerdotes. Para José
Pintor “el santuario del hombre debe de ser el taller y su incienso el humo de las usinas”.
(RIVERA LETELIER, 2007, p.55). Com isso, é dada ao leitor a informação de que no interior
dos acampamentos existia um jornal voltado para os trabalhadores, ou melhor, escrito pelos
trabalhadores: El Pueblo Obrero, onde estavam as notícias da região e principalmente suas
reivindicações trabalhistas.
Na travessia pelo deserto, vários grupos de grevistas se aglomeraram, ou seja,
várias usinas como a de Santa Lucía, La Perla, San Agustín, Esmeralda, Santa Clara e Santa
Ana, estão representadas formando um único grupo, mais de dois mil mineiros. A greve
começou na usina de São Lourenço onde trabalhavam Olegario Santana, Domingo
Domínguez e José Pintor. Pelos dois últimos, é apresentado a Olegario, o jovem Idilio
Montaño que há poucos meses havia sido o vencedor de um campeonato de pipas. Filho de
pai boliviano e mãe chilena, a qual o abandonou quando o jovem Idilio tinha apenas quatro
anos. Dois anos depois seu pai desaparece na cordilheira contrabandeando folhas de coca.
Idilio a partir de então cresceu com a avó e jamais esteve em uma escola, porém aprendeu a
ler sozinho. Durante o trajeto em direção a Iquique muitos morreram, pois seus corpos já
fracos, seus pulmões tomados pela fumaça do salitre, não conseguiram resistir ao calor
intenso do deserto. A falta de água e comida dificultava a sobrevivência.
A una mujer de la oficina Santa Clara se le había muerto una guagua de dos meses en el camino y, asistida piadosamente por su marido y por otras mujeres de su oficina, llegó dando gritos desgarradores y presentando el cuerpecito de la criatura como si fuese su propio corazón arrancado del pecho. (RIVERA LETELIER, 2007, p. 67).
53
No entanto, em um cenário onde o natural seria lamentar a morte, também se
celebrou a vida com o nascimento de várias crianças. É pelas mãos de Idilio Montaño que
uma criança nasce em meio à travessia pelo deserto, para somar aos milhares de chilenos,
bolivianos e peruanos rumo a Iquique. Idilio Montaño, um jovem como o próprio nome
remete, vive de sonhos, possuidor de uma visão poética da vida, para ele, até mesmo o casal
de urubus de Olegario Santana é visto como algo positivo.
Em uma das paradas para descanso, Olegario Santana, Domingo Domínguez, José
Pintor e Idilio Montaño, são apresentados a Gregoria Becerra, amiga de José Pintor. A
matriarca vem na companhia de seus dois filhos: Liria María, dezesseis anos e Juan de Dios
de doze. Pouco a pouco, Rivera Letelier vai apresentando cada um dos personagens,
estabelecendo seus perfis e, principalmente, a postura e o nível de consciência política de cada
um.
Gregoria Becerra é oriunda de Talca e logo se familiariza com o grupo de grevistas
e os convida a descansar em sua casa enquanto a caminhada recomeça. A eles conta o
sofrimento de sua vida desde a morte por acidente de trabalho de seu esposo, triturado entre
os ferros do triturador de calinche, até o assédio sofrido por ela e sua filha por um dos
diretores da usina como forma de pagamento pelo emprego concedido a Gregoria. Esta,
resolveu entrar na greve, pois já não suporta o sofrimento e os abusos que se cometem
diariamente nas usinas como o não pagamento da indenização por morte em acidente de
trabalho, e ainda subtraírem uma alta porcentagem do miserável salário para que possam ter
assistência médica.
Hernán Rivera Letelier busca na figura feminina a força para seu discurso de
esquerda. É com Gregoria Becerra que o sonho da revolução proletária ganha amplitude no
texto. Uma mulher viúva, dois filhos, vivendo na mais crua pobreza do deserto, já sem
54
perspectiva de vida, grita a seus companheiros que a única forma de se alcançar êxito no
conflito é a de permanecerem unidos e a uma só voz enfrentarem os barões do salitre.
Rivera Letelier não economiza em descrições ao apresentar o acampamento dos
trabalhadores na usina de San Lorenzo, um lugar onde a miséria prevalece, não há escolas,
não há hospitais e não há respeito pelos direitos trabalhistas. Além das casas “de calaminas
aportilladas y palos de pino Oregón” (RIVERA LETELIER, 2007, p.34), o que existe é
exploração, o abandono, o desequilíbrio entre a vida desses usineiros e a vida dos outros
chilenos na cidade, e como protagonistas, um grupo de usineiros lutando por seus direitos
contra um sistema político que os massacra e explora.
Essa análise é bastante conhecida pelos leitores pois, essas condições de
sobrevivência e exploração da grande massa trabalhadora ultrapassaram os séculos e seguem
iguais. Hernán Rivera Letelier, volta àquele ponto do passado (o massacre dos mineiros em
Iquique) porque ver nele o começo de um novo presente. Retoma esse episódio na tentativa de
por diante dos olhos de uma sociedade neoliberal, marcada por altas transformações e
tendências tecnológicas, esse olhar para a História e a literatura, utilizando a experiência dos
dias de hoje, como que propondo uma abordagem contemporânea do passado para refletir o
presente. O autor de Santa María de las flores negras direciona o leitor a uma abordagem do
passado mas, no entanto, propõe essa leitura aos dias atuais em um entrelaçar entre a
ficção/não-ficção.
Voltando às observações de Juan José Saer, este em seu ensaio El concepto de ficción,
coloca o leitor diante de diferentes termos como verdade/falsidade; ficção/não ficção;
objetividade/ subjetividade; empírico/imaginário e a partir desses termos, localizar a ficção. A
“verdade” pertencendo ao campo do objetivo e o “ficcional” ao subjetivo. (SAER, 1997,
p.11).
55
Um dos pontos essenciais da exposição de Juan José Saer é o de que a ficção
representa um tratamento específico do mundo, ou seja, não se deve pensar a ficção como
uma exposição romanceada de uma verdade, como é comum ocorrer. Ao fazer isso, julga-se a
peça artística (quer seja um livro ou um filme), pelo quanto de verdadeiro carrega e ignora-se
a especificidade da obra ficcional. Rivera Letelier buscou um tempo distante, remoto, mas o
“fato histórico” não é o que move sua narrativa e sim a retomada de um ideal revolucionário,
descrito já na epígrafe do livro na Cantata de Santa María, e que viveu seu ápice no Chile no
final do século XIX e impulsionou os revolucionários do século XX.
Com a chegada dos mineiros a Iquique e o alojamento instalado na Escola Santa
María, é concluída a “Primeira parte” do texto. O segundo bloco de capítulos, ou como o
próprio autor define, a “Segunda parte”, é iniciada com a primeira noite dos grevistas na
escola. Muitos não conseguiram descansar e outros, já tão mecanizados ao trabalho,
acordaram no meio da madrugada como se estivessem ainda nas usinas para seguir em
direção ao trabalho. Um dos pontos fortes do relato é a existência do sindicato, presente em
todos os acampamentos. Existe uma comissão que lidera o grupo de grevistas encabeçado
pelos irmãos Ruiz e José Brigg, anarquistas que seguiam os passos de Luis Recabarren, líder
da revolução trabalhista no Chile que sofreu perseguições, cárcere, atentado, e é um dos
líderes do Partido Comunista Chileno. O Comitê Central era composto por membros de várias
usinas de modo a que pudesse representar a todos os grevistas durante as negociações com as
autoridades e os grandes industriais. Como pano de fundo e buscando um caráter folhetinesco
ao texto, está o casal Liria María com Idilio Montaño, e Olegario Santana com Gregoria
Becerra.
É nesta Segunda parte do texto que o discurso de Rivera Letelier volta-se para o
interior da Escola Santa María já adaptada como alojamento dos grevistas. Os que
56
reivindicavam, os personagens reais que fizeram parte da história dos movimentos
trabalhistas, o Presidente do Chile em 1907, Pedro Montt, e os industriais mais importantes
da época como o “rei do salitre” John Thomas North e Lord Rothschild. Todos esses cuidados
com a história registrada foram tomados por Rivera Letelier durante a escrita de seu romance,
por isso realizou uma longa pesquisa em livros, jornais, músicas que abordassem de forma
direta ou indireta tal confronto. Fez ainda entrevistas com as famílias para certificar-se do que
foi escrito e o que ficou registrado no imaginário dos chilenos. Da soma dessas fontes e do
que ele também vivenciou quando trabalhou em uma usina, escreve Santa María de las flores
negras.
À semelhança do documentário A batalha do Chile (1975), do cineasta Patrício
Guzmán, em que a sua equipe foi a Santiago no ano de 1970 registrar os três primeiros anos
do governo do Presidente Salvador Allende e acabaram sendo testemunha de toda a agitação
política incentivada pelo partido de oposição ao governo da Unidade Popular; a Primeira parte
do romance de Rivera Letelier aponta aos dias de agitação e preparação para a greve que
levou a saída dos mineiros a Iquique. Os que estavam contra eram convencidos de que algo
deveria ser feito, pois a “mão de ferro” do capital estrangeiro estava cada vez mais
impossibilitando a sobrevivência no interior das usinas.
“A insurreição da burguesia” é o título da primeira parte do documentário iniciado
com o bombardeio do Palácio do governo, La Moneda. Todo o registro é feito seis meses
antes do golpe militar. De um lado o partido Democrata Cristão, e do outro, a classe operária
representada pela Unidade Popular. O registro de Patrício Guzmán é feito pelas ruas de
Santiago. Nas manifestações públicas, opiniões contrárias e a favor do governo de Salvador
Allende, percebe-se que a sociedade estava dividida entre a burguesia e a classe operária. Os
Democratas lideram o resultado das eleições, a Unidade Popular pede recontagem de votos,
alcança maioria e assim ganha mais deputados no governo. O que o partido de Allende não
57
contava era com o “boicote parlamentário” que levaria o governo da Unidade Popular ao caos
com a escassez dos produtos de primeira necessidade e o surgimento do “mercado negro”
como alternativa para ter acesso a produtos privilegiados. Outros setores também foram
afetados como a greve dos transportes públicos, suspensão das importações pelo governo dos
Estados Unidos, estudantes nas ruas pedindo por Reformas Educacionais e a morte do
operário José Ricardo Ahumada por militares durante uma manifestação aumenta o clima de
tensão instaurado. Os trabalhadores são induzidos a uma paralisação que durou setenta e seis
dias e custou milhões aos cofres do Estado. Todo o “caos” foi financiado pelo governo norte-
americano e supervisionado por agentes da CIA enviados ao Chile. (RUFFINELLI, 2001, p.
134-148 passim).
Nas primeiras páginas de Santa María de las flores negras é como se estivéssemos
diante de todo o clima de insatisfação dos mineiros no início da década de setenta. O clima de
insatisfação, a paralisação dos mineiros por usinas, a “precariedade” como fizeram a travessia
pelo deserto e a organização dos sindicatos na chegada a Iquique. Os grandes líderes sindicais
da época, como o anarquista José Brigg e Luis Emilio Recabarren presentes no texto de
Rivera Letelier, assumem na ficção os mesmos papéis que tiveram na história dos
movimentos trabalhistas no Chile. A luta contra o poder do capital norte-americano era
desigual e não oferecia a menor possibilidade de êxito para os mineiros.
A la hora del ángelus, ungidos por los resplandores de un grandioso crepúsculo rojo, sentimos de pronto en nuestros corazones como si fuésemos caminando directamente hacia el país mágico de la justicia y la rendición social. (RIVERA LETELIER, 2007, p.59).
No documentário de Patrício Guzmán, quando o governo de Salvador Allende sofre
represálias, pois o partido Democrata Cristão financia greves a fim de desestabilizar cada vez
mais o governo da Unidade Popular, este, reage com a formação dos “cordões industriais”.
Cada “cordão industrial” era formado pela agrupação de fábricas e empresas que
coordenavam as tarefas dos trabalhadores de uma mesma zona. Na Segunda parte de Santa
58
María de las flores negras, como no documentário A batalha do Chile, ocorre a unificação
das usinas. No trabalho de Patrício Guzmán é mostrado o enfraquecimento da Unidade
Popular devido às contradições internas, e principalmente as intervenções externas. Em Santa
María de las flores negras, durante a travessia, a quantidade de mineiros foi aumentando à
medida que novas usinas aderiam à greve. A unificação das usinas assim como a formação
dos cordões industriais, constitui um processo de organização massiva que provocará forte
reação do partido de opositor.
El poder popular é o título da terceira parte do documentário. Concluída em 1979,
retoma cenas dos dois blocos anteriores: La insurrección de la burguesía e El golpe de
Estado. Aqui é mostrado o poder das classes populares, quando organizadas. Os debates
internos para decidir melhores e eficientes estratégias para enfrentar a oposição que cada vez
mais deixava o Chile em situação desastrosa com a paralisação dos transportes e corte das
importações. Com a formação dos “cordões industriais” como medida de organização e
massificação, a esquerda ganhava força.
Del mismo modo que no hay en toda La batalla de Chile ni “culto” ni siquiera atención a la “personalidad” de los dirigentes, existe sin embargo una atención incansable al protagonista-pueblo. Este hecho fue para algunos críticos el indicio de la concepción “marxista” de la historia en La batalla de Chile. (RUFFINELLI, 2001, p.155).
Como no documentário de Patrício Guzmán, Santa María de las flores negras está
organizado em três partes. Na Primeira parte, é observada uma tomada de consciência dos
mineiros e a “unificação das usinas” como uma forma de “massificação”, semelhante à
formação dos cordões industriais. Na Segunda Parte, já no interior da Escola Santa María,
os mineiros se organizam em Comitês como estratégia para facilitar as negociações com os
industriais.
O lugar onde as manifestações eram realizadas era a Praça Prat, próxima ao
alojamento. Armados com bandeiras, panfletos, faixas das diferentes nacionalidades, chilenas,
59
bolivianas e peruanas, somavam em torno de sete mil grevistas próximos ao monumento do
herói naval de Iquique, capitão de fragata Arturo Prat Chacón e lá esperavam por mais
mineiros vindos de todos os lugares de Tarapacá. O Presidente do Chile no início do século
XX, Pedro Montt assumiu de dezoito de setembro de 1906 a dezesseis de agosto de 1910.
Durante seu mandato seria comemorado o centenário de independência chilena. A cidade de
Iquique vivia um eufórico patriotismo, o mesmo vivido em Santiago do Chile quase um
século depois no governo de Ricardo Lagos quando Santa María de las flores negras foi
então publicado.
O cotidiano dos trabalhadores é caracterizado de forma mais intensa no texto nesta
Segunda parte. A formação e organização dos grevistas em Comitês Centrais, a interferência
da imprensa por meio das notícias diárias publicadas nos jornais fazendo com que a
manifestação ganhasse maior proporção. A exemplo disso foi a notícia publicada no jornal da
cidade La Patria que em suas primeiras páginas informava que navios de guerra chegavam a
Iquique com mais soldados, ou seja, todo o aparato repressor já se instalava em Iquique. Um
mediador é enviado, Carlos Eastman, para negociar com os grevistas as propostas dos
industriais. O chefe militar Roberto Silva Renard chega a Iquique e contrata reservistas. A
qualquer momento o confronto alcançaria seu ápice.
El diario señalaba además que el intendente traía amplias atribuciones del gobierno para solucionar los asuntos de la huelga salitrera lo más pronto posible. Concluía el periódico diciendo que había mucha fe en la opinión pública en cuanto a que el intendente titular obtendría buenos resultados en su cometido. (RIVERA LETELIER, 2007, p. 140).
Como que seguindo a linhas dos romances realistas em que os personagens possuem
características marcantes do início ao fim da trama, ao ler essa notícia no jornal da cidade,
Olegario Santana, mais uma vez desconfia e sentencia que a manifestação acabará mal.
Com os dez primeiro capítulos, Rivera Letelier define a intencionalidade de seu texto,
a quem se dirige e a quem quer atingir com uma narrativa linear, técnicas já um tanto
60
“ultrapassadas” para sua geração, personagens “tipo” e trazendo a um Chile moderno o
fracasso de uma revolução. Em torno de sete mil grevistas ocupando uma escola, grupos
destinados a discutir com as autoridades locais o destino da greve, a imprensa a esconder a
real situação, com intuito de tranquilizar os mineiros e deixá-los despreparados e enquanto
isso, a cidade se armava com a chegada dos navios de guerra com soldados munidos de
armamentos. Para distração: O circo já instalado em Iquique.
No entanto, a cada dia chegavam trens com mais grevistas e suas famílias em
situações de extrema miséria, todos eram direcionados à Escola Santa María. Na cidade já se
articulavam trabalhadores de todas as categorias para se unirem à greve dos mineiros.
No sé si ustedes se han dado cuenta – comenta entusiasmado José Pintor - , pero esto indica claramente que nuestro movimiento está comenzado a generar toda una revolución obrera. (RIVERA LETELIER, 2007, p.155).
A imprensa tem um papel fundamental no enredo desde a Primeira parte. Existiam
dois jornais: El Pueblo Obrero, que publicava as reivindicações dos grevistas e era um jornal
escrito pelos trabalhadores aos trabalhadores. Já o diário Tarapacá era do governo. A
diferença do que era publicado simultaneamente entre os dois jornais era a de que enquanto
no primeiro era divulgada a greve e como se haviam unificado na entonação do patriótico
hino da Marselhesa, não para destruir nenhuma Bastilha, mas sim para fazer frente à
exploração sem controle do capital estrangeiro, no segundo era publicada a vinda do Circo a
Iquique com macacos sábios e sete cachorros boxeadores e outros tantos animais adestrados.
Notícias bastante dissonantes para retratar um mesmo período.
Com a visita de um jornalista à Escola Santa María é dada uma visão de como o
movimento estava sendo visto pela população de Iquique. Mais uma vez, Rivera Letelier
explicita o papel e a importância da imprensa na manipulação de opiniões e conceitos. O
movimento estava sendo visto de forma negativa e os grevistas acusados de interferir na
segurança e tranquilidade da cidade.
61
No jornal é publicado um relato de todo o interior da Escola Santa María, assim como
os grevistas estavam organizados, e essa notícia está no texto em itálico:
Hoy tuvimos oportunidad de visitar la Escuela Santa María, local donde se hospedan más de seis mil huelguistas. Era precisamente la hora en que se repartía el almuerzo y, por consiguiente, el acceso al sitio donde se encontraba el Directorio general se hacía casi imposible. Hasta que por fin conseguimos nuestro objetivo.
El Comité Central está instalado en los altos del local, y damos enseguida los detalles que observamos al llegar a ese sitio. En la escala estaban destinados, a guisa de centinelas, como ocho ayudantes de orden, los cuales se ocupaban en atender a las personas que deseaban hablar con el Directorio. Pasamos nuestra tarjeta que los ayudantes hicieron llegar al Presidente, señor Brigg, quien ordenó que se nos diera libre paso. Permanecimos en el recinto como dos horas, y en todo ese tiempo pudimos imponernos de la magnífica organización que tienen los huelguistas. (RIVERA LETELIER, 2007, p. 159).
O desvio do estado em que se encontravam os grevistas dentro da Escola, assim como
também perante as autoridades locais, é colocado no texto de Hernán Rivera Letelier de forma
irônica. Durante toda a reportagem do jornal de Iquique, só há elogios à forma de
organização em Comitês, e o alojamento da Escola Santa María chega a ser comparado a um
quartel general, uma maneira fácil de desviar a atenção dos grevistas. A forma como essas
reportagens aparecem no texto, em itálico, faz com que o leitor creia ou não, na veracidade
das informações ali contidas, ficção/ não-ficção.
Rivera Letelier, em entrevistas, deixa clara sua busca por dados do confronto e se
utiliza de fontes bibliográficas como os livros de Eduardo Dalvés e o de Pedro Bravo
Elizondo, como também de entrevistas com familiares dos trabalhadores envolvidos no
conflito. A todo momento, chegam mais grevistas em uma marcha efervescente pelo deserto
entoados por “el Himno al Trabajador, cuya exaltada letra habla de la unidad y redención de
los obreros del mundo”. (RIVERA LETELIER, 2007, p.164).
O movimento vai tomando uma proporção muito maior do que esperavam as
autoridades, a começar pela quantidade de mineiros que chegavam todos os dias a Iquique. O
governo do Presidente Pedro Montt participou no conflito atuando como mediador. Com seus
cartazes nas mãos, os grevistas tentaram negociar com seus patrões que colocaram como
condição para o diálogo a volta aos postos de trabalho. A cidade converte-se em um
62
verdadeiro campo de batalha. De um lado homens, mulheres e crianças armados com cartazes,
e do outro, navios chegando a todo o momento ao porto de Iquique com batalhões de soldados
armados. As duas praças da cidade, Montt e Prat, eram o palco das negociações e na Escola
Santa María as condições de subsistência dos mineiros tornavam-se cada vez mais
insustentáveis. Conforme avança a mobilização, as autoridades consideraram que 5.000
trabalhadores que ocupavam a Escola Santa María e os 2.000 que tomavam a Praça Manuel
Montt constituíam uma ameaça para a segurança e a saúde pública. E para aumentar ainda
mais o clima de tensão, as contradições comportamentais entre campo e cidade eram
extremas.
De um lado, a população de Iquique com seus hábitos citadinos, do outro, mais de
oito mil trabalhadores aglomerados em uma escola sem as condições básicas de
sobrevivência. O máximo que conseguiam como doação era a ajuda de cigarros, pão e mate
que vinha da Federação dos trabalhadores de Iquique. No jornal de Tarapacá, manipulado
pelo governo, eram divulgadas notícias contra os grevistas e ressaltando o comportamento
inadequado dos mineiros na cidade.
- Para que se den cuenta ustedes – dice – que no hay que comprar más ese diario. Se nota a la lengua que está en contra de los obreros y a favor de los patrones. (RIVERA LETELIER, 2007, p.169).
Mais adiante é localizada a existência de homens tirados da prisão e infiltrados na
Escola Santa María para causar a desordem e desequilibrar a greve. Tentativa das autoridades
para desestabilizar os grevistas e provocar uma visão negativa dos mesmos por parte da
sociedade de Iquique. Com a chegada do prefeito, as ilusões aumentaram e o fim do
confronto parecia real. No entanto, o discurso feito pelo prefeito Carlos Eastman logo em sua
chegada já não foi o mesmo quando o Comitê Central dos grevistas esteve com ele em uma
reunião particular. O acordo seria o retorno imediato às usinas, deixando-se a discussão sobre
as reivindicações para um segundo momento. Em outro jornal, El Nacional, são publicadas
63
informações equivocadas dos grevistas, fazendo com que a população de Iquique considerasse
a greve uma manifestação irresponsável, ou mesmo como hoje são consideradas as
manifestações, como “um ato de vandalismo” que oferecia perigo à segurança de todos.
O trabalho nas usinas era árduo e perigoso, assim como as condições de vida dos
mineiros eram de extrema pobreza. As casas feitas com tetos de zinco ofereciam pouca ou
nenhuma proteção contra as conhecidas e extremas temperaturas do deserto. Sem água
corrente, os mineiros e suas famílias eram presas fáceis das epidemias. As “pulperías” como
eram chamados os armazéns onde aconteciam a troca das fichas por mercadorias que eram
comercializadas por um valor muito além ao do mercado, pertenciam às indústrias do salitre
que vendiam produtos de má qualidade a preços excessivos. Voltar aos acampamentos e
continuar nas mesmas condições era algo fora de cogitação para os mineiros.
Na cidade aumentava o número de trens chegando com grevistas mortos por soldados
no caminho em direção a Iquique.
La noticia, que ha sido dada por teléfono desde Buenaventura, es que la tropa de soldados encargados del orden en esa oficina había disparado sus armas contra el convoy. “Abrieron fuego sin asco contra el tren atestado de obreros”, repite la gente excitada”. (RIVERA LETELIER, 2007, p. 209).
Como pano de fundo a todo esse conflito, há dois romances: o de Liria María com
Idilio Montaño e o de Olegario Santana com Gregoria Becerra. As características de Liria e
Idilio são simétricas no que diz respeito à visão que os dois jovens possuem do confronto
entre mineiros e o governo. No entanto, as de Olegario e Gregoria são extremamente
antagônicas. Enquanto Olegario Santana antecipa desde as primeiras páginas o fim trágico da
greve e que tudo não passa de um sonho impossível, Gregoria Becerra acredita que sonhar já é
lutar e que “podem matar o sonhador, mas não ao sonho”. (RIVERA LETELIER, 2007,
p.173). Essa frase assim como os versos dos poemas citados pelo poeta popular Rosario
Calderón que aparece como personagem no texto de Hernán Rivera Letelier, foram extraídos
64
de uma lira popular que conta em primeira pessoa, e como um “sobrevivente” do massacre, a
trajetória dos mineiros saindo de suas usinas em direção a Iquique.
Soy el obrero pampino Por el burgués explotado Soy el paria abandonado Que lucha por su destino Soy el que labró el camino De su propio deshonor Regando con su sudor Estas pampas desoladas Soy la flor negra y callada Que crece con su dolor. Diez de diciembre comieza En l’ oficina San Lorenzo, Huelga general, de consenso Despertando la conciencia, Cinco mil almas, sin violencia Del Alto de San Antonio Marchan como un “demonio” En la madrugada fría, Sábado catorce el día A Iquique, con su “testimonio”. Roberto Silva Renard Lo toma como afrenta En el acto se violenta Da la orden de avanzar ¡ametralladoras, apuntar dónde están los dirigentes! Incrédula la gente El general en persona “salgan por las buenas”, pregona a todos los “penitentes”.
Dotadas de diez cañones Cuatrocientos tiros por minuto A Chile vistieron de luto Para proteger a patrones Tropas de gringos, cabrones Que cual aves “carroñeras” Con sonrisas lisonjeras Se adueñaron del salitre Así s` hicieron los “buitres” Dueños de las salitreras 2
A ordem dos acontecimentos que segue o poeta nessa lira é a mesma seguida por
Rivera Letelier em seu texto. O autor de El arte de la Resurrección valoriza a cultura popular
e seu compromisso em tornar sempre presente a luta de classes, as conquistas e fracassos do
movimento operário é observado em seus romances. Pretende mostrar ao leitor que nada 2 www.archivochile.cl (Fonte acessada em 19/08/2011).
65
mudou e propor essas discussões em seus textos é um dos ápices de suas obras. Os
personagens históricos como José Brigg, Elias Lafertte, Hermanos Ruiz, Pedro Montt o
Presidente, Carlos Eastman, o padre Martín Rucker, Luis Emilio Recabarren e Roberto Silva
Renard que estão no texto ficcionalizados, assumem os mesmos papéis que tiveram durante o
confronto.
A estratégia do exército era a de concentrar o maior número de grevistas dentro da
Escola Santa María para que assim, pudesse evitar a dispersão dos mineiros e facilitar a
ordem de Roberto Silva Renard de “calar” definitivamente os “gritos de revolução” dos
grevistas e suas famílias. Como uma medida de preparação e precaução para o confronto com
os militares, na cidade foi dada a ordem para que as famílias abandonassem suas casas,
deixando os mineiros sem possibilidade de refúgio durante o combate. A impossibilidade de
um confronto com a quantidade de mortos que alcançou, era o que acreditavam os mineiros.
Em conversa com outros grevistas, Domingo Domínguez questiona para que a data de 21
maio, na qual o povo chileno em feriado oficial comemora o dia das glórias do exército que
tem como lema “sempre vencedor, jamais vencido”, também não seja recordado ao mesmo
tempo com um covarde 21 de dezembro.
Um dos últimos capítulos da Terceira Parte, onde se dá o confronto dos mineiros com
os militares, é dedicado a Liria María e a Idilio Montaño, que por não estarem na Escola no
momento em que as tropas avançaram, conseguiram escapar do massacre. O romance dos dois
funciona como uma quebra dentro da narração pela suavidade com que foi escrito. Os nomes
já revelam o caráter dos personagens. Nesse capítulo, a narrativa muda de cenário. Passa do
interior da Escola Santa María, com seus oito mil grevistas aglomerados, resultando em um
ambiente fétido pelas más condições com que as famílias se encontravam, à tranquilidade dos
dois personagens diante da solidão do mar. Os dois que sempre estiveram em um mundo à
66
parte aos dos grevistas, neste momento Rivera Letelier também os afasta. Durante todo o
massacre os dois se mantiveram imersos pelo sentimento mais forte que une os homens.
El mar resplandece como lámpara. Con gesto gracioso, Liria María se pasea por la arena dándose aire con abanico de motivos japoneses que le acaba de regalar Idilio Montaño. Es primera vez en su vida que posee uno y usarlo le da una alegría casi infantil. (RIVERA LETELIER, 2007, p. 247).
Ainda na Terceira Parte, o narrador simula situações corriqueiras no interior das usinas
apontando, por exemplo, a existência de um “livro de Vigilância”. Essa medida foi criada
como uma forma de controle do governo. Tudo o que acontecia nos acampamentos era
relatado no livro, peça esta fundamental para o descobrimento de possíveis rebeliões ou
protestos, o que faz com que as autoridades já tivessem conhecimento da chegada dos
trabalhadores a Iquique.
A expectativa por parte das autoridades aumenta a ansiedade de todos e discursos
políticos são comuns nos locais de maior concentração de pessoas. Quando enfim todas as
autoridades, prefeito e industriais chegam a Iquique, uma grande euforia toma conta da cidade
levando todos os grevistas à Praça Montt. E aproveitando-se da exaltação dos grevistas,
Olegario Santana grita ao general: “¡Los que van a morrir te saludan, hijo de la grandísima!”
(LETELIER, 2007, p.182).
Obrero siempre es peligro/precaverse es necesario/ Así el Estado de Sitio/ Fue declarado. Las ametralladoras están dispuestas y estratégicamente rodean la escuela.3
O clima de medo se instala na cidade com o estado de sítio. “No hay que ser pobre,
amigo, es peligroso. No hay ni que hablar, amigo, es peligroso”. Todos os grevistas eram
revistados de cima a baixo, tirados das ruas e empurrados para dentro da Escola Santa María,
pois não era permitido que nenhum civil circulasse por Iquique sem a permissão
correspondente.
3 Cantata Santa María de Iquique. www.archivochile.cl (Fonte acessada em 23/05/2010).
67
Os dois últimos capítulos narram o horror vivido pelos mineiros literalmente
“encurralados” na Escola Santa María. O leitor que ainda conhecendo a história da morte
de tantos mineiros em Iquique, desde o início é levado em um crescente de ações covardes por
parte das autoridades que desemboca no massacre. Os personagens “históricos” ganham seu
papel de destaque no momento do confronto. Rivera Letelier leva para a ficção um dos fatos
mais duros e cruéis da história do proletariado universal em seu romance e o entrega à
sociedade.
Al sonar la primera descarga de los fusileros hacia la azotea de la escuela, Olegario Santana, junto a Gregoria Becerra, su hijo Juan de Dios y José Pintor, ven a Domingo Domínguez, acompañado de algunos operarios jóvenes, adelantarse hacia el lugar en donde está emplazado el general. Allí, frente al uniformado, abriéndose la camisa y mostrando el pecho desnudo, el barretero grita a todo pulmón que aquí está mi corazón si quieren sangre obrera, carajos. (RIVERA LETELIER, 2007, p.260).
A forma linear com que a história é contada tem a duração de treze dias começando
em dez de dezembro de 1907 e terminando três dias depois do massacre, vinte e três de
dezembro do mesmo ano. O efeito negativo dessa tragédia foi muito grande para a
organização dos trabalhadores, mas isso não impediu que em 1909 fosse fundada a primeira
central sindical no país – Federação Operária do Chile, conhecida como FOCH.
Em 1912, sob a direção de Luis Emilio Recabarren, personagem citado por Domingo
Domínguez nas primeiras páginas do romance, foi fundado o Partido Operário Socialista que,
logo depois da revolução soviética, transformou-se no Partido Comunista do Chile. Depois de
décadas de crescimento do movimento operário não ser reconhecido legalmente, dos choques
com a política e com o exército e da expansão das concentrações urbanas, no final dos anos
vinte quase metade da população chilena já era urbana.
O livro é publicado quase um século depois do massacre, e outras tragédias como a da
Escola Santa María sucederam na história do Chile. No ano da publicação, o Chile vive um de
68
seus apogeus como economia neoliberal na América Latina, um verdadeiro “fervor”
nacionalista induz a sociedade a crer que o país é modelo de “democracia” para outros
países latino-americanos e que a “era” tecnológica, industrial, de reforma educacional, enfim
é estabelecida depois de duros e escuros anos de ditadura.
3.2. HERNÁN RIVERA LETELIER E O MERCADO EDITORIAL
O recebimento dos textos de Hernán Rivera Letelier por uma parte da crítica literária
chilena é negativo, incluindo escritores como Roberto Bolaño. Este, em seu livro El gaucho
insufrible (2003) afirma: "Dios bendiga a Hernán Rivera Letelier. Dios bendiga su cursilería,
su sentimentalismo, sus posiciones políticamente correctas, sus torpes trampas formales, pues
yo he contribuido a ello" (BOLAÑO, 2010, p.173). E com relação ao gênero folhetim segue
Roberto Bolaño em seu comentário:
Sigamos, pues, los dictados de García Márquez y leamos a Alejandro Dumas. Hagámosle caso a Pérez Dragó o a García Conte y leamos a Pérez Reverte. En el folletón está la salvación del lector (y de paso, de la industria editorial). Quién nos lo iba a decir. Mucho presumir de Proust, mucho estudiar las páginas de Joyce que cuelgan de un alambre, y la respuesta estaba en el folletón. Ay, el folletón. Pero somos malos para la cama y probablemente volveremos a meter la pata. Todo lleva a pensar que esto no tiene salida. (BOLAÑO, 2010, p.177).
No entanto, pelo público leitor é recebido e aplaudido como um romancista que
“escreve a voz dos trabalhadores das minas chilenas”, dos trabalhadores do pampa, da cultura
salitreira, que conta suas histórias, suas crenças e suas lendas. A representação do sujeito pelo
“trabalhador” aparece no estudo feito por Gayatri Spivak em Pode o subalterno falar? A
descentralização do sujeito é argumentada por meio de uma crítica aos pensadores da
heterogeneidade: Michel Foucault e Gilles Deleuze. Gayatri Spivak aponta para a sugestão de
uma concepção equivocada da representação como “falar por” (relacionada com as
instituições políticas, e a “re-presentação” vinculada às artes e à filosofia). (SPIVAK, 2010,
31). Em alguns personagens como Olegario Santana, Gregoria Becerra, Domingo
69
Domínguez, descreve a figura forte do “homem do pampa”. Homem que resiste ao calor
escaldante do deserto de Atacama trabalhando na extração do salitre, e nas noites geladas
busca abrigo em mulheres como La Reina Isabel. Com a história do massacre dos grevistas
sendo ficcionada pela perspectiva dos mineiros, seus romances conquistam a leitores não
somente pertencentes a esse setor da sociedade, mas também os que buscam uma
aproximação a essa literatura.
Desde La reina Isabel cantaba rancheras (1994), Hernán Rivera Letelier vem
conquistando seu espaço no mercado editorial, atraindo leitores jovens e adultos como
também aqueles que buscam em seus romances a razão de tantas vendas e traduções a outros
idiomas em um espaço temporal pequeno de publicação. Santa María de las flores negras
ganhou lugar nas escolas chilenas, foi levado aos palcos de teatro, e no ano de 2007, em
memória aos chilenos mortos no massacre, a Universidade do Chile, em parceria com uma
rádio local, realiza um “radioteatro” inspirado no romance de Hernán Rivera Letelier.
O gênero “folhetim”, utilizado por Rivera Letelier, tem como uma de suas
características apresentar histórias de fácil consumo pelo público leitor devido à simplicidade
de sua narrativa. Dessa maneira, os romances que assumem esse gênero alcançam grande
receptividade gerando sucesso de vendas.
A leitura das histórias dos mineiros faz com que os romances do autor de Santa María
de las flores negras, venham a ser considerados, não pela crítica chilena e mesmo pela
hispano-americana, mas sim pela imensa massa de leitores latino-americanos, histórias do
“pampa”. O deserto de Atacama e seus personagens La Reina Isabel, El Cristo de Elqui,
Malarrosa, Olegario Santana, Domingo Domínguez, Liria María e Idilio Montaño somados
às histórias que sobrevivem no imaginário popular e grande parte delas localizadas nas
décadas de sessenta e setenta, proporcionam a Rivera Letelier um grande êxito editorial.
70
4. CAPÍTULO 3
HERNÁN RIVERA LETELIER: UM ESCRITOR E SEU TEMPO
4.1 A HISTÓRIA FRENTE À FICÇÃO
Antonio Candido, em seu ensaio “O escritor e o público”, afirma que o escritor, acima
de tudo, desempenha uma função social.
A literatura é pois um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. A obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos que atuam um sobre o outro, e aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de circulação literária, para configurar a realidade da literatura atuando no tempo. (CANDIDO, 2010, p. 84).
Parte da hipótese de que a produção literária deve ser desde o início vista com
referência à posição social do escritor e a formação do público. (CANDIDO, 2010, p.84). Para
justificar sua afirmação, aponta duas categorias do escritor brasileiro no início do século XX:
a profissionalização e a que a posição do escritor depende do conceito social que os grupos
elaboram sobre ele. Conceito positivo ou negativo que definirá o destino da obra e por
consequência, do escritor. “Os grupos” ou o público leitor, não são formados apenas por um
único “setor social” que comunga das mesmas ideias, e sim, nas palavras de Antonio Candido,
uma “massa abstrata” ou “virtual” que
dentro dela podem diferenciar-se agrupamentos menores, mais coesos, às vezes com tendências a organizar-se, como são os círculos de leitores e amadores entre os quais se recrutam quase sempre as elites, que pesarão mais diretamente na orientação do autor. (CANDIDO, 2010, p.86).
A questão “das elites” como grupo social liderando a formação de opiniões também
aparece discutida no ensaio “Sobre livros de sucesso e seu público” do alemão Siegfried
Kracauer. Nesse ensaio, dito autor expõe algumas ideias na tentativa de justificar o sucesso ou
71
fracasso de uma obra literária. Êxito em vendas não comprova a qualidade de um texto e sim
que ele é “o sinal de um experimento sociológico bem-sucedido”. (KRACAUER, 2009,
p.108).
Como um paralelo entre o ensaio de Antonio Candido e o de Siegfried Kracauer, este
afirma que “o consumidor proletário lê principalmente aquilo cujo conteúdo já recebeu um
carimbo de aprovação ou então lê o que a burguesia já leu”. (KRACAUER, 2009, 108). Os
dois ensaios convergem a um mesmo ponto: existe um determinado grupo social, chamado
“elite” ou “burguesia”, que filtra, ou mesmo “dita”, as obras literárias a serem absorvidas pela
“massa”. No entanto, cabe questionar o porquê da aceitação e consumo massivo dessa
mercadoria literária.
Mario Vargas Llosa, em seu ensaio A verdade das mentiras, comenta a relação entre
escritor, obra literária e a recepção do texto pelo público leitor. Como um fio que vai tecendo
todo o ensaio, o autor de A guerra do fim do mundo (1981), levanta a discussão das
“verdades” e “mentiras” da ficção. Como um seguimento aos textos de Antonio Candido e
Siegfried Kracauer, o ensaio de Vargas Llosa comenta não apenas a chegada de um romance
às “massas”, mas a permanência do mesmo pelo público. A correspondência ou sensibilidade
gerada pelas historias ficcionalizadas provocam uma aproximação entre obra
e leitor. As “verdades” que o leitor quer são expressas nas “mentiras” das ficções. Cita como
exemplo o grande clássico do romance moderno: El ingenioso hidalgo don Quijote de la
Mancha, que conta a história de Alonso Quijano que levou ao mundo real a história vivida
pelos cavaleiros andantes encontradas nos livros de cavalaria. É uma das obras universais por
excelência, entendido o “clássico” como a capacidade da obra de arte em conservar uma
significação viva em todos os tempos, lugares e para todas as classes. O que significa para o
leitor de distintas gerações ou grupos sociais, o definiu o próprio autor Miguel de Cervantes
no capítulo III da segunda parte, em que diz Sansón Carrasco em um diálogo com don Quijote
72
que é história “tan clara que no hay cosa que dificultar en ella; los niños la manoseian, los
mozos la leen, los hombres la entienden y los viejos la celebran” (CERVANTES, 2004, 172).
Una ficción lograda encarna la subjetividad de una época y por eso las novelas, aunque cotejadas con la historia, mientan, nos comunican unas verdades huidizas y evanescentes que escapan siempre a los descriptores científicos de la realidad. Sólo la literatura dispone de las técnicas y poderes para destilar ese delicado elixir de la vida: la verdad escondida en el corazón de las mentiras humanas. Porque en los engaños de la literatura no hay ningún engaño. No debería haberlo, por lo menos, salvo para los ingenuos que creen que la literatura debe ser objetivamente fiel a la vida y tan dependiente de la realidad como la historia. Y no hay engaño porque, cuando abrimos un libro de ficción, acomodamos nuestro ánimo para asistir a una representación en la que sabemos muy bien que nuestras lágrimas o nuestros bostezos dependerán exclusivamente de la buena o mala brujería del narrador para hacernos vivir como verdades sus mentiras y no de su capacidad para reproducir fidedignamente lo vivido. (VARGAS LLOSA, 2003, p.27).
É dessa fantasia de “transportar-se” ao tempo e cenário das histórias, e da
identificação, na maioria das vezes com personagens que reproduzem, que faz das mentiras
ficcionais, verdades imaginárias para seus leitores. Dom Quixote é uma obra divertida mas
também uma genial epopéia que guarda em seu interior os problemas espirituais do homem
moderno.
Em romances que trazem não somente as inquietudes do homem, mas que também
em seus enredos citam ou tomam como cenário para suas histórias “fatos históricos” de seu
país ou não, levantam discussões sobre o conceito de “verdade histórica” e “verdade literária”.
O autor de La ciudad y los perros afirma:
La recomposición del pasado que opera la literatura es casi siempre falaz. La verdad literaria es una y otra la verdad histórica. Pero, aunque esté repleta de mentiras – o, más bien, por ello mismo – la literatura cuenta la historia que la historia que escriben los historiadores no saben ni pueden contar. (VARGAS LLOSA, 2003, p.43).
A diferença entre o escritor e o historiador, ou melhor, a função que cada um
desempenha em seu oficio, é a de que o escritor conta o “fato histórico” não necessariamente
como aconteceu mas como poderia ter acontecido, inserido ou retirando episódios que
favoreçam ou não a veracidade de sua “mentira”. O escritor tem a liberdade que a ficção
73
proporciona para construir ou desconstruir suas histórias. O historiador pretende contar o fato
como aconteceu sem acréscimos.
Al mismo tiempo, un estricto sistema de censura suele instalarse para que la literatura fantasee también dentro de cauces rígidos, de modo que sus verdades subjetivas no contradigan ni echen sombras sobre la historia oficial, sino, más bien, la divulguen e ilustren. La diferencia entre verdad histórica y verdad literaria desaparece y se funde en un híbrido que baña la historia de irrealidad y vacía la ficción de misterio, de iniciativa y de inconformidad hacia lo establecido. (VARGAS LLOSA, 2003, p.46).
Outra maneira encontrada por romancistas para ficcionalizar a História é estabelecer
pontes entre o referente histórico e a contemporaneidade de sua escrita. Eles centram o eixo
discursivo na memória e propõem ao leitor outras versões da História já conhecida. Os textos
de Hernán Rivera Letelier, principalmente Santa María de las flores negras que menciona de
forma explícita o massacre dos mineiros em Iquique, estabelecem essa ponte entre a história e
a ficção. A aceitação e o sucesso de vendas de seus romances pelo público comprova a
aproximação destes com suas histórias e seus personagens, que nada mais são do que homens,
mulheres e crianças que vivem em acampamentos das minas de extração do salitre.
Nos anos sessenta e setenta, o mercado editorial latino-americano levou ao público em
quantidade massiva autores que até então eram consumidos somente por um pequeno “grupo
social”. A essa grande tiragem de livros cujos autores como Julio Cortázar, Mario Vargas
Llosa, Gabriel García Márquez, Alejo Carpentier, entre outros, adquiriram, de maneira mais
ou menos simultânea, certa difusão e reconhecimento por parte do público e da crítica. Como
a cultura de massas se caracteriza pela repetição, o formulário, a rigidez das convenções de
certos gêneros (o folhetim, o cinema popular, a música, etc.), o livro também é produto para o
mercado e a técnica da indústria cultural levou à padronização e à produção em série. Com a
escolha do folhetim como técnica narrativa em seus romances, o autor de La contadora de
películas apresenta sempre um narrador que já conhece toda a história, diz tudo, ordenando,
julgando e conduzindo o leitor durante todo o texto até o seu final.
74
O tom sentimental é constante, frases feitas, “clichês”, personagens tipos, feitos de
uma só peça, que não mudam e que muitas vezes saltam de um livro a outro como o
personagem El Cristo de Elqui, personagem místico de seu romance El Arte de la
resurrección publicado em 2010 e que lhe rendeu o prêmio Alfaguara no mesmo ano, aparece
já antecipado em outros romances.
Falar de literatura chilena hoje e não pensar em política levaria a uma leitura
superficial de muitos romances publicados no final da ditadura ou especificamente o
momento “transitório” pelo qual viveu o Chile rumo a “democracia”. Uma literatura “pós-
trauma” que em muitos de seus textos busca reproduzir em suas páginas a grande esperança
que significou o governo de Salvador Allende e o medo vivido durante o golpe, levando
Augusto Pinochet à Presidência.
O texto do historiador Pedro Bravo Elizondo: Santa María de Iquique 1907:
Documentos para su historia, é anterior ao de Rivera Letelier. Como o próprio autor define
seu trabalho, este se centra no acontecido, no narrado pelos seus protagonistas, “gente que
estuvo allí, que vivió los hechos, como el Dr. Nicolás Palacios, el cónsul inglés, el
norteamericano, los periodistas del Pueblo Obrero y los dirigentes del movimiento”.
(ELIZONDO, 1993, p.11).
Como já foi mencionado no capítulo anterior, em Santa María de las flores negras o
narrador, a diferença de seus outros romances, é coletivo. Utiliza um “nosotros” que assume a
voz dos trabalhadores mortos. Dito narrador apresenta aos leitores todos os personagens,
“históricos” e fictícios, e por participar ativamente da greve, relata o fato com uma visão
diferenciada de um pesquisador ou historiador. A morte desses mineiros já havia sido cantada
pela Cantata Santa María de Iquique (1970), de Luis Advis, e o historiador Pedro Bravo
Elizondo escreveu seu livro tendo como base documentos e uma detalhada pesquisa do fato.
Hernán Rivera Letelier escreve seu texto utilizando o popular encontrado na Cantata Santa
75
María de Iquique (1970), e para documentar sua ficção usa dados da imprensa local da época
também encontrados no texto de Pedro Bravo Elizondo.
O autor de El Fantasista toca em um dos episódios marcantes da história dos mineiros
chilenos. O cuidado em reunir fontes que tornassem sua ficção o mais próximo do que foi
publicado por Pedro Bravo Elizondo, certifica seu interesse em contribuir para que
“massacres” como o de 1907, estejam presentes na consciência dos chilenos de hoje.
Santa María de las flores negras e Santa María de Iquique 1907: Documentos para su
historia, têm em comum o mesmo fato histórico: o massacre de trabalhadores na Escola
Santa María em Iquique de 1907. Duas maneiras de narrar, uma partindo de um romancista e
a outra pela ótica de um historiador. Seymour Menton, em seu estudo sobre o Novo Romance
Histórico, apresenta como uma característica de alguns romances históricos, a
intertextualidade, ou esta em sentido extremo, chamada de palimpsesto (MENTON, 2003,
p.44). O palimpsesto, ou a re-escritura de outro texto é observado no romance Santa María de
las flores negras em relação ao livro de Pedro Bravo Elizondo.
Com títulos semelhantes, os dois textos, um pela ótica do historiador e o outro pela do
escritor, citam o mesmo fato histórico, porém por perspectivas distintas. Hernán Rivera
Letelier ficcionaliza o massacre, com personagens próximos de seu público alvo interagindo
com os da História em um discurso linear, simples, sem rebuscamento. Personagens como
Domingo Domínguez, um dos mais populares, que se apresenta nas Festas Pátrias como um
artista do bel canto; ou mesmo o enigmático Olegario Santana que na companhia de seus
urubus, fuma compulsivamente seus cigarros da marca Yolanda, um produtos comerciais que
circulavam nos acampamentos dos mineiros; o Poeta cego Rosario Calderón que recita versos
que falam da luta dos trabalhadores. Os personagens têm papéis fixos, definidos. Mesclam
ficção e realidade.
76
Como que seguindo o texto de Pedro Bravo Elizondo, Hernán Rivera Letelier compõe
Santa María de las flores negras com o olhar voltado aos mineiros, às suas ilusões, seus
relacionamentos e suas frustrações. Cada um cumprindo um papel dentro da história,
proporcionando ao público leitor uma aproximação ou repulsa uma vez que toca em
sentimentos universais como o amor, a amizade e a coragem.
O texto de Pedro Bravo Elizondo, Santa María de Iquique 1907: Documentos para su
historia, é criterioso na abordagem dos dados. Já no início de suas páginas adverte ao leitor na
busca pela proximidade dos fatos:
Este trabajo no insiste en un ensayo interpretativo de la matanza de la Escuela Santa María de Iquique. Se centra en lo acontecido, en lo narrado por sus protagonistas, gente que estuvo allí, que vivió los hechos, como el Dr. Nicolás Palacios, el cónsul inglés, el norteamericano, los periodistas de El Pueblo Obrero los dirigentes del movimiento (Olea, Morales, Cuevas, Rojas) y el general a cargo de las tropas, Roberto Silva Renard. Recuperar los documentos escamoteados y presentarlos al lector ha sido el propósito de este trabajo. Para ello investigué en Santiago de Chile, Perú, Argentina, la Biblioteca del Congreso de Estados Unidos, la de Ámsterdam dedicada a los estudios anarquistas. (ELIZONDO, 1993, p.11)
A renovação do grupo dos Annales foi a de reconhecer a impossibilidade de se
“narrar” os fatos tal como aconteceram. O historiador escolhe seus objetos no passado e os
questiona a partir do presente. O historiador por ser mais objetivo, apresenta seus documentos
e a maneira como os utilizou, sobretudo, a partir de que lugar social ele fala.
Como texto base para o romance de Rivera Letelier, a obra do historiador Pedro Bravo
Elizondo tem o propósito de reunir documentos, entrevistas e a partir desses pressupostos
elabora seu trabalho. Já o romancista colhe dessas fontes, porém, ficcionaliza as histórias, cria
outros personagens interagindo com personagens “históricos” humanizando-os e assim
progressivamente a ficção é construída ganhando a confiança do leitor e principalmente
conquistando-o por meio de histórias comoventes como as da matriarca Gregoria Becerra e o
romance de Liria María e Idilio Montaño.
Santa María de las flores negras também dialoga com outro texto anterior, o de
Eduardo Devés Valdés: Los que van a morir te saludan (1989). Em uma passagem na qual os
77
grevistas recebiam as autoridades de Iquique, Olegario Santana em meio ao tumulto diz:
“¡Los que van a morir te saludan, hijo de la grandísima! – refunfuña Olegario Santana al
verlo pasar frente a el”. (RIVERA LETELIER, 2007, p.182).
Com o texto de Pedro Bravo Elizondo, o mesmo personagem Olegario conversa com o
avô do historiador, José Santos Elizondo. O diálogo é marcado pela cena da morte dos
grevistas na qual Olegario Santana, ferido, caminha pensando que tudo aquilo não pode ser
realidade. Um homem jovem se aproxima e lhe oferece ajuda:
Mientras le ata el pañuelo, el hombre comienza a hablar diciéndole que hay que grabarse firme en la mollera cada detalle de lo que está sucediendo; estarcirlo a fuego en la memoria. Esto lo tiene que saber el mundo entero, compañerito, dice emocionado el hombre. Olegario Santana, sólo porque le capta una nobleza franca en la voz, y nada más que por decir algo, le pregunta cómo se llama. – José Santos Elizondo – responde el hombre. Soy miembro de la Mancomunal Obrera de Caleta Buena. (RIVERA LETELIER, 2007, p.269).
Esse diálogo estabelecido com os dois textos, e tendo como elo o personagem
Olegario Santana, desperta o interesse do leitor desde as primeiras páginas pelo mistério que
guarda seu passado, por seu comportamento durante toda a travessia até Iquique e por ser o
único que em todo o texto analisa a greve de maneira negativa prevendo que tudo acabará
mal. O “corvo” era como o chamavam seus companheiros de usina devido a seu paletó negro
que usava mesmo com as altas temperaturas do deserto. De todos os personagens, Olegario
Santana se destaca pela maneira como interpreta toda a manifestação dos grevistas. É através
dele que Rivera Letelier “conversa” com outros textos anteriores ao seu. O massacre dos
trabalhadores aconteceu em 1907, o livro de Eduardo Devés Valdés é lançado em 1989, o do
historiador Pedro Bravo Elizondo data de 1993 e Santa María de las flores negras é publicado
no ano de 2002.
Questionar a razão que leva a um escritor já reconhecido em seu país por romances
como La Reina Isabel Cantaba rancheras (1994), Fatamorgana de amor con banda de
música (1998) e Los trenes se van al purgatório (2000), os três textos que antecedem a Santa
78
María de las flores negras (2002), a ficcionar um fato que já foi escrito por historiadores e
musicado em trabalho de êxito internacional, a não ser o de proporcionar ao
leitor situado em um tempo cronológico distante ao do fato, a pensar nas transformações
sofridas pela sociedade chilena antes e depois do golpe de 11 de setembro de 1973.
Santa María de las flores negras é publicado em uma época de grandes avanços na
tecnologia, o Chile abrindo suas “portas” ao mercado estrangeiro e o que poderia provocar
rejeição por parte dos leitores, por expor como cenário um Chile “ultrapassado”, por tocar em
“fatos” da história do país que não contribuíssem ao “fervor” do momento, ao contrário, o
romance foi recebido com sucesso de vendas.
Hernán Rivera Letelier toma como ponto de partida para compor sua ficção a matança
na Escola Santa María. No entanto, o leitor de dito romance, estabelece a partir de sua leitura
e sua percepção de realidade social, uma visão questionadora do momento político latino-
americano atual. As reivindicações estudantis no Chile e a dura repressão do governo do atual
Presidente Sebastián Piñera ilustram como 1907 e 2011 não estão muito distantes. Rivera
Letelier, busca em momentos da história propor uma consciência crítica do presente.
4.2 DE SALVADOR ALLENDE AOS ANOS DEPOIS DO GOLPE
EL MONTE Y EL RIO
En mi patria hay un monte. En mi patria hay un río.
Ven conmigo.
La noche al monte sube. El hambre baja al río.
Ven conmigo.
79
¿Quiénes son los que sufren? No sé, pero son míos.
Ven conmigo.
No sé, pero me llaman y me dicen "Sufrimos".
Ven conmigo.
Y me dicen: "Tu pueblo, tu pueblo desdichado, entre el monte y el río,
Con hambre y con dolores, no quiere luchar solo,
te está esperando, amigo".
Oh tú, la que yo amo, pequeña, grano rojo
de trigo, será dura la lucha, la vida será dura,
pero vendrás conmigo
Pablo Neruda
O Chile ou a pátria do poeta Pablo Neruda (1904 -1973), comprometido com o
governo de Salvador Allende e que em seu Canto General alude à história do salitre, viveu
uma curta experiência socialista conhecida como “via chilena al socialismo”. Esse período
correspondeu aos anos que antecederam o governo de Salvador Allende. No entanto, já na
década de sessenta os ideais da Revolução Cubana de 1959 tiveram forte impacto aos latino-
americanos. No Chile, o socialista Salvador Allende, membro da Unidade Popular, idealiza
uma reforma social prestando serviços médicos gratuitos. Com isso, já dava início a sua
carreira política que o levaria a presidência. Para ele, o Chile deveria conquistar sua
independência econômica e assim obter o controle de seus recursos naturais com a aceleração
da reforma agrária, projeto este que provocaria a hostilidade das multinacionais.
80
O sonho socialista foi interrompido em onze de setembro de 1973. O golpe de
Pinochet dividiu a história do país em um “antes” e um “depois” e o mesmo aconteceu no
campo da literatura. O golpe mudou a vida dos chilenos estabelecendo um regime de opressão
e de medo. A consequência foi o exílio em massa de escritores. Para muitos desses, a
experiência no exílio foi determinante para definir o modo de viver e escrever. O romance No
pasó nada (1980), de Antonio Skármeta, aproxima o leitor desses anos no Chile, com a
história do exílio de uma família chilena na Alemanha. O texto é narrado pelo filho
adolescente, Lucho, e seu relacionamento com uma jovem alemã tratando das diferenças
étnicas.
Segundo Tomás Moulian, os anos da ditadura não foram uniformes, se dividem em
“ditadura terrorista” entre 1973 e 1980, e a “ditadura constitucional” entre 1980 e 1988/89.
(MOULIAN, 1997, p.288). Foi nessa segunda fase quando se produziu o que Moulian chama
de “transformismo” ao que considera chave para a compreensão do Chile atual e que define
como um longo processo de preparação, durante a ditadura, de uma saída desta,
destinada a permitir a continuidade de suas estruturas básicas sob outras “roupagens
políticas”, as vestimentas democráticas.
Na década de setenta muitos jovens chilenos aderiram ao movimento hippie nascido
nos anos sessenta nos Estados Unidos. O autor de Canción para caminar sobre las aguas,
impulsionado por essa “liberdade”, aos dezoito anos sai de Antofagasta e decide aventurar-se
por todo território chileno em busca de novas experiências. O sonho de uma sociedade
igualitária, vivido durante os três anos de governo de Salvador Allende, ardia no coração de
Rivera Letelier o desejo revolucionário de reviver uma prolongação dos anos sessenta.
Durante a ditadura, a música de protesto de Víctor Jara e Violeta Parra que narrava as lutas e
protestos de trabalhadores, símbolo da juventude que almejava lutar contra o autoritarismo de
um governo que apoiava a exploração das multinacionais. Essa música chegava
81
principalmente às massas e por elas era cantada como um grito de revolução, um grito de
liberdade calado pelo golpe de 11 de setembro de 1973.
Com o golpe do governo militar no início da década de setenta, o Chile viveu um
processo de liberalização econômica e modernização regada a um acirrado autoritarismo
político. Hernán Alberto Buchi Buc, economista que trabalhou durante quinze anos como
assessor econômico até o cargo de ministro da Fazenda no governo de Pinochet, correspondia
aos chamados Chicagos Boys (jovens economistas chilenos que receberam formação na
Universidade de Chicago e que formularam o plano econômico da ditadura). Para ele, em seu
livro La transformación económica de Chile: del estatismo a la libertad econômica, os anos
de governo do general Pinochet foram decisivos para o desenvolvimento do país. A abertura
ao capital estrangeiro, privatização das empresas nacionais, o Chile caminhava rumo à
modernização. A experiência socialista vivida nos anos do governo de Salvador Allende era
vista como um retrocesso na modernização chilena. A década de sessenta propunha um
modelo de desenvolvimento progressista e pacífico, a verdadeira antítese da violência e do
autoritarismo. Para Tomás Moulian a etapa terrorista:
es aquella fase de una dictadura revolucionaria en la que el derecho, que define lo prohibido y lo permitido, y el saber que define el proyecto se imponen privilegiando castigos. El orden se afirma sobre el terror. Este tiene la principal valencia en la combinación de recursos del poder. (MOULIAN, 1997, p.171).
Em Santa María de las flores negras, Rivera Letelier segue a ordem cronológica do
massacre ocorrido em 1907, porém não se pode negar o uso metafórico desse fato histórico
com outro, o golpe de 11 de setembro de 1973. Os trabalhadores em direção à cidade de
Iquique, a chegada na cidade, a organização dos sindicatos, a vinda dos militares, as
negociações sempre frustradas, o estado de sítio característico dos regimes ditatoriais e por
fim o uso do “terror”, fechando os mineiros no interior da Escola Santa María para
desencadear o massacre.
1.- Queda prohibido desde hoy traficar por las calles y caminos de la provincia en grupos de más de seis personas a toda hora del día o de la noche.
82
2.- Queda prohibido, en la misma forma, traficar por las calles de la ciudad después de las ocho de la noche, a toda persona que no lleve permiso escrito de la Intendencia. 4.- La gente venida de la pampa y que no tiene domicilio en esta ciudad se concentrará en la escuela Santa María y plaza Manuel Montt. 5- Queda prohibida absolutamente la venta de bebidas capaces de embriagar. 6- La fuerza pública queda encargada de dar estricto cumplimiento al presente decreto. (RIVERA LETELIER, 2007, p.224)
Na segunda fase da ditadura começa o retorno, que se faz patente mais tarde ao dar
início à transição, porém alguns escritores permaneceram no estrangeiro, principalmente os
que encontraram um posto no campo acadêmico. O exílio forçado levou a uma ausência
voluntária ou involuntária, e assim, os autores chilenos passaram a fazer parte de uma extensa
diáspora cultural latino-americana.
4.3 A CANTATA POPULAR SANTA MARÍA DE IQUIQUE E A MÚSICA DE PROTESTO DOS ANOS SESSENTA
Señoras y señores Venimos a contar Aquello que la historia No quiere recordar Pasó en el Norte Grande Fue Iquique la ciudad Mil novecientos siete Marcó fatalidad. Allí al pampino pobre Mataron por matar. Allí al pampino pobre Mataron por matar. Seremos los hablantes Diremos la verdad Verdad que es muerte amarga De obreros del salar Recuerden nuestra historia De duelo sin perdón Por más que el tiempo pase No hay nunca que olvidar Ahora les pedimos Que pongan atención. Ahora les pedimos Que pongan atención.
Cantata Santa María de Iquique.
83
Rivera Letelier viveu a década de 60 no Chile, principalmente no que diz respeito aos
últimos anos desta, com a consequente eleição de Salvador Allende e os três anos de governo
que antecederam ao golpe militar de 1973.
O Chile no início dos anos sessenta passou por transformações econômicas, sociais,
políticas e Rivera Letelier aborda essa época da história de seu país, não somente em Santa
María de las flores negras, mas também em seus outros romances. O fator propulsor de tais
conquistas foi a industrialização. Os meios de comunicação (jornais, rádio e televisão)
tiveram seu auge não somente para as elites mas também para a classe média que se expandia.
Estações de rádio que transmitiam músicas populares, notícias esportivas e as radionovelas. A
chegada do automóvel, dos transportes urbanos coletivos e a inauguração de aeroportos
davam sinais expressivos dos avanços tecnológicos do país.
A mudança de comportamento dos jovens espelhado no estilo norte-americano como o
movimento hippie, contestava os valores da sociedade capitalista. Em 1967 – 1968, as
universidades chilenas foram sacudidas pelo estopim da revolução dos estudantes que
começou na Universidade Católica de Valparaíso já em 67, e se estendeu à Universidade
Católica de Santiago e à Universidade do Chile. No espaço cultural fortemente associado a
essa radicalização, houve o surgimento da Nueva Canción Chilena (NCCH), que mais adiante
influenciaria a toda América Latina. De alguma maneira, essa tendência manifestaria uma
rejeição consciente à música andina comercial popular bastante difundida no país.
A NCCH incorporou um forte compromisso com o processo de mudanças sociais que
o Chile vivia nos anos sessenta e setenta. Seus integrantes assumiram um compromisso
efetivo com o governo da Unidade Popular, transformando-se em um movimento musical
com uma clara militância política. Em seu início, a Nueva Canción Chilena constituiu um
grande movimento de renovação folclórica e de caráter eminentemente massivo. Em 1969 foi
organizado um festival de NCCH na Universidade Católica do Chile, momento de
84
consagração desse estilo musical popular que começou a fazer parte da identidade artística do
país. A “Cantata Santa María de Iquique” é uma das obras musicais emblemáticas da NCCH e
nela fundiram-se elementos musicais próprios do folclore, somados a elementos da música
docta com conteúdo de denúncia social.
A origem da “Cantata Santa María” remonta ao ano de 1968, quando nos primeiros
meses o compositor Luis Advis escreveu uma série de poemas ao fim de uma viagem à cidade
portuária de Iquique, local do massacre dos mineiros. Ao final do mesmo ano, Luis Advis foi
convidado pelo instituto de teatro da Universidade do Chile para escrever a canção da obra de
Isidora Aguirre “Los que van quedando en el camino”, que tinha como tema um massacre de
camponeses. Foi este um dos principais antecedentes para a escrita da “Cantata Santa María”.
No ano seguinte, ao entrar em contato com o grupo musical folclórico Quilapayún, valendo-se
da experiência em compor para trilhas de teatro e apoiado nos poemas que já havia escrito
sobre Iquique e a história do massacre de 1907, compõe a Cantata e a entrega ao grupo. A
estréia da “Cantata Popular Santa María de Iquique” aconteceu em agosto de 1970 no
segundo Festival de NCCH realizado no atual estádio Víctor Jara. A Cantata passou a ser
hino dos militantes durante a ditadura.
Grande parte da inspiração inicial da NCCH veio do trabalho da folclorista Violeta
Parra (1917 – 1967), que já nos anos 50 era considerada a melhor folclorista do país. A alma
popular, do campo e da metrópole, está expressa na interpretação de seu canto e de suas letras.
Fundamentada na recuperação da música folclórica, os cultivadores da NCCH agregaram
fatores próprios da música continental, incorporando instrumentos e ritmos hispano-
americanos.
A Cantata está dividida em dezoito partes intercaladas por cinco relatos narrados por
Héctor Duvauchelle. Como poesia, a dura realidade da vida no interior das minas é recitado
em versos que falam da indústria do salitre, da solidão no deserto, dos baixos salários e da
85
exploração do trabalho. Os versos que seguem, fazem referência ao “pampa”, ao silêncio do
deserto, à solidão das usinas.
Si contemplan la pampa y sus rincones Verán las sequedades del silencio El sueldo sin milagro y oficinas Vacías, como el último desierto. Y si observan la pampa y la imaginan En tiempos de la industria del salitre Verán a la mujer y al fogón mustio Al obrero sin cara, al niño triste.
No segundo Relato é iniciada a greve dos mineiros:
A fines de mil novecientos siete Se gestaba la huelga en San Lorenzo Y al mismo tiempo todos escuchaban Un grito que volaba en el desierto. De una a otra oficina, como ráfagas, Se oían las protestas del obrero. De una a otra oficina, los señores, El rostro indiferente o el desprecio. - Veintiséis mil bajaron O tal vez más Con silencios gastados En el Salar - El sitio al que los llevaban Era una escuela vacía Y la escuela se llamaba Santa María - Murieron tres mil seiscientos Uno tras otro Tres mil seiscientos mataron Uno tras otro - La Escuela Santa María Vio sangre obrera La sangre que conocía Solo miseria. - Serían tres mil seiscientos Ensordecidos Y fueron tres mil seiscientos Emudecidos.
86
A “Cantata Santa María de Iquique” é parte de um projeto de artistas vinculados ao
Partido Comunista e ao governo da Unidade Popular. Apresentada ao público na década de
setenta, não somente fala dos mineiros assassinados em 1907 durante o governo de Pedro
Montt, como também foi cantada como “hino dos trabalhadores” durante a ditadura contra o
regime de Pinochet.
Representações culturais oriundas do Movimento da Nova Canção Chilena sofreram
com medidas repressivas durante o regime ditatorial. Para manter o poder, os governos
autoritários buscam eliminar todas as formas de oposição ou movimentos sociais que possam
comprometer a ordem pública, considerando essas manifestações ameaças à ordem do Estado.
A música popular, por atingir de forma massiva e por ser uma expressão artística de uma
cultura, se apresentava como uma maneira contundente de protesto e denúncia das
arbitrariedades promovidas pelos regimes militares. Como resposta à Nueva Canción Chilena
e suas canções de protesto, o governo do general Augusto Pinochet reagia com prisões de
cantores e assassinatos, como o do cantor Víctor Jara, um dos principais expoentes do
movimento com Violeta Parra e o grupo musical Quilapayún, militantes na luta comunista.
A referência de um produto cultural próprio dos anos setenta, La Nueva Canción
Chilena e sua música de protesto, faz da escolha do autor de Santa María de las flores negras
pela “Cantata Santa María de Iquique”, uma tentativa de Rivera Letelier em cercar-se de outro
“veículo” de consumo popular, a música.
5. CAPÍTULO 4
RIVERA LETELIER: UM ESCRITOR DO DESERTO
5.1 A TRAJETÓRIA LITERÁRIA DE HERNÁN RIVERA LETELIER
Rivera Letelier começa sua trajetória literária na poesia com o livro: Poemas y
Pomadas (1988), e com este ganha seu primeiro concurso regional. Segue com um livro de
contos: Cuentos breves y cuentos de brevas (1990). Um de seus mestres na literatura foi
Manuel Rojas Sepúlveda (1896–1973), pertencente à “geração de 38”, o qual Fernando
Alegría caracteriza como pertencente a uma ideologia de base sociológica, e cujas projeções
são políticas e literárias. Os poetas desta geração beiram os limites do surrealismo e do
creacionismo “para uma aproximação mais direta da realidade”. Já os narradores descartam o
regionalismo “criollista” e o substituem por uma narrativa comprometida, dando a ela um
papel preponderante aos conflitos sociais. Os escritores saíram ao campo, à montanha, ao mar,
às minas, certos de descobrir as raízes espirituais do “povo chileno” para analisar seus
costumes e compreender sua linguagem. Associava-se a criação literária com os movimentos
sociais e políticos que mudavam a face do país. (ALEGRÍA, 1968, p.142).
Na segunda metade dos anos sessenta, no campo da literatura, Chile alcança um
considerável destaque internacional na poesia. Esses foram os anos em que o poeta Pablo
Neruda (1904 – 1973), firma-se no panorama cultural e político. Por sua posição como
membro do Partido Comunista do Chile, tornou-se um poeta de seu povo que
utilizou sua poesia como instrumento de luta. Nicanor Parra (1914), também poeta, teve
vários de seus poemas musicados por sua irmã Violeta Parra.
88
Se a literatura chilena era reconhecida por sua poesia, o mesmo não se poderia dizer da
prosa. O “boom” e seus protagonistas, autores como o chileno José Donoso (1924 - 1996),
autor de Coronación (1957), Este Domingo (1966) e El lugar sin límites (1965), não alcançou
em um primeiro momento um reconhecimento do público. Nos anos do “pós-boom”, que no
caso do Chile coincidiram com a pós-ditadura, ao contrário, a narrativa chilena volta a ter um
papel protagônico. Em seu livro Historia personal del boom, publicado na década de setenta,
José Donoso descreve como se deu o impacto do novo romance na produção literária chilena
nos anos sessenta, e sua leitura do romance La región más tranparente (1958), do mexicano
Carlos Fuentes. A ascensão e decadência da experiência socialista interferiram diretamente no
processo de escrita desses autores.
Em romances como Rayuela (1963), de Julio Cortázar, La ciudad y los perros (1963) e
La casa verde (1966), de Mario Vargas Llosa; El astillero (1961), de Juan Carlos Onetti, Cien
años de soledad (1967), de Gabriel García Márquez; La muerte de Artemio Cruz (1962), de
Carlos Fuentes; Paradiso (1966), de José Lezama Lima; Museo de la novela de la Eterna
(1967), de Macedonio Fernández e mesmo os que foram escritos ainda na década de
cinquenta mas que foram determinantes, como Pedro Páramo (1955), de Juan Rulfo, tinham
como um de seus protagonistas a experimentação da linguagem. O fluxo de consciência, a
presença de mais de um narrador, o esvaziamento do tempo cronológico, todo esse arsenal de
recursos passaria a ser largamente utilizado por diversos autores ao longo dessa década.
Importava então, para os autores latino-americanos, voltar-se para sua gente, discutir suas
dificuldades, expor seus anseios e, de certo modo, retratar a luta empreendida por seu país
com o intuito de produzir uma mudança estrutural em sua forma de vida.
Fator importante no que diz respeito ao consumo da literatura na década de sessenta,
foi dado pelo perfil dos leitores que absorviam esses romances, ou mesmo, a relação entre os
termos “alta cultura” e “cultura de massa”. Em uma tentativa excessiva de distanciar-se dos
89
romances regionalistas, o grupo de escritores que tiveram seus romances destacados no
“boom” optou por experimentações narrativas que em alguns casos levava à não compreensão
do leitor menos privilegiado.
No caso do Chile, os escritores alcançaram sua produção literária reconhecida depois
da década de sessenta, ou ainda dentro dela. Autores como Hernán Rivera Letelier, buscaram
deixar para trás toda uma “façanha verbal” e privilegiar uma escrita cimentada no realismo e
no compromisso social. O protagonista será o “homem” com todos os seus conflitos sociais,
políticos e principalmente seus traumas, em consequência dos crimes e massacres do governo
militar. A linguagem tão privilegiada na literatura dos anos antecedentes, agora assumiria a
função de “instrumento”. O choque traumático produzido pela queda de Salvador Allende
gerou um maior nível de compromisso político e social nos escritores.
A ditadura de Pinochet se caracterizou como um momento de repressão a todas as
formas de expressão, dentre elas a literatura. Em consequência disso, muitos escritores foram
exilados para Berlim. Esta cidade se converteu graças a Antonio Skármeta, Carlos Cerde,
Jorge Edwards e outros, em um lugar da literatura chilena. Os que permaneceram no país
experimentaram o que significa escrever sob o regime ditatorial. Considerar o contexto
histórico no qual Roberto Bolaño escreveu seus romances é ao mesmo tempo explorar o
cenário das discussões que permeiam as heranças das últimas ditaduras latino-americanas. Os
autores da geração de cinquenta e sessenta no Chile estão marcados por fortes acontecimentos
históricos que ocorreram no país desde o início da ditadura nos anos setenta. Os textos de suas
obras se radicam em um tempo específico do ponto de vista político e sócio-cultural.
a diferencia de la generación anterior, se pretende fundar un discurso narrativo originado en el deseo de colocar la literatura al servicio de la representación de una épica cotidiana donde reaparece la confianza en las capacidades individuales y colectivas para instalarse triunfalmente en el mundo y construir una sociedad mejor. (PROMIS, 1994, p.167).
90
A geração dos anos oitenta também é chamada por Ana María del Río de “emergente”,
geração “pós-golpe” ou “marginal”. Entre a diversidade literária dos autores desta geração
estão Diamela Eltit, Roberto Bolaño, Luis Sepúlveda, Alberto Fuguet, Sérgio Gómez e
Hernán Rivera Letelier. Para alguns dos autores dessa geração, os temas políticos
mencionados são “afrontados em términos mais diretos”, prescindindo cada vez mais de
metáforas e alegorias. Obras com temas como “a necessidade de uma justiça que julgue a
violação dos direitos humanos”, o exílio e a tortura. Os autores desta geração eram
adolescentes quando o golpe aconteceu e passaram sua juventude em um país caracterizado
pelo medo, a vigilância, a censura, a perseguição, o crime e a luta clandestina. Uma atmosfera
pessimista que Rivera Letelier ficciona em romances como: La Reina Isabel cantaba
rancheras (1994) e La contadora de películas (2009).
Chega-se aos anos 90 e a situação política e sócio-econômica do Chile sofre mudanças
devido a protestos dos movimentos estudantis e trabalhistas durante a década dos anos 80 em
que muitos trabalhadores perderam seus postos de trabalho, situação mostrada por Rivera
Letelier no romance Mi nombre es Malarrosa (2008). O Chile, ao final do governo militar,
não é o mesmo de sua juventude. Essas manifestações contribuíram para a desestabilização do
regime de Pinochet além de fortalecer a oposição democrática. É na década de noventa que se
celebra a volta parcial da “democracia” e no âmbito particular da literatura, o aumento no
número de leitores de romances ocasionado pela abertura política, estabilidade econômica,
empresa editorial com projetos a médio-prazo, globalização e consumo de livros como
indicador de status social. Além do êxito das estratégias de marketing para impor um produto
no mercado, é inegável que o leitor optou pelo romance porque se identifica com as histórias
narradas.
Em sua Introducción a la novela contemporánea, Andrés Amorós sustenta que o
romance exerce uma ampla influencia social através da denúncia e da descrição de
91
acontecimentos concretos, e que pode chegar a influir em todos os âmbitos da vida social.
Para ele, Sartre incorre em um erro ao afirmar que o escritor comprometido deva também
participar em debates sociais e políticos, pois depende mais do temperamento do escritor que
mesmo de seu envolvimento em uma causa. Por outro lado, o não participar ativamente no
debate, não pressupõe necessariamente a falta de compromisso por parte do artista. Andrés
Amorós censura também a ideia de Sartre de que todo bom romance, e por extensão toda boa
literatura, busca transformar a sociedade de uma maneira revolucionária. A posição de Sartre
revisada por Amorós se resume ao seguinte: “o compromisso do escritor é com seu meio e,
por tabela, com todos os homens”. (AMORÓS, 1989, p.234).
Talvez um dos temas mais debatidos e ao mesmo tempo mais desgastados do ofício
literário seja o do compromisso do escritor. É no período pós-guerra que o termo “literatura
engajada” se define no campo literário. As posições dos artistas são tão variadas como
extremas. Autores como Sartre (1905 – 1980) e Pablo Neruda (1904 -1973) defendem que a
literatura deve velar por causas sociais e justas, de maneira que a arte seja “representativa da
sociedade”. Os dois escritores advogam pelo socialismo. Na antípoda deste pensamento,
escritores como Jorge Luis Borges (1899-1986), desacreditam profundamente no
compromisso do escritor, e asseguram que essa suposta permanência da arte é em definitiva o
obstáculo para a liberdade criativa.
A evolução literária dos escritores chilenos do século XX e no que vai do XXI, mostra
o mesmo quadro que caracteriza a literatura em geral. Um quadro de instabilidade, de
modificação, de ruptura, de transgressão, de variedade dentro da unidade, que parecem
próprios dos tipos de discurso que se vem produzindo na literatura através dos tempos, das
línguas e das culturas. Talvez por essa razão, nem a crítica, nem a teoria literária, nem a
história da arte conseguiram estabelecer categorias aceitas por unanimidade e validadas,
pretendendo resolver o problema da variação permanente, da multiplicidade e da
92
heterogeneidade das formas literárias. Por isso mesmo, a dificuldade em encontrar um lugar
para a literatura escrita por Rivera Letelier. O sucesso de vendas de seus livros além das
fronteiras chilenas o convertem em um escritor conhecido e reconhecido pelo seu público. No
entanto, escritores como Roberto Bolaño em seu livro El gaucho insufrible (2003), lamenta
por sua “cursilería y sentimentalismo”. (BOLAÑO, 2003, p.173).
As transformações mais recentes do cânone da literatura hispano-americana se
realizaram principalmente em relação ao discurso narrativo, considerando que nos anos
setenta se iniciou um abandono parcial de algumas chaves literárias do chamado “boom”
latino-americano. Surgem novas formas de realismo diante das complexidades metaliterárias
ou fantásticas, o “Novo Romance Histórico”, a literatura de autoria feminina, a diminuição do
interesse pelo problema da identidade americana, a aceitação “acrítica” de modelos
procedentes da globalização e do neoliberalismo, entre outros.
Essa situação provocou também a necessidade de buscar outras modalidades mais
acessíveis à leitura dos novos textos. Ao final do século XX apareceram novos espaços de
instabilidade, crise e modificação do cânone, gerados principalmente por processos de
interdisciplinaridade e interculturalidade, características dos discursos contemporâneos.
Escritores como Hernán Rivera Letelier, levam para ficção momentos da história do
país, para que as novas gerações olhem para o Chile de hoje sem esquecer das lutas, mortes e
massacres vividos durante séculos na história política. Ao primeiro contato com Santa María
de las flores negras (2002), o leitor já conhece o final, porém a leitura o envolve, os
personagens passam a seduzir até levá-lo ao último capítulo, para que este cumpra sua função
de ficcionar um dos maiores massacres já conhecidos, mas que até o momento da publicação,
era cantado pelo grupo musical: Quilapayun: “Señoras y señores, venimos a contar aquello
que la historia no quiere recordar”. O autor escreve sempre desde um lugar e ao escrever,
93
reproduz esse lugar, pois, não se trata de um lugar no qual o escritor ocupa com seu corpo e
sim o lugar, que por meio de sua escrita, vai modulando linguagem, imagens e conceitos.
Rivera Letelier mantém uma linha social em seus romances, porém em Santa María
de las flores negras, percebe-se uma maior intensidade, pois ainda que se tratando de um
romance do “pampa”, do salitre, o autor se centra diretamente em um fato histórico. O norte
chileno significou muito para o desenvolvimento do país, e por outro lado, está a condição de
escravidão dos trabalhadores.
Os espaços fictícios criados pelo autor situam-se na segunda metade do século XX e
estão ambientados no deserto de Atacama, região riquíssima em salitre, cuja exploração teve
seu esplendor nas três primeiras décadas. Em seguida, vem a queda abrupta das minas,
quando os alemães descobrem o salitre sintético e todo esse território vive uma total
decadência. Até o presente, seus textos estão todos vinculados ao mesmo tema e aos povoados
que surgiram pelo imperativo econômico da exploração. São as chamadas “oficinas
salitreras”. Esses pequenos povoados se desenvolveram nas mediações das minas e é essa
realidade social que o escritor dá vida em cada uma de suas narrativas, uma vez que em seus
romances conta histórias que tratam da vida cotidiana dos mineiros, das mulheres, das
prostitutas e das crianças, todos eles compartilhando a mesma solidão do deserto. Para o
trabalhador chileno, o “pampa” faz parte de sua história. A obra de Rivera Letelier é o reflexo
de uma camada da sociedade, de uma parte da história do Chile.
A função da literatura para Juan José Saer não é corrigir distorções frequentemente
brutais da história imediata, nem mesmo produzir sistemas compensatórios do mundo em toda
a sua complexidade, ou mesmo explicar com suas indeterminações e tratar de forjar a partir
dessa complexidade, formas que a representem. Como escritor de um único discurso, Hernán
Rivera Letelier é bastante delimitado, pois, todas as suas histórias são desenvolvidas nos
acampamentos das usinas de extração do salitre, e representam o imaginário dos trabalhadores
94
por meio de um discurso esquerdista que nasce de suas visões, de sua consciência política, e
que ele elabora por mais de uma vez sem levar em conta nem a expectativa de sua audiência
nem as mudanças de situação.
Com a publicação de Santa María de las flores negras no início do século XXI e
próximo ao centenário do massacre dos mineiros, esse texto revela o compromisso de Rivera
Letelier com seu tempo, com sua identidade, com a memória de seu país, com o sonho da
revolução em um discurso que impulsione a massa popular a não calar, e que os protestos
levados às ruas do Chile não sejam mais uma vez como em 1907, na Escola Santa María,
“varridos”, e que as ruas e praças chilenas de hoje não continuem com o ar impregnado com o
cheiro de rosas umedecidas de sangue.
Analisar a recepção dos leitores no início do século XXI a esse romance é desafiador,
pois de um lado está a crítica ao estilo narrativo realista de Hernán Rivera Letelier,
confrontando com romances que exigiam mais de seu público, com uma linguagem mais
rebuscada, um discurso que instiga a interpretação do leitor, textos costurados com ironias; e
do outro, um verdadeiro sucesso em vendas pelas editoras, não somente no Chile e outros
países hispano-americanos, mas também em países europeus. Com inúmeros prêmios
recebidos dentro e fora de seu país, Rivera Letelier desde a publicação de seu primeiro
romance La reina Isabel Cantaba rancheras (1994), vem conquistando um público leitor fiel
às suas obras, razão de tanto sucesso em vendas e o reconhecimento gradativo do valor social
e político de seu discurso. O que leva aos leitores a reflexão de que talvez as técnicas
narrativas de Rivera Letelier não estejam tão “ultrapassadas” assim, ou que essa seja uma das
propostas de sua literatura: que o Chile de medidas autoritárias, de desigualdade social, de
fome e miséria, ainda está diante dos olhos dos que não se deixam fantasiar pela falsa imagem
de “democracia”. Um mundo no qual os valores da economia de mercado parecem substituir
os valores políticos.
95
Com Poemas y Pomadas (1988), Rivera Letelier representa uma época em que o Chile
vive um período ditatorial. Já em Cuentos breves y cuentos de brevas (1990), o país começa a
viver em etapa de transição entre o final de um governo ditatorial comandado por Augusto
Pinochet e o governo do democrata Patrício Aylwin. Uma imensa dívida social deveria ser
paga pelo povo chileno. O governo de Patrício Aylwin tinha como metas estabelecidas o
controle da inflação e continuar promovendo a política de exportação. Os dois últimos anos
do regime militar haviam sido levemente inflacionários, com um maior gasto fiscal utilizado
para conseguir um maior apoio do eleitorado.
Patrício Aylwin realizou numerosas viagens oficiais a países estrangeiros, concebidas
para restabelecer as relações internacionais chilenas em que representava também uma forma
consciente de promover as exportações. Em setembro de 1991, Chile e México assinaram um
tratado de livre comércio, que em um ano duplicou o fluxo entre as duas nações. As
esperanças, a longo prazo, estavam postas agora em um eventual acesso ao acordo de Livre
Comércio, ratificado pelo Senado dos Estados Unidos no final do ano de 1993, e ao mercado
comum (MERCOSUL), que então estava criado entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai.
No setor trabalhista foi promulgada uma nova lei em 1990 para aumentar os direitos
dos sindicatos do comércio e a negociação coletiva. Os movimentos trabalhistas, reunidos
agora em uma nova confederação nacional (a Central Unitária de trabalhadores, 1998), ainda
tinham muito terreno por conquistar.
Em muitos sentidos, tais episódios podiam ser considerados simplesmente como os
sintomas de uma revitalização gradual da democracia. Todos esses fatos que foram
mencionados compõem o universo chileno no momento em que Hernán Rivera Letelier inicia
suas publicações. A segunda metade do século XX e os primeiros anos do século XXI, o
Chile vive um período de transformação em sua sociedade e sua política neoliberal avança
como “modelo” a todos os países da América Latina. Um país hoje comandado pelo
96
Presidente Sebastián Piñera, guarda em sua memória social, séculos de exploração com a
extração do salitre, um massacre a milhares de trabalhadores desarmados e uma ditadura que
como todas, ainda existem feridas a serem cicatrizadas.
Ao deslocar o cenário de todas as suas histórias, até o momento, do ambiente urbano e
moderno da cidade de Santiago, para o deserto do Atacama, Rivera Letelier quer tornar
presente ao leitor, um setor da sociedade que move grande parte da economia do Chile. Em
contradição à modernidade está o deserto, esse universo particular, “con sus espejismos” , que
guarda tantos “massacres” e que “calou” tantas revoluções.
97
6. CONCLUSÃO
Um país de uma “louca geografia”, como define o título do livro de Benjamin
Subercaseaux (1902 – 1973), escritor e pesquisador chileno, o Chile com sua economia de
mercado, abriu suas “portas” ao capital estrangeiro e hoje é uma das sociedades mais
globalizadas da América Latina. No entanto, lutas estudantis por Reformas na Educação,
greves dos trabalhadores por razões não tão diferentes das de 1907 em Iquique, com a
resposta repressiva do governo que recusa fazer concessões favorescendo a educação
universitária gratuita, estão a cada dia proporcionando ao Chile o clima de medo vivido nos
dezessete anos de ditadura.
O Chile é o país do surgimento aparentemente cedo do movimento operário, de uma
estrutura partidária mais sólida do que a média do continente, com a particularidade da
presença dos partidos comunistas e socialistas com peso importante na vida do país. O Chile é
o país de Eduardo Frei, de Salvador Allende, Ricardo Lagos e Sebastián Piñera. É, ao mesmo
tempo, o país de uma cultura de raízes populares como poucas vezes se teve conhecimento
porque construída ao longo das vivências históricas de seu povo.
Os temas discutidos nos capítulos como: localização do romance, as técnicas utilizadas
e o porquê dessas técnicas, o lugar que o escritor ocupa dentro da literatura de seu país, seu
comprometimento com questões sociais e políticas, para quem escreve, ou mesmo a
repercussão de seu texto em um cenário literário no qual uma pluralidade de discursos
propagada desde o surgimento das vanguardas, torna-se necessário o uso de novas técnicas
narrativas, ambiguidades, textos densos e, no entanto, Hernán Rivera Letelier opta por
técnicas do realismo, o “folhetim histórico”, que na visão de alguns escritores
contemporâneos parecem “ultrapassadas” e, no entanto, é sucesso de vendas no mercado
editorial atingindo um público que para ele é seu público alvo: a classe operária.
98
Traduzido a várias línguas e ganhador do prêmio Alfaguara de 2010 com o romance
El arte de la resurrección (2010), a literatura de Hernán Rivera Letelier apresenta-se como
observadora e questionadora de um presente. Um escritor que possui seu discurso com o
“olhar para o passado” na tentativa de explicar um “presente”. A luta de classes, Estado de
exceção, exploração, norte do Chile, movimentos sindicais, um país que anseia por manter a
imagem de governo democrático mostrando-se aos outros países latino-americanos como país
modelo em modernização e industrialização, mas que no entanto, “cala” seu povo, são temas
que norteiam os romances de Rivera Letelier e posicionam sua literatura no atual discurso
contemporâneo.
Com a publicação Santa María de las flores negras no início do século XXI, e
próximo ao centenário do massacre dos mineiros, esse texto revela o compromisso de Rivera
Letelier com seu tempo, com sua identidade e com a memória de seu país.
Analisar a recepção dos leitores no início do século XXI a esse romance é instigante,
pois de um lado a crítica de escritores, como a de Roberto Bolaño, ao estilo narrativo de
Rivera Letelier com o uso das técnicas do realismo, personagens “tipo”, histórias “clichês”,
romances de folhetim; contrapondo com romances que exigiam mais de seu público, com uma
linguagem mais rebuscada, uso de alegorias, um discurso que instiga a interpretação do leitor
ou mesmo exigindo para uma melhor interpretação do texto um conhecimento do tema. O
autor de Fatamorgana de amor com banda de música em resposta a toda essa crítica, segue
escrevendo e publicando seus livros e é considerado um verdadeiro sucesso de vendas pelas
editoras. As exigências em relação às formas de se discutir o presente, passaram assim a
influir diretamente na maneira de se olhar o passado. No caso do Chile, o lugar que o golpe
militar de 1973 passou a ocupar na história.
Hernán Rivera Letelier nasceu no norte do Chile e conviveu durante toda a sua
infância e juventude no universo das minas do salitre. Seu pai era mineiro e morreu por
99
doenças ocasionadas pela extração do minério. Desde muito cedo, aprendeu a conviver e a
suportar a miséria e a exploração causada pelas empresas norte-americanas. Ao escrever seus
romances privilegiando este cenário, Rivera Letelier é um observador “interno” das condições
precárias dos acampamentos das usinas. Cada personagem “tipo” de suas histórias, diz um
pouco da solidão do deserto, da forma como essas pessoas costumam viver.
No final da década de sessenta, a experiência vivida com o governo da Unidade
Popular impulsiona a esperança de uma era mais igualitária, de um Chile com menos
desigualdades. Esse sonho foi interrompido pelo golpe de 11 de setembro de 1973 no “Palácio
de la Moneda”, comandado por Augusto Pinochet. O povo reage, vai às ruas, manifestações
públicas de apoio ao governo do socialista Salvador Allende, passeatas, confrontos com os
militares até a invasão do Palácio e a morte do Presidente levando a ilusão de um governo
também para o povo. Rivera Letelier viveu todo esse clima de instabilidade política em seu
país. Experimentou a rebeldia dos jovens do movimento hippie, saindo de Antofagasta e
percorrendo territórios chilenos ainda por ele desconhecidos. Esse movimento que teve seu
auge nos anos sessenta foi interrompido bruscamente no Chile com o golpe de Estado. Essa
experiência está em Canción para caminar sobre las águas (2004), livro que conta a história
de sexo, drogas e amizade entre três jovens que viajam pelo norte do Chile durante o governo
da Unidade Popular.
O período que vai do final dos anos sessenta, passando pelo governo popular de
Salvador Allende até a tomada de poder pelos militares é muito marcado nos textos de Rivera
Letelier. Em Santa María de las flores negras, volta-se ao início do século XX, com o
massacre dos mineiros, levando para o universo da ficção um tema da história do proletariado
que já havia sido narrado por historiadores como Pedro Bravo Elizondo e Eduardo Devés.
Cerca-se não somente de referências bibliográficas, mas também das principais manifestações
populares de caráter político da época, como por exemplo a música de protesto. Privilegiando
100
sempre a cultura popular, Rivera Letelier estabelece uma tessitura musical e rítmica em seus
romances. Em Santa María de las flores negras, já no título reporta à “Cantata Santa María de
Iquique”, interpretada pelo grupo folclórico Quilapayún na década de sessenta, momento em
que floresceu a Nueva Canción Chilena (NCCH).
A começar pelo tema extraído da historiografia oficial, a Cantata representa os valores
do mundo do trabalho industrial, que na época de sua criação, fazem florescer na temática de
música popular. Sua mensagem unitária se insere no espírito de liberdade dos movimentos
sindicais. Formalmente, o relato épico se apresenta estruturado e exposto em uma tensão
evolutiva dos fatos. A unidade musical com a qual a obra é composta possui interlúdios
instrumentais e coros, os elementos temáticos aparecendo como uma polifonia com mudanças
na tonalidade e no andamento da música. Os instrumentos de sopro provenientes da tradição
folclórica andina costuram toda a obra conservando sua riqueza e complexidade rítmicas.
Para Hernán Rivera Letelier, o deserto de Atacama está “coroado” de tragédias,
greves, massacres, uma vida castigada pela exploração das minas, um verdadeiro contraste
entre a tecnologia encontrada na cidade de Santiago e a precariedade dos que estão nos
alojamentos das usinas. O perfil da sociedade chilena que Rivera Letelier busca representar
em Santa María de las flores negras, quando põe em sua ficção o massacre dos mineiros, não
está distante do perfil dos mineiros que trabalham hoje na extração do cobre. O resgate dos
trinta e três trabalhadores em outubro de 2010, expôs o Chile aos “olhos do mundo” e mostrou
que o cenário escolhido pelo autor, o deserto, mesmo com todo seu histórico de protesto,
segue similar ao de 1907.
Dividido em três partes, à semelhança do documentário do cineasta Patrício Guzmám,
Hernán Rivera Letelier ao publicar Santa María de las flores negras, acredita que com a
“tomada” de consciência política pelos trabalhadores, a “junção” de setores populares, assim
como em 1973 os trabalhadores organizaram os “cordões industriais”, é possível recuperar os
101
“ideais” da Revolução Socialista iniciada na década de setenta com Salvador Allende. Em
1907, os mineiros foram massacrados pelos militares no interior da Escola Santa María; em
1973, o Palácio de La Moneda é bombardeado também por militares. Duas experiências
traumáticas que compõem o histórico dos movimentos trabalhistas do Chile.
Na literatura chilena, seguem publicando seus textos escritores de diferentes gerações,
com distintas posições políticas e literárias. Convivem autores que não saíram do país nos
anos de ditadura, com os que se foram e voltaram, e com os que permaneceram distantes. O
“Novo Romance Histórico” revela-se como um caminho para mostrar o presente,
apropriando-se da História, para propor aos textos contemporâneos uma narrativa
questionadora que se situa sobreposta às verdades ditas absolutas, atuando para seus leitores
como pontes entre o referente histórico e a contemporaneidade de sua escritura.
7. BIBLIOGRAFIA
ALONSO, Amado. Ensayo sobre la novela histórica. Madrid: Gredos, 1985. ALEGRÍA, Fernando. La literatura chilena contemporânea. Buenos Aires: CEAL, 1968. ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: Escritos efêmeros sobre Arte, Cultura e Literatura. Trad. Lyslei Nascimento. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. AMORÓS, Andrés. Introducción a la novela contemporánea. Madrid: Cátedra, 1989. BERMÚDEZ, Emilia (2002). Procesos de globalización e identidades. Entre espantos, demonios y espejismos. Rupturas y conjuros para lo “propio” y lo “ajeno”. En: Daniel Mato, coord.: Estudios y Otras Prácticas Intelectuales Latinoamericanas en Cultura y Poder. Caracas: Consejos Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO) y CEAP, FACES, Universidad Central de Venezuela. BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Martins Barbosa, Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989. ________________ Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rounet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1994. BITAR, Sergio. Transição, socialismo e democracia: Chile com Allende. Trad. Rita Braga. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. BOLAÑO, Roberto. La literatura nazi en América. Barcelona: Seix Barral, 2008. ________________ Noturno do Chile. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. ________________ El gaucho insufrible. Barcelona: Alfaguara, 2010. BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
103
BUC, Hernán Buchi. La transformación económica de Chile: del estatismo a la libertad económica. Bogotá: Editorial Norma, 1993. BURKE, Peter (org). A escrita da história. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Editora da UNESP, 1992. CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Edición del IV Centenario. Madrid: Santillana Ediciones Generales, 2004. COSTA LIMA, Luis. Pós-modernidade. Contraponto tropical. In: _______ Pensando nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p.119-137. CANDIDO, Antonio. O escritor e o público. In: ____ Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010. DALVÉS, Eduardo. Los que van a morir te saludan: historia de una masacre: Escuela Santa María, Iquique, 1907. Santiago: Eds. Documentos, 1989 DE DIEGO, José Luis: La pos-dictadura: el campo literario In: _____ ¿Quién de nosotros escribirá el Facundo? Intelectuales y escritores en Argentina. (1970 – 1986). La Plata: Ediciones Al Margen, 2001. DONOSO, José. Historia personal del boom. Madrid: Alfaguara, 1999. EAGLETON, Terry. Ideologia. Trad. Silvana Vieira, Luís Carlos Borges. São Paulo: Editora Boitempo, 1997. GALDAMES, Osvaldo Silva. Breve historia contemporánea de Chile. México: Fondo de Cultura Económica, 1995. GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas. Estratégias para entrar y salir de la modernidad. Buenos Aires: Sudamericana, 1992. __________________________ Latinoamericanos buscando lugar en este siglo. Buenos Aires: Paidós, 2002. HUYSSEN, Andréas. Mapeando o pós-moderno. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
104
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: História, teoria, ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991. KRACAUER, Siegfried. O ornamento da massa. Trad. Carlos Eduardo Jordão Machado e Marlene Holzhausen. São Paulo: Cosac Naify, 2009. KREIMER, Juan Carlos. Contracultura para principiantes. Buenos Aires: Era Nasciente, 2007. LETELIER, Hernán Rivera. Santa María de las flores negras. Santiago: Alfaguara, 2007. ____________________ El arte de la resurrección. Madrid: Alfaguara, 2010. ____________________ La contadora de películas. Madrid: Alfaguara, 2009. ____________________ Mi nombre es Malarrosa. Santiago: Alfaguara, 2008. ____________________ El Fantasista. Madrid: Alfaguara, 2006. ___________________Fatamorgana de amor con banda de música. Madrid: Alfaguara, 2007. _________________ _Hinmo del Angel parado en una pata. Santiago: Editorial Planeta, 1996. _________________ La Reina Isabel cantaba rancheras. Santiago: Planeta, 1994. LUKÁCS, Georgy. O romance histórico. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2011. ______________ Arte e sociedade: escritos estéticos 1932 – 1967. Trad. Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011. MATO, Daniel. Teoría y Política de la construcción de las identidades y diferencias en América Latina. Caracas: UNESCO, 1994.
105
MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. MOULIAN, Tomás. Chile actual: Anatomia de um mito. Santiago: LOM – ARCIS, 1997. OVIEDO, José Miguel. História de la literatura hispanoamericana. Madrid: Alianza, 2007. OCTAVIO, Paz. Los signos en rotación y otros ensayos. Prólogo de Carlos Fuentes. Madrid: Alianza Editorial, 1986. PROMIS, José. Programas narrativos de la novela chilena en el siglo XX. En: Revista Iberoamericana. 1994, pp.168-169, 925- 933. RAMA, Ángel. Novísimos narradores hispanoamericanos en Marcha, 1964-1980. México: Marcha, 1981. REIS, JOSÉ Carlos. A escola dos Annales: A inovação em história. São Paulo: Paz e Terra, 2000. RUFFINELLI, Jorge. Patrício Guzmán. Madrid: Ediciones Cátedra, 2001. SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas latinoamericanas. Polêmicas, manifestos e textos críticos. São Paulo: USP/Iluminuras, 1995. SERRA, Tânia Rebelo Costa. Antologia do romance-folhetim: (1389 – 1870). Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1997. SKÁRMETA, Antonio. Soñé que la nieve ardía. Barcelona: Plaza & Janés, 2001. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. SUBERCASEAUX, Benjamin. Chile o una loca geografia. Santiago: Ediciones Ercilla, 1949. VARGAS LLOSA, Mario. La verdad de las mentiras. Madrid: Santillana Ediciones Generales, 2003.
106
VIU BOTTINI, Antonia. Imaginar el pasado, decir el presente. La novela histórica chilena (1985 – 2003). Santiago: RIL editores, 2007.
http://www.archivochile.com/Historia_de_Chile/sta-ma2/4/stamacult00009.pdf (Fonte acessada em 21/07/09).