hermenÊutica filosÓfica · imortalidade da alma) e o de quantitate animae (da grandeza da alma),...
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HERMENEcircUTICA FILOSOacuteFICA
TEXTO 5
1226 Agostinho e a hermenecircutica
Agostinho faz convergir os esforccedilos despendidos pela escola de Antioquia com
sua exegese literal e pela escola de Alexandria com sua exegese alegoacuterica Sua exegese
conduz para o acircmbito do sentido literal com uma exigecircncia de exatidatildeo e para o acircmbito
do sentido alegoacuterico com uma exigecircncia de rigor espiritual Exatidatildeo literal e rigor
espiritual satildeo uma dupla exigecircncia de uma hermenecircutica das Escrituras Sagradas
ldquoAgostinho produz a primeira lsquohermenecircuticarsquo em estilo grandiosordquo1 Heidegger a
caracteriza como ldquoabrangenterdquo (umfassend) e ldquovivazrdquo (lebendig)2 Tomemos em
consideraccedilatildeo a hermenecircutica de Agostinho ao menos grosso modo
O Agostinho antes da conversatildeo eacute um gramaacutetico (conhecedor da liacutengua e da
literatura ndash neste caso latina) Eacute tambeacutem um retoacuterico (orador e perito na arte da
eloquecircncia) Eacute ainda um erudito Sua erudiccedilatildeo se desenvolve segundo o modo de
Ciacutecero Este traccedilou para a romanidade o ideal do ldquodoctus oratorrdquo Trata-se do homem
que eacute perito nas artes da gramaacutetica (liacutengua e literatura) e da retoacuterica (eloquecircncia) dando
a estas artes um conteuacutedo retirado das ldquobonas artesrdquo apreciadas pelo humanismo
romano3 Com efeito a via do cultivo da ldquohumanitasrdquo no humanismo romano era
1 Heidegger M Ontologia (Hermenecircutica da Faticidade) p 18 2 A traduccedilatildeo diz ldquode caraacuteter geral e ativordquo Heidegger M Ontologia (Hermenecircutica da Faticidade) p 20 3 Um acontecimento fundador para o ocidente foi o encontro entre a romanidade e a grecidade mais propriamente a ldquovirtus romanardquo e o seu ldquoimperiumrdquo com a ldquopaideiardquo Em grego a palavra Paideacuteia tem uma grande riqueza de significados educaccedilatildeo formaccedilatildeo cultura civilizaccedilatildeo Inicialmente tem o sentido de infacircncia juventude O verbo ldquopaideuordquo significava entre outras coisas educar a crianccedila (pais) Outro significado originaacuterio de ldquopaideuordquo era cultivar ndash cultivar aacutervores por exemplo Em latim haacute o verbo ldquocolererdquo que significa morar habitar mas tambeacutem cultivar tanto em sentido fiacutesico quanto moral De ldquocolordquo (cultivo) vem a palavra ldquoculturardquo Em todo o caso ldquopaideiardquo indica o processo pelo qual o homem vem a ser o que ele eacute segundo a exortaccedilatildeo de Piacutendaro (sec VI aC) ldquovem a ser o que tu eacutes aprendendordquo Paideacuteia indica pois o processo de humanizaccedilatildeo do homem ou seja de apropriaccedilatildeo pelo homem
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constituiacuteda pela ldquoeruditio et institutio in bonas artesrdquo - ldquoerudiccedilatildeo e instruccedilatildeo nas lsquoboas
artesrsquordquo Tratava-se das ldquomathemata eleutherardquo ou ldquoartes liberalesrdquo4 Entre as sete artes
livres poreacutem os romanos privilegiavam as do Trivium ndash deixando em segundo plano as
do Quadrivium5 Em Quintiliano por exemplo a formaccedilatildeo do ldquovir bonusrdquo o cidadatildeo
capaz de cuidar da coisa puacuteblica comeccedila a sua instruccedilatildeo com a gramaacutetica ndash das liacutenguas
latina e grega ndash continua com as matemaacuteticas e com a muacutesica e culmina com a dialeacutetica
e a retoacuterica Estas eram as chamadas ldquoartes bonaerdquo Terecircncio acrescentava agraves sete artes
liberais a medicina e a arquitetura Enfim para os romanos as artes liberais continham
os saberes necessaacuterios na formaccedilatildeo integral do homem puacuteblico matemaacuteticas
literatura o conhecimento da natureza das coisas dos costumes dos homens e das
coisas puacuteblicas O pivocirc poreacutem da formaccedilatildeo do homem culto romano era a gramaacutetica
(letras) e a retoacuterica As demais artes livres serviriam apenas como conteuacutedo para o
histoacuterico de sua proacutepria humanidade Por isso os romanos traduziram a palavra ldquopaideiardquo por ldquohumanitasrdquo ldquoHumanitasrdquo natildeo eacute para a liacutengua dos romanos somente a natureza do homem ou da espeacutecie humana mas eacute tambeacutem o processo pelo qual o homem se apropria de sua natureza no ldquomediumrdquo da cultura ou seja a educaccedilatildeo O homem educado no elemento da cultura melhor da ldquocivitasrdquo eacute o ldquohomo humanusrdquo em oposiccedilatildeo ao ldquohomo barbarusrdquo imerso no estado de natureza o ldquoselvagemrdquo eacute o homem ldquocivilisrdquo o homem citadino civilizado Daiacute ldquohumanitasrdquo significava tambeacutem o mesmo que ldquourbanitasrdquo urbanidade no sentido de polidez civilidade elegacircncia cortesia em oposiccedilatildeo a ldquorusticitasrdquo que eacute o proacuteprio do homem do ldquorusrdquo isto eacute do campo o homem rural que se reveste da ambiguidade de ldquorusticusrdquo o homem ruacutestico rude ingecircnuo (no bom e no mal sentido) simples mas tambeacutem grosseiro Tudo isso pertence agrave perspectiva do humanismo romano ancestral de todos os outros humanismos ocidentais tanto o humanismo cristatildeo medieval quanto o humanismo renascentista e os demais humanismos modernos 4 Entre as ldquoartes mecacircnicasrdquo e as ldquobelas artesrdquo se encontravam as ldquoartes liberalesrdquo as artes livres Livres de quecirc Livres das necessidades imediatas utilitaacuterias econocircmicas em que a vida do homem se move no cotidiano em busca do ldquouacutetil e agradaacutevelrdquo Os saberes destas artes eram considerados essenciais para formar o ldquohomem livrerdquo O sentido do estudo destas artes era a busca da verdade por causa da proacutepria verdade para aleacutem de todo o interesse utilitaacuterio 5 As raiacutezes das ldquoartes liberalesrdquo mergulham no mundo grego Jaacute Platatildeo no diaacutelogo ldquoPoliteiardquo (Repuacuteblica) lanccedila o projeto de uma ldquopaideiardquo ideal para a vida na ldquopolisrdquo uma formaccedilatildeo que fosse aleacutem do utilitarismo dos sofistas e que retomava e aperfeiccediloava o projeto pitagoacuterico Depois de uma formaccedilatildeo inicial em muacutesica e ginaacutestica que formaria a percepccedilatildeo e sensibilidade (aisthesis) o menino devia ser formado nos saberes ldquomatemaacuteticosrdquo ou seja a aritmeacutetica a geometria a astronomia e a muacutesica ndash como ciecircncia matemaacutetica dos sons ndash dando origem assim ao que os medievais chamariam de ldquoquadriviumrdquo as quatro artes fiacutesico-matemaacuteticas Atraveacutes destes saberes o jovem iria se exercitar na ldquodianoiardquo ou seja na capacidade de pensar compreender e refletir Em seguida o jovem seria introduzido no estudo da arte da dialeacutetica (dialektike techne) que para Platatildeo era a porta de entrada para o exerciacutecio do ldquonousrdquo isto eacute do intelecto enquanto capacidade de percepccedilatildeo intelectual de apreensatildeo dos princiacutepios De iniacutecio arte do diaacutelogo (dialegesthai) a dialeacutetica se tornou a arte de perguntar e de responder bem como a arte de dividir os entes por gecircneros e espeacutecies Aristoacuteteles a considerou a arte que tem por objeto os raciociacutenios que se assentam em opiniotildees provaacuteveis A ela dedicou os ldquoToacutepicosrdquo e a colocou entre a retoacuterica e a analiacutetica que era a arte da demonstraccedilatildeo dedutiva que parte de premissas verdadeiras Na eacutepoca alexandrina poreacutem a dialeacutetica por obra do estoicismo se juntou agrave gramaacutetica e agrave retoacuterica formando aquele conjunto de saberes ligados agrave linguagem que mais tarde os medievais chamaratildeo de ldquotriviumrdquo
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discurso trabalhado segundo os princiacutepios destas duas artes da linguagem Agostinho a
partir de Varratildeo define a gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as
letras ou melhor a escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes6
Aleacutem de Varratildeo vaacuterios outros escritores da antiguidade tardia e do iniacutecio da
Idade Meacutedia vatildeo procurar transmitir estas artes aos poacutesteros Temos esforccedilos neste
6 ldquoMas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que Varratildeo chama de aprendizagem da escriturardquo (De Ordine II 1235)
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sentido de Marciano Capella7 de Agostinho8 de Boeacutecio9 de Cassiodoro10 Isidoro de
Sevilha11 etc Na concepccedilatildeo de Agostinho o estudo das Artes Liberais ajudaria natildeo
7 Na passagem da antiguidade para o medievo um africano de Madaura Marciano Capella levou a cabo este intento Entre 410 e 439 este retoacuterico e escritor nascido no norte da Aacutefrica (Madaura) escreveu a obra De nuptiis Philologiae et Mercurii (Das nuacutepcias de Filologia e Mercuacuterio) em nove livros Trata-se de uma enciclopeacutedia alegoacuterica escrita e prosa e verso sobre as ldquoartes liberalesrdquo (artes livres ou liberais) Nesta obra o conhecimento delas eacute descrito alegoricamente como uma ascensatildeo da mente humana do reino sensiacutevel ao inteligiacutevel Na alegoria de Marciano Capella o deus Mercuacuterio (Hermes) pretende se casar Pensa em Sophia em Mantica ou em Psicheacute mas todas estas satildeo descartadas por diversas razotildees Entatildeo o seu meio-irmatildeo Apolo o aconselha a se casar com a mortal Filologia Juacutepiter o deus supremo do ceacuteu aceita esta uniatildeo apenas se Filologia for elevada ao ceacuteu e divinizada (apoteosis) O livro II trata desta ascensatildeo que deveraacute se dar atraveacutes de sete esferas celestes O livro III trata da Gramaacutetica (literatura) o IV da Dialeacutetica e o V da Retoacuterica (as trecircs artes da linguagem que formaratildeo o trivium dos medievais) No Livro VI se fala da Geometria no VII da Aritmeacutetica no VIII da Astronomia e no IX da Harmonia (as quatro artes matemaacuteticas que Boeacutecio chamou de quadrivium) Esta obra tornou-se um manual nas escolas medievais e foi frequentemente comentada na Idade Meacutedia como por exemplo por Remiacutegio de Auxerre No seacuteculo XI Notker Labeo o traduziu para o alematildeo 8 Depois de sua conversatildeo no periacuteodo em que era catecuacutemeno e receacutem-batizado (386-387) Agostinho comeccedilou uma intensa atividade autoral Em 386 Agostinho forma com seus amigos uma comunidade de vida dedicada ao estudo e agrave oraccedilatildeo num retiro chamado Cassiciacuteaco junto de Milatildeo Ainda na Itaacutelia ele escreve um opuacutesculo contra o ceticismo (Contra academicos) um sobre a felicidade (De beata vita) outro sobre o lugar do bem e do mal na ordem universal criada por Deus (De ordine) e um diaacutelogo iacutentimo (ldquode si consigo mesmordquo) sobre a investigaccedilatildeo das coisas inteligiacuteveis e sobre a imortalidade da alma (Soliloquium) tema que eacute retomado em outros textos desta fase como o De imortalitate animae (Da imortalidade da alma) e o De quantitate animae (Da grandeza da alma) sobre a relaccedilatildeo entre alma e corpo Ainda eacute deste periacuteodo o projeto de escrever sobre as sete ldquoartes liberaisrdquo (ldquoartes liberalesrdquo o trivium ndash gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica ndash e o quadrivium ndash geometria muacutesica aritmeacutetica e astronomia) Deste projeto Agostinho conseguiu realizar somente a redaccedilatildeo em parte de um escrito sobre a gramaacutetica (perdido) e sobre a muacutesica De volta a Tagaste em 388 Agostinho ainda escreve o diaacutelogo De Magistro (Do mestre) sobre a linguagem e a educaccedilatildeo e termina o livro De vera religione (Da verdadeira religiatildeo) sobre a relaccedilatildeo entre a feacute e o saber 9 Boeacutecio (ca 480 ndash 524) eacute considerado o uacuteltimo romano e o primeiro filoacutesofo da Idade Meacutedia Nasceu em Roma e era de famiacutelia nobre Participou do governo de Teodorico rei dos ostrogodos mestre dos exeacutercitos que subiu ao poder no ocidente no ano de 488 com o apoio do entatildeo Imperado Romano do Oriente Zenatildeo (474 ndash 491) Boeacutecio foi uma peccedila chave na translaccedilatildeo do pensamento grego para a nova era que estava comeccedilando o que noacutes chamamos de Idade Meacutedia Teodorico que tinha passado a sua infacircncia em Constantinopla (461 ndash 471) colocou sua capital em Ravena e moldou a sua cuacuteria segundo o modelo bizantino Confiou a Boeacutecio a tarefa de promover a transmissatildeo do saber antigo agraves nova geraccedilatildeo mas tambeacutem nomeou-o para cargos administrativos e poliacuteticos De fato Boeacutecio chegou a ocupar o papel de cocircnsul e tambeacutem o mais alto cargo do governo o cargo de magister officium (ldquomestre dos ofiacuteciosrdquo) Mas caiu sobre ele a suspeita de conspiraccedilatildeo com Constantinopla ele foi preso e depois morto por ordem do rei Na prisatildeo ele compocircs uma das obras mais ceacutelebres da literatura latina o livro ldquoDe Consolatione Philosophiaerdquo (Da Consolaccedilatildeo da Filosofia) O projeto da vida de Boeacutecio foi mediar como inteacuterprete a passagem da filosofia grega para a nova eacutepoca Queria escrever sobre as ldquoartes livresrdquo (artes liberales) ndash as do trivium disciplinas sobre a linguagem (gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica) e as do quadrivium disciplinas matemaacuteticas (geometria muacutesica aritmeacutetica e astronomia) ndash que eram consideradas uma propedecircutica ao estudo filosoacutefico Adaptando os tratados matemaacuteticos de Nicocircmaco de Gerasa escreveu pelo menos uma instruccedilatildeo sobre a aritmeacutetica (Institutio arithmetica) e outra sobre a musica (Institutio musica) 10 Cassiodoro (514-584) foi sucessor de Boeacutecio como Mestre dos Ofiacutecios no reinado de Teodorico Este viveu no centro da tensatildeo entre romanos godos e bizantinos Depois de ter vivido um tempo em Constantinopla fundou na costa do mar Jocircnio na Calaacutebria um mosteiro de nome ldquoVivariumrdquo No seu mosteiro Cassiodoro criou uma biblioteca que no periacuteodo final da Antiguidade Claacutessica pretendia colocar textos gregos agrave disposiccedilatildeo de leitores latinos e preservar para a posteridade textos sagrados e profanos Ali formou leitores copistas e tradutores dos manuscritos gregos antigos Dedicou-se tambeacutem agrave histoacuteria
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somente a tornar o homem eloquentiacutessimo e doutiacutessimo (eloquentissimus et
sapientissimus) segundo o projeto romano de formaccedilatildeo (a Humanitas versatildeo romana
da Paideia grega) mas tambeacutem perfeito (perfectus) no sentido eacutetico e religioso do
cristianismo12 Com efeito neste projeto cristatildeo de saber o cultivo das Artes Liberais
constitui o mais elementar do ldquostudium sapientiaerdquo (estudo da sabedoria) Elas formam
o degrau baacutesico da formaccedilatildeo do homem cristatildeo a filosofia seria o degrau intermediaacuterio
e a ldquodoctrina christianardquo (ldquodoutrina cristatilderdquo estudo da ldquosacra paginardquo da Biacuteblia o degrau
superior)
As Artes Liberais teriam um papel propedecircutico para a filosofia Elas ajudariam a
fornecer ldquoargumenta certiacutessimardquo (argumentos certiacutessimos) para quem se propotildee a
filosofar Depois serviriam para exercitar o ldquoanimusrdquo (acircnimo espiacuterito) no sentido da
sua afinaccedilatildeo (eruditio) e no sentido de torna-lo capaz de discernir as coisas mais sutis
(ad subtiliora cernenda) pois teriam a capacidade de ajudar o estudante a passar das
coisas corpoacutereas agraves incorpoacutereas do temporal ao intemporal do real ao ideal da criatura
ao Criador O estudo das Artes Liberais e da Filosofia poreacutem serviriam ao estudo da
ldquoDoctrina Christianardquo que partiria da investigaccedilatildeo da Biacuteblia (os medievais falaratildeo do
estudo da ldquosacra paginardquo) e que se dedicaria agrave compreensatildeo dos dados da revelaccedilatildeo
divina contidos no livro sagrado do cristianismo os artigos de feacute confessados pela Igreja
segundo a sentenccedila de Agostinho que se tornou um mote para os medievais latinos
ldquocredo ut intelligamrdquo (creio para compreender) Eacute que segundo Agostinho nas ciecircncias
humanas se crecirc no que se compreende jaacute nas ciecircncias divinas (coisas Sagrada Escritura)
se compreende somente se se crecirc aqui o proacuteprio ldquocrerrdquo introduz o proacuteprio ldquointeligirrdquo
nas outras ciecircncias poreacutem o proacuteprio ldquointeligirrdquo introduz o proacuteprio ldquocrerrdquo - pelo fato
mesmo que intelige algueacutem assente
natural e agrave medicina Seu projeto pedagoacutegico se inspirou nas escolas de Alexandria e de Niacutesibe Para guiar a leitura dos monges Cassiodoro redigiu as suas Instituiccedilotildees das letras divinas e seculares (560-580) A filosofia era representada aiacute por uma divisatildeo das ciecircncias e por um resumo do Organon 11 A obra mais famosa de Isidoro (560-633) chama-se ldquoEtimologiasrdquo Eacute uma espeacutecie de enciclopeacutedia de saberes profanos e religiosos dedicada ao rei visigodo Sisebut Ele escreveu tambeacutem um livro de ldquoSentenccedilasrdquo manual de teologia dogmaacutetica moral e espiritual Isidoro procura escrever nas ldquoEtimologiasrdquo sobre as diferenccedilas das palavras e as diferenccedilas das coisas Pressupotildee que se conhece melhor a natureza de uma coisa quando se conhece melhor a natureza de seu nome Ele detinha o conhecimento da gramaacutetica dos alexandrinos 12 Cfr De Quantitate Animae c 33 Traduccedilatildeo Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis Vozes 1997 p 153
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Seguindo esta diretriz de ordenaccedilatildeo do saber Agostinho recusa uma formaccedilatildeo e
uma cultura que se limita agraves artes liberais ou de um saber que forma apenas o litterator
ou grammaticus entregue agrave vaidade do falar bem Contra o esteticismo decadente da
cultura latina de seu tempo ele investe o seu princiacutepio Res non verba13 Opotildee-se
tambeacutem agrave curiositas (curiosidade) que ele toma como o oposto do studium ndash o curiosus
eacute para ele com efeito o oposto do studiosus14 Com efeito ao contraacuterio do homem
ldquostudiosusrdquo (estudioso) cuja busca do saber se compromete com a transformaccedilatildeo da
proacutepria mente por meio do conhecimento da verdade o homem ldquocuriosusrdquo (curioso)
que aparenta querer saber natildeo quer poreacutem que o saber o transforme e o forme em
sua interioridade em seu caraacuteter e em suas accedilotildees A curiosidade pertence agrave triacuteplice
concupiscecircncia que torna a vida do homem decadente miseraacutevel a que alude a Sagrada
Escritura15 Chama-a de ldquoconcupiscecircncia dos olhosrdquo (concupiscentia oculorum) o desejo
de tudo ver e experimentar (cupiditas experiendi) sem nenhum comprometimento
Atinge sobretudo o mundo da convivecircncia humana ldquoCuriosum genus ad cognoscendam
vitam alienam desidiosum ad corrigendam suam ndash uma raccedila curiosa para conhecer a
vida alheia indisposta para corrigir a suardquo
Aleacutem do studium sapientiae (estudo empenho da sabedoria) que constitui a
formaccedilatildeo filosoacutefica Agostinho considerava tambeacutem um outro niacutevel de formaccedilatildeo
propriamente cristatilde do homem a doctrina christiana que consistia no exerciacutecio da
inteligecircncia que aprofunda os dados da revelaccedilatildeo Seu programa inclui o estudo das
Escrituras Sagradas a exegese a exposiccedilatildeo especulativa da feacute a controveacutersia e a
apologeacutetica Os escritos de Agostinho voltados para este campo satildeo redigidos sobretudo
13 ldquoCoisa (o real) natildeo palavrasrdquo 14 Heidegger fez uma exposiccedilatildeo sobre a curiosidade em termos de hermenecircutica da facticidade e analiacutetica da existecircncia no sect 36 de Ser e Tempo 15 ldquoNatildeo ameis o mundo nem o que estaacute no mundo Se algueacutem ama o mundo o amor do Pai natildeo estaacute nele pois tudo o que estaacute no mundo ndash a concupiscecircncia da carne (epithymia thecircs sarkoacutes) a concupiscecircncia dos olhos (epithymia tocircn ophtalmocircn) e a confianccedila orgulhosa nos bens (alazoneacuteia tou biou) ndash natildeo vem do Pai mas vem do mundo Ora o mundo passa bem como sua concupiscecircncia mas o que faz a vontade de Deus permanece para semprerdquo (1 Jo 2 15-17) A concupiscecircncia da carne (concupiscentia carnis) na interpretaccedilatildeo de Agostinho eacute a a ldquolibidordquo a cobiccedila do prazer (cupiditas oblectandi) A concupiscecircncia ou cobiccedila dos olhos (concupiscentia oculorum) eacute a curiosidade o desejo de tudo ver e experimentar (cupiditas experiendi) sem comprometimento Talvez este fenocircmeno seja afim ao que Pascal em seus Pensamentos chama de ldquodivertissementrdquo A terceira forma de ldquotemptatiordquo (tentaccedilatildeo ser posto agrave prova) eacute a ldquoambitio saeculirdquo (ambiccedilatildeo do mundo) ou a jactacircncia (iactantia) que querer ser temido e amado pelos outros Heidegger fez uma interpretaccedilatildeo a partir da hermenecircutica da faticidade da exposiccedilatildeo desta triacuteplice tentaccedilatildeo humana em ldquoFenomenologia da Vida Religiosardquo (vol 60 das suas obras completas)
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apoacutes assumir encargos eclesiaacutesticos Natildeo obstante nestes escritos ele natildeo deixa de
filosofar (cf por exemplo o tratado sobre a Trindade) A sapientia adquire agora para
ele outro sentido mais elevado e abrangente contemplativo-religioso sapientia est
contemplatio veritatis pacificans totum hominem et suscipiens similitudinem Dei16 Esta
sabedoria no entanto natildeo exclui antes inclui tanto o aspecto eacutetico do estudo quanto
o aspecto metafiacutesico isto eacute a cognitio intellectualis (conhecimento intelectual) de anima
(a respeito da alma) e de Deo (a respeito de Deus)
Aleacutem da sapientia que visa o que eacute imutaacutevel eterno Agostinho considera
tambeacutem a scientia que visa o que eacute temporal histoacuterico cognitio historica
(conhecimento histoacuterico) Ora a revelaccedilatildeo divina que se propotildee agrave feacute se manifesta na
histoacuteria ela se transmite de modo empiacuterico por um testemunho materializado por
palavras por um livro a Escritura Sagrada Surge daiacute a demanda de uma scientia que
seraacute a atividade da inteligecircncia que se aplica ao conhecimento do conteuacutedo da feacute No
livro XIV da obra De Trinitate (Da Trindade) Agostinho escreve
Natildeo atribuo agrave ciecircncia (scientia) o que quer que possa ser sabido pelos homens nas coisas humanas aqui onde haacute grande quantidade de supeacuterfluo de vaidade e de curiosidade nociva mas tatildeo somente aquilo que gera nutre defende e fortalece a feacute sobremaneira salutar que conduz agrave verdadeira beatitude (quo fides sabuberrima quae ad verae beatitudinem ducit gignitur nutritur defenditur roboratur) A maior parte dos fieacuteis natildeo possuem esta ciecircncia seja qual for de resto a intensidade da feacute deles Uma coisa com efeito eacute saber simplesmente aquilo que o homem deve crer para obter a beatitude eterna outra coisa eacute saber (scire) como aportar este mesmo conteuacutedo da feacute agraves almas pias e defender contra os iacutempios eacute a respeito deste segundo aspecto que depois de Satildeo Paulo (1 Cor 12 8) se deve propriamente reservar o vocaacutebulo ciecircncia
Agostinho lecirc poreacutem a Escritura em consonacircncia com a tradiccedilatildeo e com a
autoridade da Igreja17 No seacuteculo XII esta ciecircncia levaraacute o nome de ldquoSacra Paginardquo
(sagrada paacutegina) Abelardo mesmo apresentaraacute a sua siacutentese especulativa do conteuacutedo
16 A sapiecircncia eacute a contemplaccedilatildeo da verdade pacificando o homem todo e recebendo a semelhanccedila de Deus De Sermone Domini in Monte 1 3 17 A hermenecircutica protestante com o Sola Scriptura excluiraacute a tradiccedilatildeo e o ensinamento autoritativo da Igreja (magisteacuterio) como criteacuterios que acompanham a leitura das Escrituras Sagradas
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da feacute apenas como uma introduccedilatildeo agrave Sagrada Escritura Uma autonomia especulativa
da exposiccedilatildeo do conteuacutedo da feacute soacute aconteceraacute propriamente no seacuteculo XIII ndash eacute o
nascimento daquilo que noacutes hoje chamamos de ldquoteologiardquo Em Agostinho a exegese
biacuteblica e a exposiccedilatildeo dogmaacutetica especulativa se mesclam natildeo obstante hajam escritos
em que a exposiccedilatildeo dogmaacutetica e sistemaacutetica do conteuacutedo da feacute se potildeem em primeiro
plano O motivo poreacutem destas exposiccedilotildees estaacute quase sempre situado num contexto de
controveacutersia de polecircmica de apologeacutetica em torno do conteuacutedo da feacute Mas em
Agostinho toda discussatildeo dogmaacutetica toda controveacutersia e apologeacutetica natildeo visa outra
coisa que a defesa do conteuacutedo da feacute das Sagradas Escrituras
Uma obra fundamental para se entender a hermenecircutica em Agostinho eacute o ldquoDe
doctrina christianardquo (Da doutrina cristatilde) Apresentamos a seguir uma recensatildeo desta
escrito
Esta obra faz parte de uma seacuterie de obras exegeacuteticas do hiponense e parece
constituir-se numa espeacutecie de teoria da exegese contendo tambeacutem um livro sobre o
modo de se expor a Sagrada Escritura com eloquecircncia e sabedoria Ela comeccedilou a ser
escrita pouco depois de Agostinho se tornar bispo isto eacute pelo ano 397 Num primeiro
momento a obra foi publicada inacabada indo ateacute o capiacutetulo 25 nordm 35 do Livro III Mais
tarde ao revisar suas obras Agostinho se propotildee terminar esta e o faz natildeo soacute
completando o livro III como tambeacutem acrescentando o livro IV A conclusatildeo desta obra
teria se dado laacute pelo ano de 4267
A ldquoDoutrina Cristatilderdquo eacute composta de um proacutelogo e quatro livros No proacutelogo
Agostinho relata o objetivo da obra oferecer normas uacuteteis acerca da interpretaccedilatildeo das
Sagradas Escrituras agravequeles que se dedicam a este estudo Atraveacutes destas normas o
estudioso poderaacute esclarecer muitas obscuridades que as Escrituras encerram Em
seguida Agostinho usa da comparaccedilatildeo de algueacutem que mostra a outra a lua com o dedo
para refutar eventuais contestadores de seu esforccedilo Os primeiros satildeo aqueles que natildeo
entendem as regras Estes se comportam como as pessoas que nem sequer veem o
dedo devido ao fato de a acuidade se sua visatildeo ser muito deficiente Os segundos satildeo
os que entendem as regras mas natildeo conseguem aplica-las Estes fixam o olhar no dedo
mas natildeo se voltam para mirar a lua Um terceiro tipo de opositores seria daquelas
pessoas que acham poderem se dispensar de instruccedilatildeo junto a seres humanos na
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pretensatildeo de terem conquistado o dom da compreensatildeo das divinas Escrituras
diretamente de Deus A estes Agostinho procura mostrar que a proacutepria Sagrada
Escritura pressupotildee a convivialidade dos que ensinam e aprendem mesmo
considerando que tanto uns como outros fundamentalmente aprendem de Deus Em
terceiro lugar o dom de interpretar as Escrituras natildeo dispensa mas ao contraacuterio exige
o esforccedilo de aprender Perspicaacutecia interesse de ir agraves coisas mesmas e disposiccedilatildeo de
aprender satildeo atitudes que devem ter quem quer ler esta obra
O objeto temaacutetico de ldquoA doutrina cristatilderdquo eacute a ldquotractatio scripturarumrdquo ou seja o
modo de proceder no trato com as Escrituras Isto comporta uma dupla implicaccedilatildeo
aprender a maneira de se descobrir o que eacute para ser entendido e por outro lado
aprender a maneira de se expor com propriedade o que foi entendido Os trecircs primeiros
livros da obra se atecircm agrave maneira de descobrir e o quarto livro agrave maneira de expor
Toda doutrina ou ciecircncia versa sobre coisas e sinais Coisas eacute tudo o que natildeo estaacute
empregado para significar algum outro objeto Sinais eacute tudo o que se emprega para
significar alguma coisa aleacutem de si mesmo As coisas satildeo conhecidas por meio de sinais
Os sinais devem ser entendidos como sinais e natildeo como coisas isto eacute na sua funccedilatildeo de
sinalizar e natildeo no seu ocorrer meramente factual O primeiro livro iraacute tratar das coisas
elementares da Sagrada Escritura isto eacute aquelas realidades junto agraves quais se empenha
o esforccedilo da compreensatildeo O segundo livro trata dos sinais da Sagrada Escritura e do
modo de chegar ao significado mediante o rigor da interpretaccedilatildeo O terceiro livro se
ocupa em ensinar como resolver as ambiguidades nos textos que se devem interpretar
quer em sentido proacuteprio quer em sentido figurado O quarto livro iraacute indicar como expor
as coisas da Sagrada Escritura com eloquecircncia e sabedoria
O primeiro livro expotildee algumas concepccedilotildees fundamentais sobre a realidade do
real (o ser do ente ndash das ldquocoisasrdquo) As coisas no seu todo se dividem em duas grandes
categorias aquelas que satildeo para a fruiccedilatildeo e aquelas que satildeo para o uso (uti et frui)
ldquoFruir (frui) eacute estar ligado a uma coisa por amor a ela Usar (frui) eacute relacionar aquilo de
que se tem uso com a posse daquilo que se amardquo (1 4 4) Notemos que Agostinho pensa
a realidade do real em seu concernir agrave vida humana A vida humana consiste em
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curare18 O uti (usar) eacute o cuidar que lida com aquilo que contribui para o viver O frui
(fruir) eacute gozar Por exemplo o belo que pertence agrave vigecircncia do ser eacute fruiacutedo A beata
vita (vida bem-aventurada feliz) eacute a do homem que goza do sumo bem (Deus) Eacute para
ser fruiacuteda aquela coisa que deleita por si mesma sem estar referida a outra coisa19 Eacute
para ser usada aquela coisa que eacute que eacute buscada desejada e que deleita por causa de
outra coisa As coisas temporais visiacuteveis satildeo para ser usadas As coisas eternas
invisiacuteveis para serem fruiacutedas O viacutecio a perversatildeo consiste em inverter esta ordem
querer fruir do que eacute para ser usado A virtude poreacutem consiste em fruir do que eacute para
ser fruiacutedo e usar do que eacute para ser usado20 A beatitude eacute a fruiccedilatildeo do sumo e imutaacutevel
bem a Trindade Deus eacute a beleza inteligiacutevel imutaacutevel inefaacutevel Toda a miacutestica medieval
iraacute visar a esta fruiccedilatildeo de Deus como o sumo bem como a suma beleza Na fruiccedilatildeo de
Deus o homem encontra o repouso a quietude (quies) Embora em tudo isso haja
elementos do pensamento grego (neoplatocircnico) no entanto a concepccedilatildeo da vida
humana e da realidade do real em Agostinho estaacute enraizada na compreensatildeo do Novo
Testamento Ele assim traz agrave fala em que consiste a ldquovita praesensrdquo (vida presente) do
cristatildeo eacute vida vivida ldquoin re laboris sed in spe quietis in carne vetustatis sed in fide
novitatisrdquo (no real do labor mas na esperanccedila do repouso na carne da velhice mas na
feacute da novidade) A esperanccedila precede A vida segue isso que a esperanccedila antecipa A
vida se realiza na direccedilatildeo daquilo que a esperanccedila antecipa21
Ainda no primeiro livro encontra-se uma exposiccedilatildeo do conteuacutedo da feacute a modo
de uma siacutentese dogmaacutetica fala da Trindade enquanto aquilo a que a aspiraccedilatildeo de
fruiccedilatildeo por parte do homem estaacute destinada Esta fala se articula em termos biacuteblicos e
tambeacutem em termos metafiacutesicos Trata-se de uma exposiccedilatildeo dogmaacutetico-metafiacutesica dos
misteacuterios e arcanos da feacute cristatilde Ao seu fundo poreacutem estaacute toda uma experiecircncia faacutetica
da vida22 Depois desta exposiccedilatildeo sobre a essecircncia da feacute cristatilde (os misteacuterios que nela satildeo
18 Curo curas curare curavi curatum Verbo transitivo ndash Sentido proacuteprio 1) cuidar olhar por tratar velar Daiacute 2) tratar curar 3) no contexto administrativo governar dirigir administrar 4) no contexto militar comandar 5) no contexto comercial fazer pagar 4) fazer por ter em conta de ter cuidado de 19 De civitate Dei (A cidade de Deus) XI 25 20 De Diversibus quaestionibus XXX 21 Cf Heidegger M Fenomenologia da Vida Religiosa p 258-260 22 A uacutenica ldquocoisardquo (o uacutenico real) a ser fruiacuteda eacute a Trindade Agostinho remete pois inicialmente ao Triuno Deus de quem por quem e para quem existem todas as coisas Os mesmos atributos divinos devem ser predicados de cada uma das pessoas da Trindade isto eacute do Pai do Filho e do Espiacuterito Santo Cada um deles eacute ele proacuteprio na plenitude de sua substacircncia O ser do Pai estaacute na Unidade o ser do Filho na
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cridos) Agostinho trata do ldquoethosrdquo do viver cristatildeo seguindo ainda pelo fio condutor
do ldquouti et fruirdquo (usar e fruir) O essencial do ethos cristatildeo eacute o duplo preceito do amor a
Deus e ao proacuteximo O ethos do viver cristatildeo se instaura segundo a ldquoOrdo dilectionisrdquo
(ordem da dileccedilatildeo ou do amor) A identidade do cristatildeo consiste no seu modo de amar23
Igualdade e o ser do Espiacuterito Santo na harmonia da unidade e da igualdade Natildeo obstante natildeo se trata de trecircs seres mas de um uacutenico Ser Agostinho estaacute ciente da limitaccedilatildeo do entendimento no vigor do silecircncio que se recolhe diante do misteacuterio divino do Deus uno e trino arcano fundamental da feacute cristatilde Deus eacute antes de tudo o inefaacutevel Quando a mente humana cogita acerca do misteacuterio divino que se doa ao se retrair ela busca captar uma realidade transcendental a mais proacutexima visto ser a mais iacutentima mais iacutentima a noacutes que noacutes mesmos e ao mesmo tempo a mais distante (inacessiacutevel justamente em virtude desta proximidade) Eacute esta realidade primeira que institui todo o real quer nas suas realizaccedilotildees sensiacuteveis quer nas inteligiacuteveis Percorrendo-se os diversos niacuteveis de constituiccedilatildeo da vida chega-se agravequela Vida que se define como Sabedoria imutaacutevel isto eacute sempre idecircntica consigo mesma O Deus vivo que eacute o Vivente por excelecircncia eacute o anseio mais profundo da alma humana Contemplaacute-lo e fruir da sua bondade e beleza eacute a beatitude do homem Contudo para que o homem possa chegar agrave visatildeo e fruiccedilatildeo de Deus eacute necessaacuteria a purificaccedilatildeo interior ao longo de sua vida que aparece como um caminho uma viagem uma travessia de retorno agrave paacutetria Esta purificaccedilatildeo se daacute mediante o bom empenho os bons desejos e os costumes No entanto natildeo podemos ir agrave Sabedoria se ela natildeo se dispotildee a vir a noacutes adaptando-se agrave fraqueza dede nossa condiccedilatildeo carnal isto eacute finita fraacutegil decadente mortal No entanto esta Sabedoria que se encarna na realidade da vida faacutetica humana foi rejeitada por muitos como fraqueza e loucura Eacute o misteacuterio da keacutenosis (esvaziamento) do rebaixamento do Filho de Deus o Verbo que se fez carne e atendou entre os homens Mas eacute justamente por esta fraqueza e loucura divina manifestada na encarnaccedilatildeo e na paixatildeo do Verbo humanado Jesus Cristo que acontece a redenccedilatildeo isto eacute a libertaccedilatildeo e a salvaccedilatildeo de todos os homens Nele a Sabedoria cura o homem impregnado de fraqueza e mergulhado na loucura O homem usou mal do dom da imortalidade e caiu na morte Cristo usou bem de nossa mortalidade e isso devolveu ao homem o acesso agrave plenitude da vida Atraveacutes dos misteacuterios da vida de Cristo isto eacute dos misteacuterios de sua encarnaccedilatildeo de sua paixatildeo e tambeacutem de sua ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo com o consequente envio do Espiacuterito Santo os homens satildeo fortalecidos na feacute e avivados no conhecimento Nestes misteacuterios os que creem consideram o quatildeo livremente Cristo deu sua vida pelos homens ele que possuiacutea o poder de retomaacute-la Aqueles que favorecidos pela graccedila da redenccedilatildeo creram no Filho de Deus encarnado e crucificado como Senhor (o Ressuscitado) formam um soacute corpo constituindo deste modo a realidade da Igreja Esta eacute a esposa de Cristo Atraveacutes dos sacramentos ela se purifica para vir se unir ao Esposo Cristo Jesus na eternidade apresentando-se diante dele sem manchas nem rugas Eacute no interior desta Igreja que os homens satildeo gerados para a semelhanccedila com Cristo e recebem o perdatildeo dos pecados (batismo) Desta mesma Igreja recebem a feacute na ressurreiccedilatildeo do corpo e na vida eterna Estes misteacuterios e arcanos cristatildeos satildeo acolhidos pelo homem que estaacute a caminho da paacutetria (a vida eterna) Neste caminho o crente sempre de novo morre para o mundo e vive para Deus Verdade e Vida 23 O homem haacute de amar a Deus por causa dele proacuteprio As criaturas em contrapartida satildeo amadas agrave medida que ajudam o homem a crescer no amor de Deus O amor a si mesmo e ao proacuteprio corpo eacute uma lei natural e por isso natildeo requer nenhum preceito (mandamento) Mas o amor ao que estaacute ao seu lado (o proacuteximo) e o amor ao que estaacute acima dele (Deus) requer preceito Haacute no entanto um falso e um verdadeiro amor de si proacuteprio O verdadeiro amor de si consiste em buscar o que eacute uacutetil e salutar para si mesmo crescendo na caridade (o amor gratuito a Deus e ao proacuteximo) O falso amor de si consiste em submeter o proacuteximo e o proacuteprio corpo a fim de fruir deles Quanto ao amor ao proacuteprio corpo Agostinho relembra a citaccedilatildeo do Apoacutestolo (Paulo) que diz ldquoningueacutem jamais quis mal agrave sua proacutepria carnerdquo (Ef 5 29) Mesmo os que reconhecem sadiamente a necessidade da ascese fazem-no para submeter o corpo ao espiacuterito segundo a ordem da natureza buscando assim a paz e a harmonia O preceito da caridade eacute duplo exige o amor a Deus acima de tudo e o amor ao proacuteximo como a si mesmo A partir do duplo amor natural e do duplo preceito da caridade descobre a ldquoOrdo Dilectionisrdquo (ordem da dileccedilatildeo isto eacute do amor) Ordem implica numa estruturaccedilatildeo em niacuteveis neste caso em niacuteveis de dignidade A ordenaccedilatildeo do amor eacute instaurada quando o homem ama o que deve ser amado (o bem) e natildeo ama o que natildeo deve ser amado (o mal o viacutecio o pecado) Depois quando o homem ama menos o que eacute menos digno de amor (o corpo)
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O amor (dilectio caritas) eacute o princiacutepio que rege toda a vida humana na perspectiva da
feacute cristatilde24 O duplo preceito do amor (a Deus e ao proacuteximo) eacute aqui a norma universal e
primordial que rege toda a ordem do viver O amor a Deus acima de tudo e o amor ao
proacuteximo eacute a essecircncia a substacircncia da revelaccedilatildeo divina (ldquoa Lei e os Profetasrdquo) que foi
radicalizada e consumada em Jesus Cristo no seu novo e eterno testamento
(testemunho) Daiacute se segue que a edificaccedilatildeo da caridade eacute a norma reacutegia e suprema de
toda a interpretaccedilatildeo das Sagradas Escrituras25 Para o homem que atingiu a perfeiccedilatildeo
do amor (caridade perfeita) as Sagradas Escrituras deixam de ser necessaacuterias uma vez
que toda a finalidade delas eacute levar o homem agrave perfeiccedilatildeo do amor (caridade perfeita)
Deste modo as Escrituras Sagradas requerem um leitor que entenda que o fim de tudo
o que ali estaacute escrito eacute a caridade perfeita consumada que aparece concreta e
historicamente em Jesus Cristo o Deus encarnado (humanado) e crucificado A feacute e a
esperanccedila satildeo outras duas virtudes que ajudam o homem a crescer e se perfazer na
perfeiccedilatildeo da caridade no seguimento de Jesus Cristo O essencial do ser cristatildeo se
encontra neste seguimento
Depois quando ama igualmente o que eacute igualmente digno de amor (o proacuteximo) Por fim quando ama absolutamente o que eacute absolutamente digno de ser amado (Deus) Ao amor de Deus assim deve se subordinar e convergir todo amor pela criatura O preceito do amor aleacutem disso comporta universalidade isto eacute ningueacutem eacute dele excluiacutedo A boa vontade do amor se estende a todos mesmo ao inimigo O amor de Deus pelo homem eacute gratuito visto que Deus natildeo precisa do homem mas se basta a si mesmo Seu amor eacute pura gratuita absoluta bondade O grau de perfeiccedilatildeo de um homem depende do grau de perfeiccedilatildeo e da universalidade de seu amor O ser do homem se determina pelo seu amor O homem eacute o que ele ama e como ele ama Ele cresce no ser se cresce na perfeiccedilatildeo (e na universalidade) do amor Ele diminui no ser se decresce na capacidade de amar O homem pode encontrar deleite nos outros homens quando estes o ajudam a crescer no amor a Deus Eacute quando se ama e se gosta do outro em Deus Os homens podem e devem constituir uma fraternidade no amor ajudando-se mutuamente a prosseguir seu itineraacuterio para Deus Nenhuma homem pode se considerar fim absoluto do amor do outro Ele natildeo eacute o destinataacuterio uacuteltimo do amor do outro Eacute apenas companheiro na viagem da vida e como tal haacute de ser amado Neste itineraacuterio para Deus Cristo eacute o caminho a verdade e a vida isto eacute ele eacute aquele por quem o homem vai aquele a quem o homem alcanccedila e em quem ele permanece no amor 24 Cf Arendt Hanna O conceito de amor em Santo Agostinho Ensaio de interpretaccedilatildeo filosoacutefica Lisboa Instituto Piaget 1997 25 Para o ldquohomo viatorrdquo (homem a caminho) a feacute nas Escrituras fortalece a feacute a esperanccedila e a caridade Nestas trecircs virtudes teologais se encerram e se subsumem toda a ciecircncia e toda a profecia A caridade permanece para sempre enquanto que a feacute e a esperanccedila se extinguem quando o homem chega a seu destino (a Paacutetria o Reino dos Ceacuteus) A caridade visa um bem eterno Se os bens temporais satildeo amados antes de serem possuiacutedos pois ao serem conquistados natildeo saciam a alma na sua sede do absoluto bem o bem eterno eacute o que eacute amado com tanto mais ardor ao ser possuiacutedo do que fora ao ser desejado pois a ningueacutem que a deseja a beatitude concedida eacute menor do que a desejada
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O livro II eacute um verdadeiro tratado de semiologia26 Todo o pensamento a respeito
da linguagem do ocidente se baseia no triacircngulo semioacutetico signo conceito coisa A base
desta concepccedilatildeo de Aristoacuteteles Ela eacute exposta no ὶ ἑί (perigrave hermeneiacuteas)
ldquoDe interpretationerdquo (16a 3-8)
Satildeo pois aquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz siacutembolos das paixotildees (afecccedilotildees disposiccedilotildees) na alma e as coisas que satildeo escritas satildeo siacutembolos daquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz E assim como as coisas escritas natildeo satildeo as mesmas para todos do mesmo modo tambeacutem os sons da voz natildeo satildeo os mesmos Aquelas coisas de que isso (coisas escritas e sons da voz) satildeo primordialmente signos (coisas que mostram) satildeo para todos (os homens) as mesmas paixotildees da alma e as coisas das quais estas (paixotildees da alma) formam apresentaccedilotildees assemelhadas satildeo igualmente as mesmas27
O texto de Aristoacuteteles se manteacutem numa fala esclarecida e soacutebria que torna
visiacutevel a claacutessica estruturaccedilatildeo que abriga a linguagem como discurso ou fala As letras
do alfabeto28 mostram os fonemas29 Os fonemas mostram as disposiccedilotildees na alma30 As
disposiccedilotildees na alma mostram as coisas que que lhe con-cernem31 O mostrar configura
e sustenta as escoras dessa construccedilatildeo De maneira variada o mostrar conduz algo para
um aparecer deixando assim apreender o que aparece e permitindo que se discuta o
que se apreende
26 A semiologia (ou semioacutetica) eacute a ciecircncia dos signos Como os signos verbais tecircm na vida humana um papel de primeiro plano a semiologia se concentrou em grande parte na linguagem Haacute uma semiologia nas especulaccedilotildees linguiacutestica da antiguidade entre os modistas da Idade Meacutedia etc Mas o nome ldquosemioacuteticardquo surge na modernidade com Locke Torna-se poreacutem uma disciplina independente na obra do filoacutesofo americano Charles Sanders Peirce (1839-1914) 27 A traduccedilatildeo entende os σημεῖα (semeia ndash os signos aquelas coisas que mostram) os σύμβολα (symbola - os siacutembolos ndash o que eacute lanccedilado junto e nessa junccedilatildeo deixa e faz com que um se atenha ao outro) e os ὁμοιώματα (homoioacutemata ndash as apresentaccedilotildees assemelhadas as semelhanccedilas) como um mostrar no sentido de deixar aparecer o que por sua vez encontra-se no acircmbito do desencobrimento (αλήθεια ndash aleacutetheia) 28 τὰ γραφόμενα ndash taacute graphoacutemena 29 τὰ ἐν τῇ φωνῇ - taacute en te phoneacute 30 παθήματα τῆς ψυχῆς ndash patheacutemata tecircs psykhecircs 31 πράγματα - praacutegmata
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Antes de nos apropriarmos da semiologia de Agostinho tentemos aqui uma
consideraccedilatildeo fenomenoloacutegica sobre o sinal e a linguagem
O falar acontece por mor do dizer Dizer eacute mostrar O falar enquanto dizer se
realiza como um discurso mostrador loacutegos apophaacutentikoacutes32 O falar estaacute a serviccedilo do
dizer Dizer eacute mostrar no sentido de deixar e fazer ver a quem se fala aquilo de que se
fala Dizer eacute dar algo a compreender eacute fazer-se compreender sobre algo a quem escuta
O mostrar no falar acontece como um conceder acenos dar indiacutecios oferecer
indicaccedilotildees oferecer sinais33 Mas tudo isso acontece no sentido de um anunciar que se
cumpre como um revelar um divulgar um mencionar (fazer menccedilatildeo de referir relatar
expor narrar) um lembrar um recordar e um comemorar O anunciar eacute entendido pois
pelos gregos como um mostrar deiknymi34 O sinal eacute uma referecircncia uma remissatildeo O
remeter proacuteprio do sinal consiste em mostrar O mostrar do sinal se funda na referecircncia
na remissatildeo Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo No entanto
Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo eacute uma referecircncia Toda lsquoaccedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma referecircncia mas nem toda referecircncia mostra Com isso tambeacutem se diz toda accedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo mostra Assim aparece o caraacuteter formal e geral da relaccedilatildeo Para se investigar os fenocircmenos de referecircncia sinal e significado de nada adianta caracterizaacute-los como relaccedilatildeo Deve-se em uacuteltima instacircncia mostrar que a proacutepria lsquorelaccedilatildeorsquo devido a seu
32 O loacutegos eacute um reunir e um recolher (leacutegein) que potildee expotildee e depotildee abre e manifesta traz ao desencobrimento agrave revelaccedilatildeo Como abrir e manifestar leacutegein estaacute em contraste com krypto cobrir encobrir esconder ocultar no sentido de guardar Conhecemos um fragmento de Heraacuteclito (fr 93) que traz este contraste Ele diz Ho aacutenax hou tograve manteion esti tograve en Delphois oute leacutegei oute kryptei allagrave semainei ndash O Autor de quem eacute o oraacuteculo de Delfos natildeo traz ao desencobrimento nem encobre mas acena 33 Semainein eacute um conceder semata (acenos indiacutecios indicaccedilotildees) A palavra grega no singular eacute ldquosemardquo indiacutecio vestiacutegio marca distintiva senha sinal ldquoSemardquo eacute tambeacutem pressaacutegio auguacuterio auspiacutecio Eacute ainda o astro ou uma constelaccedilatildeo da qual se tiram indicaccedilotildees na orientaccedilatildeo concernente ao ceacuteu Eacute por fim o tuacutemulo a tumba 34 Da mesma raiz de ldquodeiknymirdquo (mostrar) eacute o verbo latino ldquodicererdquo dizer Dizer eacute mostrar isto eacute deixar e fazer ver trazer agrave evidecircncia alguma coisa O sinal pois no falar precisa ser entendido na dinacircmica do dizer isto eacute do mostrar
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caraacuteter formal geral tem sua origem ontoloacutegica numa referecircncia35
Haacute uma multiplicidade de sinais anuacutencios prenuacutencios vestiacutegios marcas
distintivos cuja accedilatildeo de mostrar difere a cada caso Satildeo sinais diferentes o rastro o
resto o monumento o documento o testemunho o siacutembolo a expressatildeo a
manifestaccedilatildeo a significaccedilatildeo O sinal tem a sua serventia no mostrar no sentido de fazer
sobressair de dar na vista salientar fazer reparar estranhar alguma coisa Aquilo que
normalmente natildeo causa surpresa eacute ressaltado pelo sinal O sinal permite a descoberta
de alguma coisa
O mundo eacute o ldquoonderdquo das descobertas O homem se orienta se dirige se
direciona em seus comportamentos com as coisas com os entes agrave matildeo a partir de uma
familiaridade com o mundo A abertura de mundo se daacute como compreensatildeo Trata-se
poreacutem de uma compreensatildeo operativa natildeo teoacuterica Compreender significa aqui reunir
as remissotildees recolher as referecircncias O caraacuteter de remissatildeo das remissotildees das
referecircncias eacute o que se chama de significar Significar (be-deuten) eacute aqui mostrar
(deuten) no sentido de pocircr a caminho um clarear um esclarecer Eacute o processo e o
movimento de estruturaccedilatildeo do mundo Significar eacute aqui oferecer alguma coisa para a
compreensatildeo e para a interpretaccedilatildeo Significacircncia (Bedeutsamkeit) eacute o todo das
remissotildees do acontecimento e do processo do significar que eacute a estruturaccedilatildeo de
mundo Noacutes nos encontramos a noacutes mesmos jaacute sempre no mundo entendendo o mundo
antes de tudo como uma totalidade de significacircncias Eacute um encontrar-se a si mesmo
sempre numa situaccedilatildeo de ocupaccedilatildeo e preocupaccedilatildeo de cuidado com o proacuteprio ser-no-
mundo Tudo aquilo com que podemos nos relacionar e comportar tem este caraacuteter
estaacute aiacute e eacute encontrado no caminho do cuidado eacute experimentado como significativo a
partir de um determinado cuidado Significacircncia indica este modo fundamental como
algo segundo o seu teor proacuteprio eacute encontrado na vida como ele se deteacutem e se reteacutem
no meio do mundo da vida
Soacute acontece linguagem onde noacutes falamos uns com os outros A linguagem
acontece de iniacutecio e na maior parte das vezes na conversa com suas falas e seus
silecircncios Para noacutes isto eacute na ordem da nossa experiecircncia cotidiana a primeira
35 Heidegger M Ser e Tempo sect 17
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dimensatildeo pois da linguagem eacute a fala o discurso O discurso traz agrave fala uma
compreensatildeo Chamamos de sentido o que pode ser articulado O sentido eacute o que torna
compreensiacutevel algo enquanto algo Compreender eacute fundamentalmente apreender algo
enquanto algo Tudo que apreendemos se mostra a si mesmo como isso ou aquilo Isso
quer dizer noacutes aprendemos cada coisa em sua significacircncia A percepccedilatildeo natural em
que noacutes vivemos cotidianamente jaacute eacute sempre uma compreensatildeo uma captaccedilatildeo da coisa
como esta coisa do sapato como sapato do livro como livro do reloacutegio como reloacutegio
Natildeo eacute assim que eu primeiro apreendo uma coisa na sua nua e crua factualidade e
depois lhe atribuo este ou aquele significado Cada vez eu apreendo uma coisa como
tal coisa isto eacute eu apreendo a coisa dentro de uma determinada significacircncia36
A coisa que me vem ao encontro dentro do mundo se mostra como isto ou
aquilo37 Ela instaura um conjunto de referecircncias ela remete a isto ou aquilo ela soa
desta ou daquela maneira em meu mundo ela fala disto ou daquilo em minha vida A
coisa significa a si mesma Mas o seu poder significar a si mesma soacute eacute possiacutevel porque
ela jaacute eacute descoberta como coisa que vem ao encontro dentro do mundo isto eacute dentro de
uma totalidade de sentido Que a coisa se faccedila encontrar e descobrir deste ou daquele
modo e que ela se decirc a compreender como isto ou aquilo ndash isto soacute eacute possiacutevel porque ao
apreendecirc-la numa percepccedilatildeo concreta um mundo jaacute se me abriu Com a coisa se
anuncia o mundo da vida ou melhor os mundos da vida o mundo circunstante o
mundo partilhado da convivecircncia o mundo proacuteprio pessoal A coisa soacute pode ser
apreendida na sua significacircncia a partir da abertura do mundo ou dos mundos
Perceber eacute jaacute compreender as coisas na sua significacircncia Perceber eacute estruturar
e configurar o mundo como estrutura significativa Em toda percepccedilatildeo atua pois um
ato fundamental de significaccedilatildeo Chamamos de significar o ato pelo qual o homem
estrutura a significacircncia das coisas no horizonte do mundo enquanto totalidade
significativa Da compreensatildeo que articula a significaccedilatildeo das coisas numa totalidade
sentido brota a possibilidade da interpretaccedilatildeo Pela compreensatildeo o homem estaacute
sempre se projetando abrindo lances de perspectivas entrevendo de antematildeo
36 Cfr M HEIDEGGER GP 102-110 37 Cfr M HEIDEGGER Ontologie (Hermeneutik der Faktizitaumlt) (OHF) Gesamtausgabe ndash Band 63 Vittorio Klostermann Frankfurt am Main 1995 p 93-104
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aberturas de possibilidades Pela compreensatildeo o homem opera um ver que eacute projetivo
e criativo de possibilidades de ser Esse ver projetivo e criativo configura isto eacute elabora
em formas significativas essas possibilidades de ser Agrave elaboraccedilatildeo e exposiccedilatildeo dessas
formas chamamos de interpretaccedilatildeo Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo se apropria do
que compreende Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo busca chegar a uma maturaccedilatildeo
isto eacute busca maturar as possibilidades de ser que ela jaacute entreviu A interpretaccedilatildeo eacute uma
explicitaccedilatildeo da compreensatildeo O que entra como componente da explicitaccedilatildeo possui o
caraacuteter de significacircncia eacute o mostrar-se de algo como algo Em todo o nosso
comportamento noacutes jaacute estamos sempre compreendendo e interpretando apreendendo
algo como algo e referindo algo a algo articulando significados numa totalidade de
sentido que eacute o mundo O homem sempre interpreta Pois interpretar eacute ser homem
A articulaccedilatildeo dos significados numa totalidade de sentido se daacute atraveacutes do falar
quer do falar de si consigo mesmo quer do falar uns com os outros Na fala noacutes
pronunciamos o que compreendemos e como interpretamos o que estaacute em questatildeo Pro-
nunciar eacute pro-ferir isto eacute trazer agrave luz ao aberto do mundo da convivecircncia aquilo que
compreendemos e interpretamos Pelo discurso vecircm agrave fala os entes e o ser dos entes
tais como se oferecem agrave nossa compreensatildeo e interpretaccedilatildeo Vem agrave fala agrave medida que
se articulam num horizonte de compreensibilidade que noacutes chamamos de sentido O
sentido eacute o que se articula na compreensatildeo e interpretaccedilatildeo como horizonte daquilo que
compreendemos e interpretamos Todo discurso eacute o pronunciar o vir agrave fala daquilo que
compreendemos e interpretamos dos significados das coisas agrave luz do sentido de ser que
noacutes lhes damos
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Os medievais iratildeo precisar e aprofundar a concepccedilatildeo de signo Assim para
Tomaacutes de Aquino o signum eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro
A palavra proferida exteriormente pela voz eacute a fala A fala eacute proferida a modo de uma
voz articulada significativa Nem todo o som eacute voz A voz enquanto haacutelito sopro som
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que sai da boca com efeito soacute chega a ser palavra quando eacute significativa38 Sem a
significaccedilatildeo (significatio) uma voz natildeo eacute palavra A significaccedilatildeo torna a voz uma
expressatildeo do pensamento39 Por isso somente um vivente inteligente (animal rationale)
tem voz enquanto palavra40 Um vivente melhor um animal emite sons para se
comunicar Mas os seus sons natildeo satildeo vozes articuladas significativas Os gritos os
alaridos de animais natildeo satildeo palavras Sua comunicaccedilatildeo natildeo eacute fala O berrar de um
bezerro o mugir de uma vaca o balar de uma ovelha o balir de um cordeiro o arrulhar
de uma pomba o latir de um catildeo o miar de um gato ndash tudo isso natildeo eacute fala Seus sons
natildeo satildeo vozes significativas Indicam alguma coisa Mas o seu indicar natildeo tem o sentido
de significar alguma coisa Significar eacute dar a conhecer algo como algo a algueacutem41 Fumaccedila
indica fogo Bandeira branca indica rendiccedilatildeo Indicar poreacutem natildeo eacute significar Todo
significar eacute um indicar mas nem todo indicar eacute significar Significar eacute dar a conhecer no
sentido de dar a compreender algo como algo A fala daacute a conhecer alguma coisa Ela
faz-se notar e faz notar alguma coisa A fala eacute um fazer notar que daacute a conhecer alguma
coisa42 A fala faz notar daacute a conhecer isto eacute gera uma ldquonotiordquo ou uma ldquonotitiardquo
(conhecimento noccedilatildeo sentido)43 Notar quer dizer aqui dirigir-se a alguma coisa
orientando-se no mundo (intencionalidade) tornando-se atento a ela ao seu ser
Joatildeo Duns Scotus iraacute retomar o triacircngulo semioacutetico do Peri hermeneiacuteas de
Aristoacuteteles Ele questiona sobre a distinccedilatildeo de litteras et voces (letras e vozes) de um
lado passiones (disposiccedilotildees da alma) e res (coisa) de outro lado na quarta das questotildees
sobre o primeiro livro do ldquoPerigrave hermeneiasrdquo e conclui pela sua conveniecircncia As
disposiccedilotildees da alma (significaccedilatildeo e sentido) satildeo as mesmas em todos bem como as
coisas que elas significam enquanto as letras e vozes satildeo diferentes dependendo da
liacutengua Com outras palavras as letras e vozes que satildeo diferentes de liacutengua para liacutengua
38 ldquoVox quae non est significativa verbum dici non potestrdquo (A voz que natildeo eacute significativa natildeo pode ser dita palavra) ndash Tomaacutes de Aquino op Cit (I341) 39 ldquoLocutio est proprium opus rationis (I913 ad 3) falar -diz Tomaacutes- eacute operaccedilatildeo proacutepria da razatildeo 40 Agrave base desta concepccedilatildeo estaacute a concepccedilatildeo grega do homem aacutenthropos como zoon logon echon (vivente que tem linguagem) Nesta traduccedilatildeo o loacutegos eacute tanto ratio (pensamento) quanto oratio (fala no sentido de discurso) 41 Em Tomaacutes no acircmbito da vox situa-se a palavra (verbum) A palavra eacute uma realizaccedilatildeo especial do signo (signum) que por sua vez eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro (III604) 42 Cfr Heidegger M Vom Wesen der Sprache Die Metaphysik der Sprache und die Wesung des Wortes - Zu Herders Abhandlung ldquoUumlber den Ursprung der Spracherdquo Gesammtausgabe Band 85 p 3-4 43 Cfr idem p 20
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satildeo sinais instituiacutedos pelo arbiacutetrio humano que representam as disposiccedilotildees da alma (no
caso significaccedilatildeo e sentido) que por sua vez satildeo sinais naturais representativos das
coisas44
As expressotildees orais ou escritas satildeo formas linguiacutesticas dotadas de significaccedilotildees e
de sentido Sentidos e significaccedilotildees que satildeo pensados vecircm agrave expressatildeo Eles satildeo
exprimiacuteveis atraveacutes de formaccedilotildees linguiacutesticas Uma coisa eacute a forma linguiacutestica da
expressatildeo o complexo graacutefico ou focircnico ou como dizem os medievais as voces (vozes)
Outra coisa eacute o conteuacutedo da expressatildeo a significaccedilatildeo o sentido no juiacutezo e no
entrelaccedilamento de juiacutezos (conclusatildeo silogismo) O conteuacutedo eacute um ldquosignificatumrdquo que
estaacute intencionalmente ldquoin menterdquo45
A voz se torna expressatildeo agrave medida que eacute dotada de significaccedilotildees e de sentido
Assim a proposiccedilatildeo enquanto sequecircncia de palavras eacute singular Mas o conteuacutedo da
proposiccedilatildeo o juiacutezo ora eacute singular se o predicado eacute dito de um soacute ou universal se o
predicado eacute dito de muitos A proposiccedilatildeo como uma sequecircncia de palavras natildeo eacute
verdadeira ou falsa Ela eacute ou natildeo eacute Eacute falada ou escrita Mas natildeo eacute verdadeira ou falsa O
sentido da proposiccedilatildeo o juiacutezo eacute que eacute verdadeiro ou falso natildeo poreacutem enquanto
simples conteuacutedo da proposiccedilatildeo mas soacute agrave medida que ele tem um valor objetivaacutevel um
valor de conhecimento objetivo46 Proposiccedilatildeo e sentido palavra e significaccedilatildeo
pertencem a acircmbitos de realidade diversos Os elementos linguiacutesticos que constituem
proposiccedilatildeo e palavra satildeo sensivelmente perceptiacuteveis (satildeo acuacutesticos visuais motores)
satildeo reais e temporais Jaacute as significaccedilotildees e o sentido se subtraem a uma percepccedilatildeo
sensorial e satildeo atemporais O elemento linguiacutestico de uma expressatildeo eacute um signum ad
44 Cfr Quaestiones in I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 7) ldquoAd quaestionem dicendum quod differentia est conveniens quia passiones inquanto sunt signa et res inquanto sunt significata sunt eandem apud omnes nam eadem passio in anima apud quoscumque concipientes repraesentat eamdem rem quia eadem similitudo in anima semper est eiusdem repraesentativa sicut est similitudo sensibilis in sensu litterae et voces in se eaedem non sunt eaedem apud omnes inquanto sunt signa quia nec eadem littera apud omnes repraesentat eamdem vocem sed vel aliam vel nullam nec eadem vox apud omnes significat eamdem passionem sed vel aliam vel nullamrdquo (SCOTUS 1998 p 918) 45 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 12) ldquoAd quaestionem dici potest quod iste liber non est de decem vocibus ut de primo subiecto ndash nec aliqua pars logicae est de voce quia omnes passiones syllogismi et omnium partium eius possunt sibi inesse secundum esse quod habent in mente etsi non proferantur () sed est de aliquo priore quod respectu voces significativae tantum habet rationem significatirdquo (SCOTUS 1998 p 652) 46 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 22) ldquoSimiliter lsquosignificare verum vel falsumrsquo convenit enuntiationi sed non ut vox est significans conceptum sed ut conceptus significat remrdquo (SCOTUS 1998 p 653)
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placitum um signo instituiacutedo conforme o agrado ou o arbiacutetrio de quem o usa47 As
significaccedilotildees e os sentidos poreacutem se subtraem ao arbiacutetrio daquele que pensa por ter
a sua proacutepria necessidade ideal ou objetiva
A forma linguiacutestica eacute signo da significaccedilatildeo que por sua vez eacute signo de algo de
objetual de alguma objetualidade (objetos estados-de-coisas notas distintivas formas
reais ou categoriais) Trata-se do triacircngulo semioacutetico que constitui a base da
consideraccedilatildeo sobre a linguagem em toda a tradiccedilatildeo ocidental e que vem de Aristoacuteteles
Para Duns Scotus palavra e proposiccedilatildeo enquanto formaccedilotildees linguiacutesticas
dotadas de significaccedilatildeo e de sentido apontam para a esfera objetual A formaccedilatildeo
linguiacutestica eacute sinal da significaccedilatildeo e do sentido que eacute por sua vez sinal do objeto Enfim
palavra e proposiccedilatildeo satildeo sinais das coisas ldquoQuidquid est signum signi est signum
signatirdquo ndash o que quer que seja sinal do sinal eacute sinal do assinalado48 Assim palavra e
proposiccedilatildeo se tornam sinais das objetualidades agraves quais se referem No entendimento
de Duns Scotus o conceito eacute o que eacute designado imediatamente o objeto eacute o que eacute
designado mediatamente pela expressatildeo O doutor sutil esclarece que significare eacute dare
intelligere dar a compreender49 O signo eacute algo de relacional possui um caraacuteter ou uma
funccedilatildeo remissiva O signo graccedilas a sua funccedilatildeo remissiva eacute o fundamento material de
que parte o conhecimento do designado A expressatildeo linguiacutestica poreacutem natildeo eacute somente
um signo que remete ou se refere a algo Ele eacute um signo que significa algo ou seja que
daacute a compreender algo ou algo de algo e que ademais se refere a objetualidades
visando dizer ou seja mostrar o que se mostra e como se mostra50
47 Cfr Quaestiones super I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 14) ldquo et instrumenta naturalia formandi vocem potest homo aliqua imponere quae sunt signa ad placitum et non naturalia sive conceptusrdquo (SCOTUS 1998 p 919) 48 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 28 n 28) ldquo lsquoQuidquid est signum signi est signum signatirsquo ita quod signum intermedium non varietur in comparatione ad primum signum et ultimum signatumrdquo (SCOTUS 1998 p 751) 49 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 8 n 1) ldquoQuia significare est intellectum constituererdquo (SCOTUS 1998 p 679) 50 Assim para Husserl a expressatildeo que funde numa unidade a manifestaccedilatildeo sensiacutevel a significaccedilatildeo e a referecircncia ao objeto estaacute ordenada tanto a um valor de conhecimento quanto a um valor de verdade Agrave expressatildeo corresponde ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo se constitui uma relaccedilatildeo com o objeto Triacuteplice eacute o conteuacutedo de uma expressatildeo a significaccedilatildeo a referecircncia ao objeto e por fim o preenchimento de sentido A expressatildeo pela significaccedilatildeo e pela referecircncia ao objeto daacute a compreender alguma coisa acerca de algo O preenchimento da intenccedilatildeo signitiva vazia no modo da confirmaccedilatildeo da documentaccedilatildeo intuitiva leva por sua vez agrave experiecircncia da verdade Para Husserl expressotildees satildeo signos significativos distintos dos signos indicativos Numa descriccedilatildeo fenomenoloacutegica da expressatildeo dotada de sentido se
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No De dialectica (Da dialeacutetica) Agostinho define a palavra como um sinal de
alguma coisa que proferido por quem fala pode ser compreendido por quem escuta (De
Dialectica 5) 51 Nesta definiccedilatildeo podemos perceber as vaacuterias dimensotildees do exerciacutecio
humano da linguagem a da comunicaccedilatildeo em que homens falam uns com os outros
compartilhando suas vidas e coparticipando de um mesmo mundo a da expressatildeo em
que homens se pronunciam a partir de seu ser num mundo comum o discurso pelo
qual homens falam uns com os outros e escutam uns aos outros a compreensatildeo e
interpretaccedilatildeo em que homens ouvindo uns aos outros recebem a mensagem e se
apropriam de seu sentido Como ponta do ldquoicebergrdquo de toda esta vitalidade do concurso
comunicativo e do discurso temos o sinal que eacute proferido por quem fala o som da boca
a voz que longe de ser um mero ruiacutedo eacute um sinal um signo e se sinal eacute sinal de
alguma coisa ou seja algo vem a ser significado por este signo ou sinal
podem evidenciar trecircs momentos que no entanto formam uma unidade intimamente fundida a apariccedilatildeo fiacutesica da expressatildeo o ato doador de sentido e o ato preenchedor de sentido Assim palavras e proposiccedilotildees satildeo sons articulados animados de sentido Agraves expressotildees satildeo essenciais os atos que conferem a significaccedilatildeo respectivamente as intenccedilotildees de significaccedilatildeo A estes atos se acrescentam de modo extra-essencial os atos que preenchem as significaccedilotildees confirmando reforccedilando ilustrando as intenccedilotildees de significaccedilatildeo Para que o signo se torne expressatildeo eacute preciso que lhe seja imposto uma significaccedilatildeo Husserl fala de emprestar significaccedilatildeo de conferir sentido Expressotildees satildeo unidades de signos e designados (sinais e assinalados) de espeacutecie bem peculiar Expressotildees satildeo sinais significativos A significaccedilatildeo adere ao ato significativo Com a expressatildeo que suscita o ato que confere o sentido nos orientamos ao objeto Agrave expressatildeo compete ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo eacute que se constitui a relaccedilatildeo com o objeto ldquoToda e qualquer expressatildeo natildeo quer apenas dizer qualquer coisa mas tambeacutem diz algo acerca de qualquer coisa ela natildeo tem apenas a sua significaccedilatildeo mas refere-se tambeacutem a quaisquer objetosrdquo (HUSSERL 2012 p 38 ndash grifo de Husserl) Assim significaccedilatildeo e referecircncia objetiva se distinguem Expressotildees podem ter a mesma significaccedilatildeo mas objetos diferentes por um lado e por outro podem ter significaccedilotildees diferentes mas o mesmo objeto Assim considerando dois enunciados ldquoeste sendeiro eacute um cavalordquo e ldquoBuceacutefalo eacute um cavalordquo a expressatildeo um cavalo tem a mesma significaccedilatildeo mas os objetos satildeo diferentes Por sua vez dois nomes podem significar coisas diferentes mas nomear o mesmo como no exemplo ldquoO vencedor de Iena - O vencido de Waterloordquo Significaccedilatildeo e referecircncia objetiva no entanto estatildeo em iacutentima conexatildeo A expressatildeo se refere ao objeto por meio da significaccedilatildeo Uma expressatildeo adquire um referimento ao objeto pelo simples fato de que esta significa algo Por isso eacute que dizemos que uma expressatildeo designa ou denomina algo por meio do seu significado ou seja o ato de significar eacute o modo determinado de intencionar o objeto em questatildeo soacute que justamente este modo de intencionar e portanto o significado mesmo pode variar enquanto permanece idecircntica a direccedilatildeo para o objeto Se considerarmos pois os trecircs momentos que se fundem numa unidade na expressatildeo temos aquilo que de modo equiacutevoco se chama o expressado da expressatildeo ldquoOs termos em relaccedilatildeo ndash manifestaccedilatildeo significaccedilatildeo e objeto ndash pertencem essencialmente a toda e qualquer expressatildeo Em cada uma qualquer coisa eacute manifestada qualquer coisa eacute significada e qualquer coisa eacute nomeada ou de algum modo designada E no discurso equiacutevoco tudo isto se diz lsquoexpressorsquordquo 51 Idem p 14
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No escrito sobre a dialeacutetica Agostinho trata de quatro elementos desta arte o
verbum o dicibile52 a dictio53 e a res Vejamos como Agostinho expotildee o nexo entre estes
quatro elementos
Ora porque as palavras (verba) satildeo sinais das coisas (signa rerum) quando se ocupam com as coisas enquanto satildeo sinais das palavras (signa verborum) quando se discute sobre palavras ndash pois sobre palavras natildeo podemos falar a natildeo ser com palavras e quando falamos natildeo falamos a natildeo ser de coisas ndash ocorre agrave mente que as palavras satildeo sinais das coisas sem deixar de ser coisas
Quando pois a palavra sai da boca se sai por causa de si mesma isto eacute para que acerca dela se inquira ou se discuta haacute certamente uma coisa que eacute sujeita a discussatildeo e a investigaccedilatildeo mas justamente esta coisa eacute chamada palavra
E o que quer que a partir da palavra natildeo os ouvidos mas a mente (animus) percebe (sentit) e que a mente mesma manteacutem incluiacuteda em si se chama dicibile54 Quando poreacutem a palavra sai natildeo por causa de si mesma mas para significar algo de outro chama-se dictio55 E a coisa mesma que natildeo eacute uma palavra nem ainda uma concepccedilatildeo da palavra na mente seja que tenha uma palavra com a qual possa ser significada seja que natildeo a tenha daqui por diante natildeo eacute chamada com nome apropriado de outro modo do que de coisa
Estes quatro hatildeo de ser mantidos distintamente portanto a palavra (verbum) o dicibile a dictio a coisa Aquilo que defini como palavra eacute uma palavra e significa a palavra Aquilo que defini dicibile eacute uma palavra e todavia natildeo significa a palavra mas aquilo que graccedilas agrave palavra se compreende e estaacute contido na mente Aquilo que eu defini dictio eacute uma palavra mas uma palavra que significa contemporaneamente as outras duas ou seja a palavra mesma e aquilo que se faz na mente atraveacutes da palavra Aquela que eu defini como coisa eacute uma palavra que significa tudo aquilo que fica fora das trecircs que foram ditas
52 Seria o λεκτόν (lektoacuten) dos estoicos 53 Seria a λέξις (leacuteksis) dos estoicos 54 O exprimiacutevel ou melhor o diziacutevel no sentido do mostraacutevel 55 A expressatildeo o dito do dizer
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Depois destas digressotildees necessaacuterias para aclararmos o que estaacute em questatildeo
voltemos ao livro II do ldquoDe Doctrina Christianardquo de Agostinho Retomemos a sua
consideraccedilatildeo a respeito do signo
Haacute dois tipos de signos os naturais e os convencionais Os naturais datildeo a
conhecer por si proacuteprios alguma coisa aleacutem do que satildeo em si Assim fumaccedila eacute signo
de fogo Os signos convencionais (data signa) satildeo todos aqueles que os seres vivos em
especial o ser humano mutuamente se trocam para manifestar ndash o quanto lhes eacute
possiacutevel ndash os movimentos de sua alma tais como as sensaccedilotildees e os pensamentos Os
signos podem se dar em referecircncias a todos os sentidos a maioria dos signos poreacutem
se referem agrave audiccedilatildeo ou agrave visatildeo Dentre estes signos mais usuais e importantes satildeo os
signos verbais que satildeo sons significativos que se articulam mediante a voz humana
constituindo a palavra falada Os signos escritos poreacutem mostram os signos verbais de
maneira visiacutevel (e natildeo audiacutevel como fazem os signos falados)
A liacutengua eacute a realizaccedilatildeo concreta da linguagem humana mediante o uso de signos
verbais falados ou escritos As Sagradas Escrituras indicam pela histoacuteria da Torre de
Babel que liacutengua e linguagem sofrem com a decadecircncia do espiacuterito humano causada
pela soberba56 O contraacuterio da histoacuteria de Babel eacute poreacutem a histoacuteria de Pentecostes
narrada no livro dos Atos dos Apoacutestolos que aponta para a comunhatildeo do amor e o
muacutetuo entendimento entre os homens propiciado com o dom do Hagioacutes Pneuma
(Sopro Sagrado Espiacuterito Santo)
56 Na histoacuteria narrada pelo livro do Gecircnesis os homens se unem para erguer uma torre que una a terra ao ceacuteu a partir das proacuteprias forccedilas e da proacutepria engenhosidade Nos povos antigos encontramos monumentos que evocam algo disso O desejo do homem de uniatildeo entre o ceacuteu e a terra se manifesta nos zigurates da mesopotacircmia nas piracircmides das altas culturas das pedras (Egito Peru Meacutexico) nas estupas asiaacuteticas e quiccedilaacute em tempos mais primitivos aos dolmens menires nas cacircmaras funeraacuterias e nos obeliscos Junto com o esforccedilo de o homem erguer-se a si mesmo como homem erguendo pedras haacute o esforccedilo tambeacutem de alcanccedilar a vida dos imortais dos deuses tolhendo a proacutepria finitude Babel que era para ser a ldquoporta dos deusesrdquo (babilani) se torna poreacutem o lugar da confusatildeo (balal = confundir) O mundo se torna assim uma ldquoBabilocircniardquo isto eacute o lugar da confusatildeo em que os homens natildeo conseguem chegar ao entendimento muacutetuo Somente em Pentecostes em Jerusaleacutem celebra-se plenamente a superaccedilatildeo desta divisatildeo e desta confusatildeo em que as liacutenguas natildeo satildeo mais confusas e em que a linguagem do amor ardente une os homens e propicia-lhes a chance do entendimento muacutetuo e da verdadeira concoacuterdia uma concoacuterdia para o bem em favor de Deus
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Aquele vento purificava os coraccedilotildees da palha carnal aquele fogo consumia o feno da antiga concupiscecircncia aquelas liacutenguas em que falavam os que estavam plenos do Espiacuterito Santo prefiguravam a futura Igreja mediante liacutenguas de todos os povos Pois assim como depois do diluacutevio a soberba impiedade dos homens edificou uma grandiosa torre contra o Senhor ocasiatildeo na qual o gecircnero humano mereceu ser dividido pela diversidade das liacutenguas de modo que cada naccedilatildeo falasse sua proacutepria liacutengua para natildeo ser entendido pelas demais assim a humilde piedade dos fieis reduziu a diversidade de liacutenguas agrave unidade da Igreja de maneira que aquilo que a discoacuterdia tinha dispersado o reunisse a caridade e assim os membros dispersos do gecircnero humano qual membros de um mesmo corpo fossem reintegrados agrave unidade de uma uacutenica cabeccedila que eacute Cristo e fundidos na unidade do corpo santo mediante o fogo do amor57
O maior sinal da comunhatildeo do amor eacute quando os homens conseguem falar uns
com os outros e se entender Embora sejam diferentes e falem liacutenguas diferentes falam
a partir de uma mesma linguagem a do amor-caridade (gratuidade) As liacutenguas se
tornam entatildeo como labaredas do amor As falas satildeo entatildeo falas inflamadas de um fogo
divino brilhantes e ardentes divinamente apaixonadas entusiasmadas O amor eacute o que
possibilita manter esta identidade na diferenccedila Cria-se uma identidade comum mas
sem desfazer antes protegendo as diferenccedilas Eacute o milagre das liacutenguas O contraacuterio de
Babel Recriaccedilatildeo do homem humano e da humanidade universal
Assim os homens podem voltar agrave linguagem comum apesar da diversidade das
liacutenguas unindo suas vontades no empenho de conhecer e realizar a vontade de Deus A
serviccedilo deste intento estatildeo as Sagradas Escrituras Estas satildeo obra do proacuteprio Deus que
usou de hagioacutegrafos inspirados para expressar a sua vontade na linguagem humana
mediante as diversas liacutenguas Os que leem as Sagradas Escrituras natildeo desejam encontrar
nelas mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram e desse modo chegar
a conhecer a vontade de Deus segundo a qual ordem esses homens compuseram
Entretanto o leitor das Sagradas Escrituras vai se deparar continuamente com
ambiguidades e obscuridades Para Agostinho estas fazem parte da proacutepria natureza das
Escrituras Sagradas Haacute um certo quecirc de hermeacutetico de enigmaacutetico de obscuro nelas
57 Sermatildeo 271
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Mas eacute justamente isto que desafia a compreensatildeo e que a faz crescer na busca da
vontade divina As obscuridades e ambiguidades natildeo satildeo inuacuteteis Elas vencem o orgulho
do homem que se aproxima dos misteacuterios divinos sem reverecircncia e sem devoccedilatildeo Por
outro lado elas premunem o espiacuterito do fastio e do teacutedio que a facilidade sempre trazem
consigo As dificuldades de interpretaccedilatildeo cria-nos o gosto pelo exerciacutecio da
compreensatildeo na sua aventura de conquista do sentido Contudo natildeo se deve ter a
pretensatildeo de que se pode chegar a uma clareza que elimine toda sombra e obscuridade
A clareza do misteacuterio que se desvela sempre traz o veacuteu do pudor em que o misteacuterio
mesmo se encobre e assim se resguarda Os significados hauridos seratildeo sempre acenos
do inefaacutevel na medida em que o misteacuterio santo se deixa captar no horizonte do sentido
Uma vez que as Sagradas Escrituras satildeo linguagem do misteacuterio santo do Deus
absconditus (Deus escondido) que se re-vela (desvela e vela ao mesmo tempo) na
finitude da linguagem humana o leitor vai se deparar com desafios sempre novos
Agostinho recorre entatildeo agrave alegorese seguindo neste ponto a tradiccedilatildeo dos
alexandrinos As alegorias possuem encanto todo especial capaz de falar natildeo somente
ao entendimento mas tambeacutem ao coraccedilatildeo dos homens Com efeito a linguagem
imageacutetica concreta tem maior poder de comunicaccedilatildeo vital do que a linguagem
conceitual abstrata O uso de comparaccedilotildees leva o leitor a aprender mais
espontaneamente (libenter) As dificuldades de interpretaccedilatildeo levam-no a aprender com
maior prazer (gratius) As passagens obscuras das Escrituras aguccedilam a fome de
compreensatildeo do leitor Entretanto Agostinho daacute uma indicaccedilatildeo metodoloacutegica de leitura
importante para ir abrindo a compreensatildeo das Escrituras ganhar familiaridade com as
passagens claras e inequiacutevocas e com isso iluminar as passagens obscuras e
enigmaacuteticas Com efeito diz ele quase nada sobressai nas obscuridades que natildeo esteja
escrito mais claramente em outro lugar
Aquele que lecirc as Sagradas Escrituras procurando nelas a vontade divina eacute algueacutem
que estaacute a caminho numa viagem para a paacutetria da beatitude eterna Este caminhar
comporta determinado itineraacuterio no qual o homem vai se dispondo cada vez mais ao
Espiacuterito de Deus e ao seu modo de operar na alma os seus dons Eacute na medida que se
aproxima da Sabedoria do Espiacuterito que o leitor lecirc com maior proveito e profundidade as
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Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
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Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
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Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
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Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
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(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
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Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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constituiacuteda pela ldquoeruditio et institutio in bonas artesrdquo - ldquoerudiccedilatildeo e instruccedilatildeo nas lsquoboas
artesrsquordquo Tratava-se das ldquomathemata eleutherardquo ou ldquoartes liberalesrdquo4 Entre as sete artes
livres poreacutem os romanos privilegiavam as do Trivium ndash deixando em segundo plano as
do Quadrivium5 Em Quintiliano por exemplo a formaccedilatildeo do ldquovir bonusrdquo o cidadatildeo
capaz de cuidar da coisa puacuteblica comeccedila a sua instruccedilatildeo com a gramaacutetica ndash das liacutenguas
latina e grega ndash continua com as matemaacuteticas e com a muacutesica e culmina com a dialeacutetica
e a retoacuterica Estas eram as chamadas ldquoartes bonaerdquo Terecircncio acrescentava agraves sete artes
liberais a medicina e a arquitetura Enfim para os romanos as artes liberais continham
os saberes necessaacuterios na formaccedilatildeo integral do homem puacuteblico matemaacuteticas
literatura o conhecimento da natureza das coisas dos costumes dos homens e das
coisas puacuteblicas O pivocirc poreacutem da formaccedilatildeo do homem culto romano era a gramaacutetica
(letras) e a retoacuterica As demais artes livres serviriam apenas como conteuacutedo para o
histoacuterico de sua proacutepria humanidade Por isso os romanos traduziram a palavra ldquopaideiardquo por ldquohumanitasrdquo ldquoHumanitasrdquo natildeo eacute para a liacutengua dos romanos somente a natureza do homem ou da espeacutecie humana mas eacute tambeacutem o processo pelo qual o homem se apropria de sua natureza no ldquomediumrdquo da cultura ou seja a educaccedilatildeo O homem educado no elemento da cultura melhor da ldquocivitasrdquo eacute o ldquohomo humanusrdquo em oposiccedilatildeo ao ldquohomo barbarusrdquo imerso no estado de natureza o ldquoselvagemrdquo eacute o homem ldquocivilisrdquo o homem citadino civilizado Daiacute ldquohumanitasrdquo significava tambeacutem o mesmo que ldquourbanitasrdquo urbanidade no sentido de polidez civilidade elegacircncia cortesia em oposiccedilatildeo a ldquorusticitasrdquo que eacute o proacuteprio do homem do ldquorusrdquo isto eacute do campo o homem rural que se reveste da ambiguidade de ldquorusticusrdquo o homem ruacutestico rude ingecircnuo (no bom e no mal sentido) simples mas tambeacutem grosseiro Tudo isso pertence agrave perspectiva do humanismo romano ancestral de todos os outros humanismos ocidentais tanto o humanismo cristatildeo medieval quanto o humanismo renascentista e os demais humanismos modernos 4 Entre as ldquoartes mecacircnicasrdquo e as ldquobelas artesrdquo se encontravam as ldquoartes liberalesrdquo as artes livres Livres de quecirc Livres das necessidades imediatas utilitaacuterias econocircmicas em que a vida do homem se move no cotidiano em busca do ldquouacutetil e agradaacutevelrdquo Os saberes destas artes eram considerados essenciais para formar o ldquohomem livrerdquo O sentido do estudo destas artes era a busca da verdade por causa da proacutepria verdade para aleacutem de todo o interesse utilitaacuterio 5 As raiacutezes das ldquoartes liberalesrdquo mergulham no mundo grego Jaacute Platatildeo no diaacutelogo ldquoPoliteiardquo (Repuacuteblica) lanccedila o projeto de uma ldquopaideiardquo ideal para a vida na ldquopolisrdquo uma formaccedilatildeo que fosse aleacutem do utilitarismo dos sofistas e que retomava e aperfeiccediloava o projeto pitagoacuterico Depois de uma formaccedilatildeo inicial em muacutesica e ginaacutestica que formaria a percepccedilatildeo e sensibilidade (aisthesis) o menino devia ser formado nos saberes ldquomatemaacuteticosrdquo ou seja a aritmeacutetica a geometria a astronomia e a muacutesica ndash como ciecircncia matemaacutetica dos sons ndash dando origem assim ao que os medievais chamariam de ldquoquadriviumrdquo as quatro artes fiacutesico-matemaacuteticas Atraveacutes destes saberes o jovem iria se exercitar na ldquodianoiardquo ou seja na capacidade de pensar compreender e refletir Em seguida o jovem seria introduzido no estudo da arte da dialeacutetica (dialektike techne) que para Platatildeo era a porta de entrada para o exerciacutecio do ldquonousrdquo isto eacute do intelecto enquanto capacidade de percepccedilatildeo intelectual de apreensatildeo dos princiacutepios De iniacutecio arte do diaacutelogo (dialegesthai) a dialeacutetica se tornou a arte de perguntar e de responder bem como a arte de dividir os entes por gecircneros e espeacutecies Aristoacuteteles a considerou a arte que tem por objeto os raciociacutenios que se assentam em opiniotildees provaacuteveis A ela dedicou os ldquoToacutepicosrdquo e a colocou entre a retoacuterica e a analiacutetica que era a arte da demonstraccedilatildeo dedutiva que parte de premissas verdadeiras Na eacutepoca alexandrina poreacutem a dialeacutetica por obra do estoicismo se juntou agrave gramaacutetica e agrave retoacuterica formando aquele conjunto de saberes ligados agrave linguagem que mais tarde os medievais chamaratildeo de ldquotriviumrdquo
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discurso trabalhado segundo os princiacutepios destas duas artes da linguagem Agostinho a
partir de Varratildeo define a gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as
letras ou melhor a escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes6
Aleacutem de Varratildeo vaacuterios outros escritores da antiguidade tardia e do iniacutecio da
Idade Meacutedia vatildeo procurar transmitir estas artes aos poacutesteros Temos esforccedilos neste
6 ldquoMas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que Varratildeo chama de aprendizagem da escriturardquo (De Ordine II 1235)
4
sentido de Marciano Capella7 de Agostinho8 de Boeacutecio9 de Cassiodoro10 Isidoro de
Sevilha11 etc Na concepccedilatildeo de Agostinho o estudo das Artes Liberais ajudaria natildeo
7 Na passagem da antiguidade para o medievo um africano de Madaura Marciano Capella levou a cabo este intento Entre 410 e 439 este retoacuterico e escritor nascido no norte da Aacutefrica (Madaura) escreveu a obra De nuptiis Philologiae et Mercurii (Das nuacutepcias de Filologia e Mercuacuterio) em nove livros Trata-se de uma enciclopeacutedia alegoacuterica escrita e prosa e verso sobre as ldquoartes liberalesrdquo (artes livres ou liberais) Nesta obra o conhecimento delas eacute descrito alegoricamente como uma ascensatildeo da mente humana do reino sensiacutevel ao inteligiacutevel Na alegoria de Marciano Capella o deus Mercuacuterio (Hermes) pretende se casar Pensa em Sophia em Mantica ou em Psicheacute mas todas estas satildeo descartadas por diversas razotildees Entatildeo o seu meio-irmatildeo Apolo o aconselha a se casar com a mortal Filologia Juacutepiter o deus supremo do ceacuteu aceita esta uniatildeo apenas se Filologia for elevada ao ceacuteu e divinizada (apoteosis) O livro II trata desta ascensatildeo que deveraacute se dar atraveacutes de sete esferas celestes O livro III trata da Gramaacutetica (literatura) o IV da Dialeacutetica e o V da Retoacuterica (as trecircs artes da linguagem que formaratildeo o trivium dos medievais) No Livro VI se fala da Geometria no VII da Aritmeacutetica no VIII da Astronomia e no IX da Harmonia (as quatro artes matemaacuteticas que Boeacutecio chamou de quadrivium) Esta obra tornou-se um manual nas escolas medievais e foi frequentemente comentada na Idade Meacutedia como por exemplo por Remiacutegio de Auxerre No seacuteculo XI Notker Labeo o traduziu para o alematildeo 8 Depois de sua conversatildeo no periacuteodo em que era catecuacutemeno e receacutem-batizado (386-387) Agostinho comeccedilou uma intensa atividade autoral Em 386 Agostinho forma com seus amigos uma comunidade de vida dedicada ao estudo e agrave oraccedilatildeo num retiro chamado Cassiciacuteaco junto de Milatildeo Ainda na Itaacutelia ele escreve um opuacutesculo contra o ceticismo (Contra academicos) um sobre a felicidade (De beata vita) outro sobre o lugar do bem e do mal na ordem universal criada por Deus (De ordine) e um diaacutelogo iacutentimo (ldquode si consigo mesmordquo) sobre a investigaccedilatildeo das coisas inteligiacuteveis e sobre a imortalidade da alma (Soliloquium) tema que eacute retomado em outros textos desta fase como o De imortalitate animae (Da imortalidade da alma) e o De quantitate animae (Da grandeza da alma) sobre a relaccedilatildeo entre alma e corpo Ainda eacute deste periacuteodo o projeto de escrever sobre as sete ldquoartes liberaisrdquo (ldquoartes liberalesrdquo o trivium ndash gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica ndash e o quadrivium ndash geometria muacutesica aritmeacutetica e astronomia) Deste projeto Agostinho conseguiu realizar somente a redaccedilatildeo em parte de um escrito sobre a gramaacutetica (perdido) e sobre a muacutesica De volta a Tagaste em 388 Agostinho ainda escreve o diaacutelogo De Magistro (Do mestre) sobre a linguagem e a educaccedilatildeo e termina o livro De vera religione (Da verdadeira religiatildeo) sobre a relaccedilatildeo entre a feacute e o saber 9 Boeacutecio (ca 480 ndash 524) eacute considerado o uacuteltimo romano e o primeiro filoacutesofo da Idade Meacutedia Nasceu em Roma e era de famiacutelia nobre Participou do governo de Teodorico rei dos ostrogodos mestre dos exeacutercitos que subiu ao poder no ocidente no ano de 488 com o apoio do entatildeo Imperado Romano do Oriente Zenatildeo (474 ndash 491) Boeacutecio foi uma peccedila chave na translaccedilatildeo do pensamento grego para a nova era que estava comeccedilando o que noacutes chamamos de Idade Meacutedia Teodorico que tinha passado a sua infacircncia em Constantinopla (461 ndash 471) colocou sua capital em Ravena e moldou a sua cuacuteria segundo o modelo bizantino Confiou a Boeacutecio a tarefa de promover a transmissatildeo do saber antigo agraves nova geraccedilatildeo mas tambeacutem nomeou-o para cargos administrativos e poliacuteticos De fato Boeacutecio chegou a ocupar o papel de cocircnsul e tambeacutem o mais alto cargo do governo o cargo de magister officium (ldquomestre dos ofiacuteciosrdquo) Mas caiu sobre ele a suspeita de conspiraccedilatildeo com Constantinopla ele foi preso e depois morto por ordem do rei Na prisatildeo ele compocircs uma das obras mais ceacutelebres da literatura latina o livro ldquoDe Consolatione Philosophiaerdquo (Da Consolaccedilatildeo da Filosofia) O projeto da vida de Boeacutecio foi mediar como inteacuterprete a passagem da filosofia grega para a nova eacutepoca Queria escrever sobre as ldquoartes livresrdquo (artes liberales) ndash as do trivium disciplinas sobre a linguagem (gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica) e as do quadrivium disciplinas matemaacuteticas (geometria muacutesica aritmeacutetica e astronomia) ndash que eram consideradas uma propedecircutica ao estudo filosoacutefico Adaptando os tratados matemaacuteticos de Nicocircmaco de Gerasa escreveu pelo menos uma instruccedilatildeo sobre a aritmeacutetica (Institutio arithmetica) e outra sobre a musica (Institutio musica) 10 Cassiodoro (514-584) foi sucessor de Boeacutecio como Mestre dos Ofiacutecios no reinado de Teodorico Este viveu no centro da tensatildeo entre romanos godos e bizantinos Depois de ter vivido um tempo em Constantinopla fundou na costa do mar Jocircnio na Calaacutebria um mosteiro de nome ldquoVivariumrdquo No seu mosteiro Cassiodoro criou uma biblioteca que no periacuteodo final da Antiguidade Claacutessica pretendia colocar textos gregos agrave disposiccedilatildeo de leitores latinos e preservar para a posteridade textos sagrados e profanos Ali formou leitores copistas e tradutores dos manuscritos gregos antigos Dedicou-se tambeacutem agrave histoacuteria
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somente a tornar o homem eloquentiacutessimo e doutiacutessimo (eloquentissimus et
sapientissimus) segundo o projeto romano de formaccedilatildeo (a Humanitas versatildeo romana
da Paideia grega) mas tambeacutem perfeito (perfectus) no sentido eacutetico e religioso do
cristianismo12 Com efeito neste projeto cristatildeo de saber o cultivo das Artes Liberais
constitui o mais elementar do ldquostudium sapientiaerdquo (estudo da sabedoria) Elas formam
o degrau baacutesico da formaccedilatildeo do homem cristatildeo a filosofia seria o degrau intermediaacuterio
e a ldquodoctrina christianardquo (ldquodoutrina cristatilderdquo estudo da ldquosacra paginardquo da Biacuteblia o degrau
superior)
As Artes Liberais teriam um papel propedecircutico para a filosofia Elas ajudariam a
fornecer ldquoargumenta certiacutessimardquo (argumentos certiacutessimos) para quem se propotildee a
filosofar Depois serviriam para exercitar o ldquoanimusrdquo (acircnimo espiacuterito) no sentido da
sua afinaccedilatildeo (eruditio) e no sentido de torna-lo capaz de discernir as coisas mais sutis
(ad subtiliora cernenda) pois teriam a capacidade de ajudar o estudante a passar das
coisas corpoacutereas agraves incorpoacutereas do temporal ao intemporal do real ao ideal da criatura
ao Criador O estudo das Artes Liberais e da Filosofia poreacutem serviriam ao estudo da
ldquoDoctrina Christianardquo que partiria da investigaccedilatildeo da Biacuteblia (os medievais falaratildeo do
estudo da ldquosacra paginardquo) e que se dedicaria agrave compreensatildeo dos dados da revelaccedilatildeo
divina contidos no livro sagrado do cristianismo os artigos de feacute confessados pela Igreja
segundo a sentenccedila de Agostinho que se tornou um mote para os medievais latinos
ldquocredo ut intelligamrdquo (creio para compreender) Eacute que segundo Agostinho nas ciecircncias
humanas se crecirc no que se compreende jaacute nas ciecircncias divinas (coisas Sagrada Escritura)
se compreende somente se se crecirc aqui o proacuteprio ldquocrerrdquo introduz o proacuteprio ldquointeligirrdquo
nas outras ciecircncias poreacutem o proacuteprio ldquointeligirrdquo introduz o proacuteprio ldquocrerrdquo - pelo fato
mesmo que intelige algueacutem assente
natural e agrave medicina Seu projeto pedagoacutegico se inspirou nas escolas de Alexandria e de Niacutesibe Para guiar a leitura dos monges Cassiodoro redigiu as suas Instituiccedilotildees das letras divinas e seculares (560-580) A filosofia era representada aiacute por uma divisatildeo das ciecircncias e por um resumo do Organon 11 A obra mais famosa de Isidoro (560-633) chama-se ldquoEtimologiasrdquo Eacute uma espeacutecie de enciclopeacutedia de saberes profanos e religiosos dedicada ao rei visigodo Sisebut Ele escreveu tambeacutem um livro de ldquoSentenccedilasrdquo manual de teologia dogmaacutetica moral e espiritual Isidoro procura escrever nas ldquoEtimologiasrdquo sobre as diferenccedilas das palavras e as diferenccedilas das coisas Pressupotildee que se conhece melhor a natureza de uma coisa quando se conhece melhor a natureza de seu nome Ele detinha o conhecimento da gramaacutetica dos alexandrinos 12 Cfr De Quantitate Animae c 33 Traduccedilatildeo Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis Vozes 1997 p 153
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Seguindo esta diretriz de ordenaccedilatildeo do saber Agostinho recusa uma formaccedilatildeo e
uma cultura que se limita agraves artes liberais ou de um saber que forma apenas o litterator
ou grammaticus entregue agrave vaidade do falar bem Contra o esteticismo decadente da
cultura latina de seu tempo ele investe o seu princiacutepio Res non verba13 Opotildee-se
tambeacutem agrave curiositas (curiosidade) que ele toma como o oposto do studium ndash o curiosus
eacute para ele com efeito o oposto do studiosus14 Com efeito ao contraacuterio do homem
ldquostudiosusrdquo (estudioso) cuja busca do saber se compromete com a transformaccedilatildeo da
proacutepria mente por meio do conhecimento da verdade o homem ldquocuriosusrdquo (curioso)
que aparenta querer saber natildeo quer poreacutem que o saber o transforme e o forme em
sua interioridade em seu caraacuteter e em suas accedilotildees A curiosidade pertence agrave triacuteplice
concupiscecircncia que torna a vida do homem decadente miseraacutevel a que alude a Sagrada
Escritura15 Chama-a de ldquoconcupiscecircncia dos olhosrdquo (concupiscentia oculorum) o desejo
de tudo ver e experimentar (cupiditas experiendi) sem nenhum comprometimento
Atinge sobretudo o mundo da convivecircncia humana ldquoCuriosum genus ad cognoscendam
vitam alienam desidiosum ad corrigendam suam ndash uma raccedila curiosa para conhecer a
vida alheia indisposta para corrigir a suardquo
Aleacutem do studium sapientiae (estudo empenho da sabedoria) que constitui a
formaccedilatildeo filosoacutefica Agostinho considerava tambeacutem um outro niacutevel de formaccedilatildeo
propriamente cristatilde do homem a doctrina christiana que consistia no exerciacutecio da
inteligecircncia que aprofunda os dados da revelaccedilatildeo Seu programa inclui o estudo das
Escrituras Sagradas a exegese a exposiccedilatildeo especulativa da feacute a controveacutersia e a
apologeacutetica Os escritos de Agostinho voltados para este campo satildeo redigidos sobretudo
13 ldquoCoisa (o real) natildeo palavrasrdquo 14 Heidegger fez uma exposiccedilatildeo sobre a curiosidade em termos de hermenecircutica da facticidade e analiacutetica da existecircncia no sect 36 de Ser e Tempo 15 ldquoNatildeo ameis o mundo nem o que estaacute no mundo Se algueacutem ama o mundo o amor do Pai natildeo estaacute nele pois tudo o que estaacute no mundo ndash a concupiscecircncia da carne (epithymia thecircs sarkoacutes) a concupiscecircncia dos olhos (epithymia tocircn ophtalmocircn) e a confianccedila orgulhosa nos bens (alazoneacuteia tou biou) ndash natildeo vem do Pai mas vem do mundo Ora o mundo passa bem como sua concupiscecircncia mas o que faz a vontade de Deus permanece para semprerdquo (1 Jo 2 15-17) A concupiscecircncia da carne (concupiscentia carnis) na interpretaccedilatildeo de Agostinho eacute a a ldquolibidordquo a cobiccedila do prazer (cupiditas oblectandi) A concupiscecircncia ou cobiccedila dos olhos (concupiscentia oculorum) eacute a curiosidade o desejo de tudo ver e experimentar (cupiditas experiendi) sem comprometimento Talvez este fenocircmeno seja afim ao que Pascal em seus Pensamentos chama de ldquodivertissementrdquo A terceira forma de ldquotemptatiordquo (tentaccedilatildeo ser posto agrave prova) eacute a ldquoambitio saeculirdquo (ambiccedilatildeo do mundo) ou a jactacircncia (iactantia) que querer ser temido e amado pelos outros Heidegger fez uma interpretaccedilatildeo a partir da hermenecircutica da faticidade da exposiccedilatildeo desta triacuteplice tentaccedilatildeo humana em ldquoFenomenologia da Vida Religiosardquo (vol 60 das suas obras completas)
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apoacutes assumir encargos eclesiaacutesticos Natildeo obstante nestes escritos ele natildeo deixa de
filosofar (cf por exemplo o tratado sobre a Trindade) A sapientia adquire agora para
ele outro sentido mais elevado e abrangente contemplativo-religioso sapientia est
contemplatio veritatis pacificans totum hominem et suscipiens similitudinem Dei16 Esta
sabedoria no entanto natildeo exclui antes inclui tanto o aspecto eacutetico do estudo quanto
o aspecto metafiacutesico isto eacute a cognitio intellectualis (conhecimento intelectual) de anima
(a respeito da alma) e de Deo (a respeito de Deus)
Aleacutem da sapientia que visa o que eacute imutaacutevel eterno Agostinho considera
tambeacutem a scientia que visa o que eacute temporal histoacuterico cognitio historica
(conhecimento histoacuterico) Ora a revelaccedilatildeo divina que se propotildee agrave feacute se manifesta na
histoacuteria ela se transmite de modo empiacuterico por um testemunho materializado por
palavras por um livro a Escritura Sagrada Surge daiacute a demanda de uma scientia que
seraacute a atividade da inteligecircncia que se aplica ao conhecimento do conteuacutedo da feacute No
livro XIV da obra De Trinitate (Da Trindade) Agostinho escreve
Natildeo atribuo agrave ciecircncia (scientia) o que quer que possa ser sabido pelos homens nas coisas humanas aqui onde haacute grande quantidade de supeacuterfluo de vaidade e de curiosidade nociva mas tatildeo somente aquilo que gera nutre defende e fortalece a feacute sobremaneira salutar que conduz agrave verdadeira beatitude (quo fides sabuberrima quae ad verae beatitudinem ducit gignitur nutritur defenditur roboratur) A maior parte dos fieacuteis natildeo possuem esta ciecircncia seja qual for de resto a intensidade da feacute deles Uma coisa com efeito eacute saber simplesmente aquilo que o homem deve crer para obter a beatitude eterna outra coisa eacute saber (scire) como aportar este mesmo conteuacutedo da feacute agraves almas pias e defender contra os iacutempios eacute a respeito deste segundo aspecto que depois de Satildeo Paulo (1 Cor 12 8) se deve propriamente reservar o vocaacutebulo ciecircncia
Agostinho lecirc poreacutem a Escritura em consonacircncia com a tradiccedilatildeo e com a
autoridade da Igreja17 No seacuteculo XII esta ciecircncia levaraacute o nome de ldquoSacra Paginardquo
(sagrada paacutegina) Abelardo mesmo apresentaraacute a sua siacutentese especulativa do conteuacutedo
16 A sapiecircncia eacute a contemplaccedilatildeo da verdade pacificando o homem todo e recebendo a semelhanccedila de Deus De Sermone Domini in Monte 1 3 17 A hermenecircutica protestante com o Sola Scriptura excluiraacute a tradiccedilatildeo e o ensinamento autoritativo da Igreja (magisteacuterio) como criteacuterios que acompanham a leitura das Escrituras Sagradas
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da feacute apenas como uma introduccedilatildeo agrave Sagrada Escritura Uma autonomia especulativa
da exposiccedilatildeo do conteuacutedo da feacute soacute aconteceraacute propriamente no seacuteculo XIII ndash eacute o
nascimento daquilo que noacutes hoje chamamos de ldquoteologiardquo Em Agostinho a exegese
biacuteblica e a exposiccedilatildeo dogmaacutetica especulativa se mesclam natildeo obstante hajam escritos
em que a exposiccedilatildeo dogmaacutetica e sistemaacutetica do conteuacutedo da feacute se potildeem em primeiro
plano O motivo poreacutem destas exposiccedilotildees estaacute quase sempre situado num contexto de
controveacutersia de polecircmica de apologeacutetica em torno do conteuacutedo da feacute Mas em
Agostinho toda discussatildeo dogmaacutetica toda controveacutersia e apologeacutetica natildeo visa outra
coisa que a defesa do conteuacutedo da feacute das Sagradas Escrituras
Uma obra fundamental para se entender a hermenecircutica em Agostinho eacute o ldquoDe
doctrina christianardquo (Da doutrina cristatilde) Apresentamos a seguir uma recensatildeo desta
escrito
Esta obra faz parte de uma seacuterie de obras exegeacuteticas do hiponense e parece
constituir-se numa espeacutecie de teoria da exegese contendo tambeacutem um livro sobre o
modo de se expor a Sagrada Escritura com eloquecircncia e sabedoria Ela comeccedilou a ser
escrita pouco depois de Agostinho se tornar bispo isto eacute pelo ano 397 Num primeiro
momento a obra foi publicada inacabada indo ateacute o capiacutetulo 25 nordm 35 do Livro III Mais
tarde ao revisar suas obras Agostinho se propotildee terminar esta e o faz natildeo soacute
completando o livro III como tambeacutem acrescentando o livro IV A conclusatildeo desta obra
teria se dado laacute pelo ano de 4267
A ldquoDoutrina Cristatilderdquo eacute composta de um proacutelogo e quatro livros No proacutelogo
Agostinho relata o objetivo da obra oferecer normas uacuteteis acerca da interpretaccedilatildeo das
Sagradas Escrituras agravequeles que se dedicam a este estudo Atraveacutes destas normas o
estudioso poderaacute esclarecer muitas obscuridades que as Escrituras encerram Em
seguida Agostinho usa da comparaccedilatildeo de algueacutem que mostra a outra a lua com o dedo
para refutar eventuais contestadores de seu esforccedilo Os primeiros satildeo aqueles que natildeo
entendem as regras Estes se comportam como as pessoas que nem sequer veem o
dedo devido ao fato de a acuidade se sua visatildeo ser muito deficiente Os segundos satildeo
os que entendem as regras mas natildeo conseguem aplica-las Estes fixam o olhar no dedo
mas natildeo se voltam para mirar a lua Um terceiro tipo de opositores seria daquelas
pessoas que acham poderem se dispensar de instruccedilatildeo junto a seres humanos na
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pretensatildeo de terem conquistado o dom da compreensatildeo das divinas Escrituras
diretamente de Deus A estes Agostinho procura mostrar que a proacutepria Sagrada
Escritura pressupotildee a convivialidade dos que ensinam e aprendem mesmo
considerando que tanto uns como outros fundamentalmente aprendem de Deus Em
terceiro lugar o dom de interpretar as Escrituras natildeo dispensa mas ao contraacuterio exige
o esforccedilo de aprender Perspicaacutecia interesse de ir agraves coisas mesmas e disposiccedilatildeo de
aprender satildeo atitudes que devem ter quem quer ler esta obra
O objeto temaacutetico de ldquoA doutrina cristatilderdquo eacute a ldquotractatio scripturarumrdquo ou seja o
modo de proceder no trato com as Escrituras Isto comporta uma dupla implicaccedilatildeo
aprender a maneira de se descobrir o que eacute para ser entendido e por outro lado
aprender a maneira de se expor com propriedade o que foi entendido Os trecircs primeiros
livros da obra se atecircm agrave maneira de descobrir e o quarto livro agrave maneira de expor
Toda doutrina ou ciecircncia versa sobre coisas e sinais Coisas eacute tudo o que natildeo estaacute
empregado para significar algum outro objeto Sinais eacute tudo o que se emprega para
significar alguma coisa aleacutem de si mesmo As coisas satildeo conhecidas por meio de sinais
Os sinais devem ser entendidos como sinais e natildeo como coisas isto eacute na sua funccedilatildeo de
sinalizar e natildeo no seu ocorrer meramente factual O primeiro livro iraacute tratar das coisas
elementares da Sagrada Escritura isto eacute aquelas realidades junto agraves quais se empenha
o esforccedilo da compreensatildeo O segundo livro trata dos sinais da Sagrada Escritura e do
modo de chegar ao significado mediante o rigor da interpretaccedilatildeo O terceiro livro se
ocupa em ensinar como resolver as ambiguidades nos textos que se devem interpretar
quer em sentido proacuteprio quer em sentido figurado O quarto livro iraacute indicar como expor
as coisas da Sagrada Escritura com eloquecircncia e sabedoria
O primeiro livro expotildee algumas concepccedilotildees fundamentais sobre a realidade do
real (o ser do ente ndash das ldquocoisasrdquo) As coisas no seu todo se dividem em duas grandes
categorias aquelas que satildeo para a fruiccedilatildeo e aquelas que satildeo para o uso (uti et frui)
ldquoFruir (frui) eacute estar ligado a uma coisa por amor a ela Usar (frui) eacute relacionar aquilo de
que se tem uso com a posse daquilo que se amardquo (1 4 4) Notemos que Agostinho pensa
a realidade do real em seu concernir agrave vida humana A vida humana consiste em
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curare18 O uti (usar) eacute o cuidar que lida com aquilo que contribui para o viver O frui
(fruir) eacute gozar Por exemplo o belo que pertence agrave vigecircncia do ser eacute fruiacutedo A beata
vita (vida bem-aventurada feliz) eacute a do homem que goza do sumo bem (Deus) Eacute para
ser fruiacuteda aquela coisa que deleita por si mesma sem estar referida a outra coisa19 Eacute
para ser usada aquela coisa que eacute que eacute buscada desejada e que deleita por causa de
outra coisa As coisas temporais visiacuteveis satildeo para ser usadas As coisas eternas
invisiacuteveis para serem fruiacutedas O viacutecio a perversatildeo consiste em inverter esta ordem
querer fruir do que eacute para ser usado A virtude poreacutem consiste em fruir do que eacute para
ser fruiacutedo e usar do que eacute para ser usado20 A beatitude eacute a fruiccedilatildeo do sumo e imutaacutevel
bem a Trindade Deus eacute a beleza inteligiacutevel imutaacutevel inefaacutevel Toda a miacutestica medieval
iraacute visar a esta fruiccedilatildeo de Deus como o sumo bem como a suma beleza Na fruiccedilatildeo de
Deus o homem encontra o repouso a quietude (quies) Embora em tudo isso haja
elementos do pensamento grego (neoplatocircnico) no entanto a concepccedilatildeo da vida
humana e da realidade do real em Agostinho estaacute enraizada na compreensatildeo do Novo
Testamento Ele assim traz agrave fala em que consiste a ldquovita praesensrdquo (vida presente) do
cristatildeo eacute vida vivida ldquoin re laboris sed in spe quietis in carne vetustatis sed in fide
novitatisrdquo (no real do labor mas na esperanccedila do repouso na carne da velhice mas na
feacute da novidade) A esperanccedila precede A vida segue isso que a esperanccedila antecipa A
vida se realiza na direccedilatildeo daquilo que a esperanccedila antecipa21
Ainda no primeiro livro encontra-se uma exposiccedilatildeo do conteuacutedo da feacute a modo
de uma siacutentese dogmaacutetica fala da Trindade enquanto aquilo a que a aspiraccedilatildeo de
fruiccedilatildeo por parte do homem estaacute destinada Esta fala se articula em termos biacuteblicos e
tambeacutem em termos metafiacutesicos Trata-se de uma exposiccedilatildeo dogmaacutetico-metafiacutesica dos
misteacuterios e arcanos da feacute cristatilde Ao seu fundo poreacutem estaacute toda uma experiecircncia faacutetica
da vida22 Depois desta exposiccedilatildeo sobre a essecircncia da feacute cristatilde (os misteacuterios que nela satildeo
18 Curo curas curare curavi curatum Verbo transitivo ndash Sentido proacuteprio 1) cuidar olhar por tratar velar Daiacute 2) tratar curar 3) no contexto administrativo governar dirigir administrar 4) no contexto militar comandar 5) no contexto comercial fazer pagar 4) fazer por ter em conta de ter cuidado de 19 De civitate Dei (A cidade de Deus) XI 25 20 De Diversibus quaestionibus XXX 21 Cf Heidegger M Fenomenologia da Vida Religiosa p 258-260 22 A uacutenica ldquocoisardquo (o uacutenico real) a ser fruiacuteda eacute a Trindade Agostinho remete pois inicialmente ao Triuno Deus de quem por quem e para quem existem todas as coisas Os mesmos atributos divinos devem ser predicados de cada uma das pessoas da Trindade isto eacute do Pai do Filho e do Espiacuterito Santo Cada um deles eacute ele proacuteprio na plenitude de sua substacircncia O ser do Pai estaacute na Unidade o ser do Filho na
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cridos) Agostinho trata do ldquoethosrdquo do viver cristatildeo seguindo ainda pelo fio condutor
do ldquouti et fruirdquo (usar e fruir) O essencial do ethos cristatildeo eacute o duplo preceito do amor a
Deus e ao proacuteximo O ethos do viver cristatildeo se instaura segundo a ldquoOrdo dilectionisrdquo
(ordem da dileccedilatildeo ou do amor) A identidade do cristatildeo consiste no seu modo de amar23
Igualdade e o ser do Espiacuterito Santo na harmonia da unidade e da igualdade Natildeo obstante natildeo se trata de trecircs seres mas de um uacutenico Ser Agostinho estaacute ciente da limitaccedilatildeo do entendimento no vigor do silecircncio que se recolhe diante do misteacuterio divino do Deus uno e trino arcano fundamental da feacute cristatilde Deus eacute antes de tudo o inefaacutevel Quando a mente humana cogita acerca do misteacuterio divino que se doa ao se retrair ela busca captar uma realidade transcendental a mais proacutexima visto ser a mais iacutentima mais iacutentima a noacutes que noacutes mesmos e ao mesmo tempo a mais distante (inacessiacutevel justamente em virtude desta proximidade) Eacute esta realidade primeira que institui todo o real quer nas suas realizaccedilotildees sensiacuteveis quer nas inteligiacuteveis Percorrendo-se os diversos niacuteveis de constituiccedilatildeo da vida chega-se agravequela Vida que se define como Sabedoria imutaacutevel isto eacute sempre idecircntica consigo mesma O Deus vivo que eacute o Vivente por excelecircncia eacute o anseio mais profundo da alma humana Contemplaacute-lo e fruir da sua bondade e beleza eacute a beatitude do homem Contudo para que o homem possa chegar agrave visatildeo e fruiccedilatildeo de Deus eacute necessaacuteria a purificaccedilatildeo interior ao longo de sua vida que aparece como um caminho uma viagem uma travessia de retorno agrave paacutetria Esta purificaccedilatildeo se daacute mediante o bom empenho os bons desejos e os costumes No entanto natildeo podemos ir agrave Sabedoria se ela natildeo se dispotildee a vir a noacutes adaptando-se agrave fraqueza dede nossa condiccedilatildeo carnal isto eacute finita fraacutegil decadente mortal No entanto esta Sabedoria que se encarna na realidade da vida faacutetica humana foi rejeitada por muitos como fraqueza e loucura Eacute o misteacuterio da keacutenosis (esvaziamento) do rebaixamento do Filho de Deus o Verbo que se fez carne e atendou entre os homens Mas eacute justamente por esta fraqueza e loucura divina manifestada na encarnaccedilatildeo e na paixatildeo do Verbo humanado Jesus Cristo que acontece a redenccedilatildeo isto eacute a libertaccedilatildeo e a salvaccedilatildeo de todos os homens Nele a Sabedoria cura o homem impregnado de fraqueza e mergulhado na loucura O homem usou mal do dom da imortalidade e caiu na morte Cristo usou bem de nossa mortalidade e isso devolveu ao homem o acesso agrave plenitude da vida Atraveacutes dos misteacuterios da vida de Cristo isto eacute dos misteacuterios de sua encarnaccedilatildeo de sua paixatildeo e tambeacutem de sua ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo com o consequente envio do Espiacuterito Santo os homens satildeo fortalecidos na feacute e avivados no conhecimento Nestes misteacuterios os que creem consideram o quatildeo livremente Cristo deu sua vida pelos homens ele que possuiacutea o poder de retomaacute-la Aqueles que favorecidos pela graccedila da redenccedilatildeo creram no Filho de Deus encarnado e crucificado como Senhor (o Ressuscitado) formam um soacute corpo constituindo deste modo a realidade da Igreja Esta eacute a esposa de Cristo Atraveacutes dos sacramentos ela se purifica para vir se unir ao Esposo Cristo Jesus na eternidade apresentando-se diante dele sem manchas nem rugas Eacute no interior desta Igreja que os homens satildeo gerados para a semelhanccedila com Cristo e recebem o perdatildeo dos pecados (batismo) Desta mesma Igreja recebem a feacute na ressurreiccedilatildeo do corpo e na vida eterna Estes misteacuterios e arcanos cristatildeos satildeo acolhidos pelo homem que estaacute a caminho da paacutetria (a vida eterna) Neste caminho o crente sempre de novo morre para o mundo e vive para Deus Verdade e Vida 23 O homem haacute de amar a Deus por causa dele proacuteprio As criaturas em contrapartida satildeo amadas agrave medida que ajudam o homem a crescer no amor de Deus O amor a si mesmo e ao proacuteprio corpo eacute uma lei natural e por isso natildeo requer nenhum preceito (mandamento) Mas o amor ao que estaacute ao seu lado (o proacuteximo) e o amor ao que estaacute acima dele (Deus) requer preceito Haacute no entanto um falso e um verdadeiro amor de si proacuteprio O verdadeiro amor de si consiste em buscar o que eacute uacutetil e salutar para si mesmo crescendo na caridade (o amor gratuito a Deus e ao proacuteximo) O falso amor de si consiste em submeter o proacuteximo e o proacuteprio corpo a fim de fruir deles Quanto ao amor ao proacuteprio corpo Agostinho relembra a citaccedilatildeo do Apoacutestolo (Paulo) que diz ldquoningueacutem jamais quis mal agrave sua proacutepria carnerdquo (Ef 5 29) Mesmo os que reconhecem sadiamente a necessidade da ascese fazem-no para submeter o corpo ao espiacuterito segundo a ordem da natureza buscando assim a paz e a harmonia O preceito da caridade eacute duplo exige o amor a Deus acima de tudo e o amor ao proacuteximo como a si mesmo A partir do duplo amor natural e do duplo preceito da caridade descobre a ldquoOrdo Dilectionisrdquo (ordem da dileccedilatildeo isto eacute do amor) Ordem implica numa estruturaccedilatildeo em niacuteveis neste caso em niacuteveis de dignidade A ordenaccedilatildeo do amor eacute instaurada quando o homem ama o que deve ser amado (o bem) e natildeo ama o que natildeo deve ser amado (o mal o viacutecio o pecado) Depois quando o homem ama menos o que eacute menos digno de amor (o corpo)
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O amor (dilectio caritas) eacute o princiacutepio que rege toda a vida humana na perspectiva da
feacute cristatilde24 O duplo preceito do amor (a Deus e ao proacuteximo) eacute aqui a norma universal e
primordial que rege toda a ordem do viver O amor a Deus acima de tudo e o amor ao
proacuteximo eacute a essecircncia a substacircncia da revelaccedilatildeo divina (ldquoa Lei e os Profetasrdquo) que foi
radicalizada e consumada em Jesus Cristo no seu novo e eterno testamento
(testemunho) Daiacute se segue que a edificaccedilatildeo da caridade eacute a norma reacutegia e suprema de
toda a interpretaccedilatildeo das Sagradas Escrituras25 Para o homem que atingiu a perfeiccedilatildeo
do amor (caridade perfeita) as Sagradas Escrituras deixam de ser necessaacuterias uma vez
que toda a finalidade delas eacute levar o homem agrave perfeiccedilatildeo do amor (caridade perfeita)
Deste modo as Escrituras Sagradas requerem um leitor que entenda que o fim de tudo
o que ali estaacute escrito eacute a caridade perfeita consumada que aparece concreta e
historicamente em Jesus Cristo o Deus encarnado (humanado) e crucificado A feacute e a
esperanccedila satildeo outras duas virtudes que ajudam o homem a crescer e se perfazer na
perfeiccedilatildeo da caridade no seguimento de Jesus Cristo O essencial do ser cristatildeo se
encontra neste seguimento
Depois quando ama igualmente o que eacute igualmente digno de amor (o proacuteximo) Por fim quando ama absolutamente o que eacute absolutamente digno de ser amado (Deus) Ao amor de Deus assim deve se subordinar e convergir todo amor pela criatura O preceito do amor aleacutem disso comporta universalidade isto eacute ningueacutem eacute dele excluiacutedo A boa vontade do amor se estende a todos mesmo ao inimigo O amor de Deus pelo homem eacute gratuito visto que Deus natildeo precisa do homem mas se basta a si mesmo Seu amor eacute pura gratuita absoluta bondade O grau de perfeiccedilatildeo de um homem depende do grau de perfeiccedilatildeo e da universalidade de seu amor O ser do homem se determina pelo seu amor O homem eacute o que ele ama e como ele ama Ele cresce no ser se cresce na perfeiccedilatildeo (e na universalidade) do amor Ele diminui no ser se decresce na capacidade de amar O homem pode encontrar deleite nos outros homens quando estes o ajudam a crescer no amor a Deus Eacute quando se ama e se gosta do outro em Deus Os homens podem e devem constituir uma fraternidade no amor ajudando-se mutuamente a prosseguir seu itineraacuterio para Deus Nenhuma homem pode se considerar fim absoluto do amor do outro Ele natildeo eacute o destinataacuterio uacuteltimo do amor do outro Eacute apenas companheiro na viagem da vida e como tal haacute de ser amado Neste itineraacuterio para Deus Cristo eacute o caminho a verdade e a vida isto eacute ele eacute aquele por quem o homem vai aquele a quem o homem alcanccedila e em quem ele permanece no amor 24 Cf Arendt Hanna O conceito de amor em Santo Agostinho Ensaio de interpretaccedilatildeo filosoacutefica Lisboa Instituto Piaget 1997 25 Para o ldquohomo viatorrdquo (homem a caminho) a feacute nas Escrituras fortalece a feacute a esperanccedila e a caridade Nestas trecircs virtudes teologais se encerram e se subsumem toda a ciecircncia e toda a profecia A caridade permanece para sempre enquanto que a feacute e a esperanccedila se extinguem quando o homem chega a seu destino (a Paacutetria o Reino dos Ceacuteus) A caridade visa um bem eterno Se os bens temporais satildeo amados antes de serem possuiacutedos pois ao serem conquistados natildeo saciam a alma na sua sede do absoluto bem o bem eterno eacute o que eacute amado com tanto mais ardor ao ser possuiacutedo do que fora ao ser desejado pois a ningueacutem que a deseja a beatitude concedida eacute menor do que a desejada
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O livro II eacute um verdadeiro tratado de semiologia26 Todo o pensamento a respeito
da linguagem do ocidente se baseia no triacircngulo semioacutetico signo conceito coisa A base
desta concepccedilatildeo de Aristoacuteteles Ela eacute exposta no ὶ ἑί (perigrave hermeneiacuteas)
ldquoDe interpretationerdquo (16a 3-8)
Satildeo pois aquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz siacutembolos das paixotildees (afecccedilotildees disposiccedilotildees) na alma e as coisas que satildeo escritas satildeo siacutembolos daquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz E assim como as coisas escritas natildeo satildeo as mesmas para todos do mesmo modo tambeacutem os sons da voz natildeo satildeo os mesmos Aquelas coisas de que isso (coisas escritas e sons da voz) satildeo primordialmente signos (coisas que mostram) satildeo para todos (os homens) as mesmas paixotildees da alma e as coisas das quais estas (paixotildees da alma) formam apresentaccedilotildees assemelhadas satildeo igualmente as mesmas27
O texto de Aristoacuteteles se manteacutem numa fala esclarecida e soacutebria que torna
visiacutevel a claacutessica estruturaccedilatildeo que abriga a linguagem como discurso ou fala As letras
do alfabeto28 mostram os fonemas29 Os fonemas mostram as disposiccedilotildees na alma30 As
disposiccedilotildees na alma mostram as coisas que que lhe con-cernem31 O mostrar configura
e sustenta as escoras dessa construccedilatildeo De maneira variada o mostrar conduz algo para
um aparecer deixando assim apreender o que aparece e permitindo que se discuta o
que se apreende
26 A semiologia (ou semioacutetica) eacute a ciecircncia dos signos Como os signos verbais tecircm na vida humana um papel de primeiro plano a semiologia se concentrou em grande parte na linguagem Haacute uma semiologia nas especulaccedilotildees linguiacutestica da antiguidade entre os modistas da Idade Meacutedia etc Mas o nome ldquosemioacuteticardquo surge na modernidade com Locke Torna-se poreacutem uma disciplina independente na obra do filoacutesofo americano Charles Sanders Peirce (1839-1914) 27 A traduccedilatildeo entende os σημεῖα (semeia ndash os signos aquelas coisas que mostram) os σύμβολα (symbola - os siacutembolos ndash o que eacute lanccedilado junto e nessa junccedilatildeo deixa e faz com que um se atenha ao outro) e os ὁμοιώματα (homoioacutemata ndash as apresentaccedilotildees assemelhadas as semelhanccedilas) como um mostrar no sentido de deixar aparecer o que por sua vez encontra-se no acircmbito do desencobrimento (αλήθεια ndash aleacutetheia) 28 τὰ γραφόμενα ndash taacute graphoacutemena 29 τὰ ἐν τῇ φωνῇ - taacute en te phoneacute 30 παθήματα τῆς ψυχῆς ndash patheacutemata tecircs psykhecircs 31 πράγματα - praacutegmata
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Antes de nos apropriarmos da semiologia de Agostinho tentemos aqui uma
consideraccedilatildeo fenomenoloacutegica sobre o sinal e a linguagem
O falar acontece por mor do dizer Dizer eacute mostrar O falar enquanto dizer se
realiza como um discurso mostrador loacutegos apophaacutentikoacutes32 O falar estaacute a serviccedilo do
dizer Dizer eacute mostrar no sentido de deixar e fazer ver a quem se fala aquilo de que se
fala Dizer eacute dar algo a compreender eacute fazer-se compreender sobre algo a quem escuta
O mostrar no falar acontece como um conceder acenos dar indiacutecios oferecer
indicaccedilotildees oferecer sinais33 Mas tudo isso acontece no sentido de um anunciar que se
cumpre como um revelar um divulgar um mencionar (fazer menccedilatildeo de referir relatar
expor narrar) um lembrar um recordar e um comemorar O anunciar eacute entendido pois
pelos gregos como um mostrar deiknymi34 O sinal eacute uma referecircncia uma remissatildeo O
remeter proacuteprio do sinal consiste em mostrar O mostrar do sinal se funda na referecircncia
na remissatildeo Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo No entanto
Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo eacute uma referecircncia Toda lsquoaccedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma referecircncia mas nem toda referecircncia mostra Com isso tambeacutem se diz toda accedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo mostra Assim aparece o caraacuteter formal e geral da relaccedilatildeo Para se investigar os fenocircmenos de referecircncia sinal e significado de nada adianta caracterizaacute-los como relaccedilatildeo Deve-se em uacuteltima instacircncia mostrar que a proacutepria lsquorelaccedilatildeorsquo devido a seu
32 O loacutegos eacute um reunir e um recolher (leacutegein) que potildee expotildee e depotildee abre e manifesta traz ao desencobrimento agrave revelaccedilatildeo Como abrir e manifestar leacutegein estaacute em contraste com krypto cobrir encobrir esconder ocultar no sentido de guardar Conhecemos um fragmento de Heraacuteclito (fr 93) que traz este contraste Ele diz Ho aacutenax hou tograve manteion esti tograve en Delphois oute leacutegei oute kryptei allagrave semainei ndash O Autor de quem eacute o oraacuteculo de Delfos natildeo traz ao desencobrimento nem encobre mas acena 33 Semainein eacute um conceder semata (acenos indiacutecios indicaccedilotildees) A palavra grega no singular eacute ldquosemardquo indiacutecio vestiacutegio marca distintiva senha sinal ldquoSemardquo eacute tambeacutem pressaacutegio auguacuterio auspiacutecio Eacute ainda o astro ou uma constelaccedilatildeo da qual se tiram indicaccedilotildees na orientaccedilatildeo concernente ao ceacuteu Eacute por fim o tuacutemulo a tumba 34 Da mesma raiz de ldquodeiknymirdquo (mostrar) eacute o verbo latino ldquodicererdquo dizer Dizer eacute mostrar isto eacute deixar e fazer ver trazer agrave evidecircncia alguma coisa O sinal pois no falar precisa ser entendido na dinacircmica do dizer isto eacute do mostrar
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caraacuteter formal geral tem sua origem ontoloacutegica numa referecircncia35
Haacute uma multiplicidade de sinais anuacutencios prenuacutencios vestiacutegios marcas
distintivos cuja accedilatildeo de mostrar difere a cada caso Satildeo sinais diferentes o rastro o
resto o monumento o documento o testemunho o siacutembolo a expressatildeo a
manifestaccedilatildeo a significaccedilatildeo O sinal tem a sua serventia no mostrar no sentido de fazer
sobressair de dar na vista salientar fazer reparar estranhar alguma coisa Aquilo que
normalmente natildeo causa surpresa eacute ressaltado pelo sinal O sinal permite a descoberta
de alguma coisa
O mundo eacute o ldquoonderdquo das descobertas O homem se orienta se dirige se
direciona em seus comportamentos com as coisas com os entes agrave matildeo a partir de uma
familiaridade com o mundo A abertura de mundo se daacute como compreensatildeo Trata-se
poreacutem de uma compreensatildeo operativa natildeo teoacuterica Compreender significa aqui reunir
as remissotildees recolher as referecircncias O caraacuteter de remissatildeo das remissotildees das
referecircncias eacute o que se chama de significar Significar (be-deuten) eacute aqui mostrar
(deuten) no sentido de pocircr a caminho um clarear um esclarecer Eacute o processo e o
movimento de estruturaccedilatildeo do mundo Significar eacute aqui oferecer alguma coisa para a
compreensatildeo e para a interpretaccedilatildeo Significacircncia (Bedeutsamkeit) eacute o todo das
remissotildees do acontecimento e do processo do significar que eacute a estruturaccedilatildeo de
mundo Noacutes nos encontramos a noacutes mesmos jaacute sempre no mundo entendendo o mundo
antes de tudo como uma totalidade de significacircncias Eacute um encontrar-se a si mesmo
sempre numa situaccedilatildeo de ocupaccedilatildeo e preocupaccedilatildeo de cuidado com o proacuteprio ser-no-
mundo Tudo aquilo com que podemos nos relacionar e comportar tem este caraacuteter
estaacute aiacute e eacute encontrado no caminho do cuidado eacute experimentado como significativo a
partir de um determinado cuidado Significacircncia indica este modo fundamental como
algo segundo o seu teor proacuteprio eacute encontrado na vida como ele se deteacutem e se reteacutem
no meio do mundo da vida
Soacute acontece linguagem onde noacutes falamos uns com os outros A linguagem
acontece de iniacutecio e na maior parte das vezes na conversa com suas falas e seus
silecircncios Para noacutes isto eacute na ordem da nossa experiecircncia cotidiana a primeira
35 Heidegger M Ser e Tempo sect 17
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dimensatildeo pois da linguagem eacute a fala o discurso O discurso traz agrave fala uma
compreensatildeo Chamamos de sentido o que pode ser articulado O sentido eacute o que torna
compreensiacutevel algo enquanto algo Compreender eacute fundamentalmente apreender algo
enquanto algo Tudo que apreendemos se mostra a si mesmo como isso ou aquilo Isso
quer dizer noacutes aprendemos cada coisa em sua significacircncia A percepccedilatildeo natural em
que noacutes vivemos cotidianamente jaacute eacute sempre uma compreensatildeo uma captaccedilatildeo da coisa
como esta coisa do sapato como sapato do livro como livro do reloacutegio como reloacutegio
Natildeo eacute assim que eu primeiro apreendo uma coisa na sua nua e crua factualidade e
depois lhe atribuo este ou aquele significado Cada vez eu apreendo uma coisa como
tal coisa isto eacute eu apreendo a coisa dentro de uma determinada significacircncia36
A coisa que me vem ao encontro dentro do mundo se mostra como isto ou
aquilo37 Ela instaura um conjunto de referecircncias ela remete a isto ou aquilo ela soa
desta ou daquela maneira em meu mundo ela fala disto ou daquilo em minha vida A
coisa significa a si mesma Mas o seu poder significar a si mesma soacute eacute possiacutevel porque
ela jaacute eacute descoberta como coisa que vem ao encontro dentro do mundo isto eacute dentro de
uma totalidade de sentido Que a coisa se faccedila encontrar e descobrir deste ou daquele
modo e que ela se decirc a compreender como isto ou aquilo ndash isto soacute eacute possiacutevel porque ao
apreendecirc-la numa percepccedilatildeo concreta um mundo jaacute se me abriu Com a coisa se
anuncia o mundo da vida ou melhor os mundos da vida o mundo circunstante o
mundo partilhado da convivecircncia o mundo proacuteprio pessoal A coisa soacute pode ser
apreendida na sua significacircncia a partir da abertura do mundo ou dos mundos
Perceber eacute jaacute compreender as coisas na sua significacircncia Perceber eacute estruturar
e configurar o mundo como estrutura significativa Em toda percepccedilatildeo atua pois um
ato fundamental de significaccedilatildeo Chamamos de significar o ato pelo qual o homem
estrutura a significacircncia das coisas no horizonte do mundo enquanto totalidade
significativa Da compreensatildeo que articula a significaccedilatildeo das coisas numa totalidade
sentido brota a possibilidade da interpretaccedilatildeo Pela compreensatildeo o homem estaacute
sempre se projetando abrindo lances de perspectivas entrevendo de antematildeo
36 Cfr M HEIDEGGER GP 102-110 37 Cfr M HEIDEGGER Ontologie (Hermeneutik der Faktizitaumlt) (OHF) Gesamtausgabe ndash Band 63 Vittorio Klostermann Frankfurt am Main 1995 p 93-104
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aberturas de possibilidades Pela compreensatildeo o homem opera um ver que eacute projetivo
e criativo de possibilidades de ser Esse ver projetivo e criativo configura isto eacute elabora
em formas significativas essas possibilidades de ser Agrave elaboraccedilatildeo e exposiccedilatildeo dessas
formas chamamos de interpretaccedilatildeo Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo se apropria do
que compreende Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo busca chegar a uma maturaccedilatildeo
isto eacute busca maturar as possibilidades de ser que ela jaacute entreviu A interpretaccedilatildeo eacute uma
explicitaccedilatildeo da compreensatildeo O que entra como componente da explicitaccedilatildeo possui o
caraacuteter de significacircncia eacute o mostrar-se de algo como algo Em todo o nosso
comportamento noacutes jaacute estamos sempre compreendendo e interpretando apreendendo
algo como algo e referindo algo a algo articulando significados numa totalidade de
sentido que eacute o mundo O homem sempre interpreta Pois interpretar eacute ser homem
A articulaccedilatildeo dos significados numa totalidade de sentido se daacute atraveacutes do falar
quer do falar de si consigo mesmo quer do falar uns com os outros Na fala noacutes
pronunciamos o que compreendemos e como interpretamos o que estaacute em questatildeo Pro-
nunciar eacute pro-ferir isto eacute trazer agrave luz ao aberto do mundo da convivecircncia aquilo que
compreendemos e interpretamos Pelo discurso vecircm agrave fala os entes e o ser dos entes
tais como se oferecem agrave nossa compreensatildeo e interpretaccedilatildeo Vem agrave fala agrave medida que
se articulam num horizonte de compreensibilidade que noacutes chamamos de sentido O
sentido eacute o que se articula na compreensatildeo e interpretaccedilatildeo como horizonte daquilo que
compreendemos e interpretamos Todo discurso eacute o pronunciar o vir agrave fala daquilo que
compreendemos e interpretamos dos significados das coisas agrave luz do sentido de ser que
noacutes lhes damos
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Os medievais iratildeo precisar e aprofundar a concepccedilatildeo de signo Assim para
Tomaacutes de Aquino o signum eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro
A palavra proferida exteriormente pela voz eacute a fala A fala eacute proferida a modo de uma
voz articulada significativa Nem todo o som eacute voz A voz enquanto haacutelito sopro som
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que sai da boca com efeito soacute chega a ser palavra quando eacute significativa38 Sem a
significaccedilatildeo (significatio) uma voz natildeo eacute palavra A significaccedilatildeo torna a voz uma
expressatildeo do pensamento39 Por isso somente um vivente inteligente (animal rationale)
tem voz enquanto palavra40 Um vivente melhor um animal emite sons para se
comunicar Mas os seus sons natildeo satildeo vozes articuladas significativas Os gritos os
alaridos de animais natildeo satildeo palavras Sua comunicaccedilatildeo natildeo eacute fala O berrar de um
bezerro o mugir de uma vaca o balar de uma ovelha o balir de um cordeiro o arrulhar
de uma pomba o latir de um catildeo o miar de um gato ndash tudo isso natildeo eacute fala Seus sons
natildeo satildeo vozes significativas Indicam alguma coisa Mas o seu indicar natildeo tem o sentido
de significar alguma coisa Significar eacute dar a conhecer algo como algo a algueacutem41 Fumaccedila
indica fogo Bandeira branca indica rendiccedilatildeo Indicar poreacutem natildeo eacute significar Todo
significar eacute um indicar mas nem todo indicar eacute significar Significar eacute dar a conhecer no
sentido de dar a compreender algo como algo A fala daacute a conhecer alguma coisa Ela
faz-se notar e faz notar alguma coisa A fala eacute um fazer notar que daacute a conhecer alguma
coisa42 A fala faz notar daacute a conhecer isto eacute gera uma ldquonotiordquo ou uma ldquonotitiardquo
(conhecimento noccedilatildeo sentido)43 Notar quer dizer aqui dirigir-se a alguma coisa
orientando-se no mundo (intencionalidade) tornando-se atento a ela ao seu ser
Joatildeo Duns Scotus iraacute retomar o triacircngulo semioacutetico do Peri hermeneiacuteas de
Aristoacuteteles Ele questiona sobre a distinccedilatildeo de litteras et voces (letras e vozes) de um
lado passiones (disposiccedilotildees da alma) e res (coisa) de outro lado na quarta das questotildees
sobre o primeiro livro do ldquoPerigrave hermeneiasrdquo e conclui pela sua conveniecircncia As
disposiccedilotildees da alma (significaccedilatildeo e sentido) satildeo as mesmas em todos bem como as
coisas que elas significam enquanto as letras e vozes satildeo diferentes dependendo da
liacutengua Com outras palavras as letras e vozes que satildeo diferentes de liacutengua para liacutengua
38 ldquoVox quae non est significativa verbum dici non potestrdquo (A voz que natildeo eacute significativa natildeo pode ser dita palavra) ndash Tomaacutes de Aquino op Cit (I341) 39 ldquoLocutio est proprium opus rationis (I913 ad 3) falar -diz Tomaacutes- eacute operaccedilatildeo proacutepria da razatildeo 40 Agrave base desta concepccedilatildeo estaacute a concepccedilatildeo grega do homem aacutenthropos como zoon logon echon (vivente que tem linguagem) Nesta traduccedilatildeo o loacutegos eacute tanto ratio (pensamento) quanto oratio (fala no sentido de discurso) 41 Em Tomaacutes no acircmbito da vox situa-se a palavra (verbum) A palavra eacute uma realizaccedilatildeo especial do signo (signum) que por sua vez eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro (III604) 42 Cfr Heidegger M Vom Wesen der Sprache Die Metaphysik der Sprache und die Wesung des Wortes - Zu Herders Abhandlung ldquoUumlber den Ursprung der Spracherdquo Gesammtausgabe Band 85 p 3-4 43 Cfr idem p 20
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satildeo sinais instituiacutedos pelo arbiacutetrio humano que representam as disposiccedilotildees da alma (no
caso significaccedilatildeo e sentido) que por sua vez satildeo sinais naturais representativos das
coisas44
As expressotildees orais ou escritas satildeo formas linguiacutesticas dotadas de significaccedilotildees e
de sentido Sentidos e significaccedilotildees que satildeo pensados vecircm agrave expressatildeo Eles satildeo
exprimiacuteveis atraveacutes de formaccedilotildees linguiacutesticas Uma coisa eacute a forma linguiacutestica da
expressatildeo o complexo graacutefico ou focircnico ou como dizem os medievais as voces (vozes)
Outra coisa eacute o conteuacutedo da expressatildeo a significaccedilatildeo o sentido no juiacutezo e no
entrelaccedilamento de juiacutezos (conclusatildeo silogismo) O conteuacutedo eacute um ldquosignificatumrdquo que
estaacute intencionalmente ldquoin menterdquo45
A voz se torna expressatildeo agrave medida que eacute dotada de significaccedilotildees e de sentido
Assim a proposiccedilatildeo enquanto sequecircncia de palavras eacute singular Mas o conteuacutedo da
proposiccedilatildeo o juiacutezo ora eacute singular se o predicado eacute dito de um soacute ou universal se o
predicado eacute dito de muitos A proposiccedilatildeo como uma sequecircncia de palavras natildeo eacute
verdadeira ou falsa Ela eacute ou natildeo eacute Eacute falada ou escrita Mas natildeo eacute verdadeira ou falsa O
sentido da proposiccedilatildeo o juiacutezo eacute que eacute verdadeiro ou falso natildeo poreacutem enquanto
simples conteuacutedo da proposiccedilatildeo mas soacute agrave medida que ele tem um valor objetivaacutevel um
valor de conhecimento objetivo46 Proposiccedilatildeo e sentido palavra e significaccedilatildeo
pertencem a acircmbitos de realidade diversos Os elementos linguiacutesticos que constituem
proposiccedilatildeo e palavra satildeo sensivelmente perceptiacuteveis (satildeo acuacutesticos visuais motores)
satildeo reais e temporais Jaacute as significaccedilotildees e o sentido se subtraem a uma percepccedilatildeo
sensorial e satildeo atemporais O elemento linguiacutestico de uma expressatildeo eacute um signum ad
44 Cfr Quaestiones in I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 7) ldquoAd quaestionem dicendum quod differentia est conveniens quia passiones inquanto sunt signa et res inquanto sunt significata sunt eandem apud omnes nam eadem passio in anima apud quoscumque concipientes repraesentat eamdem rem quia eadem similitudo in anima semper est eiusdem repraesentativa sicut est similitudo sensibilis in sensu litterae et voces in se eaedem non sunt eaedem apud omnes inquanto sunt signa quia nec eadem littera apud omnes repraesentat eamdem vocem sed vel aliam vel nullam nec eadem vox apud omnes significat eamdem passionem sed vel aliam vel nullamrdquo (SCOTUS 1998 p 918) 45 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 12) ldquoAd quaestionem dici potest quod iste liber non est de decem vocibus ut de primo subiecto ndash nec aliqua pars logicae est de voce quia omnes passiones syllogismi et omnium partium eius possunt sibi inesse secundum esse quod habent in mente etsi non proferantur () sed est de aliquo priore quod respectu voces significativae tantum habet rationem significatirdquo (SCOTUS 1998 p 652) 46 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 22) ldquoSimiliter lsquosignificare verum vel falsumrsquo convenit enuntiationi sed non ut vox est significans conceptum sed ut conceptus significat remrdquo (SCOTUS 1998 p 653)
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placitum um signo instituiacutedo conforme o agrado ou o arbiacutetrio de quem o usa47 As
significaccedilotildees e os sentidos poreacutem se subtraem ao arbiacutetrio daquele que pensa por ter
a sua proacutepria necessidade ideal ou objetiva
A forma linguiacutestica eacute signo da significaccedilatildeo que por sua vez eacute signo de algo de
objetual de alguma objetualidade (objetos estados-de-coisas notas distintivas formas
reais ou categoriais) Trata-se do triacircngulo semioacutetico que constitui a base da
consideraccedilatildeo sobre a linguagem em toda a tradiccedilatildeo ocidental e que vem de Aristoacuteteles
Para Duns Scotus palavra e proposiccedilatildeo enquanto formaccedilotildees linguiacutesticas
dotadas de significaccedilatildeo e de sentido apontam para a esfera objetual A formaccedilatildeo
linguiacutestica eacute sinal da significaccedilatildeo e do sentido que eacute por sua vez sinal do objeto Enfim
palavra e proposiccedilatildeo satildeo sinais das coisas ldquoQuidquid est signum signi est signum
signatirdquo ndash o que quer que seja sinal do sinal eacute sinal do assinalado48 Assim palavra e
proposiccedilatildeo se tornam sinais das objetualidades agraves quais se referem No entendimento
de Duns Scotus o conceito eacute o que eacute designado imediatamente o objeto eacute o que eacute
designado mediatamente pela expressatildeo O doutor sutil esclarece que significare eacute dare
intelligere dar a compreender49 O signo eacute algo de relacional possui um caraacuteter ou uma
funccedilatildeo remissiva O signo graccedilas a sua funccedilatildeo remissiva eacute o fundamento material de
que parte o conhecimento do designado A expressatildeo linguiacutestica poreacutem natildeo eacute somente
um signo que remete ou se refere a algo Ele eacute um signo que significa algo ou seja que
daacute a compreender algo ou algo de algo e que ademais se refere a objetualidades
visando dizer ou seja mostrar o que se mostra e como se mostra50
47 Cfr Quaestiones super I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 14) ldquo et instrumenta naturalia formandi vocem potest homo aliqua imponere quae sunt signa ad placitum et non naturalia sive conceptusrdquo (SCOTUS 1998 p 919) 48 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 28 n 28) ldquo lsquoQuidquid est signum signi est signum signatirsquo ita quod signum intermedium non varietur in comparatione ad primum signum et ultimum signatumrdquo (SCOTUS 1998 p 751) 49 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 8 n 1) ldquoQuia significare est intellectum constituererdquo (SCOTUS 1998 p 679) 50 Assim para Husserl a expressatildeo que funde numa unidade a manifestaccedilatildeo sensiacutevel a significaccedilatildeo e a referecircncia ao objeto estaacute ordenada tanto a um valor de conhecimento quanto a um valor de verdade Agrave expressatildeo corresponde ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo se constitui uma relaccedilatildeo com o objeto Triacuteplice eacute o conteuacutedo de uma expressatildeo a significaccedilatildeo a referecircncia ao objeto e por fim o preenchimento de sentido A expressatildeo pela significaccedilatildeo e pela referecircncia ao objeto daacute a compreender alguma coisa acerca de algo O preenchimento da intenccedilatildeo signitiva vazia no modo da confirmaccedilatildeo da documentaccedilatildeo intuitiva leva por sua vez agrave experiecircncia da verdade Para Husserl expressotildees satildeo signos significativos distintos dos signos indicativos Numa descriccedilatildeo fenomenoloacutegica da expressatildeo dotada de sentido se
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No De dialectica (Da dialeacutetica) Agostinho define a palavra como um sinal de
alguma coisa que proferido por quem fala pode ser compreendido por quem escuta (De
Dialectica 5) 51 Nesta definiccedilatildeo podemos perceber as vaacuterias dimensotildees do exerciacutecio
humano da linguagem a da comunicaccedilatildeo em que homens falam uns com os outros
compartilhando suas vidas e coparticipando de um mesmo mundo a da expressatildeo em
que homens se pronunciam a partir de seu ser num mundo comum o discurso pelo
qual homens falam uns com os outros e escutam uns aos outros a compreensatildeo e
interpretaccedilatildeo em que homens ouvindo uns aos outros recebem a mensagem e se
apropriam de seu sentido Como ponta do ldquoicebergrdquo de toda esta vitalidade do concurso
comunicativo e do discurso temos o sinal que eacute proferido por quem fala o som da boca
a voz que longe de ser um mero ruiacutedo eacute um sinal um signo e se sinal eacute sinal de
alguma coisa ou seja algo vem a ser significado por este signo ou sinal
podem evidenciar trecircs momentos que no entanto formam uma unidade intimamente fundida a apariccedilatildeo fiacutesica da expressatildeo o ato doador de sentido e o ato preenchedor de sentido Assim palavras e proposiccedilotildees satildeo sons articulados animados de sentido Agraves expressotildees satildeo essenciais os atos que conferem a significaccedilatildeo respectivamente as intenccedilotildees de significaccedilatildeo A estes atos se acrescentam de modo extra-essencial os atos que preenchem as significaccedilotildees confirmando reforccedilando ilustrando as intenccedilotildees de significaccedilatildeo Para que o signo se torne expressatildeo eacute preciso que lhe seja imposto uma significaccedilatildeo Husserl fala de emprestar significaccedilatildeo de conferir sentido Expressotildees satildeo unidades de signos e designados (sinais e assinalados) de espeacutecie bem peculiar Expressotildees satildeo sinais significativos A significaccedilatildeo adere ao ato significativo Com a expressatildeo que suscita o ato que confere o sentido nos orientamos ao objeto Agrave expressatildeo compete ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo eacute que se constitui a relaccedilatildeo com o objeto ldquoToda e qualquer expressatildeo natildeo quer apenas dizer qualquer coisa mas tambeacutem diz algo acerca de qualquer coisa ela natildeo tem apenas a sua significaccedilatildeo mas refere-se tambeacutem a quaisquer objetosrdquo (HUSSERL 2012 p 38 ndash grifo de Husserl) Assim significaccedilatildeo e referecircncia objetiva se distinguem Expressotildees podem ter a mesma significaccedilatildeo mas objetos diferentes por um lado e por outro podem ter significaccedilotildees diferentes mas o mesmo objeto Assim considerando dois enunciados ldquoeste sendeiro eacute um cavalordquo e ldquoBuceacutefalo eacute um cavalordquo a expressatildeo um cavalo tem a mesma significaccedilatildeo mas os objetos satildeo diferentes Por sua vez dois nomes podem significar coisas diferentes mas nomear o mesmo como no exemplo ldquoO vencedor de Iena - O vencido de Waterloordquo Significaccedilatildeo e referecircncia objetiva no entanto estatildeo em iacutentima conexatildeo A expressatildeo se refere ao objeto por meio da significaccedilatildeo Uma expressatildeo adquire um referimento ao objeto pelo simples fato de que esta significa algo Por isso eacute que dizemos que uma expressatildeo designa ou denomina algo por meio do seu significado ou seja o ato de significar eacute o modo determinado de intencionar o objeto em questatildeo soacute que justamente este modo de intencionar e portanto o significado mesmo pode variar enquanto permanece idecircntica a direccedilatildeo para o objeto Se considerarmos pois os trecircs momentos que se fundem numa unidade na expressatildeo temos aquilo que de modo equiacutevoco se chama o expressado da expressatildeo ldquoOs termos em relaccedilatildeo ndash manifestaccedilatildeo significaccedilatildeo e objeto ndash pertencem essencialmente a toda e qualquer expressatildeo Em cada uma qualquer coisa eacute manifestada qualquer coisa eacute significada e qualquer coisa eacute nomeada ou de algum modo designada E no discurso equiacutevoco tudo isto se diz lsquoexpressorsquordquo 51 Idem p 14
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No escrito sobre a dialeacutetica Agostinho trata de quatro elementos desta arte o
verbum o dicibile52 a dictio53 e a res Vejamos como Agostinho expotildee o nexo entre estes
quatro elementos
Ora porque as palavras (verba) satildeo sinais das coisas (signa rerum) quando se ocupam com as coisas enquanto satildeo sinais das palavras (signa verborum) quando se discute sobre palavras ndash pois sobre palavras natildeo podemos falar a natildeo ser com palavras e quando falamos natildeo falamos a natildeo ser de coisas ndash ocorre agrave mente que as palavras satildeo sinais das coisas sem deixar de ser coisas
Quando pois a palavra sai da boca se sai por causa de si mesma isto eacute para que acerca dela se inquira ou se discuta haacute certamente uma coisa que eacute sujeita a discussatildeo e a investigaccedilatildeo mas justamente esta coisa eacute chamada palavra
E o que quer que a partir da palavra natildeo os ouvidos mas a mente (animus) percebe (sentit) e que a mente mesma manteacutem incluiacuteda em si se chama dicibile54 Quando poreacutem a palavra sai natildeo por causa de si mesma mas para significar algo de outro chama-se dictio55 E a coisa mesma que natildeo eacute uma palavra nem ainda uma concepccedilatildeo da palavra na mente seja que tenha uma palavra com a qual possa ser significada seja que natildeo a tenha daqui por diante natildeo eacute chamada com nome apropriado de outro modo do que de coisa
Estes quatro hatildeo de ser mantidos distintamente portanto a palavra (verbum) o dicibile a dictio a coisa Aquilo que defini como palavra eacute uma palavra e significa a palavra Aquilo que defini dicibile eacute uma palavra e todavia natildeo significa a palavra mas aquilo que graccedilas agrave palavra se compreende e estaacute contido na mente Aquilo que eu defini dictio eacute uma palavra mas uma palavra que significa contemporaneamente as outras duas ou seja a palavra mesma e aquilo que se faz na mente atraveacutes da palavra Aquela que eu defini como coisa eacute uma palavra que significa tudo aquilo que fica fora das trecircs que foram ditas
52 Seria o λεκτόν (lektoacuten) dos estoicos 53 Seria a λέξις (leacuteksis) dos estoicos 54 O exprimiacutevel ou melhor o diziacutevel no sentido do mostraacutevel 55 A expressatildeo o dito do dizer
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Depois destas digressotildees necessaacuterias para aclararmos o que estaacute em questatildeo
voltemos ao livro II do ldquoDe Doctrina Christianardquo de Agostinho Retomemos a sua
consideraccedilatildeo a respeito do signo
Haacute dois tipos de signos os naturais e os convencionais Os naturais datildeo a
conhecer por si proacuteprios alguma coisa aleacutem do que satildeo em si Assim fumaccedila eacute signo
de fogo Os signos convencionais (data signa) satildeo todos aqueles que os seres vivos em
especial o ser humano mutuamente se trocam para manifestar ndash o quanto lhes eacute
possiacutevel ndash os movimentos de sua alma tais como as sensaccedilotildees e os pensamentos Os
signos podem se dar em referecircncias a todos os sentidos a maioria dos signos poreacutem
se referem agrave audiccedilatildeo ou agrave visatildeo Dentre estes signos mais usuais e importantes satildeo os
signos verbais que satildeo sons significativos que se articulam mediante a voz humana
constituindo a palavra falada Os signos escritos poreacutem mostram os signos verbais de
maneira visiacutevel (e natildeo audiacutevel como fazem os signos falados)
A liacutengua eacute a realizaccedilatildeo concreta da linguagem humana mediante o uso de signos
verbais falados ou escritos As Sagradas Escrituras indicam pela histoacuteria da Torre de
Babel que liacutengua e linguagem sofrem com a decadecircncia do espiacuterito humano causada
pela soberba56 O contraacuterio da histoacuteria de Babel eacute poreacutem a histoacuteria de Pentecostes
narrada no livro dos Atos dos Apoacutestolos que aponta para a comunhatildeo do amor e o
muacutetuo entendimento entre os homens propiciado com o dom do Hagioacutes Pneuma
(Sopro Sagrado Espiacuterito Santo)
56 Na histoacuteria narrada pelo livro do Gecircnesis os homens se unem para erguer uma torre que una a terra ao ceacuteu a partir das proacuteprias forccedilas e da proacutepria engenhosidade Nos povos antigos encontramos monumentos que evocam algo disso O desejo do homem de uniatildeo entre o ceacuteu e a terra se manifesta nos zigurates da mesopotacircmia nas piracircmides das altas culturas das pedras (Egito Peru Meacutexico) nas estupas asiaacuteticas e quiccedilaacute em tempos mais primitivos aos dolmens menires nas cacircmaras funeraacuterias e nos obeliscos Junto com o esforccedilo de o homem erguer-se a si mesmo como homem erguendo pedras haacute o esforccedilo tambeacutem de alcanccedilar a vida dos imortais dos deuses tolhendo a proacutepria finitude Babel que era para ser a ldquoporta dos deusesrdquo (babilani) se torna poreacutem o lugar da confusatildeo (balal = confundir) O mundo se torna assim uma ldquoBabilocircniardquo isto eacute o lugar da confusatildeo em que os homens natildeo conseguem chegar ao entendimento muacutetuo Somente em Pentecostes em Jerusaleacutem celebra-se plenamente a superaccedilatildeo desta divisatildeo e desta confusatildeo em que as liacutenguas natildeo satildeo mais confusas e em que a linguagem do amor ardente une os homens e propicia-lhes a chance do entendimento muacutetuo e da verdadeira concoacuterdia uma concoacuterdia para o bem em favor de Deus
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Aquele vento purificava os coraccedilotildees da palha carnal aquele fogo consumia o feno da antiga concupiscecircncia aquelas liacutenguas em que falavam os que estavam plenos do Espiacuterito Santo prefiguravam a futura Igreja mediante liacutenguas de todos os povos Pois assim como depois do diluacutevio a soberba impiedade dos homens edificou uma grandiosa torre contra o Senhor ocasiatildeo na qual o gecircnero humano mereceu ser dividido pela diversidade das liacutenguas de modo que cada naccedilatildeo falasse sua proacutepria liacutengua para natildeo ser entendido pelas demais assim a humilde piedade dos fieis reduziu a diversidade de liacutenguas agrave unidade da Igreja de maneira que aquilo que a discoacuterdia tinha dispersado o reunisse a caridade e assim os membros dispersos do gecircnero humano qual membros de um mesmo corpo fossem reintegrados agrave unidade de uma uacutenica cabeccedila que eacute Cristo e fundidos na unidade do corpo santo mediante o fogo do amor57
O maior sinal da comunhatildeo do amor eacute quando os homens conseguem falar uns
com os outros e se entender Embora sejam diferentes e falem liacutenguas diferentes falam
a partir de uma mesma linguagem a do amor-caridade (gratuidade) As liacutenguas se
tornam entatildeo como labaredas do amor As falas satildeo entatildeo falas inflamadas de um fogo
divino brilhantes e ardentes divinamente apaixonadas entusiasmadas O amor eacute o que
possibilita manter esta identidade na diferenccedila Cria-se uma identidade comum mas
sem desfazer antes protegendo as diferenccedilas Eacute o milagre das liacutenguas O contraacuterio de
Babel Recriaccedilatildeo do homem humano e da humanidade universal
Assim os homens podem voltar agrave linguagem comum apesar da diversidade das
liacutenguas unindo suas vontades no empenho de conhecer e realizar a vontade de Deus A
serviccedilo deste intento estatildeo as Sagradas Escrituras Estas satildeo obra do proacuteprio Deus que
usou de hagioacutegrafos inspirados para expressar a sua vontade na linguagem humana
mediante as diversas liacutenguas Os que leem as Sagradas Escrituras natildeo desejam encontrar
nelas mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram e desse modo chegar
a conhecer a vontade de Deus segundo a qual ordem esses homens compuseram
Entretanto o leitor das Sagradas Escrituras vai se deparar continuamente com
ambiguidades e obscuridades Para Agostinho estas fazem parte da proacutepria natureza das
Escrituras Sagradas Haacute um certo quecirc de hermeacutetico de enigmaacutetico de obscuro nelas
57 Sermatildeo 271
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Mas eacute justamente isto que desafia a compreensatildeo e que a faz crescer na busca da
vontade divina As obscuridades e ambiguidades natildeo satildeo inuacuteteis Elas vencem o orgulho
do homem que se aproxima dos misteacuterios divinos sem reverecircncia e sem devoccedilatildeo Por
outro lado elas premunem o espiacuterito do fastio e do teacutedio que a facilidade sempre trazem
consigo As dificuldades de interpretaccedilatildeo cria-nos o gosto pelo exerciacutecio da
compreensatildeo na sua aventura de conquista do sentido Contudo natildeo se deve ter a
pretensatildeo de que se pode chegar a uma clareza que elimine toda sombra e obscuridade
A clareza do misteacuterio que se desvela sempre traz o veacuteu do pudor em que o misteacuterio
mesmo se encobre e assim se resguarda Os significados hauridos seratildeo sempre acenos
do inefaacutevel na medida em que o misteacuterio santo se deixa captar no horizonte do sentido
Uma vez que as Sagradas Escrituras satildeo linguagem do misteacuterio santo do Deus
absconditus (Deus escondido) que se re-vela (desvela e vela ao mesmo tempo) na
finitude da linguagem humana o leitor vai se deparar com desafios sempre novos
Agostinho recorre entatildeo agrave alegorese seguindo neste ponto a tradiccedilatildeo dos
alexandrinos As alegorias possuem encanto todo especial capaz de falar natildeo somente
ao entendimento mas tambeacutem ao coraccedilatildeo dos homens Com efeito a linguagem
imageacutetica concreta tem maior poder de comunicaccedilatildeo vital do que a linguagem
conceitual abstrata O uso de comparaccedilotildees leva o leitor a aprender mais
espontaneamente (libenter) As dificuldades de interpretaccedilatildeo levam-no a aprender com
maior prazer (gratius) As passagens obscuras das Escrituras aguccedilam a fome de
compreensatildeo do leitor Entretanto Agostinho daacute uma indicaccedilatildeo metodoloacutegica de leitura
importante para ir abrindo a compreensatildeo das Escrituras ganhar familiaridade com as
passagens claras e inequiacutevocas e com isso iluminar as passagens obscuras e
enigmaacuteticas Com efeito diz ele quase nada sobressai nas obscuridades que natildeo esteja
escrito mais claramente em outro lugar
Aquele que lecirc as Sagradas Escrituras procurando nelas a vontade divina eacute algueacutem
que estaacute a caminho numa viagem para a paacutetria da beatitude eterna Este caminhar
comporta determinado itineraacuterio no qual o homem vai se dispondo cada vez mais ao
Espiacuterito de Deus e ao seu modo de operar na alma os seus dons Eacute na medida que se
aproxima da Sabedoria do Espiacuterito que o leitor lecirc com maior proveito e profundidade as
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Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
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Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
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Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
29
Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
30
(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
35
derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
xxxxxxxxxxxx
Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
xxxxxxxxxxxxxx
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
3
discurso trabalhado segundo os princiacutepios destas duas artes da linguagem Agostinho a
partir de Varratildeo define a gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as
letras ou melhor a escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes6
Aleacutem de Varratildeo vaacuterios outros escritores da antiguidade tardia e do iniacutecio da
Idade Meacutedia vatildeo procurar transmitir estas artes aos poacutesteros Temos esforccedilos neste
6 ldquoMas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que Varratildeo chama de aprendizagem da escriturardquo (De Ordine II 1235)
4
sentido de Marciano Capella7 de Agostinho8 de Boeacutecio9 de Cassiodoro10 Isidoro de
Sevilha11 etc Na concepccedilatildeo de Agostinho o estudo das Artes Liberais ajudaria natildeo
7 Na passagem da antiguidade para o medievo um africano de Madaura Marciano Capella levou a cabo este intento Entre 410 e 439 este retoacuterico e escritor nascido no norte da Aacutefrica (Madaura) escreveu a obra De nuptiis Philologiae et Mercurii (Das nuacutepcias de Filologia e Mercuacuterio) em nove livros Trata-se de uma enciclopeacutedia alegoacuterica escrita e prosa e verso sobre as ldquoartes liberalesrdquo (artes livres ou liberais) Nesta obra o conhecimento delas eacute descrito alegoricamente como uma ascensatildeo da mente humana do reino sensiacutevel ao inteligiacutevel Na alegoria de Marciano Capella o deus Mercuacuterio (Hermes) pretende se casar Pensa em Sophia em Mantica ou em Psicheacute mas todas estas satildeo descartadas por diversas razotildees Entatildeo o seu meio-irmatildeo Apolo o aconselha a se casar com a mortal Filologia Juacutepiter o deus supremo do ceacuteu aceita esta uniatildeo apenas se Filologia for elevada ao ceacuteu e divinizada (apoteosis) O livro II trata desta ascensatildeo que deveraacute se dar atraveacutes de sete esferas celestes O livro III trata da Gramaacutetica (literatura) o IV da Dialeacutetica e o V da Retoacuterica (as trecircs artes da linguagem que formaratildeo o trivium dos medievais) No Livro VI se fala da Geometria no VII da Aritmeacutetica no VIII da Astronomia e no IX da Harmonia (as quatro artes matemaacuteticas que Boeacutecio chamou de quadrivium) Esta obra tornou-se um manual nas escolas medievais e foi frequentemente comentada na Idade Meacutedia como por exemplo por Remiacutegio de Auxerre No seacuteculo XI Notker Labeo o traduziu para o alematildeo 8 Depois de sua conversatildeo no periacuteodo em que era catecuacutemeno e receacutem-batizado (386-387) Agostinho comeccedilou uma intensa atividade autoral Em 386 Agostinho forma com seus amigos uma comunidade de vida dedicada ao estudo e agrave oraccedilatildeo num retiro chamado Cassiciacuteaco junto de Milatildeo Ainda na Itaacutelia ele escreve um opuacutesculo contra o ceticismo (Contra academicos) um sobre a felicidade (De beata vita) outro sobre o lugar do bem e do mal na ordem universal criada por Deus (De ordine) e um diaacutelogo iacutentimo (ldquode si consigo mesmordquo) sobre a investigaccedilatildeo das coisas inteligiacuteveis e sobre a imortalidade da alma (Soliloquium) tema que eacute retomado em outros textos desta fase como o De imortalitate animae (Da imortalidade da alma) e o De quantitate animae (Da grandeza da alma) sobre a relaccedilatildeo entre alma e corpo Ainda eacute deste periacuteodo o projeto de escrever sobre as sete ldquoartes liberaisrdquo (ldquoartes liberalesrdquo o trivium ndash gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica ndash e o quadrivium ndash geometria muacutesica aritmeacutetica e astronomia) Deste projeto Agostinho conseguiu realizar somente a redaccedilatildeo em parte de um escrito sobre a gramaacutetica (perdido) e sobre a muacutesica De volta a Tagaste em 388 Agostinho ainda escreve o diaacutelogo De Magistro (Do mestre) sobre a linguagem e a educaccedilatildeo e termina o livro De vera religione (Da verdadeira religiatildeo) sobre a relaccedilatildeo entre a feacute e o saber 9 Boeacutecio (ca 480 ndash 524) eacute considerado o uacuteltimo romano e o primeiro filoacutesofo da Idade Meacutedia Nasceu em Roma e era de famiacutelia nobre Participou do governo de Teodorico rei dos ostrogodos mestre dos exeacutercitos que subiu ao poder no ocidente no ano de 488 com o apoio do entatildeo Imperado Romano do Oriente Zenatildeo (474 ndash 491) Boeacutecio foi uma peccedila chave na translaccedilatildeo do pensamento grego para a nova era que estava comeccedilando o que noacutes chamamos de Idade Meacutedia Teodorico que tinha passado a sua infacircncia em Constantinopla (461 ndash 471) colocou sua capital em Ravena e moldou a sua cuacuteria segundo o modelo bizantino Confiou a Boeacutecio a tarefa de promover a transmissatildeo do saber antigo agraves nova geraccedilatildeo mas tambeacutem nomeou-o para cargos administrativos e poliacuteticos De fato Boeacutecio chegou a ocupar o papel de cocircnsul e tambeacutem o mais alto cargo do governo o cargo de magister officium (ldquomestre dos ofiacuteciosrdquo) Mas caiu sobre ele a suspeita de conspiraccedilatildeo com Constantinopla ele foi preso e depois morto por ordem do rei Na prisatildeo ele compocircs uma das obras mais ceacutelebres da literatura latina o livro ldquoDe Consolatione Philosophiaerdquo (Da Consolaccedilatildeo da Filosofia) O projeto da vida de Boeacutecio foi mediar como inteacuterprete a passagem da filosofia grega para a nova eacutepoca Queria escrever sobre as ldquoartes livresrdquo (artes liberales) ndash as do trivium disciplinas sobre a linguagem (gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica) e as do quadrivium disciplinas matemaacuteticas (geometria muacutesica aritmeacutetica e astronomia) ndash que eram consideradas uma propedecircutica ao estudo filosoacutefico Adaptando os tratados matemaacuteticos de Nicocircmaco de Gerasa escreveu pelo menos uma instruccedilatildeo sobre a aritmeacutetica (Institutio arithmetica) e outra sobre a musica (Institutio musica) 10 Cassiodoro (514-584) foi sucessor de Boeacutecio como Mestre dos Ofiacutecios no reinado de Teodorico Este viveu no centro da tensatildeo entre romanos godos e bizantinos Depois de ter vivido um tempo em Constantinopla fundou na costa do mar Jocircnio na Calaacutebria um mosteiro de nome ldquoVivariumrdquo No seu mosteiro Cassiodoro criou uma biblioteca que no periacuteodo final da Antiguidade Claacutessica pretendia colocar textos gregos agrave disposiccedilatildeo de leitores latinos e preservar para a posteridade textos sagrados e profanos Ali formou leitores copistas e tradutores dos manuscritos gregos antigos Dedicou-se tambeacutem agrave histoacuteria
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somente a tornar o homem eloquentiacutessimo e doutiacutessimo (eloquentissimus et
sapientissimus) segundo o projeto romano de formaccedilatildeo (a Humanitas versatildeo romana
da Paideia grega) mas tambeacutem perfeito (perfectus) no sentido eacutetico e religioso do
cristianismo12 Com efeito neste projeto cristatildeo de saber o cultivo das Artes Liberais
constitui o mais elementar do ldquostudium sapientiaerdquo (estudo da sabedoria) Elas formam
o degrau baacutesico da formaccedilatildeo do homem cristatildeo a filosofia seria o degrau intermediaacuterio
e a ldquodoctrina christianardquo (ldquodoutrina cristatilderdquo estudo da ldquosacra paginardquo da Biacuteblia o degrau
superior)
As Artes Liberais teriam um papel propedecircutico para a filosofia Elas ajudariam a
fornecer ldquoargumenta certiacutessimardquo (argumentos certiacutessimos) para quem se propotildee a
filosofar Depois serviriam para exercitar o ldquoanimusrdquo (acircnimo espiacuterito) no sentido da
sua afinaccedilatildeo (eruditio) e no sentido de torna-lo capaz de discernir as coisas mais sutis
(ad subtiliora cernenda) pois teriam a capacidade de ajudar o estudante a passar das
coisas corpoacutereas agraves incorpoacutereas do temporal ao intemporal do real ao ideal da criatura
ao Criador O estudo das Artes Liberais e da Filosofia poreacutem serviriam ao estudo da
ldquoDoctrina Christianardquo que partiria da investigaccedilatildeo da Biacuteblia (os medievais falaratildeo do
estudo da ldquosacra paginardquo) e que se dedicaria agrave compreensatildeo dos dados da revelaccedilatildeo
divina contidos no livro sagrado do cristianismo os artigos de feacute confessados pela Igreja
segundo a sentenccedila de Agostinho que se tornou um mote para os medievais latinos
ldquocredo ut intelligamrdquo (creio para compreender) Eacute que segundo Agostinho nas ciecircncias
humanas se crecirc no que se compreende jaacute nas ciecircncias divinas (coisas Sagrada Escritura)
se compreende somente se se crecirc aqui o proacuteprio ldquocrerrdquo introduz o proacuteprio ldquointeligirrdquo
nas outras ciecircncias poreacutem o proacuteprio ldquointeligirrdquo introduz o proacuteprio ldquocrerrdquo - pelo fato
mesmo que intelige algueacutem assente
natural e agrave medicina Seu projeto pedagoacutegico se inspirou nas escolas de Alexandria e de Niacutesibe Para guiar a leitura dos monges Cassiodoro redigiu as suas Instituiccedilotildees das letras divinas e seculares (560-580) A filosofia era representada aiacute por uma divisatildeo das ciecircncias e por um resumo do Organon 11 A obra mais famosa de Isidoro (560-633) chama-se ldquoEtimologiasrdquo Eacute uma espeacutecie de enciclopeacutedia de saberes profanos e religiosos dedicada ao rei visigodo Sisebut Ele escreveu tambeacutem um livro de ldquoSentenccedilasrdquo manual de teologia dogmaacutetica moral e espiritual Isidoro procura escrever nas ldquoEtimologiasrdquo sobre as diferenccedilas das palavras e as diferenccedilas das coisas Pressupotildee que se conhece melhor a natureza de uma coisa quando se conhece melhor a natureza de seu nome Ele detinha o conhecimento da gramaacutetica dos alexandrinos 12 Cfr De Quantitate Animae c 33 Traduccedilatildeo Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis Vozes 1997 p 153
6
Seguindo esta diretriz de ordenaccedilatildeo do saber Agostinho recusa uma formaccedilatildeo e
uma cultura que se limita agraves artes liberais ou de um saber que forma apenas o litterator
ou grammaticus entregue agrave vaidade do falar bem Contra o esteticismo decadente da
cultura latina de seu tempo ele investe o seu princiacutepio Res non verba13 Opotildee-se
tambeacutem agrave curiositas (curiosidade) que ele toma como o oposto do studium ndash o curiosus
eacute para ele com efeito o oposto do studiosus14 Com efeito ao contraacuterio do homem
ldquostudiosusrdquo (estudioso) cuja busca do saber se compromete com a transformaccedilatildeo da
proacutepria mente por meio do conhecimento da verdade o homem ldquocuriosusrdquo (curioso)
que aparenta querer saber natildeo quer poreacutem que o saber o transforme e o forme em
sua interioridade em seu caraacuteter e em suas accedilotildees A curiosidade pertence agrave triacuteplice
concupiscecircncia que torna a vida do homem decadente miseraacutevel a que alude a Sagrada
Escritura15 Chama-a de ldquoconcupiscecircncia dos olhosrdquo (concupiscentia oculorum) o desejo
de tudo ver e experimentar (cupiditas experiendi) sem nenhum comprometimento
Atinge sobretudo o mundo da convivecircncia humana ldquoCuriosum genus ad cognoscendam
vitam alienam desidiosum ad corrigendam suam ndash uma raccedila curiosa para conhecer a
vida alheia indisposta para corrigir a suardquo
Aleacutem do studium sapientiae (estudo empenho da sabedoria) que constitui a
formaccedilatildeo filosoacutefica Agostinho considerava tambeacutem um outro niacutevel de formaccedilatildeo
propriamente cristatilde do homem a doctrina christiana que consistia no exerciacutecio da
inteligecircncia que aprofunda os dados da revelaccedilatildeo Seu programa inclui o estudo das
Escrituras Sagradas a exegese a exposiccedilatildeo especulativa da feacute a controveacutersia e a
apologeacutetica Os escritos de Agostinho voltados para este campo satildeo redigidos sobretudo
13 ldquoCoisa (o real) natildeo palavrasrdquo 14 Heidegger fez uma exposiccedilatildeo sobre a curiosidade em termos de hermenecircutica da facticidade e analiacutetica da existecircncia no sect 36 de Ser e Tempo 15 ldquoNatildeo ameis o mundo nem o que estaacute no mundo Se algueacutem ama o mundo o amor do Pai natildeo estaacute nele pois tudo o que estaacute no mundo ndash a concupiscecircncia da carne (epithymia thecircs sarkoacutes) a concupiscecircncia dos olhos (epithymia tocircn ophtalmocircn) e a confianccedila orgulhosa nos bens (alazoneacuteia tou biou) ndash natildeo vem do Pai mas vem do mundo Ora o mundo passa bem como sua concupiscecircncia mas o que faz a vontade de Deus permanece para semprerdquo (1 Jo 2 15-17) A concupiscecircncia da carne (concupiscentia carnis) na interpretaccedilatildeo de Agostinho eacute a a ldquolibidordquo a cobiccedila do prazer (cupiditas oblectandi) A concupiscecircncia ou cobiccedila dos olhos (concupiscentia oculorum) eacute a curiosidade o desejo de tudo ver e experimentar (cupiditas experiendi) sem comprometimento Talvez este fenocircmeno seja afim ao que Pascal em seus Pensamentos chama de ldquodivertissementrdquo A terceira forma de ldquotemptatiordquo (tentaccedilatildeo ser posto agrave prova) eacute a ldquoambitio saeculirdquo (ambiccedilatildeo do mundo) ou a jactacircncia (iactantia) que querer ser temido e amado pelos outros Heidegger fez uma interpretaccedilatildeo a partir da hermenecircutica da faticidade da exposiccedilatildeo desta triacuteplice tentaccedilatildeo humana em ldquoFenomenologia da Vida Religiosardquo (vol 60 das suas obras completas)
7
apoacutes assumir encargos eclesiaacutesticos Natildeo obstante nestes escritos ele natildeo deixa de
filosofar (cf por exemplo o tratado sobre a Trindade) A sapientia adquire agora para
ele outro sentido mais elevado e abrangente contemplativo-religioso sapientia est
contemplatio veritatis pacificans totum hominem et suscipiens similitudinem Dei16 Esta
sabedoria no entanto natildeo exclui antes inclui tanto o aspecto eacutetico do estudo quanto
o aspecto metafiacutesico isto eacute a cognitio intellectualis (conhecimento intelectual) de anima
(a respeito da alma) e de Deo (a respeito de Deus)
Aleacutem da sapientia que visa o que eacute imutaacutevel eterno Agostinho considera
tambeacutem a scientia que visa o que eacute temporal histoacuterico cognitio historica
(conhecimento histoacuterico) Ora a revelaccedilatildeo divina que se propotildee agrave feacute se manifesta na
histoacuteria ela se transmite de modo empiacuterico por um testemunho materializado por
palavras por um livro a Escritura Sagrada Surge daiacute a demanda de uma scientia que
seraacute a atividade da inteligecircncia que se aplica ao conhecimento do conteuacutedo da feacute No
livro XIV da obra De Trinitate (Da Trindade) Agostinho escreve
Natildeo atribuo agrave ciecircncia (scientia) o que quer que possa ser sabido pelos homens nas coisas humanas aqui onde haacute grande quantidade de supeacuterfluo de vaidade e de curiosidade nociva mas tatildeo somente aquilo que gera nutre defende e fortalece a feacute sobremaneira salutar que conduz agrave verdadeira beatitude (quo fides sabuberrima quae ad verae beatitudinem ducit gignitur nutritur defenditur roboratur) A maior parte dos fieacuteis natildeo possuem esta ciecircncia seja qual for de resto a intensidade da feacute deles Uma coisa com efeito eacute saber simplesmente aquilo que o homem deve crer para obter a beatitude eterna outra coisa eacute saber (scire) como aportar este mesmo conteuacutedo da feacute agraves almas pias e defender contra os iacutempios eacute a respeito deste segundo aspecto que depois de Satildeo Paulo (1 Cor 12 8) se deve propriamente reservar o vocaacutebulo ciecircncia
Agostinho lecirc poreacutem a Escritura em consonacircncia com a tradiccedilatildeo e com a
autoridade da Igreja17 No seacuteculo XII esta ciecircncia levaraacute o nome de ldquoSacra Paginardquo
(sagrada paacutegina) Abelardo mesmo apresentaraacute a sua siacutentese especulativa do conteuacutedo
16 A sapiecircncia eacute a contemplaccedilatildeo da verdade pacificando o homem todo e recebendo a semelhanccedila de Deus De Sermone Domini in Monte 1 3 17 A hermenecircutica protestante com o Sola Scriptura excluiraacute a tradiccedilatildeo e o ensinamento autoritativo da Igreja (magisteacuterio) como criteacuterios que acompanham a leitura das Escrituras Sagradas
8
da feacute apenas como uma introduccedilatildeo agrave Sagrada Escritura Uma autonomia especulativa
da exposiccedilatildeo do conteuacutedo da feacute soacute aconteceraacute propriamente no seacuteculo XIII ndash eacute o
nascimento daquilo que noacutes hoje chamamos de ldquoteologiardquo Em Agostinho a exegese
biacuteblica e a exposiccedilatildeo dogmaacutetica especulativa se mesclam natildeo obstante hajam escritos
em que a exposiccedilatildeo dogmaacutetica e sistemaacutetica do conteuacutedo da feacute se potildeem em primeiro
plano O motivo poreacutem destas exposiccedilotildees estaacute quase sempre situado num contexto de
controveacutersia de polecircmica de apologeacutetica em torno do conteuacutedo da feacute Mas em
Agostinho toda discussatildeo dogmaacutetica toda controveacutersia e apologeacutetica natildeo visa outra
coisa que a defesa do conteuacutedo da feacute das Sagradas Escrituras
Uma obra fundamental para se entender a hermenecircutica em Agostinho eacute o ldquoDe
doctrina christianardquo (Da doutrina cristatilde) Apresentamos a seguir uma recensatildeo desta
escrito
Esta obra faz parte de uma seacuterie de obras exegeacuteticas do hiponense e parece
constituir-se numa espeacutecie de teoria da exegese contendo tambeacutem um livro sobre o
modo de se expor a Sagrada Escritura com eloquecircncia e sabedoria Ela comeccedilou a ser
escrita pouco depois de Agostinho se tornar bispo isto eacute pelo ano 397 Num primeiro
momento a obra foi publicada inacabada indo ateacute o capiacutetulo 25 nordm 35 do Livro III Mais
tarde ao revisar suas obras Agostinho se propotildee terminar esta e o faz natildeo soacute
completando o livro III como tambeacutem acrescentando o livro IV A conclusatildeo desta obra
teria se dado laacute pelo ano de 4267
A ldquoDoutrina Cristatilderdquo eacute composta de um proacutelogo e quatro livros No proacutelogo
Agostinho relata o objetivo da obra oferecer normas uacuteteis acerca da interpretaccedilatildeo das
Sagradas Escrituras agravequeles que se dedicam a este estudo Atraveacutes destas normas o
estudioso poderaacute esclarecer muitas obscuridades que as Escrituras encerram Em
seguida Agostinho usa da comparaccedilatildeo de algueacutem que mostra a outra a lua com o dedo
para refutar eventuais contestadores de seu esforccedilo Os primeiros satildeo aqueles que natildeo
entendem as regras Estes se comportam como as pessoas que nem sequer veem o
dedo devido ao fato de a acuidade se sua visatildeo ser muito deficiente Os segundos satildeo
os que entendem as regras mas natildeo conseguem aplica-las Estes fixam o olhar no dedo
mas natildeo se voltam para mirar a lua Um terceiro tipo de opositores seria daquelas
pessoas que acham poderem se dispensar de instruccedilatildeo junto a seres humanos na
9
pretensatildeo de terem conquistado o dom da compreensatildeo das divinas Escrituras
diretamente de Deus A estes Agostinho procura mostrar que a proacutepria Sagrada
Escritura pressupotildee a convivialidade dos que ensinam e aprendem mesmo
considerando que tanto uns como outros fundamentalmente aprendem de Deus Em
terceiro lugar o dom de interpretar as Escrituras natildeo dispensa mas ao contraacuterio exige
o esforccedilo de aprender Perspicaacutecia interesse de ir agraves coisas mesmas e disposiccedilatildeo de
aprender satildeo atitudes que devem ter quem quer ler esta obra
O objeto temaacutetico de ldquoA doutrina cristatilderdquo eacute a ldquotractatio scripturarumrdquo ou seja o
modo de proceder no trato com as Escrituras Isto comporta uma dupla implicaccedilatildeo
aprender a maneira de se descobrir o que eacute para ser entendido e por outro lado
aprender a maneira de se expor com propriedade o que foi entendido Os trecircs primeiros
livros da obra se atecircm agrave maneira de descobrir e o quarto livro agrave maneira de expor
Toda doutrina ou ciecircncia versa sobre coisas e sinais Coisas eacute tudo o que natildeo estaacute
empregado para significar algum outro objeto Sinais eacute tudo o que se emprega para
significar alguma coisa aleacutem de si mesmo As coisas satildeo conhecidas por meio de sinais
Os sinais devem ser entendidos como sinais e natildeo como coisas isto eacute na sua funccedilatildeo de
sinalizar e natildeo no seu ocorrer meramente factual O primeiro livro iraacute tratar das coisas
elementares da Sagrada Escritura isto eacute aquelas realidades junto agraves quais se empenha
o esforccedilo da compreensatildeo O segundo livro trata dos sinais da Sagrada Escritura e do
modo de chegar ao significado mediante o rigor da interpretaccedilatildeo O terceiro livro se
ocupa em ensinar como resolver as ambiguidades nos textos que se devem interpretar
quer em sentido proacuteprio quer em sentido figurado O quarto livro iraacute indicar como expor
as coisas da Sagrada Escritura com eloquecircncia e sabedoria
O primeiro livro expotildee algumas concepccedilotildees fundamentais sobre a realidade do
real (o ser do ente ndash das ldquocoisasrdquo) As coisas no seu todo se dividem em duas grandes
categorias aquelas que satildeo para a fruiccedilatildeo e aquelas que satildeo para o uso (uti et frui)
ldquoFruir (frui) eacute estar ligado a uma coisa por amor a ela Usar (frui) eacute relacionar aquilo de
que se tem uso com a posse daquilo que se amardquo (1 4 4) Notemos que Agostinho pensa
a realidade do real em seu concernir agrave vida humana A vida humana consiste em
10
curare18 O uti (usar) eacute o cuidar que lida com aquilo que contribui para o viver O frui
(fruir) eacute gozar Por exemplo o belo que pertence agrave vigecircncia do ser eacute fruiacutedo A beata
vita (vida bem-aventurada feliz) eacute a do homem que goza do sumo bem (Deus) Eacute para
ser fruiacuteda aquela coisa que deleita por si mesma sem estar referida a outra coisa19 Eacute
para ser usada aquela coisa que eacute que eacute buscada desejada e que deleita por causa de
outra coisa As coisas temporais visiacuteveis satildeo para ser usadas As coisas eternas
invisiacuteveis para serem fruiacutedas O viacutecio a perversatildeo consiste em inverter esta ordem
querer fruir do que eacute para ser usado A virtude poreacutem consiste em fruir do que eacute para
ser fruiacutedo e usar do que eacute para ser usado20 A beatitude eacute a fruiccedilatildeo do sumo e imutaacutevel
bem a Trindade Deus eacute a beleza inteligiacutevel imutaacutevel inefaacutevel Toda a miacutestica medieval
iraacute visar a esta fruiccedilatildeo de Deus como o sumo bem como a suma beleza Na fruiccedilatildeo de
Deus o homem encontra o repouso a quietude (quies) Embora em tudo isso haja
elementos do pensamento grego (neoplatocircnico) no entanto a concepccedilatildeo da vida
humana e da realidade do real em Agostinho estaacute enraizada na compreensatildeo do Novo
Testamento Ele assim traz agrave fala em que consiste a ldquovita praesensrdquo (vida presente) do
cristatildeo eacute vida vivida ldquoin re laboris sed in spe quietis in carne vetustatis sed in fide
novitatisrdquo (no real do labor mas na esperanccedila do repouso na carne da velhice mas na
feacute da novidade) A esperanccedila precede A vida segue isso que a esperanccedila antecipa A
vida se realiza na direccedilatildeo daquilo que a esperanccedila antecipa21
Ainda no primeiro livro encontra-se uma exposiccedilatildeo do conteuacutedo da feacute a modo
de uma siacutentese dogmaacutetica fala da Trindade enquanto aquilo a que a aspiraccedilatildeo de
fruiccedilatildeo por parte do homem estaacute destinada Esta fala se articula em termos biacuteblicos e
tambeacutem em termos metafiacutesicos Trata-se de uma exposiccedilatildeo dogmaacutetico-metafiacutesica dos
misteacuterios e arcanos da feacute cristatilde Ao seu fundo poreacutem estaacute toda uma experiecircncia faacutetica
da vida22 Depois desta exposiccedilatildeo sobre a essecircncia da feacute cristatilde (os misteacuterios que nela satildeo
18 Curo curas curare curavi curatum Verbo transitivo ndash Sentido proacuteprio 1) cuidar olhar por tratar velar Daiacute 2) tratar curar 3) no contexto administrativo governar dirigir administrar 4) no contexto militar comandar 5) no contexto comercial fazer pagar 4) fazer por ter em conta de ter cuidado de 19 De civitate Dei (A cidade de Deus) XI 25 20 De Diversibus quaestionibus XXX 21 Cf Heidegger M Fenomenologia da Vida Religiosa p 258-260 22 A uacutenica ldquocoisardquo (o uacutenico real) a ser fruiacuteda eacute a Trindade Agostinho remete pois inicialmente ao Triuno Deus de quem por quem e para quem existem todas as coisas Os mesmos atributos divinos devem ser predicados de cada uma das pessoas da Trindade isto eacute do Pai do Filho e do Espiacuterito Santo Cada um deles eacute ele proacuteprio na plenitude de sua substacircncia O ser do Pai estaacute na Unidade o ser do Filho na
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cridos) Agostinho trata do ldquoethosrdquo do viver cristatildeo seguindo ainda pelo fio condutor
do ldquouti et fruirdquo (usar e fruir) O essencial do ethos cristatildeo eacute o duplo preceito do amor a
Deus e ao proacuteximo O ethos do viver cristatildeo se instaura segundo a ldquoOrdo dilectionisrdquo
(ordem da dileccedilatildeo ou do amor) A identidade do cristatildeo consiste no seu modo de amar23
Igualdade e o ser do Espiacuterito Santo na harmonia da unidade e da igualdade Natildeo obstante natildeo se trata de trecircs seres mas de um uacutenico Ser Agostinho estaacute ciente da limitaccedilatildeo do entendimento no vigor do silecircncio que se recolhe diante do misteacuterio divino do Deus uno e trino arcano fundamental da feacute cristatilde Deus eacute antes de tudo o inefaacutevel Quando a mente humana cogita acerca do misteacuterio divino que se doa ao se retrair ela busca captar uma realidade transcendental a mais proacutexima visto ser a mais iacutentima mais iacutentima a noacutes que noacutes mesmos e ao mesmo tempo a mais distante (inacessiacutevel justamente em virtude desta proximidade) Eacute esta realidade primeira que institui todo o real quer nas suas realizaccedilotildees sensiacuteveis quer nas inteligiacuteveis Percorrendo-se os diversos niacuteveis de constituiccedilatildeo da vida chega-se agravequela Vida que se define como Sabedoria imutaacutevel isto eacute sempre idecircntica consigo mesma O Deus vivo que eacute o Vivente por excelecircncia eacute o anseio mais profundo da alma humana Contemplaacute-lo e fruir da sua bondade e beleza eacute a beatitude do homem Contudo para que o homem possa chegar agrave visatildeo e fruiccedilatildeo de Deus eacute necessaacuteria a purificaccedilatildeo interior ao longo de sua vida que aparece como um caminho uma viagem uma travessia de retorno agrave paacutetria Esta purificaccedilatildeo se daacute mediante o bom empenho os bons desejos e os costumes No entanto natildeo podemos ir agrave Sabedoria se ela natildeo se dispotildee a vir a noacutes adaptando-se agrave fraqueza dede nossa condiccedilatildeo carnal isto eacute finita fraacutegil decadente mortal No entanto esta Sabedoria que se encarna na realidade da vida faacutetica humana foi rejeitada por muitos como fraqueza e loucura Eacute o misteacuterio da keacutenosis (esvaziamento) do rebaixamento do Filho de Deus o Verbo que se fez carne e atendou entre os homens Mas eacute justamente por esta fraqueza e loucura divina manifestada na encarnaccedilatildeo e na paixatildeo do Verbo humanado Jesus Cristo que acontece a redenccedilatildeo isto eacute a libertaccedilatildeo e a salvaccedilatildeo de todos os homens Nele a Sabedoria cura o homem impregnado de fraqueza e mergulhado na loucura O homem usou mal do dom da imortalidade e caiu na morte Cristo usou bem de nossa mortalidade e isso devolveu ao homem o acesso agrave plenitude da vida Atraveacutes dos misteacuterios da vida de Cristo isto eacute dos misteacuterios de sua encarnaccedilatildeo de sua paixatildeo e tambeacutem de sua ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo com o consequente envio do Espiacuterito Santo os homens satildeo fortalecidos na feacute e avivados no conhecimento Nestes misteacuterios os que creem consideram o quatildeo livremente Cristo deu sua vida pelos homens ele que possuiacutea o poder de retomaacute-la Aqueles que favorecidos pela graccedila da redenccedilatildeo creram no Filho de Deus encarnado e crucificado como Senhor (o Ressuscitado) formam um soacute corpo constituindo deste modo a realidade da Igreja Esta eacute a esposa de Cristo Atraveacutes dos sacramentos ela se purifica para vir se unir ao Esposo Cristo Jesus na eternidade apresentando-se diante dele sem manchas nem rugas Eacute no interior desta Igreja que os homens satildeo gerados para a semelhanccedila com Cristo e recebem o perdatildeo dos pecados (batismo) Desta mesma Igreja recebem a feacute na ressurreiccedilatildeo do corpo e na vida eterna Estes misteacuterios e arcanos cristatildeos satildeo acolhidos pelo homem que estaacute a caminho da paacutetria (a vida eterna) Neste caminho o crente sempre de novo morre para o mundo e vive para Deus Verdade e Vida 23 O homem haacute de amar a Deus por causa dele proacuteprio As criaturas em contrapartida satildeo amadas agrave medida que ajudam o homem a crescer no amor de Deus O amor a si mesmo e ao proacuteprio corpo eacute uma lei natural e por isso natildeo requer nenhum preceito (mandamento) Mas o amor ao que estaacute ao seu lado (o proacuteximo) e o amor ao que estaacute acima dele (Deus) requer preceito Haacute no entanto um falso e um verdadeiro amor de si proacuteprio O verdadeiro amor de si consiste em buscar o que eacute uacutetil e salutar para si mesmo crescendo na caridade (o amor gratuito a Deus e ao proacuteximo) O falso amor de si consiste em submeter o proacuteximo e o proacuteprio corpo a fim de fruir deles Quanto ao amor ao proacuteprio corpo Agostinho relembra a citaccedilatildeo do Apoacutestolo (Paulo) que diz ldquoningueacutem jamais quis mal agrave sua proacutepria carnerdquo (Ef 5 29) Mesmo os que reconhecem sadiamente a necessidade da ascese fazem-no para submeter o corpo ao espiacuterito segundo a ordem da natureza buscando assim a paz e a harmonia O preceito da caridade eacute duplo exige o amor a Deus acima de tudo e o amor ao proacuteximo como a si mesmo A partir do duplo amor natural e do duplo preceito da caridade descobre a ldquoOrdo Dilectionisrdquo (ordem da dileccedilatildeo isto eacute do amor) Ordem implica numa estruturaccedilatildeo em niacuteveis neste caso em niacuteveis de dignidade A ordenaccedilatildeo do amor eacute instaurada quando o homem ama o que deve ser amado (o bem) e natildeo ama o que natildeo deve ser amado (o mal o viacutecio o pecado) Depois quando o homem ama menos o que eacute menos digno de amor (o corpo)
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O amor (dilectio caritas) eacute o princiacutepio que rege toda a vida humana na perspectiva da
feacute cristatilde24 O duplo preceito do amor (a Deus e ao proacuteximo) eacute aqui a norma universal e
primordial que rege toda a ordem do viver O amor a Deus acima de tudo e o amor ao
proacuteximo eacute a essecircncia a substacircncia da revelaccedilatildeo divina (ldquoa Lei e os Profetasrdquo) que foi
radicalizada e consumada em Jesus Cristo no seu novo e eterno testamento
(testemunho) Daiacute se segue que a edificaccedilatildeo da caridade eacute a norma reacutegia e suprema de
toda a interpretaccedilatildeo das Sagradas Escrituras25 Para o homem que atingiu a perfeiccedilatildeo
do amor (caridade perfeita) as Sagradas Escrituras deixam de ser necessaacuterias uma vez
que toda a finalidade delas eacute levar o homem agrave perfeiccedilatildeo do amor (caridade perfeita)
Deste modo as Escrituras Sagradas requerem um leitor que entenda que o fim de tudo
o que ali estaacute escrito eacute a caridade perfeita consumada que aparece concreta e
historicamente em Jesus Cristo o Deus encarnado (humanado) e crucificado A feacute e a
esperanccedila satildeo outras duas virtudes que ajudam o homem a crescer e se perfazer na
perfeiccedilatildeo da caridade no seguimento de Jesus Cristo O essencial do ser cristatildeo se
encontra neste seguimento
Depois quando ama igualmente o que eacute igualmente digno de amor (o proacuteximo) Por fim quando ama absolutamente o que eacute absolutamente digno de ser amado (Deus) Ao amor de Deus assim deve se subordinar e convergir todo amor pela criatura O preceito do amor aleacutem disso comporta universalidade isto eacute ningueacutem eacute dele excluiacutedo A boa vontade do amor se estende a todos mesmo ao inimigo O amor de Deus pelo homem eacute gratuito visto que Deus natildeo precisa do homem mas se basta a si mesmo Seu amor eacute pura gratuita absoluta bondade O grau de perfeiccedilatildeo de um homem depende do grau de perfeiccedilatildeo e da universalidade de seu amor O ser do homem se determina pelo seu amor O homem eacute o que ele ama e como ele ama Ele cresce no ser se cresce na perfeiccedilatildeo (e na universalidade) do amor Ele diminui no ser se decresce na capacidade de amar O homem pode encontrar deleite nos outros homens quando estes o ajudam a crescer no amor a Deus Eacute quando se ama e se gosta do outro em Deus Os homens podem e devem constituir uma fraternidade no amor ajudando-se mutuamente a prosseguir seu itineraacuterio para Deus Nenhuma homem pode se considerar fim absoluto do amor do outro Ele natildeo eacute o destinataacuterio uacuteltimo do amor do outro Eacute apenas companheiro na viagem da vida e como tal haacute de ser amado Neste itineraacuterio para Deus Cristo eacute o caminho a verdade e a vida isto eacute ele eacute aquele por quem o homem vai aquele a quem o homem alcanccedila e em quem ele permanece no amor 24 Cf Arendt Hanna O conceito de amor em Santo Agostinho Ensaio de interpretaccedilatildeo filosoacutefica Lisboa Instituto Piaget 1997 25 Para o ldquohomo viatorrdquo (homem a caminho) a feacute nas Escrituras fortalece a feacute a esperanccedila e a caridade Nestas trecircs virtudes teologais se encerram e se subsumem toda a ciecircncia e toda a profecia A caridade permanece para sempre enquanto que a feacute e a esperanccedila se extinguem quando o homem chega a seu destino (a Paacutetria o Reino dos Ceacuteus) A caridade visa um bem eterno Se os bens temporais satildeo amados antes de serem possuiacutedos pois ao serem conquistados natildeo saciam a alma na sua sede do absoluto bem o bem eterno eacute o que eacute amado com tanto mais ardor ao ser possuiacutedo do que fora ao ser desejado pois a ningueacutem que a deseja a beatitude concedida eacute menor do que a desejada
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O livro II eacute um verdadeiro tratado de semiologia26 Todo o pensamento a respeito
da linguagem do ocidente se baseia no triacircngulo semioacutetico signo conceito coisa A base
desta concepccedilatildeo de Aristoacuteteles Ela eacute exposta no ὶ ἑί (perigrave hermeneiacuteas)
ldquoDe interpretationerdquo (16a 3-8)
Satildeo pois aquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz siacutembolos das paixotildees (afecccedilotildees disposiccedilotildees) na alma e as coisas que satildeo escritas satildeo siacutembolos daquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz E assim como as coisas escritas natildeo satildeo as mesmas para todos do mesmo modo tambeacutem os sons da voz natildeo satildeo os mesmos Aquelas coisas de que isso (coisas escritas e sons da voz) satildeo primordialmente signos (coisas que mostram) satildeo para todos (os homens) as mesmas paixotildees da alma e as coisas das quais estas (paixotildees da alma) formam apresentaccedilotildees assemelhadas satildeo igualmente as mesmas27
O texto de Aristoacuteteles se manteacutem numa fala esclarecida e soacutebria que torna
visiacutevel a claacutessica estruturaccedilatildeo que abriga a linguagem como discurso ou fala As letras
do alfabeto28 mostram os fonemas29 Os fonemas mostram as disposiccedilotildees na alma30 As
disposiccedilotildees na alma mostram as coisas que que lhe con-cernem31 O mostrar configura
e sustenta as escoras dessa construccedilatildeo De maneira variada o mostrar conduz algo para
um aparecer deixando assim apreender o que aparece e permitindo que se discuta o
que se apreende
26 A semiologia (ou semioacutetica) eacute a ciecircncia dos signos Como os signos verbais tecircm na vida humana um papel de primeiro plano a semiologia se concentrou em grande parte na linguagem Haacute uma semiologia nas especulaccedilotildees linguiacutestica da antiguidade entre os modistas da Idade Meacutedia etc Mas o nome ldquosemioacuteticardquo surge na modernidade com Locke Torna-se poreacutem uma disciplina independente na obra do filoacutesofo americano Charles Sanders Peirce (1839-1914) 27 A traduccedilatildeo entende os σημεῖα (semeia ndash os signos aquelas coisas que mostram) os σύμβολα (symbola - os siacutembolos ndash o que eacute lanccedilado junto e nessa junccedilatildeo deixa e faz com que um se atenha ao outro) e os ὁμοιώματα (homoioacutemata ndash as apresentaccedilotildees assemelhadas as semelhanccedilas) como um mostrar no sentido de deixar aparecer o que por sua vez encontra-se no acircmbito do desencobrimento (αλήθεια ndash aleacutetheia) 28 τὰ γραφόμενα ndash taacute graphoacutemena 29 τὰ ἐν τῇ φωνῇ - taacute en te phoneacute 30 παθήματα τῆς ψυχῆς ndash patheacutemata tecircs psykhecircs 31 πράγματα - praacutegmata
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Antes de nos apropriarmos da semiologia de Agostinho tentemos aqui uma
consideraccedilatildeo fenomenoloacutegica sobre o sinal e a linguagem
O falar acontece por mor do dizer Dizer eacute mostrar O falar enquanto dizer se
realiza como um discurso mostrador loacutegos apophaacutentikoacutes32 O falar estaacute a serviccedilo do
dizer Dizer eacute mostrar no sentido de deixar e fazer ver a quem se fala aquilo de que se
fala Dizer eacute dar algo a compreender eacute fazer-se compreender sobre algo a quem escuta
O mostrar no falar acontece como um conceder acenos dar indiacutecios oferecer
indicaccedilotildees oferecer sinais33 Mas tudo isso acontece no sentido de um anunciar que se
cumpre como um revelar um divulgar um mencionar (fazer menccedilatildeo de referir relatar
expor narrar) um lembrar um recordar e um comemorar O anunciar eacute entendido pois
pelos gregos como um mostrar deiknymi34 O sinal eacute uma referecircncia uma remissatildeo O
remeter proacuteprio do sinal consiste em mostrar O mostrar do sinal se funda na referecircncia
na remissatildeo Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo No entanto
Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo eacute uma referecircncia Toda lsquoaccedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma referecircncia mas nem toda referecircncia mostra Com isso tambeacutem se diz toda accedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo mostra Assim aparece o caraacuteter formal e geral da relaccedilatildeo Para se investigar os fenocircmenos de referecircncia sinal e significado de nada adianta caracterizaacute-los como relaccedilatildeo Deve-se em uacuteltima instacircncia mostrar que a proacutepria lsquorelaccedilatildeorsquo devido a seu
32 O loacutegos eacute um reunir e um recolher (leacutegein) que potildee expotildee e depotildee abre e manifesta traz ao desencobrimento agrave revelaccedilatildeo Como abrir e manifestar leacutegein estaacute em contraste com krypto cobrir encobrir esconder ocultar no sentido de guardar Conhecemos um fragmento de Heraacuteclito (fr 93) que traz este contraste Ele diz Ho aacutenax hou tograve manteion esti tograve en Delphois oute leacutegei oute kryptei allagrave semainei ndash O Autor de quem eacute o oraacuteculo de Delfos natildeo traz ao desencobrimento nem encobre mas acena 33 Semainein eacute um conceder semata (acenos indiacutecios indicaccedilotildees) A palavra grega no singular eacute ldquosemardquo indiacutecio vestiacutegio marca distintiva senha sinal ldquoSemardquo eacute tambeacutem pressaacutegio auguacuterio auspiacutecio Eacute ainda o astro ou uma constelaccedilatildeo da qual se tiram indicaccedilotildees na orientaccedilatildeo concernente ao ceacuteu Eacute por fim o tuacutemulo a tumba 34 Da mesma raiz de ldquodeiknymirdquo (mostrar) eacute o verbo latino ldquodicererdquo dizer Dizer eacute mostrar isto eacute deixar e fazer ver trazer agrave evidecircncia alguma coisa O sinal pois no falar precisa ser entendido na dinacircmica do dizer isto eacute do mostrar
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caraacuteter formal geral tem sua origem ontoloacutegica numa referecircncia35
Haacute uma multiplicidade de sinais anuacutencios prenuacutencios vestiacutegios marcas
distintivos cuja accedilatildeo de mostrar difere a cada caso Satildeo sinais diferentes o rastro o
resto o monumento o documento o testemunho o siacutembolo a expressatildeo a
manifestaccedilatildeo a significaccedilatildeo O sinal tem a sua serventia no mostrar no sentido de fazer
sobressair de dar na vista salientar fazer reparar estranhar alguma coisa Aquilo que
normalmente natildeo causa surpresa eacute ressaltado pelo sinal O sinal permite a descoberta
de alguma coisa
O mundo eacute o ldquoonderdquo das descobertas O homem se orienta se dirige se
direciona em seus comportamentos com as coisas com os entes agrave matildeo a partir de uma
familiaridade com o mundo A abertura de mundo se daacute como compreensatildeo Trata-se
poreacutem de uma compreensatildeo operativa natildeo teoacuterica Compreender significa aqui reunir
as remissotildees recolher as referecircncias O caraacuteter de remissatildeo das remissotildees das
referecircncias eacute o que se chama de significar Significar (be-deuten) eacute aqui mostrar
(deuten) no sentido de pocircr a caminho um clarear um esclarecer Eacute o processo e o
movimento de estruturaccedilatildeo do mundo Significar eacute aqui oferecer alguma coisa para a
compreensatildeo e para a interpretaccedilatildeo Significacircncia (Bedeutsamkeit) eacute o todo das
remissotildees do acontecimento e do processo do significar que eacute a estruturaccedilatildeo de
mundo Noacutes nos encontramos a noacutes mesmos jaacute sempre no mundo entendendo o mundo
antes de tudo como uma totalidade de significacircncias Eacute um encontrar-se a si mesmo
sempre numa situaccedilatildeo de ocupaccedilatildeo e preocupaccedilatildeo de cuidado com o proacuteprio ser-no-
mundo Tudo aquilo com que podemos nos relacionar e comportar tem este caraacuteter
estaacute aiacute e eacute encontrado no caminho do cuidado eacute experimentado como significativo a
partir de um determinado cuidado Significacircncia indica este modo fundamental como
algo segundo o seu teor proacuteprio eacute encontrado na vida como ele se deteacutem e se reteacutem
no meio do mundo da vida
Soacute acontece linguagem onde noacutes falamos uns com os outros A linguagem
acontece de iniacutecio e na maior parte das vezes na conversa com suas falas e seus
silecircncios Para noacutes isto eacute na ordem da nossa experiecircncia cotidiana a primeira
35 Heidegger M Ser e Tempo sect 17
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dimensatildeo pois da linguagem eacute a fala o discurso O discurso traz agrave fala uma
compreensatildeo Chamamos de sentido o que pode ser articulado O sentido eacute o que torna
compreensiacutevel algo enquanto algo Compreender eacute fundamentalmente apreender algo
enquanto algo Tudo que apreendemos se mostra a si mesmo como isso ou aquilo Isso
quer dizer noacutes aprendemos cada coisa em sua significacircncia A percepccedilatildeo natural em
que noacutes vivemos cotidianamente jaacute eacute sempre uma compreensatildeo uma captaccedilatildeo da coisa
como esta coisa do sapato como sapato do livro como livro do reloacutegio como reloacutegio
Natildeo eacute assim que eu primeiro apreendo uma coisa na sua nua e crua factualidade e
depois lhe atribuo este ou aquele significado Cada vez eu apreendo uma coisa como
tal coisa isto eacute eu apreendo a coisa dentro de uma determinada significacircncia36
A coisa que me vem ao encontro dentro do mundo se mostra como isto ou
aquilo37 Ela instaura um conjunto de referecircncias ela remete a isto ou aquilo ela soa
desta ou daquela maneira em meu mundo ela fala disto ou daquilo em minha vida A
coisa significa a si mesma Mas o seu poder significar a si mesma soacute eacute possiacutevel porque
ela jaacute eacute descoberta como coisa que vem ao encontro dentro do mundo isto eacute dentro de
uma totalidade de sentido Que a coisa se faccedila encontrar e descobrir deste ou daquele
modo e que ela se decirc a compreender como isto ou aquilo ndash isto soacute eacute possiacutevel porque ao
apreendecirc-la numa percepccedilatildeo concreta um mundo jaacute se me abriu Com a coisa se
anuncia o mundo da vida ou melhor os mundos da vida o mundo circunstante o
mundo partilhado da convivecircncia o mundo proacuteprio pessoal A coisa soacute pode ser
apreendida na sua significacircncia a partir da abertura do mundo ou dos mundos
Perceber eacute jaacute compreender as coisas na sua significacircncia Perceber eacute estruturar
e configurar o mundo como estrutura significativa Em toda percepccedilatildeo atua pois um
ato fundamental de significaccedilatildeo Chamamos de significar o ato pelo qual o homem
estrutura a significacircncia das coisas no horizonte do mundo enquanto totalidade
significativa Da compreensatildeo que articula a significaccedilatildeo das coisas numa totalidade
sentido brota a possibilidade da interpretaccedilatildeo Pela compreensatildeo o homem estaacute
sempre se projetando abrindo lances de perspectivas entrevendo de antematildeo
36 Cfr M HEIDEGGER GP 102-110 37 Cfr M HEIDEGGER Ontologie (Hermeneutik der Faktizitaumlt) (OHF) Gesamtausgabe ndash Band 63 Vittorio Klostermann Frankfurt am Main 1995 p 93-104
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aberturas de possibilidades Pela compreensatildeo o homem opera um ver que eacute projetivo
e criativo de possibilidades de ser Esse ver projetivo e criativo configura isto eacute elabora
em formas significativas essas possibilidades de ser Agrave elaboraccedilatildeo e exposiccedilatildeo dessas
formas chamamos de interpretaccedilatildeo Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo se apropria do
que compreende Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo busca chegar a uma maturaccedilatildeo
isto eacute busca maturar as possibilidades de ser que ela jaacute entreviu A interpretaccedilatildeo eacute uma
explicitaccedilatildeo da compreensatildeo O que entra como componente da explicitaccedilatildeo possui o
caraacuteter de significacircncia eacute o mostrar-se de algo como algo Em todo o nosso
comportamento noacutes jaacute estamos sempre compreendendo e interpretando apreendendo
algo como algo e referindo algo a algo articulando significados numa totalidade de
sentido que eacute o mundo O homem sempre interpreta Pois interpretar eacute ser homem
A articulaccedilatildeo dos significados numa totalidade de sentido se daacute atraveacutes do falar
quer do falar de si consigo mesmo quer do falar uns com os outros Na fala noacutes
pronunciamos o que compreendemos e como interpretamos o que estaacute em questatildeo Pro-
nunciar eacute pro-ferir isto eacute trazer agrave luz ao aberto do mundo da convivecircncia aquilo que
compreendemos e interpretamos Pelo discurso vecircm agrave fala os entes e o ser dos entes
tais como se oferecem agrave nossa compreensatildeo e interpretaccedilatildeo Vem agrave fala agrave medida que
se articulam num horizonte de compreensibilidade que noacutes chamamos de sentido O
sentido eacute o que se articula na compreensatildeo e interpretaccedilatildeo como horizonte daquilo que
compreendemos e interpretamos Todo discurso eacute o pronunciar o vir agrave fala daquilo que
compreendemos e interpretamos dos significados das coisas agrave luz do sentido de ser que
noacutes lhes damos
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Os medievais iratildeo precisar e aprofundar a concepccedilatildeo de signo Assim para
Tomaacutes de Aquino o signum eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro
A palavra proferida exteriormente pela voz eacute a fala A fala eacute proferida a modo de uma
voz articulada significativa Nem todo o som eacute voz A voz enquanto haacutelito sopro som
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que sai da boca com efeito soacute chega a ser palavra quando eacute significativa38 Sem a
significaccedilatildeo (significatio) uma voz natildeo eacute palavra A significaccedilatildeo torna a voz uma
expressatildeo do pensamento39 Por isso somente um vivente inteligente (animal rationale)
tem voz enquanto palavra40 Um vivente melhor um animal emite sons para se
comunicar Mas os seus sons natildeo satildeo vozes articuladas significativas Os gritos os
alaridos de animais natildeo satildeo palavras Sua comunicaccedilatildeo natildeo eacute fala O berrar de um
bezerro o mugir de uma vaca o balar de uma ovelha o balir de um cordeiro o arrulhar
de uma pomba o latir de um catildeo o miar de um gato ndash tudo isso natildeo eacute fala Seus sons
natildeo satildeo vozes significativas Indicam alguma coisa Mas o seu indicar natildeo tem o sentido
de significar alguma coisa Significar eacute dar a conhecer algo como algo a algueacutem41 Fumaccedila
indica fogo Bandeira branca indica rendiccedilatildeo Indicar poreacutem natildeo eacute significar Todo
significar eacute um indicar mas nem todo indicar eacute significar Significar eacute dar a conhecer no
sentido de dar a compreender algo como algo A fala daacute a conhecer alguma coisa Ela
faz-se notar e faz notar alguma coisa A fala eacute um fazer notar que daacute a conhecer alguma
coisa42 A fala faz notar daacute a conhecer isto eacute gera uma ldquonotiordquo ou uma ldquonotitiardquo
(conhecimento noccedilatildeo sentido)43 Notar quer dizer aqui dirigir-se a alguma coisa
orientando-se no mundo (intencionalidade) tornando-se atento a ela ao seu ser
Joatildeo Duns Scotus iraacute retomar o triacircngulo semioacutetico do Peri hermeneiacuteas de
Aristoacuteteles Ele questiona sobre a distinccedilatildeo de litteras et voces (letras e vozes) de um
lado passiones (disposiccedilotildees da alma) e res (coisa) de outro lado na quarta das questotildees
sobre o primeiro livro do ldquoPerigrave hermeneiasrdquo e conclui pela sua conveniecircncia As
disposiccedilotildees da alma (significaccedilatildeo e sentido) satildeo as mesmas em todos bem como as
coisas que elas significam enquanto as letras e vozes satildeo diferentes dependendo da
liacutengua Com outras palavras as letras e vozes que satildeo diferentes de liacutengua para liacutengua
38 ldquoVox quae non est significativa verbum dici non potestrdquo (A voz que natildeo eacute significativa natildeo pode ser dita palavra) ndash Tomaacutes de Aquino op Cit (I341) 39 ldquoLocutio est proprium opus rationis (I913 ad 3) falar -diz Tomaacutes- eacute operaccedilatildeo proacutepria da razatildeo 40 Agrave base desta concepccedilatildeo estaacute a concepccedilatildeo grega do homem aacutenthropos como zoon logon echon (vivente que tem linguagem) Nesta traduccedilatildeo o loacutegos eacute tanto ratio (pensamento) quanto oratio (fala no sentido de discurso) 41 Em Tomaacutes no acircmbito da vox situa-se a palavra (verbum) A palavra eacute uma realizaccedilatildeo especial do signo (signum) que por sua vez eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro (III604) 42 Cfr Heidegger M Vom Wesen der Sprache Die Metaphysik der Sprache und die Wesung des Wortes - Zu Herders Abhandlung ldquoUumlber den Ursprung der Spracherdquo Gesammtausgabe Band 85 p 3-4 43 Cfr idem p 20
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satildeo sinais instituiacutedos pelo arbiacutetrio humano que representam as disposiccedilotildees da alma (no
caso significaccedilatildeo e sentido) que por sua vez satildeo sinais naturais representativos das
coisas44
As expressotildees orais ou escritas satildeo formas linguiacutesticas dotadas de significaccedilotildees e
de sentido Sentidos e significaccedilotildees que satildeo pensados vecircm agrave expressatildeo Eles satildeo
exprimiacuteveis atraveacutes de formaccedilotildees linguiacutesticas Uma coisa eacute a forma linguiacutestica da
expressatildeo o complexo graacutefico ou focircnico ou como dizem os medievais as voces (vozes)
Outra coisa eacute o conteuacutedo da expressatildeo a significaccedilatildeo o sentido no juiacutezo e no
entrelaccedilamento de juiacutezos (conclusatildeo silogismo) O conteuacutedo eacute um ldquosignificatumrdquo que
estaacute intencionalmente ldquoin menterdquo45
A voz se torna expressatildeo agrave medida que eacute dotada de significaccedilotildees e de sentido
Assim a proposiccedilatildeo enquanto sequecircncia de palavras eacute singular Mas o conteuacutedo da
proposiccedilatildeo o juiacutezo ora eacute singular se o predicado eacute dito de um soacute ou universal se o
predicado eacute dito de muitos A proposiccedilatildeo como uma sequecircncia de palavras natildeo eacute
verdadeira ou falsa Ela eacute ou natildeo eacute Eacute falada ou escrita Mas natildeo eacute verdadeira ou falsa O
sentido da proposiccedilatildeo o juiacutezo eacute que eacute verdadeiro ou falso natildeo poreacutem enquanto
simples conteuacutedo da proposiccedilatildeo mas soacute agrave medida que ele tem um valor objetivaacutevel um
valor de conhecimento objetivo46 Proposiccedilatildeo e sentido palavra e significaccedilatildeo
pertencem a acircmbitos de realidade diversos Os elementos linguiacutesticos que constituem
proposiccedilatildeo e palavra satildeo sensivelmente perceptiacuteveis (satildeo acuacutesticos visuais motores)
satildeo reais e temporais Jaacute as significaccedilotildees e o sentido se subtraem a uma percepccedilatildeo
sensorial e satildeo atemporais O elemento linguiacutestico de uma expressatildeo eacute um signum ad
44 Cfr Quaestiones in I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 7) ldquoAd quaestionem dicendum quod differentia est conveniens quia passiones inquanto sunt signa et res inquanto sunt significata sunt eandem apud omnes nam eadem passio in anima apud quoscumque concipientes repraesentat eamdem rem quia eadem similitudo in anima semper est eiusdem repraesentativa sicut est similitudo sensibilis in sensu litterae et voces in se eaedem non sunt eaedem apud omnes inquanto sunt signa quia nec eadem littera apud omnes repraesentat eamdem vocem sed vel aliam vel nullam nec eadem vox apud omnes significat eamdem passionem sed vel aliam vel nullamrdquo (SCOTUS 1998 p 918) 45 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 12) ldquoAd quaestionem dici potest quod iste liber non est de decem vocibus ut de primo subiecto ndash nec aliqua pars logicae est de voce quia omnes passiones syllogismi et omnium partium eius possunt sibi inesse secundum esse quod habent in mente etsi non proferantur () sed est de aliquo priore quod respectu voces significativae tantum habet rationem significatirdquo (SCOTUS 1998 p 652) 46 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 22) ldquoSimiliter lsquosignificare verum vel falsumrsquo convenit enuntiationi sed non ut vox est significans conceptum sed ut conceptus significat remrdquo (SCOTUS 1998 p 653)
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placitum um signo instituiacutedo conforme o agrado ou o arbiacutetrio de quem o usa47 As
significaccedilotildees e os sentidos poreacutem se subtraem ao arbiacutetrio daquele que pensa por ter
a sua proacutepria necessidade ideal ou objetiva
A forma linguiacutestica eacute signo da significaccedilatildeo que por sua vez eacute signo de algo de
objetual de alguma objetualidade (objetos estados-de-coisas notas distintivas formas
reais ou categoriais) Trata-se do triacircngulo semioacutetico que constitui a base da
consideraccedilatildeo sobre a linguagem em toda a tradiccedilatildeo ocidental e que vem de Aristoacuteteles
Para Duns Scotus palavra e proposiccedilatildeo enquanto formaccedilotildees linguiacutesticas
dotadas de significaccedilatildeo e de sentido apontam para a esfera objetual A formaccedilatildeo
linguiacutestica eacute sinal da significaccedilatildeo e do sentido que eacute por sua vez sinal do objeto Enfim
palavra e proposiccedilatildeo satildeo sinais das coisas ldquoQuidquid est signum signi est signum
signatirdquo ndash o que quer que seja sinal do sinal eacute sinal do assinalado48 Assim palavra e
proposiccedilatildeo se tornam sinais das objetualidades agraves quais se referem No entendimento
de Duns Scotus o conceito eacute o que eacute designado imediatamente o objeto eacute o que eacute
designado mediatamente pela expressatildeo O doutor sutil esclarece que significare eacute dare
intelligere dar a compreender49 O signo eacute algo de relacional possui um caraacuteter ou uma
funccedilatildeo remissiva O signo graccedilas a sua funccedilatildeo remissiva eacute o fundamento material de
que parte o conhecimento do designado A expressatildeo linguiacutestica poreacutem natildeo eacute somente
um signo que remete ou se refere a algo Ele eacute um signo que significa algo ou seja que
daacute a compreender algo ou algo de algo e que ademais se refere a objetualidades
visando dizer ou seja mostrar o que se mostra e como se mostra50
47 Cfr Quaestiones super I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 14) ldquo et instrumenta naturalia formandi vocem potest homo aliqua imponere quae sunt signa ad placitum et non naturalia sive conceptusrdquo (SCOTUS 1998 p 919) 48 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 28 n 28) ldquo lsquoQuidquid est signum signi est signum signatirsquo ita quod signum intermedium non varietur in comparatione ad primum signum et ultimum signatumrdquo (SCOTUS 1998 p 751) 49 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 8 n 1) ldquoQuia significare est intellectum constituererdquo (SCOTUS 1998 p 679) 50 Assim para Husserl a expressatildeo que funde numa unidade a manifestaccedilatildeo sensiacutevel a significaccedilatildeo e a referecircncia ao objeto estaacute ordenada tanto a um valor de conhecimento quanto a um valor de verdade Agrave expressatildeo corresponde ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo se constitui uma relaccedilatildeo com o objeto Triacuteplice eacute o conteuacutedo de uma expressatildeo a significaccedilatildeo a referecircncia ao objeto e por fim o preenchimento de sentido A expressatildeo pela significaccedilatildeo e pela referecircncia ao objeto daacute a compreender alguma coisa acerca de algo O preenchimento da intenccedilatildeo signitiva vazia no modo da confirmaccedilatildeo da documentaccedilatildeo intuitiva leva por sua vez agrave experiecircncia da verdade Para Husserl expressotildees satildeo signos significativos distintos dos signos indicativos Numa descriccedilatildeo fenomenoloacutegica da expressatildeo dotada de sentido se
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No De dialectica (Da dialeacutetica) Agostinho define a palavra como um sinal de
alguma coisa que proferido por quem fala pode ser compreendido por quem escuta (De
Dialectica 5) 51 Nesta definiccedilatildeo podemos perceber as vaacuterias dimensotildees do exerciacutecio
humano da linguagem a da comunicaccedilatildeo em que homens falam uns com os outros
compartilhando suas vidas e coparticipando de um mesmo mundo a da expressatildeo em
que homens se pronunciam a partir de seu ser num mundo comum o discurso pelo
qual homens falam uns com os outros e escutam uns aos outros a compreensatildeo e
interpretaccedilatildeo em que homens ouvindo uns aos outros recebem a mensagem e se
apropriam de seu sentido Como ponta do ldquoicebergrdquo de toda esta vitalidade do concurso
comunicativo e do discurso temos o sinal que eacute proferido por quem fala o som da boca
a voz que longe de ser um mero ruiacutedo eacute um sinal um signo e se sinal eacute sinal de
alguma coisa ou seja algo vem a ser significado por este signo ou sinal
podem evidenciar trecircs momentos que no entanto formam uma unidade intimamente fundida a apariccedilatildeo fiacutesica da expressatildeo o ato doador de sentido e o ato preenchedor de sentido Assim palavras e proposiccedilotildees satildeo sons articulados animados de sentido Agraves expressotildees satildeo essenciais os atos que conferem a significaccedilatildeo respectivamente as intenccedilotildees de significaccedilatildeo A estes atos se acrescentam de modo extra-essencial os atos que preenchem as significaccedilotildees confirmando reforccedilando ilustrando as intenccedilotildees de significaccedilatildeo Para que o signo se torne expressatildeo eacute preciso que lhe seja imposto uma significaccedilatildeo Husserl fala de emprestar significaccedilatildeo de conferir sentido Expressotildees satildeo unidades de signos e designados (sinais e assinalados) de espeacutecie bem peculiar Expressotildees satildeo sinais significativos A significaccedilatildeo adere ao ato significativo Com a expressatildeo que suscita o ato que confere o sentido nos orientamos ao objeto Agrave expressatildeo compete ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo eacute que se constitui a relaccedilatildeo com o objeto ldquoToda e qualquer expressatildeo natildeo quer apenas dizer qualquer coisa mas tambeacutem diz algo acerca de qualquer coisa ela natildeo tem apenas a sua significaccedilatildeo mas refere-se tambeacutem a quaisquer objetosrdquo (HUSSERL 2012 p 38 ndash grifo de Husserl) Assim significaccedilatildeo e referecircncia objetiva se distinguem Expressotildees podem ter a mesma significaccedilatildeo mas objetos diferentes por um lado e por outro podem ter significaccedilotildees diferentes mas o mesmo objeto Assim considerando dois enunciados ldquoeste sendeiro eacute um cavalordquo e ldquoBuceacutefalo eacute um cavalordquo a expressatildeo um cavalo tem a mesma significaccedilatildeo mas os objetos satildeo diferentes Por sua vez dois nomes podem significar coisas diferentes mas nomear o mesmo como no exemplo ldquoO vencedor de Iena - O vencido de Waterloordquo Significaccedilatildeo e referecircncia objetiva no entanto estatildeo em iacutentima conexatildeo A expressatildeo se refere ao objeto por meio da significaccedilatildeo Uma expressatildeo adquire um referimento ao objeto pelo simples fato de que esta significa algo Por isso eacute que dizemos que uma expressatildeo designa ou denomina algo por meio do seu significado ou seja o ato de significar eacute o modo determinado de intencionar o objeto em questatildeo soacute que justamente este modo de intencionar e portanto o significado mesmo pode variar enquanto permanece idecircntica a direccedilatildeo para o objeto Se considerarmos pois os trecircs momentos que se fundem numa unidade na expressatildeo temos aquilo que de modo equiacutevoco se chama o expressado da expressatildeo ldquoOs termos em relaccedilatildeo ndash manifestaccedilatildeo significaccedilatildeo e objeto ndash pertencem essencialmente a toda e qualquer expressatildeo Em cada uma qualquer coisa eacute manifestada qualquer coisa eacute significada e qualquer coisa eacute nomeada ou de algum modo designada E no discurso equiacutevoco tudo isto se diz lsquoexpressorsquordquo 51 Idem p 14
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No escrito sobre a dialeacutetica Agostinho trata de quatro elementos desta arte o
verbum o dicibile52 a dictio53 e a res Vejamos como Agostinho expotildee o nexo entre estes
quatro elementos
Ora porque as palavras (verba) satildeo sinais das coisas (signa rerum) quando se ocupam com as coisas enquanto satildeo sinais das palavras (signa verborum) quando se discute sobre palavras ndash pois sobre palavras natildeo podemos falar a natildeo ser com palavras e quando falamos natildeo falamos a natildeo ser de coisas ndash ocorre agrave mente que as palavras satildeo sinais das coisas sem deixar de ser coisas
Quando pois a palavra sai da boca se sai por causa de si mesma isto eacute para que acerca dela se inquira ou se discuta haacute certamente uma coisa que eacute sujeita a discussatildeo e a investigaccedilatildeo mas justamente esta coisa eacute chamada palavra
E o que quer que a partir da palavra natildeo os ouvidos mas a mente (animus) percebe (sentit) e que a mente mesma manteacutem incluiacuteda em si se chama dicibile54 Quando poreacutem a palavra sai natildeo por causa de si mesma mas para significar algo de outro chama-se dictio55 E a coisa mesma que natildeo eacute uma palavra nem ainda uma concepccedilatildeo da palavra na mente seja que tenha uma palavra com a qual possa ser significada seja que natildeo a tenha daqui por diante natildeo eacute chamada com nome apropriado de outro modo do que de coisa
Estes quatro hatildeo de ser mantidos distintamente portanto a palavra (verbum) o dicibile a dictio a coisa Aquilo que defini como palavra eacute uma palavra e significa a palavra Aquilo que defini dicibile eacute uma palavra e todavia natildeo significa a palavra mas aquilo que graccedilas agrave palavra se compreende e estaacute contido na mente Aquilo que eu defini dictio eacute uma palavra mas uma palavra que significa contemporaneamente as outras duas ou seja a palavra mesma e aquilo que se faz na mente atraveacutes da palavra Aquela que eu defini como coisa eacute uma palavra que significa tudo aquilo que fica fora das trecircs que foram ditas
52 Seria o λεκτόν (lektoacuten) dos estoicos 53 Seria a λέξις (leacuteksis) dos estoicos 54 O exprimiacutevel ou melhor o diziacutevel no sentido do mostraacutevel 55 A expressatildeo o dito do dizer
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Depois destas digressotildees necessaacuterias para aclararmos o que estaacute em questatildeo
voltemos ao livro II do ldquoDe Doctrina Christianardquo de Agostinho Retomemos a sua
consideraccedilatildeo a respeito do signo
Haacute dois tipos de signos os naturais e os convencionais Os naturais datildeo a
conhecer por si proacuteprios alguma coisa aleacutem do que satildeo em si Assim fumaccedila eacute signo
de fogo Os signos convencionais (data signa) satildeo todos aqueles que os seres vivos em
especial o ser humano mutuamente se trocam para manifestar ndash o quanto lhes eacute
possiacutevel ndash os movimentos de sua alma tais como as sensaccedilotildees e os pensamentos Os
signos podem se dar em referecircncias a todos os sentidos a maioria dos signos poreacutem
se referem agrave audiccedilatildeo ou agrave visatildeo Dentre estes signos mais usuais e importantes satildeo os
signos verbais que satildeo sons significativos que se articulam mediante a voz humana
constituindo a palavra falada Os signos escritos poreacutem mostram os signos verbais de
maneira visiacutevel (e natildeo audiacutevel como fazem os signos falados)
A liacutengua eacute a realizaccedilatildeo concreta da linguagem humana mediante o uso de signos
verbais falados ou escritos As Sagradas Escrituras indicam pela histoacuteria da Torre de
Babel que liacutengua e linguagem sofrem com a decadecircncia do espiacuterito humano causada
pela soberba56 O contraacuterio da histoacuteria de Babel eacute poreacutem a histoacuteria de Pentecostes
narrada no livro dos Atos dos Apoacutestolos que aponta para a comunhatildeo do amor e o
muacutetuo entendimento entre os homens propiciado com o dom do Hagioacutes Pneuma
(Sopro Sagrado Espiacuterito Santo)
56 Na histoacuteria narrada pelo livro do Gecircnesis os homens se unem para erguer uma torre que una a terra ao ceacuteu a partir das proacuteprias forccedilas e da proacutepria engenhosidade Nos povos antigos encontramos monumentos que evocam algo disso O desejo do homem de uniatildeo entre o ceacuteu e a terra se manifesta nos zigurates da mesopotacircmia nas piracircmides das altas culturas das pedras (Egito Peru Meacutexico) nas estupas asiaacuteticas e quiccedilaacute em tempos mais primitivos aos dolmens menires nas cacircmaras funeraacuterias e nos obeliscos Junto com o esforccedilo de o homem erguer-se a si mesmo como homem erguendo pedras haacute o esforccedilo tambeacutem de alcanccedilar a vida dos imortais dos deuses tolhendo a proacutepria finitude Babel que era para ser a ldquoporta dos deusesrdquo (babilani) se torna poreacutem o lugar da confusatildeo (balal = confundir) O mundo se torna assim uma ldquoBabilocircniardquo isto eacute o lugar da confusatildeo em que os homens natildeo conseguem chegar ao entendimento muacutetuo Somente em Pentecostes em Jerusaleacutem celebra-se plenamente a superaccedilatildeo desta divisatildeo e desta confusatildeo em que as liacutenguas natildeo satildeo mais confusas e em que a linguagem do amor ardente une os homens e propicia-lhes a chance do entendimento muacutetuo e da verdadeira concoacuterdia uma concoacuterdia para o bem em favor de Deus
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Aquele vento purificava os coraccedilotildees da palha carnal aquele fogo consumia o feno da antiga concupiscecircncia aquelas liacutenguas em que falavam os que estavam plenos do Espiacuterito Santo prefiguravam a futura Igreja mediante liacutenguas de todos os povos Pois assim como depois do diluacutevio a soberba impiedade dos homens edificou uma grandiosa torre contra o Senhor ocasiatildeo na qual o gecircnero humano mereceu ser dividido pela diversidade das liacutenguas de modo que cada naccedilatildeo falasse sua proacutepria liacutengua para natildeo ser entendido pelas demais assim a humilde piedade dos fieis reduziu a diversidade de liacutenguas agrave unidade da Igreja de maneira que aquilo que a discoacuterdia tinha dispersado o reunisse a caridade e assim os membros dispersos do gecircnero humano qual membros de um mesmo corpo fossem reintegrados agrave unidade de uma uacutenica cabeccedila que eacute Cristo e fundidos na unidade do corpo santo mediante o fogo do amor57
O maior sinal da comunhatildeo do amor eacute quando os homens conseguem falar uns
com os outros e se entender Embora sejam diferentes e falem liacutenguas diferentes falam
a partir de uma mesma linguagem a do amor-caridade (gratuidade) As liacutenguas se
tornam entatildeo como labaredas do amor As falas satildeo entatildeo falas inflamadas de um fogo
divino brilhantes e ardentes divinamente apaixonadas entusiasmadas O amor eacute o que
possibilita manter esta identidade na diferenccedila Cria-se uma identidade comum mas
sem desfazer antes protegendo as diferenccedilas Eacute o milagre das liacutenguas O contraacuterio de
Babel Recriaccedilatildeo do homem humano e da humanidade universal
Assim os homens podem voltar agrave linguagem comum apesar da diversidade das
liacutenguas unindo suas vontades no empenho de conhecer e realizar a vontade de Deus A
serviccedilo deste intento estatildeo as Sagradas Escrituras Estas satildeo obra do proacuteprio Deus que
usou de hagioacutegrafos inspirados para expressar a sua vontade na linguagem humana
mediante as diversas liacutenguas Os que leem as Sagradas Escrituras natildeo desejam encontrar
nelas mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram e desse modo chegar
a conhecer a vontade de Deus segundo a qual ordem esses homens compuseram
Entretanto o leitor das Sagradas Escrituras vai se deparar continuamente com
ambiguidades e obscuridades Para Agostinho estas fazem parte da proacutepria natureza das
Escrituras Sagradas Haacute um certo quecirc de hermeacutetico de enigmaacutetico de obscuro nelas
57 Sermatildeo 271
25
Mas eacute justamente isto que desafia a compreensatildeo e que a faz crescer na busca da
vontade divina As obscuridades e ambiguidades natildeo satildeo inuacuteteis Elas vencem o orgulho
do homem que se aproxima dos misteacuterios divinos sem reverecircncia e sem devoccedilatildeo Por
outro lado elas premunem o espiacuterito do fastio e do teacutedio que a facilidade sempre trazem
consigo As dificuldades de interpretaccedilatildeo cria-nos o gosto pelo exerciacutecio da
compreensatildeo na sua aventura de conquista do sentido Contudo natildeo se deve ter a
pretensatildeo de que se pode chegar a uma clareza que elimine toda sombra e obscuridade
A clareza do misteacuterio que se desvela sempre traz o veacuteu do pudor em que o misteacuterio
mesmo se encobre e assim se resguarda Os significados hauridos seratildeo sempre acenos
do inefaacutevel na medida em que o misteacuterio santo se deixa captar no horizonte do sentido
Uma vez que as Sagradas Escrituras satildeo linguagem do misteacuterio santo do Deus
absconditus (Deus escondido) que se re-vela (desvela e vela ao mesmo tempo) na
finitude da linguagem humana o leitor vai se deparar com desafios sempre novos
Agostinho recorre entatildeo agrave alegorese seguindo neste ponto a tradiccedilatildeo dos
alexandrinos As alegorias possuem encanto todo especial capaz de falar natildeo somente
ao entendimento mas tambeacutem ao coraccedilatildeo dos homens Com efeito a linguagem
imageacutetica concreta tem maior poder de comunicaccedilatildeo vital do que a linguagem
conceitual abstrata O uso de comparaccedilotildees leva o leitor a aprender mais
espontaneamente (libenter) As dificuldades de interpretaccedilatildeo levam-no a aprender com
maior prazer (gratius) As passagens obscuras das Escrituras aguccedilam a fome de
compreensatildeo do leitor Entretanto Agostinho daacute uma indicaccedilatildeo metodoloacutegica de leitura
importante para ir abrindo a compreensatildeo das Escrituras ganhar familiaridade com as
passagens claras e inequiacutevocas e com isso iluminar as passagens obscuras e
enigmaacuteticas Com efeito diz ele quase nada sobressai nas obscuridades que natildeo esteja
escrito mais claramente em outro lugar
Aquele que lecirc as Sagradas Escrituras procurando nelas a vontade divina eacute algueacutem
que estaacute a caminho numa viagem para a paacutetria da beatitude eterna Este caminhar
comporta determinado itineraacuterio no qual o homem vai se dispondo cada vez mais ao
Espiacuterito de Deus e ao seu modo de operar na alma os seus dons Eacute na medida que se
aproxima da Sabedoria do Espiacuterito que o leitor lecirc com maior proveito e profundidade as
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Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
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Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
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Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
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Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
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(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
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Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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sentido de Marciano Capella7 de Agostinho8 de Boeacutecio9 de Cassiodoro10 Isidoro de
Sevilha11 etc Na concepccedilatildeo de Agostinho o estudo das Artes Liberais ajudaria natildeo
7 Na passagem da antiguidade para o medievo um africano de Madaura Marciano Capella levou a cabo este intento Entre 410 e 439 este retoacuterico e escritor nascido no norte da Aacutefrica (Madaura) escreveu a obra De nuptiis Philologiae et Mercurii (Das nuacutepcias de Filologia e Mercuacuterio) em nove livros Trata-se de uma enciclopeacutedia alegoacuterica escrita e prosa e verso sobre as ldquoartes liberalesrdquo (artes livres ou liberais) Nesta obra o conhecimento delas eacute descrito alegoricamente como uma ascensatildeo da mente humana do reino sensiacutevel ao inteligiacutevel Na alegoria de Marciano Capella o deus Mercuacuterio (Hermes) pretende se casar Pensa em Sophia em Mantica ou em Psicheacute mas todas estas satildeo descartadas por diversas razotildees Entatildeo o seu meio-irmatildeo Apolo o aconselha a se casar com a mortal Filologia Juacutepiter o deus supremo do ceacuteu aceita esta uniatildeo apenas se Filologia for elevada ao ceacuteu e divinizada (apoteosis) O livro II trata desta ascensatildeo que deveraacute se dar atraveacutes de sete esferas celestes O livro III trata da Gramaacutetica (literatura) o IV da Dialeacutetica e o V da Retoacuterica (as trecircs artes da linguagem que formaratildeo o trivium dos medievais) No Livro VI se fala da Geometria no VII da Aritmeacutetica no VIII da Astronomia e no IX da Harmonia (as quatro artes matemaacuteticas que Boeacutecio chamou de quadrivium) Esta obra tornou-se um manual nas escolas medievais e foi frequentemente comentada na Idade Meacutedia como por exemplo por Remiacutegio de Auxerre No seacuteculo XI Notker Labeo o traduziu para o alematildeo 8 Depois de sua conversatildeo no periacuteodo em que era catecuacutemeno e receacutem-batizado (386-387) Agostinho comeccedilou uma intensa atividade autoral Em 386 Agostinho forma com seus amigos uma comunidade de vida dedicada ao estudo e agrave oraccedilatildeo num retiro chamado Cassiciacuteaco junto de Milatildeo Ainda na Itaacutelia ele escreve um opuacutesculo contra o ceticismo (Contra academicos) um sobre a felicidade (De beata vita) outro sobre o lugar do bem e do mal na ordem universal criada por Deus (De ordine) e um diaacutelogo iacutentimo (ldquode si consigo mesmordquo) sobre a investigaccedilatildeo das coisas inteligiacuteveis e sobre a imortalidade da alma (Soliloquium) tema que eacute retomado em outros textos desta fase como o De imortalitate animae (Da imortalidade da alma) e o De quantitate animae (Da grandeza da alma) sobre a relaccedilatildeo entre alma e corpo Ainda eacute deste periacuteodo o projeto de escrever sobre as sete ldquoartes liberaisrdquo (ldquoartes liberalesrdquo o trivium ndash gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica ndash e o quadrivium ndash geometria muacutesica aritmeacutetica e astronomia) Deste projeto Agostinho conseguiu realizar somente a redaccedilatildeo em parte de um escrito sobre a gramaacutetica (perdido) e sobre a muacutesica De volta a Tagaste em 388 Agostinho ainda escreve o diaacutelogo De Magistro (Do mestre) sobre a linguagem e a educaccedilatildeo e termina o livro De vera religione (Da verdadeira religiatildeo) sobre a relaccedilatildeo entre a feacute e o saber 9 Boeacutecio (ca 480 ndash 524) eacute considerado o uacuteltimo romano e o primeiro filoacutesofo da Idade Meacutedia Nasceu em Roma e era de famiacutelia nobre Participou do governo de Teodorico rei dos ostrogodos mestre dos exeacutercitos que subiu ao poder no ocidente no ano de 488 com o apoio do entatildeo Imperado Romano do Oriente Zenatildeo (474 ndash 491) Boeacutecio foi uma peccedila chave na translaccedilatildeo do pensamento grego para a nova era que estava comeccedilando o que noacutes chamamos de Idade Meacutedia Teodorico que tinha passado a sua infacircncia em Constantinopla (461 ndash 471) colocou sua capital em Ravena e moldou a sua cuacuteria segundo o modelo bizantino Confiou a Boeacutecio a tarefa de promover a transmissatildeo do saber antigo agraves nova geraccedilatildeo mas tambeacutem nomeou-o para cargos administrativos e poliacuteticos De fato Boeacutecio chegou a ocupar o papel de cocircnsul e tambeacutem o mais alto cargo do governo o cargo de magister officium (ldquomestre dos ofiacuteciosrdquo) Mas caiu sobre ele a suspeita de conspiraccedilatildeo com Constantinopla ele foi preso e depois morto por ordem do rei Na prisatildeo ele compocircs uma das obras mais ceacutelebres da literatura latina o livro ldquoDe Consolatione Philosophiaerdquo (Da Consolaccedilatildeo da Filosofia) O projeto da vida de Boeacutecio foi mediar como inteacuterprete a passagem da filosofia grega para a nova eacutepoca Queria escrever sobre as ldquoartes livresrdquo (artes liberales) ndash as do trivium disciplinas sobre a linguagem (gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica) e as do quadrivium disciplinas matemaacuteticas (geometria muacutesica aritmeacutetica e astronomia) ndash que eram consideradas uma propedecircutica ao estudo filosoacutefico Adaptando os tratados matemaacuteticos de Nicocircmaco de Gerasa escreveu pelo menos uma instruccedilatildeo sobre a aritmeacutetica (Institutio arithmetica) e outra sobre a musica (Institutio musica) 10 Cassiodoro (514-584) foi sucessor de Boeacutecio como Mestre dos Ofiacutecios no reinado de Teodorico Este viveu no centro da tensatildeo entre romanos godos e bizantinos Depois de ter vivido um tempo em Constantinopla fundou na costa do mar Jocircnio na Calaacutebria um mosteiro de nome ldquoVivariumrdquo No seu mosteiro Cassiodoro criou uma biblioteca que no periacuteodo final da Antiguidade Claacutessica pretendia colocar textos gregos agrave disposiccedilatildeo de leitores latinos e preservar para a posteridade textos sagrados e profanos Ali formou leitores copistas e tradutores dos manuscritos gregos antigos Dedicou-se tambeacutem agrave histoacuteria
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somente a tornar o homem eloquentiacutessimo e doutiacutessimo (eloquentissimus et
sapientissimus) segundo o projeto romano de formaccedilatildeo (a Humanitas versatildeo romana
da Paideia grega) mas tambeacutem perfeito (perfectus) no sentido eacutetico e religioso do
cristianismo12 Com efeito neste projeto cristatildeo de saber o cultivo das Artes Liberais
constitui o mais elementar do ldquostudium sapientiaerdquo (estudo da sabedoria) Elas formam
o degrau baacutesico da formaccedilatildeo do homem cristatildeo a filosofia seria o degrau intermediaacuterio
e a ldquodoctrina christianardquo (ldquodoutrina cristatilderdquo estudo da ldquosacra paginardquo da Biacuteblia o degrau
superior)
As Artes Liberais teriam um papel propedecircutico para a filosofia Elas ajudariam a
fornecer ldquoargumenta certiacutessimardquo (argumentos certiacutessimos) para quem se propotildee a
filosofar Depois serviriam para exercitar o ldquoanimusrdquo (acircnimo espiacuterito) no sentido da
sua afinaccedilatildeo (eruditio) e no sentido de torna-lo capaz de discernir as coisas mais sutis
(ad subtiliora cernenda) pois teriam a capacidade de ajudar o estudante a passar das
coisas corpoacutereas agraves incorpoacutereas do temporal ao intemporal do real ao ideal da criatura
ao Criador O estudo das Artes Liberais e da Filosofia poreacutem serviriam ao estudo da
ldquoDoctrina Christianardquo que partiria da investigaccedilatildeo da Biacuteblia (os medievais falaratildeo do
estudo da ldquosacra paginardquo) e que se dedicaria agrave compreensatildeo dos dados da revelaccedilatildeo
divina contidos no livro sagrado do cristianismo os artigos de feacute confessados pela Igreja
segundo a sentenccedila de Agostinho que se tornou um mote para os medievais latinos
ldquocredo ut intelligamrdquo (creio para compreender) Eacute que segundo Agostinho nas ciecircncias
humanas se crecirc no que se compreende jaacute nas ciecircncias divinas (coisas Sagrada Escritura)
se compreende somente se se crecirc aqui o proacuteprio ldquocrerrdquo introduz o proacuteprio ldquointeligirrdquo
nas outras ciecircncias poreacutem o proacuteprio ldquointeligirrdquo introduz o proacuteprio ldquocrerrdquo - pelo fato
mesmo que intelige algueacutem assente
natural e agrave medicina Seu projeto pedagoacutegico se inspirou nas escolas de Alexandria e de Niacutesibe Para guiar a leitura dos monges Cassiodoro redigiu as suas Instituiccedilotildees das letras divinas e seculares (560-580) A filosofia era representada aiacute por uma divisatildeo das ciecircncias e por um resumo do Organon 11 A obra mais famosa de Isidoro (560-633) chama-se ldquoEtimologiasrdquo Eacute uma espeacutecie de enciclopeacutedia de saberes profanos e religiosos dedicada ao rei visigodo Sisebut Ele escreveu tambeacutem um livro de ldquoSentenccedilasrdquo manual de teologia dogmaacutetica moral e espiritual Isidoro procura escrever nas ldquoEtimologiasrdquo sobre as diferenccedilas das palavras e as diferenccedilas das coisas Pressupotildee que se conhece melhor a natureza de uma coisa quando se conhece melhor a natureza de seu nome Ele detinha o conhecimento da gramaacutetica dos alexandrinos 12 Cfr De Quantitate Animae c 33 Traduccedilatildeo Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis Vozes 1997 p 153
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Seguindo esta diretriz de ordenaccedilatildeo do saber Agostinho recusa uma formaccedilatildeo e
uma cultura que se limita agraves artes liberais ou de um saber que forma apenas o litterator
ou grammaticus entregue agrave vaidade do falar bem Contra o esteticismo decadente da
cultura latina de seu tempo ele investe o seu princiacutepio Res non verba13 Opotildee-se
tambeacutem agrave curiositas (curiosidade) que ele toma como o oposto do studium ndash o curiosus
eacute para ele com efeito o oposto do studiosus14 Com efeito ao contraacuterio do homem
ldquostudiosusrdquo (estudioso) cuja busca do saber se compromete com a transformaccedilatildeo da
proacutepria mente por meio do conhecimento da verdade o homem ldquocuriosusrdquo (curioso)
que aparenta querer saber natildeo quer poreacutem que o saber o transforme e o forme em
sua interioridade em seu caraacuteter e em suas accedilotildees A curiosidade pertence agrave triacuteplice
concupiscecircncia que torna a vida do homem decadente miseraacutevel a que alude a Sagrada
Escritura15 Chama-a de ldquoconcupiscecircncia dos olhosrdquo (concupiscentia oculorum) o desejo
de tudo ver e experimentar (cupiditas experiendi) sem nenhum comprometimento
Atinge sobretudo o mundo da convivecircncia humana ldquoCuriosum genus ad cognoscendam
vitam alienam desidiosum ad corrigendam suam ndash uma raccedila curiosa para conhecer a
vida alheia indisposta para corrigir a suardquo
Aleacutem do studium sapientiae (estudo empenho da sabedoria) que constitui a
formaccedilatildeo filosoacutefica Agostinho considerava tambeacutem um outro niacutevel de formaccedilatildeo
propriamente cristatilde do homem a doctrina christiana que consistia no exerciacutecio da
inteligecircncia que aprofunda os dados da revelaccedilatildeo Seu programa inclui o estudo das
Escrituras Sagradas a exegese a exposiccedilatildeo especulativa da feacute a controveacutersia e a
apologeacutetica Os escritos de Agostinho voltados para este campo satildeo redigidos sobretudo
13 ldquoCoisa (o real) natildeo palavrasrdquo 14 Heidegger fez uma exposiccedilatildeo sobre a curiosidade em termos de hermenecircutica da facticidade e analiacutetica da existecircncia no sect 36 de Ser e Tempo 15 ldquoNatildeo ameis o mundo nem o que estaacute no mundo Se algueacutem ama o mundo o amor do Pai natildeo estaacute nele pois tudo o que estaacute no mundo ndash a concupiscecircncia da carne (epithymia thecircs sarkoacutes) a concupiscecircncia dos olhos (epithymia tocircn ophtalmocircn) e a confianccedila orgulhosa nos bens (alazoneacuteia tou biou) ndash natildeo vem do Pai mas vem do mundo Ora o mundo passa bem como sua concupiscecircncia mas o que faz a vontade de Deus permanece para semprerdquo (1 Jo 2 15-17) A concupiscecircncia da carne (concupiscentia carnis) na interpretaccedilatildeo de Agostinho eacute a a ldquolibidordquo a cobiccedila do prazer (cupiditas oblectandi) A concupiscecircncia ou cobiccedila dos olhos (concupiscentia oculorum) eacute a curiosidade o desejo de tudo ver e experimentar (cupiditas experiendi) sem comprometimento Talvez este fenocircmeno seja afim ao que Pascal em seus Pensamentos chama de ldquodivertissementrdquo A terceira forma de ldquotemptatiordquo (tentaccedilatildeo ser posto agrave prova) eacute a ldquoambitio saeculirdquo (ambiccedilatildeo do mundo) ou a jactacircncia (iactantia) que querer ser temido e amado pelos outros Heidegger fez uma interpretaccedilatildeo a partir da hermenecircutica da faticidade da exposiccedilatildeo desta triacuteplice tentaccedilatildeo humana em ldquoFenomenologia da Vida Religiosardquo (vol 60 das suas obras completas)
7
apoacutes assumir encargos eclesiaacutesticos Natildeo obstante nestes escritos ele natildeo deixa de
filosofar (cf por exemplo o tratado sobre a Trindade) A sapientia adquire agora para
ele outro sentido mais elevado e abrangente contemplativo-religioso sapientia est
contemplatio veritatis pacificans totum hominem et suscipiens similitudinem Dei16 Esta
sabedoria no entanto natildeo exclui antes inclui tanto o aspecto eacutetico do estudo quanto
o aspecto metafiacutesico isto eacute a cognitio intellectualis (conhecimento intelectual) de anima
(a respeito da alma) e de Deo (a respeito de Deus)
Aleacutem da sapientia que visa o que eacute imutaacutevel eterno Agostinho considera
tambeacutem a scientia que visa o que eacute temporal histoacuterico cognitio historica
(conhecimento histoacuterico) Ora a revelaccedilatildeo divina que se propotildee agrave feacute se manifesta na
histoacuteria ela se transmite de modo empiacuterico por um testemunho materializado por
palavras por um livro a Escritura Sagrada Surge daiacute a demanda de uma scientia que
seraacute a atividade da inteligecircncia que se aplica ao conhecimento do conteuacutedo da feacute No
livro XIV da obra De Trinitate (Da Trindade) Agostinho escreve
Natildeo atribuo agrave ciecircncia (scientia) o que quer que possa ser sabido pelos homens nas coisas humanas aqui onde haacute grande quantidade de supeacuterfluo de vaidade e de curiosidade nociva mas tatildeo somente aquilo que gera nutre defende e fortalece a feacute sobremaneira salutar que conduz agrave verdadeira beatitude (quo fides sabuberrima quae ad verae beatitudinem ducit gignitur nutritur defenditur roboratur) A maior parte dos fieacuteis natildeo possuem esta ciecircncia seja qual for de resto a intensidade da feacute deles Uma coisa com efeito eacute saber simplesmente aquilo que o homem deve crer para obter a beatitude eterna outra coisa eacute saber (scire) como aportar este mesmo conteuacutedo da feacute agraves almas pias e defender contra os iacutempios eacute a respeito deste segundo aspecto que depois de Satildeo Paulo (1 Cor 12 8) se deve propriamente reservar o vocaacutebulo ciecircncia
Agostinho lecirc poreacutem a Escritura em consonacircncia com a tradiccedilatildeo e com a
autoridade da Igreja17 No seacuteculo XII esta ciecircncia levaraacute o nome de ldquoSacra Paginardquo
(sagrada paacutegina) Abelardo mesmo apresentaraacute a sua siacutentese especulativa do conteuacutedo
16 A sapiecircncia eacute a contemplaccedilatildeo da verdade pacificando o homem todo e recebendo a semelhanccedila de Deus De Sermone Domini in Monte 1 3 17 A hermenecircutica protestante com o Sola Scriptura excluiraacute a tradiccedilatildeo e o ensinamento autoritativo da Igreja (magisteacuterio) como criteacuterios que acompanham a leitura das Escrituras Sagradas
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da feacute apenas como uma introduccedilatildeo agrave Sagrada Escritura Uma autonomia especulativa
da exposiccedilatildeo do conteuacutedo da feacute soacute aconteceraacute propriamente no seacuteculo XIII ndash eacute o
nascimento daquilo que noacutes hoje chamamos de ldquoteologiardquo Em Agostinho a exegese
biacuteblica e a exposiccedilatildeo dogmaacutetica especulativa se mesclam natildeo obstante hajam escritos
em que a exposiccedilatildeo dogmaacutetica e sistemaacutetica do conteuacutedo da feacute se potildeem em primeiro
plano O motivo poreacutem destas exposiccedilotildees estaacute quase sempre situado num contexto de
controveacutersia de polecircmica de apologeacutetica em torno do conteuacutedo da feacute Mas em
Agostinho toda discussatildeo dogmaacutetica toda controveacutersia e apologeacutetica natildeo visa outra
coisa que a defesa do conteuacutedo da feacute das Sagradas Escrituras
Uma obra fundamental para se entender a hermenecircutica em Agostinho eacute o ldquoDe
doctrina christianardquo (Da doutrina cristatilde) Apresentamos a seguir uma recensatildeo desta
escrito
Esta obra faz parte de uma seacuterie de obras exegeacuteticas do hiponense e parece
constituir-se numa espeacutecie de teoria da exegese contendo tambeacutem um livro sobre o
modo de se expor a Sagrada Escritura com eloquecircncia e sabedoria Ela comeccedilou a ser
escrita pouco depois de Agostinho se tornar bispo isto eacute pelo ano 397 Num primeiro
momento a obra foi publicada inacabada indo ateacute o capiacutetulo 25 nordm 35 do Livro III Mais
tarde ao revisar suas obras Agostinho se propotildee terminar esta e o faz natildeo soacute
completando o livro III como tambeacutem acrescentando o livro IV A conclusatildeo desta obra
teria se dado laacute pelo ano de 4267
A ldquoDoutrina Cristatilderdquo eacute composta de um proacutelogo e quatro livros No proacutelogo
Agostinho relata o objetivo da obra oferecer normas uacuteteis acerca da interpretaccedilatildeo das
Sagradas Escrituras agravequeles que se dedicam a este estudo Atraveacutes destas normas o
estudioso poderaacute esclarecer muitas obscuridades que as Escrituras encerram Em
seguida Agostinho usa da comparaccedilatildeo de algueacutem que mostra a outra a lua com o dedo
para refutar eventuais contestadores de seu esforccedilo Os primeiros satildeo aqueles que natildeo
entendem as regras Estes se comportam como as pessoas que nem sequer veem o
dedo devido ao fato de a acuidade se sua visatildeo ser muito deficiente Os segundos satildeo
os que entendem as regras mas natildeo conseguem aplica-las Estes fixam o olhar no dedo
mas natildeo se voltam para mirar a lua Um terceiro tipo de opositores seria daquelas
pessoas que acham poderem se dispensar de instruccedilatildeo junto a seres humanos na
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pretensatildeo de terem conquistado o dom da compreensatildeo das divinas Escrituras
diretamente de Deus A estes Agostinho procura mostrar que a proacutepria Sagrada
Escritura pressupotildee a convivialidade dos que ensinam e aprendem mesmo
considerando que tanto uns como outros fundamentalmente aprendem de Deus Em
terceiro lugar o dom de interpretar as Escrituras natildeo dispensa mas ao contraacuterio exige
o esforccedilo de aprender Perspicaacutecia interesse de ir agraves coisas mesmas e disposiccedilatildeo de
aprender satildeo atitudes que devem ter quem quer ler esta obra
O objeto temaacutetico de ldquoA doutrina cristatilderdquo eacute a ldquotractatio scripturarumrdquo ou seja o
modo de proceder no trato com as Escrituras Isto comporta uma dupla implicaccedilatildeo
aprender a maneira de se descobrir o que eacute para ser entendido e por outro lado
aprender a maneira de se expor com propriedade o que foi entendido Os trecircs primeiros
livros da obra se atecircm agrave maneira de descobrir e o quarto livro agrave maneira de expor
Toda doutrina ou ciecircncia versa sobre coisas e sinais Coisas eacute tudo o que natildeo estaacute
empregado para significar algum outro objeto Sinais eacute tudo o que se emprega para
significar alguma coisa aleacutem de si mesmo As coisas satildeo conhecidas por meio de sinais
Os sinais devem ser entendidos como sinais e natildeo como coisas isto eacute na sua funccedilatildeo de
sinalizar e natildeo no seu ocorrer meramente factual O primeiro livro iraacute tratar das coisas
elementares da Sagrada Escritura isto eacute aquelas realidades junto agraves quais se empenha
o esforccedilo da compreensatildeo O segundo livro trata dos sinais da Sagrada Escritura e do
modo de chegar ao significado mediante o rigor da interpretaccedilatildeo O terceiro livro se
ocupa em ensinar como resolver as ambiguidades nos textos que se devem interpretar
quer em sentido proacuteprio quer em sentido figurado O quarto livro iraacute indicar como expor
as coisas da Sagrada Escritura com eloquecircncia e sabedoria
O primeiro livro expotildee algumas concepccedilotildees fundamentais sobre a realidade do
real (o ser do ente ndash das ldquocoisasrdquo) As coisas no seu todo se dividem em duas grandes
categorias aquelas que satildeo para a fruiccedilatildeo e aquelas que satildeo para o uso (uti et frui)
ldquoFruir (frui) eacute estar ligado a uma coisa por amor a ela Usar (frui) eacute relacionar aquilo de
que se tem uso com a posse daquilo que se amardquo (1 4 4) Notemos que Agostinho pensa
a realidade do real em seu concernir agrave vida humana A vida humana consiste em
10
curare18 O uti (usar) eacute o cuidar que lida com aquilo que contribui para o viver O frui
(fruir) eacute gozar Por exemplo o belo que pertence agrave vigecircncia do ser eacute fruiacutedo A beata
vita (vida bem-aventurada feliz) eacute a do homem que goza do sumo bem (Deus) Eacute para
ser fruiacuteda aquela coisa que deleita por si mesma sem estar referida a outra coisa19 Eacute
para ser usada aquela coisa que eacute que eacute buscada desejada e que deleita por causa de
outra coisa As coisas temporais visiacuteveis satildeo para ser usadas As coisas eternas
invisiacuteveis para serem fruiacutedas O viacutecio a perversatildeo consiste em inverter esta ordem
querer fruir do que eacute para ser usado A virtude poreacutem consiste em fruir do que eacute para
ser fruiacutedo e usar do que eacute para ser usado20 A beatitude eacute a fruiccedilatildeo do sumo e imutaacutevel
bem a Trindade Deus eacute a beleza inteligiacutevel imutaacutevel inefaacutevel Toda a miacutestica medieval
iraacute visar a esta fruiccedilatildeo de Deus como o sumo bem como a suma beleza Na fruiccedilatildeo de
Deus o homem encontra o repouso a quietude (quies) Embora em tudo isso haja
elementos do pensamento grego (neoplatocircnico) no entanto a concepccedilatildeo da vida
humana e da realidade do real em Agostinho estaacute enraizada na compreensatildeo do Novo
Testamento Ele assim traz agrave fala em que consiste a ldquovita praesensrdquo (vida presente) do
cristatildeo eacute vida vivida ldquoin re laboris sed in spe quietis in carne vetustatis sed in fide
novitatisrdquo (no real do labor mas na esperanccedila do repouso na carne da velhice mas na
feacute da novidade) A esperanccedila precede A vida segue isso que a esperanccedila antecipa A
vida se realiza na direccedilatildeo daquilo que a esperanccedila antecipa21
Ainda no primeiro livro encontra-se uma exposiccedilatildeo do conteuacutedo da feacute a modo
de uma siacutentese dogmaacutetica fala da Trindade enquanto aquilo a que a aspiraccedilatildeo de
fruiccedilatildeo por parte do homem estaacute destinada Esta fala se articula em termos biacuteblicos e
tambeacutem em termos metafiacutesicos Trata-se de uma exposiccedilatildeo dogmaacutetico-metafiacutesica dos
misteacuterios e arcanos da feacute cristatilde Ao seu fundo poreacutem estaacute toda uma experiecircncia faacutetica
da vida22 Depois desta exposiccedilatildeo sobre a essecircncia da feacute cristatilde (os misteacuterios que nela satildeo
18 Curo curas curare curavi curatum Verbo transitivo ndash Sentido proacuteprio 1) cuidar olhar por tratar velar Daiacute 2) tratar curar 3) no contexto administrativo governar dirigir administrar 4) no contexto militar comandar 5) no contexto comercial fazer pagar 4) fazer por ter em conta de ter cuidado de 19 De civitate Dei (A cidade de Deus) XI 25 20 De Diversibus quaestionibus XXX 21 Cf Heidegger M Fenomenologia da Vida Religiosa p 258-260 22 A uacutenica ldquocoisardquo (o uacutenico real) a ser fruiacuteda eacute a Trindade Agostinho remete pois inicialmente ao Triuno Deus de quem por quem e para quem existem todas as coisas Os mesmos atributos divinos devem ser predicados de cada uma das pessoas da Trindade isto eacute do Pai do Filho e do Espiacuterito Santo Cada um deles eacute ele proacuteprio na plenitude de sua substacircncia O ser do Pai estaacute na Unidade o ser do Filho na
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cridos) Agostinho trata do ldquoethosrdquo do viver cristatildeo seguindo ainda pelo fio condutor
do ldquouti et fruirdquo (usar e fruir) O essencial do ethos cristatildeo eacute o duplo preceito do amor a
Deus e ao proacuteximo O ethos do viver cristatildeo se instaura segundo a ldquoOrdo dilectionisrdquo
(ordem da dileccedilatildeo ou do amor) A identidade do cristatildeo consiste no seu modo de amar23
Igualdade e o ser do Espiacuterito Santo na harmonia da unidade e da igualdade Natildeo obstante natildeo se trata de trecircs seres mas de um uacutenico Ser Agostinho estaacute ciente da limitaccedilatildeo do entendimento no vigor do silecircncio que se recolhe diante do misteacuterio divino do Deus uno e trino arcano fundamental da feacute cristatilde Deus eacute antes de tudo o inefaacutevel Quando a mente humana cogita acerca do misteacuterio divino que se doa ao se retrair ela busca captar uma realidade transcendental a mais proacutexima visto ser a mais iacutentima mais iacutentima a noacutes que noacutes mesmos e ao mesmo tempo a mais distante (inacessiacutevel justamente em virtude desta proximidade) Eacute esta realidade primeira que institui todo o real quer nas suas realizaccedilotildees sensiacuteveis quer nas inteligiacuteveis Percorrendo-se os diversos niacuteveis de constituiccedilatildeo da vida chega-se agravequela Vida que se define como Sabedoria imutaacutevel isto eacute sempre idecircntica consigo mesma O Deus vivo que eacute o Vivente por excelecircncia eacute o anseio mais profundo da alma humana Contemplaacute-lo e fruir da sua bondade e beleza eacute a beatitude do homem Contudo para que o homem possa chegar agrave visatildeo e fruiccedilatildeo de Deus eacute necessaacuteria a purificaccedilatildeo interior ao longo de sua vida que aparece como um caminho uma viagem uma travessia de retorno agrave paacutetria Esta purificaccedilatildeo se daacute mediante o bom empenho os bons desejos e os costumes No entanto natildeo podemos ir agrave Sabedoria se ela natildeo se dispotildee a vir a noacutes adaptando-se agrave fraqueza dede nossa condiccedilatildeo carnal isto eacute finita fraacutegil decadente mortal No entanto esta Sabedoria que se encarna na realidade da vida faacutetica humana foi rejeitada por muitos como fraqueza e loucura Eacute o misteacuterio da keacutenosis (esvaziamento) do rebaixamento do Filho de Deus o Verbo que se fez carne e atendou entre os homens Mas eacute justamente por esta fraqueza e loucura divina manifestada na encarnaccedilatildeo e na paixatildeo do Verbo humanado Jesus Cristo que acontece a redenccedilatildeo isto eacute a libertaccedilatildeo e a salvaccedilatildeo de todos os homens Nele a Sabedoria cura o homem impregnado de fraqueza e mergulhado na loucura O homem usou mal do dom da imortalidade e caiu na morte Cristo usou bem de nossa mortalidade e isso devolveu ao homem o acesso agrave plenitude da vida Atraveacutes dos misteacuterios da vida de Cristo isto eacute dos misteacuterios de sua encarnaccedilatildeo de sua paixatildeo e tambeacutem de sua ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo com o consequente envio do Espiacuterito Santo os homens satildeo fortalecidos na feacute e avivados no conhecimento Nestes misteacuterios os que creem consideram o quatildeo livremente Cristo deu sua vida pelos homens ele que possuiacutea o poder de retomaacute-la Aqueles que favorecidos pela graccedila da redenccedilatildeo creram no Filho de Deus encarnado e crucificado como Senhor (o Ressuscitado) formam um soacute corpo constituindo deste modo a realidade da Igreja Esta eacute a esposa de Cristo Atraveacutes dos sacramentos ela se purifica para vir se unir ao Esposo Cristo Jesus na eternidade apresentando-se diante dele sem manchas nem rugas Eacute no interior desta Igreja que os homens satildeo gerados para a semelhanccedila com Cristo e recebem o perdatildeo dos pecados (batismo) Desta mesma Igreja recebem a feacute na ressurreiccedilatildeo do corpo e na vida eterna Estes misteacuterios e arcanos cristatildeos satildeo acolhidos pelo homem que estaacute a caminho da paacutetria (a vida eterna) Neste caminho o crente sempre de novo morre para o mundo e vive para Deus Verdade e Vida 23 O homem haacute de amar a Deus por causa dele proacuteprio As criaturas em contrapartida satildeo amadas agrave medida que ajudam o homem a crescer no amor de Deus O amor a si mesmo e ao proacuteprio corpo eacute uma lei natural e por isso natildeo requer nenhum preceito (mandamento) Mas o amor ao que estaacute ao seu lado (o proacuteximo) e o amor ao que estaacute acima dele (Deus) requer preceito Haacute no entanto um falso e um verdadeiro amor de si proacuteprio O verdadeiro amor de si consiste em buscar o que eacute uacutetil e salutar para si mesmo crescendo na caridade (o amor gratuito a Deus e ao proacuteximo) O falso amor de si consiste em submeter o proacuteximo e o proacuteprio corpo a fim de fruir deles Quanto ao amor ao proacuteprio corpo Agostinho relembra a citaccedilatildeo do Apoacutestolo (Paulo) que diz ldquoningueacutem jamais quis mal agrave sua proacutepria carnerdquo (Ef 5 29) Mesmo os que reconhecem sadiamente a necessidade da ascese fazem-no para submeter o corpo ao espiacuterito segundo a ordem da natureza buscando assim a paz e a harmonia O preceito da caridade eacute duplo exige o amor a Deus acima de tudo e o amor ao proacuteximo como a si mesmo A partir do duplo amor natural e do duplo preceito da caridade descobre a ldquoOrdo Dilectionisrdquo (ordem da dileccedilatildeo isto eacute do amor) Ordem implica numa estruturaccedilatildeo em niacuteveis neste caso em niacuteveis de dignidade A ordenaccedilatildeo do amor eacute instaurada quando o homem ama o que deve ser amado (o bem) e natildeo ama o que natildeo deve ser amado (o mal o viacutecio o pecado) Depois quando o homem ama menos o que eacute menos digno de amor (o corpo)
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O amor (dilectio caritas) eacute o princiacutepio que rege toda a vida humana na perspectiva da
feacute cristatilde24 O duplo preceito do amor (a Deus e ao proacuteximo) eacute aqui a norma universal e
primordial que rege toda a ordem do viver O amor a Deus acima de tudo e o amor ao
proacuteximo eacute a essecircncia a substacircncia da revelaccedilatildeo divina (ldquoa Lei e os Profetasrdquo) que foi
radicalizada e consumada em Jesus Cristo no seu novo e eterno testamento
(testemunho) Daiacute se segue que a edificaccedilatildeo da caridade eacute a norma reacutegia e suprema de
toda a interpretaccedilatildeo das Sagradas Escrituras25 Para o homem que atingiu a perfeiccedilatildeo
do amor (caridade perfeita) as Sagradas Escrituras deixam de ser necessaacuterias uma vez
que toda a finalidade delas eacute levar o homem agrave perfeiccedilatildeo do amor (caridade perfeita)
Deste modo as Escrituras Sagradas requerem um leitor que entenda que o fim de tudo
o que ali estaacute escrito eacute a caridade perfeita consumada que aparece concreta e
historicamente em Jesus Cristo o Deus encarnado (humanado) e crucificado A feacute e a
esperanccedila satildeo outras duas virtudes que ajudam o homem a crescer e se perfazer na
perfeiccedilatildeo da caridade no seguimento de Jesus Cristo O essencial do ser cristatildeo se
encontra neste seguimento
Depois quando ama igualmente o que eacute igualmente digno de amor (o proacuteximo) Por fim quando ama absolutamente o que eacute absolutamente digno de ser amado (Deus) Ao amor de Deus assim deve se subordinar e convergir todo amor pela criatura O preceito do amor aleacutem disso comporta universalidade isto eacute ningueacutem eacute dele excluiacutedo A boa vontade do amor se estende a todos mesmo ao inimigo O amor de Deus pelo homem eacute gratuito visto que Deus natildeo precisa do homem mas se basta a si mesmo Seu amor eacute pura gratuita absoluta bondade O grau de perfeiccedilatildeo de um homem depende do grau de perfeiccedilatildeo e da universalidade de seu amor O ser do homem se determina pelo seu amor O homem eacute o que ele ama e como ele ama Ele cresce no ser se cresce na perfeiccedilatildeo (e na universalidade) do amor Ele diminui no ser se decresce na capacidade de amar O homem pode encontrar deleite nos outros homens quando estes o ajudam a crescer no amor a Deus Eacute quando se ama e se gosta do outro em Deus Os homens podem e devem constituir uma fraternidade no amor ajudando-se mutuamente a prosseguir seu itineraacuterio para Deus Nenhuma homem pode se considerar fim absoluto do amor do outro Ele natildeo eacute o destinataacuterio uacuteltimo do amor do outro Eacute apenas companheiro na viagem da vida e como tal haacute de ser amado Neste itineraacuterio para Deus Cristo eacute o caminho a verdade e a vida isto eacute ele eacute aquele por quem o homem vai aquele a quem o homem alcanccedila e em quem ele permanece no amor 24 Cf Arendt Hanna O conceito de amor em Santo Agostinho Ensaio de interpretaccedilatildeo filosoacutefica Lisboa Instituto Piaget 1997 25 Para o ldquohomo viatorrdquo (homem a caminho) a feacute nas Escrituras fortalece a feacute a esperanccedila e a caridade Nestas trecircs virtudes teologais se encerram e se subsumem toda a ciecircncia e toda a profecia A caridade permanece para sempre enquanto que a feacute e a esperanccedila se extinguem quando o homem chega a seu destino (a Paacutetria o Reino dos Ceacuteus) A caridade visa um bem eterno Se os bens temporais satildeo amados antes de serem possuiacutedos pois ao serem conquistados natildeo saciam a alma na sua sede do absoluto bem o bem eterno eacute o que eacute amado com tanto mais ardor ao ser possuiacutedo do que fora ao ser desejado pois a ningueacutem que a deseja a beatitude concedida eacute menor do que a desejada
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O livro II eacute um verdadeiro tratado de semiologia26 Todo o pensamento a respeito
da linguagem do ocidente se baseia no triacircngulo semioacutetico signo conceito coisa A base
desta concepccedilatildeo de Aristoacuteteles Ela eacute exposta no ὶ ἑί (perigrave hermeneiacuteas)
ldquoDe interpretationerdquo (16a 3-8)
Satildeo pois aquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz siacutembolos das paixotildees (afecccedilotildees disposiccedilotildees) na alma e as coisas que satildeo escritas satildeo siacutembolos daquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz E assim como as coisas escritas natildeo satildeo as mesmas para todos do mesmo modo tambeacutem os sons da voz natildeo satildeo os mesmos Aquelas coisas de que isso (coisas escritas e sons da voz) satildeo primordialmente signos (coisas que mostram) satildeo para todos (os homens) as mesmas paixotildees da alma e as coisas das quais estas (paixotildees da alma) formam apresentaccedilotildees assemelhadas satildeo igualmente as mesmas27
O texto de Aristoacuteteles se manteacutem numa fala esclarecida e soacutebria que torna
visiacutevel a claacutessica estruturaccedilatildeo que abriga a linguagem como discurso ou fala As letras
do alfabeto28 mostram os fonemas29 Os fonemas mostram as disposiccedilotildees na alma30 As
disposiccedilotildees na alma mostram as coisas que que lhe con-cernem31 O mostrar configura
e sustenta as escoras dessa construccedilatildeo De maneira variada o mostrar conduz algo para
um aparecer deixando assim apreender o que aparece e permitindo que se discuta o
que se apreende
26 A semiologia (ou semioacutetica) eacute a ciecircncia dos signos Como os signos verbais tecircm na vida humana um papel de primeiro plano a semiologia se concentrou em grande parte na linguagem Haacute uma semiologia nas especulaccedilotildees linguiacutestica da antiguidade entre os modistas da Idade Meacutedia etc Mas o nome ldquosemioacuteticardquo surge na modernidade com Locke Torna-se poreacutem uma disciplina independente na obra do filoacutesofo americano Charles Sanders Peirce (1839-1914) 27 A traduccedilatildeo entende os σημεῖα (semeia ndash os signos aquelas coisas que mostram) os σύμβολα (symbola - os siacutembolos ndash o que eacute lanccedilado junto e nessa junccedilatildeo deixa e faz com que um se atenha ao outro) e os ὁμοιώματα (homoioacutemata ndash as apresentaccedilotildees assemelhadas as semelhanccedilas) como um mostrar no sentido de deixar aparecer o que por sua vez encontra-se no acircmbito do desencobrimento (αλήθεια ndash aleacutetheia) 28 τὰ γραφόμενα ndash taacute graphoacutemena 29 τὰ ἐν τῇ φωνῇ - taacute en te phoneacute 30 παθήματα τῆς ψυχῆς ndash patheacutemata tecircs psykhecircs 31 πράγματα - praacutegmata
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Antes de nos apropriarmos da semiologia de Agostinho tentemos aqui uma
consideraccedilatildeo fenomenoloacutegica sobre o sinal e a linguagem
O falar acontece por mor do dizer Dizer eacute mostrar O falar enquanto dizer se
realiza como um discurso mostrador loacutegos apophaacutentikoacutes32 O falar estaacute a serviccedilo do
dizer Dizer eacute mostrar no sentido de deixar e fazer ver a quem se fala aquilo de que se
fala Dizer eacute dar algo a compreender eacute fazer-se compreender sobre algo a quem escuta
O mostrar no falar acontece como um conceder acenos dar indiacutecios oferecer
indicaccedilotildees oferecer sinais33 Mas tudo isso acontece no sentido de um anunciar que se
cumpre como um revelar um divulgar um mencionar (fazer menccedilatildeo de referir relatar
expor narrar) um lembrar um recordar e um comemorar O anunciar eacute entendido pois
pelos gregos como um mostrar deiknymi34 O sinal eacute uma referecircncia uma remissatildeo O
remeter proacuteprio do sinal consiste em mostrar O mostrar do sinal se funda na referecircncia
na remissatildeo Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo No entanto
Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo eacute uma referecircncia Toda lsquoaccedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma referecircncia mas nem toda referecircncia mostra Com isso tambeacutem se diz toda accedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo mostra Assim aparece o caraacuteter formal e geral da relaccedilatildeo Para se investigar os fenocircmenos de referecircncia sinal e significado de nada adianta caracterizaacute-los como relaccedilatildeo Deve-se em uacuteltima instacircncia mostrar que a proacutepria lsquorelaccedilatildeorsquo devido a seu
32 O loacutegos eacute um reunir e um recolher (leacutegein) que potildee expotildee e depotildee abre e manifesta traz ao desencobrimento agrave revelaccedilatildeo Como abrir e manifestar leacutegein estaacute em contraste com krypto cobrir encobrir esconder ocultar no sentido de guardar Conhecemos um fragmento de Heraacuteclito (fr 93) que traz este contraste Ele diz Ho aacutenax hou tograve manteion esti tograve en Delphois oute leacutegei oute kryptei allagrave semainei ndash O Autor de quem eacute o oraacuteculo de Delfos natildeo traz ao desencobrimento nem encobre mas acena 33 Semainein eacute um conceder semata (acenos indiacutecios indicaccedilotildees) A palavra grega no singular eacute ldquosemardquo indiacutecio vestiacutegio marca distintiva senha sinal ldquoSemardquo eacute tambeacutem pressaacutegio auguacuterio auspiacutecio Eacute ainda o astro ou uma constelaccedilatildeo da qual se tiram indicaccedilotildees na orientaccedilatildeo concernente ao ceacuteu Eacute por fim o tuacutemulo a tumba 34 Da mesma raiz de ldquodeiknymirdquo (mostrar) eacute o verbo latino ldquodicererdquo dizer Dizer eacute mostrar isto eacute deixar e fazer ver trazer agrave evidecircncia alguma coisa O sinal pois no falar precisa ser entendido na dinacircmica do dizer isto eacute do mostrar
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caraacuteter formal geral tem sua origem ontoloacutegica numa referecircncia35
Haacute uma multiplicidade de sinais anuacutencios prenuacutencios vestiacutegios marcas
distintivos cuja accedilatildeo de mostrar difere a cada caso Satildeo sinais diferentes o rastro o
resto o monumento o documento o testemunho o siacutembolo a expressatildeo a
manifestaccedilatildeo a significaccedilatildeo O sinal tem a sua serventia no mostrar no sentido de fazer
sobressair de dar na vista salientar fazer reparar estranhar alguma coisa Aquilo que
normalmente natildeo causa surpresa eacute ressaltado pelo sinal O sinal permite a descoberta
de alguma coisa
O mundo eacute o ldquoonderdquo das descobertas O homem se orienta se dirige se
direciona em seus comportamentos com as coisas com os entes agrave matildeo a partir de uma
familiaridade com o mundo A abertura de mundo se daacute como compreensatildeo Trata-se
poreacutem de uma compreensatildeo operativa natildeo teoacuterica Compreender significa aqui reunir
as remissotildees recolher as referecircncias O caraacuteter de remissatildeo das remissotildees das
referecircncias eacute o que se chama de significar Significar (be-deuten) eacute aqui mostrar
(deuten) no sentido de pocircr a caminho um clarear um esclarecer Eacute o processo e o
movimento de estruturaccedilatildeo do mundo Significar eacute aqui oferecer alguma coisa para a
compreensatildeo e para a interpretaccedilatildeo Significacircncia (Bedeutsamkeit) eacute o todo das
remissotildees do acontecimento e do processo do significar que eacute a estruturaccedilatildeo de
mundo Noacutes nos encontramos a noacutes mesmos jaacute sempre no mundo entendendo o mundo
antes de tudo como uma totalidade de significacircncias Eacute um encontrar-se a si mesmo
sempre numa situaccedilatildeo de ocupaccedilatildeo e preocupaccedilatildeo de cuidado com o proacuteprio ser-no-
mundo Tudo aquilo com que podemos nos relacionar e comportar tem este caraacuteter
estaacute aiacute e eacute encontrado no caminho do cuidado eacute experimentado como significativo a
partir de um determinado cuidado Significacircncia indica este modo fundamental como
algo segundo o seu teor proacuteprio eacute encontrado na vida como ele se deteacutem e se reteacutem
no meio do mundo da vida
Soacute acontece linguagem onde noacutes falamos uns com os outros A linguagem
acontece de iniacutecio e na maior parte das vezes na conversa com suas falas e seus
silecircncios Para noacutes isto eacute na ordem da nossa experiecircncia cotidiana a primeira
35 Heidegger M Ser e Tempo sect 17
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dimensatildeo pois da linguagem eacute a fala o discurso O discurso traz agrave fala uma
compreensatildeo Chamamos de sentido o que pode ser articulado O sentido eacute o que torna
compreensiacutevel algo enquanto algo Compreender eacute fundamentalmente apreender algo
enquanto algo Tudo que apreendemos se mostra a si mesmo como isso ou aquilo Isso
quer dizer noacutes aprendemos cada coisa em sua significacircncia A percepccedilatildeo natural em
que noacutes vivemos cotidianamente jaacute eacute sempre uma compreensatildeo uma captaccedilatildeo da coisa
como esta coisa do sapato como sapato do livro como livro do reloacutegio como reloacutegio
Natildeo eacute assim que eu primeiro apreendo uma coisa na sua nua e crua factualidade e
depois lhe atribuo este ou aquele significado Cada vez eu apreendo uma coisa como
tal coisa isto eacute eu apreendo a coisa dentro de uma determinada significacircncia36
A coisa que me vem ao encontro dentro do mundo se mostra como isto ou
aquilo37 Ela instaura um conjunto de referecircncias ela remete a isto ou aquilo ela soa
desta ou daquela maneira em meu mundo ela fala disto ou daquilo em minha vida A
coisa significa a si mesma Mas o seu poder significar a si mesma soacute eacute possiacutevel porque
ela jaacute eacute descoberta como coisa que vem ao encontro dentro do mundo isto eacute dentro de
uma totalidade de sentido Que a coisa se faccedila encontrar e descobrir deste ou daquele
modo e que ela se decirc a compreender como isto ou aquilo ndash isto soacute eacute possiacutevel porque ao
apreendecirc-la numa percepccedilatildeo concreta um mundo jaacute se me abriu Com a coisa se
anuncia o mundo da vida ou melhor os mundos da vida o mundo circunstante o
mundo partilhado da convivecircncia o mundo proacuteprio pessoal A coisa soacute pode ser
apreendida na sua significacircncia a partir da abertura do mundo ou dos mundos
Perceber eacute jaacute compreender as coisas na sua significacircncia Perceber eacute estruturar
e configurar o mundo como estrutura significativa Em toda percepccedilatildeo atua pois um
ato fundamental de significaccedilatildeo Chamamos de significar o ato pelo qual o homem
estrutura a significacircncia das coisas no horizonte do mundo enquanto totalidade
significativa Da compreensatildeo que articula a significaccedilatildeo das coisas numa totalidade
sentido brota a possibilidade da interpretaccedilatildeo Pela compreensatildeo o homem estaacute
sempre se projetando abrindo lances de perspectivas entrevendo de antematildeo
36 Cfr M HEIDEGGER GP 102-110 37 Cfr M HEIDEGGER Ontologie (Hermeneutik der Faktizitaumlt) (OHF) Gesamtausgabe ndash Band 63 Vittorio Klostermann Frankfurt am Main 1995 p 93-104
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aberturas de possibilidades Pela compreensatildeo o homem opera um ver que eacute projetivo
e criativo de possibilidades de ser Esse ver projetivo e criativo configura isto eacute elabora
em formas significativas essas possibilidades de ser Agrave elaboraccedilatildeo e exposiccedilatildeo dessas
formas chamamos de interpretaccedilatildeo Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo se apropria do
que compreende Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo busca chegar a uma maturaccedilatildeo
isto eacute busca maturar as possibilidades de ser que ela jaacute entreviu A interpretaccedilatildeo eacute uma
explicitaccedilatildeo da compreensatildeo O que entra como componente da explicitaccedilatildeo possui o
caraacuteter de significacircncia eacute o mostrar-se de algo como algo Em todo o nosso
comportamento noacutes jaacute estamos sempre compreendendo e interpretando apreendendo
algo como algo e referindo algo a algo articulando significados numa totalidade de
sentido que eacute o mundo O homem sempre interpreta Pois interpretar eacute ser homem
A articulaccedilatildeo dos significados numa totalidade de sentido se daacute atraveacutes do falar
quer do falar de si consigo mesmo quer do falar uns com os outros Na fala noacutes
pronunciamos o que compreendemos e como interpretamos o que estaacute em questatildeo Pro-
nunciar eacute pro-ferir isto eacute trazer agrave luz ao aberto do mundo da convivecircncia aquilo que
compreendemos e interpretamos Pelo discurso vecircm agrave fala os entes e o ser dos entes
tais como se oferecem agrave nossa compreensatildeo e interpretaccedilatildeo Vem agrave fala agrave medida que
se articulam num horizonte de compreensibilidade que noacutes chamamos de sentido O
sentido eacute o que se articula na compreensatildeo e interpretaccedilatildeo como horizonte daquilo que
compreendemos e interpretamos Todo discurso eacute o pronunciar o vir agrave fala daquilo que
compreendemos e interpretamos dos significados das coisas agrave luz do sentido de ser que
noacutes lhes damos
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Os medievais iratildeo precisar e aprofundar a concepccedilatildeo de signo Assim para
Tomaacutes de Aquino o signum eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro
A palavra proferida exteriormente pela voz eacute a fala A fala eacute proferida a modo de uma
voz articulada significativa Nem todo o som eacute voz A voz enquanto haacutelito sopro som
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que sai da boca com efeito soacute chega a ser palavra quando eacute significativa38 Sem a
significaccedilatildeo (significatio) uma voz natildeo eacute palavra A significaccedilatildeo torna a voz uma
expressatildeo do pensamento39 Por isso somente um vivente inteligente (animal rationale)
tem voz enquanto palavra40 Um vivente melhor um animal emite sons para se
comunicar Mas os seus sons natildeo satildeo vozes articuladas significativas Os gritos os
alaridos de animais natildeo satildeo palavras Sua comunicaccedilatildeo natildeo eacute fala O berrar de um
bezerro o mugir de uma vaca o balar de uma ovelha o balir de um cordeiro o arrulhar
de uma pomba o latir de um catildeo o miar de um gato ndash tudo isso natildeo eacute fala Seus sons
natildeo satildeo vozes significativas Indicam alguma coisa Mas o seu indicar natildeo tem o sentido
de significar alguma coisa Significar eacute dar a conhecer algo como algo a algueacutem41 Fumaccedila
indica fogo Bandeira branca indica rendiccedilatildeo Indicar poreacutem natildeo eacute significar Todo
significar eacute um indicar mas nem todo indicar eacute significar Significar eacute dar a conhecer no
sentido de dar a compreender algo como algo A fala daacute a conhecer alguma coisa Ela
faz-se notar e faz notar alguma coisa A fala eacute um fazer notar que daacute a conhecer alguma
coisa42 A fala faz notar daacute a conhecer isto eacute gera uma ldquonotiordquo ou uma ldquonotitiardquo
(conhecimento noccedilatildeo sentido)43 Notar quer dizer aqui dirigir-se a alguma coisa
orientando-se no mundo (intencionalidade) tornando-se atento a ela ao seu ser
Joatildeo Duns Scotus iraacute retomar o triacircngulo semioacutetico do Peri hermeneiacuteas de
Aristoacuteteles Ele questiona sobre a distinccedilatildeo de litteras et voces (letras e vozes) de um
lado passiones (disposiccedilotildees da alma) e res (coisa) de outro lado na quarta das questotildees
sobre o primeiro livro do ldquoPerigrave hermeneiasrdquo e conclui pela sua conveniecircncia As
disposiccedilotildees da alma (significaccedilatildeo e sentido) satildeo as mesmas em todos bem como as
coisas que elas significam enquanto as letras e vozes satildeo diferentes dependendo da
liacutengua Com outras palavras as letras e vozes que satildeo diferentes de liacutengua para liacutengua
38 ldquoVox quae non est significativa verbum dici non potestrdquo (A voz que natildeo eacute significativa natildeo pode ser dita palavra) ndash Tomaacutes de Aquino op Cit (I341) 39 ldquoLocutio est proprium opus rationis (I913 ad 3) falar -diz Tomaacutes- eacute operaccedilatildeo proacutepria da razatildeo 40 Agrave base desta concepccedilatildeo estaacute a concepccedilatildeo grega do homem aacutenthropos como zoon logon echon (vivente que tem linguagem) Nesta traduccedilatildeo o loacutegos eacute tanto ratio (pensamento) quanto oratio (fala no sentido de discurso) 41 Em Tomaacutes no acircmbito da vox situa-se a palavra (verbum) A palavra eacute uma realizaccedilatildeo especial do signo (signum) que por sua vez eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro (III604) 42 Cfr Heidegger M Vom Wesen der Sprache Die Metaphysik der Sprache und die Wesung des Wortes - Zu Herders Abhandlung ldquoUumlber den Ursprung der Spracherdquo Gesammtausgabe Band 85 p 3-4 43 Cfr idem p 20
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satildeo sinais instituiacutedos pelo arbiacutetrio humano que representam as disposiccedilotildees da alma (no
caso significaccedilatildeo e sentido) que por sua vez satildeo sinais naturais representativos das
coisas44
As expressotildees orais ou escritas satildeo formas linguiacutesticas dotadas de significaccedilotildees e
de sentido Sentidos e significaccedilotildees que satildeo pensados vecircm agrave expressatildeo Eles satildeo
exprimiacuteveis atraveacutes de formaccedilotildees linguiacutesticas Uma coisa eacute a forma linguiacutestica da
expressatildeo o complexo graacutefico ou focircnico ou como dizem os medievais as voces (vozes)
Outra coisa eacute o conteuacutedo da expressatildeo a significaccedilatildeo o sentido no juiacutezo e no
entrelaccedilamento de juiacutezos (conclusatildeo silogismo) O conteuacutedo eacute um ldquosignificatumrdquo que
estaacute intencionalmente ldquoin menterdquo45
A voz se torna expressatildeo agrave medida que eacute dotada de significaccedilotildees e de sentido
Assim a proposiccedilatildeo enquanto sequecircncia de palavras eacute singular Mas o conteuacutedo da
proposiccedilatildeo o juiacutezo ora eacute singular se o predicado eacute dito de um soacute ou universal se o
predicado eacute dito de muitos A proposiccedilatildeo como uma sequecircncia de palavras natildeo eacute
verdadeira ou falsa Ela eacute ou natildeo eacute Eacute falada ou escrita Mas natildeo eacute verdadeira ou falsa O
sentido da proposiccedilatildeo o juiacutezo eacute que eacute verdadeiro ou falso natildeo poreacutem enquanto
simples conteuacutedo da proposiccedilatildeo mas soacute agrave medida que ele tem um valor objetivaacutevel um
valor de conhecimento objetivo46 Proposiccedilatildeo e sentido palavra e significaccedilatildeo
pertencem a acircmbitos de realidade diversos Os elementos linguiacutesticos que constituem
proposiccedilatildeo e palavra satildeo sensivelmente perceptiacuteveis (satildeo acuacutesticos visuais motores)
satildeo reais e temporais Jaacute as significaccedilotildees e o sentido se subtraem a uma percepccedilatildeo
sensorial e satildeo atemporais O elemento linguiacutestico de uma expressatildeo eacute um signum ad
44 Cfr Quaestiones in I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 7) ldquoAd quaestionem dicendum quod differentia est conveniens quia passiones inquanto sunt signa et res inquanto sunt significata sunt eandem apud omnes nam eadem passio in anima apud quoscumque concipientes repraesentat eamdem rem quia eadem similitudo in anima semper est eiusdem repraesentativa sicut est similitudo sensibilis in sensu litterae et voces in se eaedem non sunt eaedem apud omnes inquanto sunt signa quia nec eadem littera apud omnes repraesentat eamdem vocem sed vel aliam vel nullam nec eadem vox apud omnes significat eamdem passionem sed vel aliam vel nullamrdquo (SCOTUS 1998 p 918) 45 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 12) ldquoAd quaestionem dici potest quod iste liber non est de decem vocibus ut de primo subiecto ndash nec aliqua pars logicae est de voce quia omnes passiones syllogismi et omnium partium eius possunt sibi inesse secundum esse quod habent in mente etsi non proferantur () sed est de aliquo priore quod respectu voces significativae tantum habet rationem significatirdquo (SCOTUS 1998 p 652) 46 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 22) ldquoSimiliter lsquosignificare verum vel falsumrsquo convenit enuntiationi sed non ut vox est significans conceptum sed ut conceptus significat remrdquo (SCOTUS 1998 p 653)
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placitum um signo instituiacutedo conforme o agrado ou o arbiacutetrio de quem o usa47 As
significaccedilotildees e os sentidos poreacutem se subtraem ao arbiacutetrio daquele que pensa por ter
a sua proacutepria necessidade ideal ou objetiva
A forma linguiacutestica eacute signo da significaccedilatildeo que por sua vez eacute signo de algo de
objetual de alguma objetualidade (objetos estados-de-coisas notas distintivas formas
reais ou categoriais) Trata-se do triacircngulo semioacutetico que constitui a base da
consideraccedilatildeo sobre a linguagem em toda a tradiccedilatildeo ocidental e que vem de Aristoacuteteles
Para Duns Scotus palavra e proposiccedilatildeo enquanto formaccedilotildees linguiacutesticas
dotadas de significaccedilatildeo e de sentido apontam para a esfera objetual A formaccedilatildeo
linguiacutestica eacute sinal da significaccedilatildeo e do sentido que eacute por sua vez sinal do objeto Enfim
palavra e proposiccedilatildeo satildeo sinais das coisas ldquoQuidquid est signum signi est signum
signatirdquo ndash o que quer que seja sinal do sinal eacute sinal do assinalado48 Assim palavra e
proposiccedilatildeo se tornam sinais das objetualidades agraves quais se referem No entendimento
de Duns Scotus o conceito eacute o que eacute designado imediatamente o objeto eacute o que eacute
designado mediatamente pela expressatildeo O doutor sutil esclarece que significare eacute dare
intelligere dar a compreender49 O signo eacute algo de relacional possui um caraacuteter ou uma
funccedilatildeo remissiva O signo graccedilas a sua funccedilatildeo remissiva eacute o fundamento material de
que parte o conhecimento do designado A expressatildeo linguiacutestica poreacutem natildeo eacute somente
um signo que remete ou se refere a algo Ele eacute um signo que significa algo ou seja que
daacute a compreender algo ou algo de algo e que ademais se refere a objetualidades
visando dizer ou seja mostrar o que se mostra e como se mostra50
47 Cfr Quaestiones super I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 14) ldquo et instrumenta naturalia formandi vocem potest homo aliqua imponere quae sunt signa ad placitum et non naturalia sive conceptusrdquo (SCOTUS 1998 p 919) 48 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 28 n 28) ldquo lsquoQuidquid est signum signi est signum signatirsquo ita quod signum intermedium non varietur in comparatione ad primum signum et ultimum signatumrdquo (SCOTUS 1998 p 751) 49 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 8 n 1) ldquoQuia significare est intellectum constituererdquo (SCOTUS 1998 p 679) 50 Assim para Husserl a expressatildeo que funde numa unidade a manifestaccedilatildeo sensiacutevel a significaccedilatildeo e a referecircncia ao objeto estaacute ordenada tanto a um valor de conhecimento quanto a um valor de verdade Agrave expressatildeo corresponde ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo se constitui uma relaccedilatildeo com o objeto Triacuteplice eacute o conteuacutedo de uma expressatildeo a significaccedilatildeo a referecircncia ao objeto e por fim o preenchimento de sentido A expressatildeo pela significaccedilatildeo e pela referecircncia ao objeto daacute a compreender alguma coisa acerca de algo O preenchimento da intenccedilatildeo signitiva vazia no modo da confirmaccedilatildeo da documentaccedilatildeo intuitiva leva por sua vez agrave experiecircncia da verdade Para Husserl expressotildees satildeo signos significativos distintos dos signos indicativos Numa descriccedilatildeo fenomenoloacutegica da expressatildeo dotada de sentido se
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No De dialectica (Da dialeacutetica) Agostinho define a palavra como um sinal de
alguma coisa que proferido por quem fala pode ser compreendido por quem escuta (De
Dialectica 5) 51 Nesta definiccedilatildeo podemos perceber as vaacuterias dimensotildees do exerciacutecio
humano da linguagem a da comunicaccedilatildeo em que homens falam uns com os outros
compartilhando suas vidas e coparticipando de um mesmo mundo a da expressatildeo em
que homens se pronunciam a partir de seu ser num mundo comum o discurso pelo
qual homens falam uns com os outros e escutam uns aos outros a compreensatildeo e
interpretaccedilatildeo em que homens ouvindo uns aos outros recebem a mensagem e se
apropriam de seu sentido Como ponta do ldquoicebergrdquo de toda esta vitalidade do concurso
comunicativo e do discurso temos o sinal que eacute proferido por quem fala o som da boca
a voz que longe de ser um mero ruiacutedo eacute um sinal um signo e se sinal eacute sinal de
alguma coisa ou seja algo vem a ser significado por este signo ou sinal
podem evidenciar trecircs momentos que no entanto formam uma unidade intimamente fundida a apariccedilatildeo fiacutesica da expressatildeo o ato doador de sentido e o ato preenchedor de sentido Assim palavras e proposiccedilotildees satildeo sons articulados animados de sentido Agraves expressotildees satildeo essenciais os atos que conferem a significaccedilatildeo respectivamente as intenccedilotildees de significaccedilatildeo A estes atos se acrescentam de modo extra-essencial os atos que preenchem as significaccedilotildees confirmando reforccedilando ilustrando as intenccedilotildees de significaccedilatildeo Para que o signo se torne expressatildeo eacute preciso que lhe seja imposto uma significaccedilatildeo Husserl fala de emprestar significaccedilatildeo de conferir sentido Expressotildees satildeo unidades de signos e designados (sinais e assinalados) de espeacutecie bem peculiar Expressotildees satildeo sinais significativos A significaccedilatildeo adere ao ato significativo Com a expressatildeo que suscita o ato que confere o sentido nos orientamos ao objeto Agrave expressatildeo compete ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo eacute que se constitui a relaccedilatildeo com o objeto ldquoToda e qualquer expressatildeo natildeo quer apenas dizer qualquer coisa mas tambeacutem diz algo acerca de qualquer coisa ela natildeo tem apenas a sua significaccedilatildeo mas refere-se tambeacutem a quaisquer objetosrdquo (HUSSERL 2012 p 38 ndash grifo de Husserl) Assim significaccedilatildeo e referecircncia objetiva se distinguem Expressotildees podem ter a mesma significaccedilatildeo mas objetos diferentes por um lado e por outro podem ter significaccedilotildees diferentes mas o mesmo objeto Assim considerando dois enunciados ldquoeste sendeiro eacute um cavalordquo e ldquoBuceacutefalo eacute um cavalordquo a expressatildeo um cavalo tem a mesma significaccedilatildeo mas os objetos satildeo diferentes Por sua vez dois nomes podem significar coisas diferentes mas nomear o mesmo como no exemplo ldquoO vencedor de Iena - O vencido de Waterloordquo Significaccedilatildeo e referecircncia objetiva no entanto estatildeo em iacutentima conexatildeo A expressatildeo se refere ao objeto por meio da significaccedilatildeo Uma expressatildeo adquire um referimento ao objeto pelo simples fato de que esta significa algo Por isso eacute que dizemos que uma expressatildeo designa ou denomina algo por meio do seu significado ou seja o ato de significar eacute o modo determinado de intencionar o objeto em questatildeo soacute que justamente este modo de intencionar e portanto o significado mesmo pode variar enquanto permanece idecircntica a direccedilatildeo para o objeto Se considerarmos pois os trecircs momentos que se fundem numa unidade na expressatildeo temos aquilo que de modo equiacutevoco se chama o expressado da expressatildeo ldquoOs termos em relaccedilatildeo ndash manifestaccedilatildeo significaccedilatildeo e objeto ndash pertencem essencialmente a toda e qualquer expressatildeo Em cada uma qualquer coisa eacute manifestada qualquer coisa eacute significada e qualquer coisa eacute nomeada ou de algum modo designada E no discurso equiacutevoco tudo isto se diz lsquoexpressorsquordquo 51 Idem p 14
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No escrito sobre a dialeacutetica Agostinho trata de quatro elementos desta arte o
verbum o dicibile52 a dictio53 e a res Vejamos como Agostinho expotildee o nexo entre estes
quatro elementos
Ora porque as palavras (verba) satildeo sinais das coisas (signa rerum) quando se ocupam com as coisas enquanto satildeo sinais das palavras (signa verborum) quando se discute sobre palavras ndash pois sobre palavras natildeo podemos falar a natildeo ser com palavras e quando falamos natildeo falamos a natildeo ser de coisas ndash ocorre agrave mente que as palavras satildeo sinais das coisas sem deixar de ser coisas
Quando pois a palavra sai da boca se sai por causa de si mesma isto eacute para que acerca dela se inquira ou se discuta haacute certamente uma coisa que eacute sujeita a discussatildeo e a investigaccedilatildeo mas justamente esta coisa eacute chamada palavra
E o que quer que a partir da palavra natildeo os ouvidos mas a mente (animus) percebe (sentit) e que a mente mesma manteacutem incluiacuteda em si se chama dicibile54 Quando poreacutem a palavra sai natildeo por causa de si mesma mas para significar algo de outro chama-se dictio55 E a coisa mesma que natildeo eacute uma palavra nem ainda uma concepccedilatildeo da palavra na mente seja que tenha uma palavra com a qual possa ser significada seja que natildeo a tenha daqui por diante natildeo eacute chamada com nome apropriado de outro modo do que de coisa
Estes quatro hatildeo de ser mantidos distintamente portanto a palavra (verbum) o dicibile a dictio a coisa Aquilo que defini como palavra eacute uma palavra e significa a palavra Aquilo que defini dicibile eacute uma palavra e todavia natildeo significa a palavra mas aquilo que graccedilas agrave palavra se compreende e estaacute contido na mente Aquilo que eu defini dictio eacute uma palavra mas uma palavra que significa contemporaneamente as outras duas ou seja a palavra mesma e aquilo que se faz na mente atraveacutes da palavra Aquela que eu defini como coisa eacute uma palavra que significa tudo aquilo que fica fora das trecircs que foram ditas
52 Seria o λεκτόν (lektoacuten) dos estoicos 53 Seria a λέξις (leacuteksis) dos estoicos 54 O exprimiacutevel ou melhor o diziacutevel no sentido do mostraacutevel 55 A expressatildeo o dito do dizer
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Depois destas digressotildees necessaacuterias para aclararmos o que estaacute em questatildeo
voltemos ao livro II do ldquoDe Doctrina Christianardquo de Agostinho Retomemos a sua
consideraccedilatildeo a respeito do signo
Haacute dois tipos de signos os naturais e os convencionais Os naturais datildeo a
conhecer por si proacuteprios alguma coisa aleacutem do que satildeo em si Assim fumaccedila eacute signo
de fogo Os signos convencionais (data signa) satildeo todos aqueles que os seres vivos em
especial o ser humano mutuamente se trocam para manifestar ndash o quanto lhes eacute
possiacutevel ndash os movimentos de sua alma tais como as sensaccedilotildees e os pensamentos Os
signos podem se dar em referecircncias a todos os sentidos a maioria dos signos poreacutem
se referem agrave audiccedilatildeo ou agrave visatildeo Dentre estes signos mais usuais e importantes satildeo os
signos verbais que satildeo sons significativos que se articulam mediante a voz humana
constituindo a palavra falada Os signos escritos poreacutem mostram os signos verbais de
maneira visiacutevel (e natildeo audiacutevel como fazem os signos falados)
A liacutengua eacute a realizaccedilatildeo concreta da linguagem humana mediante o uso de signos
verbais falados ou escritos As Sagradas Escrituras indicam pela histoacuteria da Torre de
Babel que liacutengua e linguagem sofrem com a decadecircncia do espiacuterito humano causada
pela soberba56 O contraacuterio da histoacuteria de Babel eacute poreacutem a histoacuteria de Pentecostes
narrada no livro dos Atos dos Apoacutestolos que aponta para a comunhatildeo do amor e o
muacutetuo entendimento entre os homens propiciado com o dom do Hagioacutes Pneuma
(Sopro Sagrado Espiacuterito Santo)
56 Na histoacuteria narrada pelo livro do Gecircnesis os homens se unem para erguer uma torre que una a terra ao ceacuteu a partir das proacuteprias forccedilas e da proacutepria engenhosidade Nos povos antigos encontramos monumentos que evocam algo disso O desejo do homem de uniatildeo entre o ceacuteu e a terra se manifesta nos zigurates da mesopotacircmia nas piracircmides das altas culturas das pedras (Egito Peru Meacutexico) nas estupas asiaacuteticas e quiccedilaacute em tempos mais primitivos aos dolmens menires nas cacircmaras funeraacuterias e nos obeliscos Junto com o esforccedilo de o homem erguer-se a si mesmo como homem erguendo pedras haacute o esforccedilo tambeacutem de alcanccedilar a vida dos imortais dos deuses tolhendo a proacutepria finitude Babel que era para ser a ldquoporta dos deusesrdquo (babilani) se torna poreacutem o lugar da confusatildeo (balal = confundir) O mundo se torna assim uma ldquoBabilocircniardquo isto eacute o lugar da confusatildeo em que os homens natildeo conseguem chegar ao entendimento muacutetuo Somente em Pentecostes em Jerusaleacutem celebra-se plenamente a superaccedilatildeo desta divisatildeo e desta confusatildeo em que as liacutenguas natildeo satildeo mais confusas e em que a linguagem do amor ardente une os homens e propicia-lhes a chance do entendimento muacutetuo e da verdadeira concoacuterdia uma concoacuterdia para o bem em favor de Deus
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Aquele vento purificava os coraccedilotildees da palha carnal aquele fogo consumia o feno da antiga concupiscecircncia aquelas liacutenguas em que falavam os que estavam plenos do Espiacuterito Santo prefiguravam a futura Igreja mediante liacutenguas de todos os povos Pois assim como depois do diluacutevio a soberba impiedade dos homens edificou uma grandiosa torre contra o Senhor ocasiatildeo na qual o gecircnero humano mereceu ser dividido pela diversidade das liacutenguas de modo que cada naccedilatildeo falasse sua proacutepria liacutengua para natildeo ser entendido pelas demais assim a humilde piedade dos fieis reduziu a diversidade de liacutenguas agrave unidade da Igreja de maneira que aquilo que a discoacuterdia tinha dispersado o reunisse a caridade e assim os membros dispersos do gecircnero humano qual membros de um mesmo corpo fossem reintegrados agrave unidade de uma uacutenica cabeccedila que eacute Cristo e fundidos na unidade do corpo santo mediante o fogo do amor57
O maior sinal da comunhatildeo do amor eacute quando os homens conseguem falar uns
com os outros e se entender Embora sejam diferentes e falem liacutenguas diferentes falam
a partir de uma mesma linguagem a do amor-caridade (gratuidade) As liacutenguas se
tornam entatildeo como labaredas do amor As falas satildeo entatildeo falas inflamadas de um fogo
divino brilhantes e ardentes divinamente apaixonadas entusiasmadas O amor eacute o que
possibilita manter esta identidade na diferenccedila Cria-se uma identidade comum mas
sem desfazer antes protegendo as diferenccedilas Eacute o milagre das liacutenguas O contraacuterio de
Babel Recriaccedilatildeo do homem humano e da humanidade universal
Assim os homens podem voltar agrave linguagem comum apesar da diversidade das
liacutenguas unindo suas vontades no empenho de conhecer e realizar a vontade de Deus A
serviccedilo deste intento estatildeo as Sagradas Escrituras Estas satildeo obra do proacuteprio Deus que
usou de hagioacutegrafos inspirados para expressar a sua vontade na linguagem humana
mediante as diversas liacutenguas Os que leem as Sagradas Escrituras natildeo desejam encontrar
nelas mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram e desse modo chegar
a conhecer a vontade de Deus segundo a qual ordem esses homens compuseram
Entretanto o leitor das Sagradas Escrituras vai se deparar continuamente com
ambiguidades e obscuridades Para Agostinho estas fazem parte da proacutepria natureza das
Escrituras Sagradas Haacute um certo quecirc de hermeacutetico de enigmaacutetico de obscuro nelas
57 Sermatildeo 271
25
Mas eacute justamente isto que desafia a compreensatildeo e que a faz crescer na busca da
vontade divina As obscuridades e ambiguidades natildeo satildeo inuacuteteis Elas vencem o orgulho
do homem que se aproxima dos misteacuterios divinos sem reverecircncia e sem devoccedilatildeo Por
outro lado elas premunem o espiacuterito do fastio e do teacutedio que a facilidade sempre trazem
consigo As dificuldades de interpretaccedilatildeo cria-nos o gosto pelo exerciacutecio da
compreensatildeo na sua aventura de conquista do sentido Contudo natildeo se deve ter a
pretensatildeo de que se pode chegar a uma clareza que elimine toda sombra e obscuridade
A clareza do misteacuterio que se desvela sempre traz o veacuteu do pudor em que o misteacuterio
mesmo se encobre e assim se resguarda Os significados hauridos seratildeo sempre acenos
do inefaacutevel na medida em que o misteacuterio santo se deixa captar no horizonte do sentido
Uma vez que as Sagradas Escrituras satildeo linguagem do misteacuterio santo do Deus
absconditus (Deus escondido) que se re-vela (desvela e vela ao mesmo tempo) na
finitude da linguagem humana o leitor vai se deparar com desafios sempre novos
Agostinho recorre entatildeo agrave alegorese seguindo neste ponto a tradiccedilatildeo dos
alexandrinos As alegorias possuem encanto todo especial capaz de falar natildeo somente
ao entendimento mas tambeacutem ao coraccedilatildeo dos homens Com efeito a linguagem
imageacutetica concreta tem maior poder de comunicaccedilatildeo vital do que a linguagem
conceitual abstrata O uso de comparaccedilotildees leva o leitor a aprender mais
espontaneamente (libenter) As dificuldades de interpretaccedilatildeo levam-no a aprender com
maior prazer (gratius) As passagens obscuras das Escrituras aguccedilam a fome de
compreensatildeo do leitor Entretanto Agostinho daacute uma indicaccedilatildeo metodoloacutegica de leitura
importante para ir abrindo a compreensatildeo das Escrituras ganhar familiaridade com as
passagens claras e inequiacutevocas e com isso iluminar as passagens obscuras e
enigmaacuteticas Com efeito diz ele quase nada sobressai nas obscuridades que natildeo esteja
escrito mais claramente em outro lugar
Aquele que lecirc as Sagradas Escrituras procurando nelas a vontade divina eacute algueacutem
que estaacute a caminho numa viagem para a paacutetria da beatitude eterna Este caminhar
comporta determinado itineraacuterio no qual o homem vai se dispondo cada vez mais ao
Espiacuterito de Deus e ao seu modo de operar na alma os seus dons Eacute na medida que se
aproxima da Sabedoria do Espiacuterito que o leitor lecirc com maior proveito e profundidade as
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Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
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Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
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Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
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Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
30
(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
37
O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
xxxxxxxxxxxx
Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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somente a tornar o homem eloquentiacutessimo e doutiacutessimo (eloquentissimus et
sapientissimus) segundo o projeto romano de formaccedilatildeo (a Humanitas versatildeo romana
da Paideia grega) mas tambeacutem perfeito (perfectus) no sentido eacutetico e religioso do
cristianismo12 Com efeito neste projeto cristatildeo de saber o cultivo das Artes Liberais
constitui o mais elementar do ldquostudium sapientiaerdquo (estudo da sabedoria) Elas formam
o degrau baacutesico da formaccedilatildeo do homem cristatildeo a filosofia seria o degrau intermediaacuterio
e a ldquodoctrina christianardquo (ldquodoutrina cristatilderdquo estudo da ldquosacra paginardquo da Biacuteblia o degrau
superior)
As Artes Liberais teriam um papel propedecircutico para a filosofia Elas ajudariam a
fornecer ldquoargumenta certiacutessimardquo (argumentos certiacutessimos) para quem se propotildee a
filosofar Depois serviriam para exercitar o ldquoanimusrdquo (acircnimo espiacuterito) no sentido da
sua afinaccedilatildeo (eruditio) e no sentido de torna-lo capaz de discernir as coisas mais sutis
(ad subtiliora cernenda) pois teriam a capacidade de ajudar o estudante a passar das
coisas corpoacutereas agraves incorpoacutereas do temporal ao intemporal do real ao ideal da criatura
ao Criador O estudo das Artes Liberais e da Filosofia poreacutem serviriam ao estudo da
ldquoDoctrina Christianardquo que partiria da investigaccedilatildeo da Biacuteblia (os medievais falaratildeo do
estudo da ldquosacra paginardquo) e que se dedicaria agrave compreensatildeo dos dados da revelaccedilatildeo
divina contidos no livro sagrado do cristianismo os artigos de feacute confessados pela Igreja
segundo a sentenccedila de Agostinho que se tornou um mote para os medievais latinos
ldquocredo ut intelligamrdquo (creio para compreender) Eacute que segundo Agostinho nas ciecircncias
humanas se crecirc no que se compreende jaacute nas ciecircncias divinas (coisas Sagrada Escritura)
se compreende somente se se crecirc aqui o proacuteprio ldquocrerrdquo introduz o proacuteprio ldquointeligirrdquo
nas outras ciecircncias poreacutem o proacuteprio ldquointeligirrdquo introduz o proacuteprio ldquocrerrdquo - pelo fato
mesmo que intelige algueacutem assente
natural e agrave medicina Seu projeto pedagoacutegico se inspirou nas escolas de Alexandria e de Niacutesibe Para guiar a leitura dos monges Cassiodoro redigiu as suas Instituiccedilotildees das letras divinas e seculares (560-580) A filosofia era representada aiacute por uma divisatildeo das ciecircncias e por um resumo do Organon 11 A obra mais famosa de Isidoro (560-633) chama-se ldquoEtimologiasrdquo Eacute uma espeacutecie de enciclopeacutedia de saberes profanos e religiosos dedicada ao rei visigodo Sisebut Ele escreveu tambeacutem um livro de ldquoSentenccedilasrdquo manual de teologia dogmaacutetica moral e espiritual Isidoro procura escrever nas ldquoEtimologiasrdquo sobre as diferenccedilas das palavras e as diferenccedilas das coisas Pressupotildee que se conhece melhor a natureza de uma coisa quando se conhece melhor a natureza de seu nome Ele detinha o conhecimento da gramaacutetica dos alexandrinos 12 Cfr De Quantitate Animae c 33 Traduccedilatildeo Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis Vozes 1997 p 153
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Seguindo esta diretriz de ordenaccedilatildeo do saber Agostinho recusa uma formaccedilatildeo e
uma cultura que se limita agraves artes liberais ou de um saber que forma apenas o litterator
ou grammaticus entregue agrave vaidade do falar bem Contra o esteticismo decadente da
cultura latina de seu tempo ele investe o seu princiacutepio Res non verba13 Opotildee-se
tambeacutem agrave curiositas (curiosidade) que ele toma como o oposto do studium ndash o curiosus
eacute para ele com efeito o oposto do studiosus14 Com efeito ao contraacuterio do homem
ldquostudiosusrdquo (estudioso) cuja busca do saber se compromete com a transformaccedilatildeo da
proacutepria mente por meio do conhecimento da verdade o homem ldquocuriosusrdquo (curioso)
que aparenta querer saber natildeo quer poreacutem que o saber o transforme e o forme em
sua interioridade em seu caraacuteter e em suas accedilotildees A curiosidade pertence agrave triacuteplice
concupiscecircncia que torna a vida do homem decadente miseraacutevel a que alude a Sagrada
Escritura15 Chama-a de ldquoconcupiscecircncia dos olhosrdquo (concupiscentia oculorum) o desejo
de tudo ver e experimentar (cupiditas experiendi) sem nenhum comprometimento
Atinge sobretudo o mundo da convivecircncia humana ldquoCuriosum genus ad cognoscendam
vitam alienam desidiosum ad corrigendam suam ndash uma raccedila curiosa para conhecer a
vida alheia indisposta para corrigir a suardquo
Aleacutem do studium sapientiae (estudo empenho da sabedoria) que constitui a
formaccedilatildeo filosoacutefica Agostinho considerava tambeacutem um outro niacutevel de formaccedilatildeo
propriamente cristatilde do homem a doctrina christiana que consistia no exerciacutecio da
inteligecircncia que aprofunda os dados da revelaccedilatildeo Seu programa inclui o estudo das
Escrituras Sagradas a exegese a exposiccedilatildeo especulativa da feacute a controveacutersia e a
apologeacutetica Os escritos de Agostinho voltados para este campo satildeo redigidos sobretudo
13 ldquoCoisa (o real) natildeo palavrasrdquo 14 Heidegger fez uma exposiccedilatildeo sobre a curiosidade em termos de hermenecircutica da facticidade e analiacutetica da existecircncia no sect 36 de Ser e Tempo 15 ldquoNatildeo ameis o mundo nem o que estaacute no mundo Se algueacutem ama o mundo o amor do Pai natildeo estaacute nele pois tudo o que estaacute no mundo ndash a concupiscecircncia da carne (epithymia thecircs sarkoacutes) a concupiscecircncia dos olhos (epithymia tocircn ophtalmocircn) e a confianccedila orgulhosa nos bens (alazoneacuteia tou biou) ndash natildeo vem do Pai mas vem do mundo Ora o mundo passa bem como sua concupiscecircncia mas o que faz a vontade de Deus permanece para semprerdquo (1 Jo 2 15-17) A concupiscecircncia da carne (concupiscentia carnis) na interpretaccedilatildeo de Agostinho eacute a a ldquolibidordquo a cobiccedila do prazer (cupiditas oblectandi) A concupiscecircncia ou cobiccedila dos olhos (concupiscentia oculorum) eacute a curiosidade o desejo de tudo ver e experimentar (cupiditas experiendi) sem comprometimento Talvez este fenocircmeno seja afim ao que Pascal em seus Pensamentos chama de ldquodivertissementrdquo A terceira forma de ldquotemptatiordquo (tentaccedilatildeo ser posto agrave prova) eacute a ldquoambitio saeculirdquo (ambiccedilatildeo do mundo) ou a jactacircncia (iactantia) que querer ser temido e amado pelos outros Heidegger fez uma interpretaccedilatildeo a partir da hermenecircutica da faticidade da exposiccedilatildeo desta triacuteplice tentaccedilatildeo humana em ldquoFenomenologia da Vida Religiosardquo (vol 60 das suas obras completas)
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apoacutes assumir encargos eclesiaacutesticos Natildeo obstante nestes escritos ele natildeo deixa de
filosofar (cf por exemplo o tratado sobre a Trindade) A sapientia adquire agora para
ele outro sentido mais elevado e abrangente contemplativo-religioso sapientia est
contemplatio veritatis pacificans totum hominem et suscipiens similitudinem Dei16 Esta
sabedoria no entanto natildeo exclui antes inclui tanto o aspecto eacutetico do estudo quanto
o aspecto metafiacutesico isto eacute a cognitio intellectualis (conhecimento intelectual) de anima
(a respeito da alma) e de Deo (a respeito de Deus)
Aleacutem da sapientia que visa o que eacute imutaacutevel eterno Agostinho considera
tambeacutem a scientia que visa o que eacute temporal histoacuterico cognitio historica
(conhecimento histoacuterico) Ora a revelaccedilatildeo divina que se propotildee agrave feacute se manifesta na
histoacuteria ela se transmite de modo empiacuterico por um testemunho materializado por
palavras por um livro a Escritura Sagrada Surge daiacute a demanda de uma scientia que
seraacute a atividade da inteligecircncia que se aplica ao conhecimento do conteuacutedo da feacute No
livro XIV da obra De Trinitate (Da Trindade) Agostinho escreve
Natildeo atribuo agrave ciecircncia (scientia) o que quer que possa ser sabido pelos homens nas coisas humanas aqui onde haacute grande quantidade de supeacuterfluo de vaidade e de curiosidade nociva mas tatildeo somente aquilo que gera nutre defende e fortalece a feacute sobremaneira salutar que conduz agrave verdadeira beatitude (quo fides sabuberrima quae ad verae beatitudinem ducit gignitur nutritur defenditur roboratur) A maior parte dos fieacuteis natildeo possuem esta ciecircncia seja qual for de resto a intensidade da feacute deles Uma coisa com efeito eacute saber simplesmente aquilo que o homem deve crer para obter a beatitude eterna outra coisa eacute saber (scire) como aportar este mesmo conteuacutedo da feacute agraves almas pias e defender contra os iacutempios eacute a respeito deste segundo aspecto que depois de Satildeo Paulo (1 Cor 12 8) se deve propriamente reservar o vocaacutebulo ciecircncia
Agostinho lecirc poreacutem a Escritura em consonacircncia com a tradiccedilatildeo e com a
autoridade da Igreja17 No seacuteculo XII esta ciecircncia levaraacute o nome de ldquoSacra Paginardquo
(sagrada paacutegina) Abelardo mesmo apresentaraacute a sua siacutentese especulativa do conteuacutedo
16 A sapiecircncia eacute a contemplaccedilatildeo da verdade pacificando o homem todo e recebendo a semelhanccedila de Deus De Sermone Domini in Monte 1 3 17 A hermenecircutica protestante com o Sola Scriptura excluiraacute a tradiccedilatildeo e o ensinamento autoritativo da Igreja (magisteacuterio) como criteacuterios que acompanham a leitura das Escrituras Sagradas
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da feacute apenas como uma introduccedilatildeo agrave Sagrada Escritura Uma autonomia especulativa
da exposiccedilatildeo do conteuacutedo da feacute soacute aconteceraacute propriamente no seacuteculo XIII ndash eacute o
nascimento daquilo que noacutes hoje chamamos de ldquoteologiardquo Em Agostinho a exegese
biacuteblica e a exposiccedilatildeo dogmaacutetica especulativa se mesclam natildeo obstante hajam escritos
em que a exposiccedilatildeo dogmaacutetica e sistemaacutetica do conteuacutedo da feacute se potildeem em primeiro
plano O motivo poreacutem destas exposiccedilotildees estaacute quase sempre situado num contexto de
controveacutersia de polecircmica de apologeacutetica em torno do conteuacutedo da feacute Mas em
Agostinho toda discussatildeo dogmaacutetica toda controveacutersia e apologeacutetica natildeo visa outra
coisa que a defesa do conteuacutedo da feacute das Sagradas Escrituras
Uma obra fundamental para se entender a hermenecircutica em Agostinho eacute o ldquoDe
doctrina christianardquo (Da doutrina cristatilde) Apresentamos a seguir uma recensatildeo desta
escrito
Esta obra faz parte de uma seacuterie de obras exegeacuteticas do hiponense e parece
constituir-se numa espeacutecie de teoria da exegese contendo tambeacutem um livro sobre o
modo de se expor a Sagrada Escritura com eloquecircncia e sabedoria Ela comeccedilou a ser
escrita pouco depois de Agostinho se tornar bispo isto eacute pelo ano 397 Num primeiro
momento a obra foi publicada inacabada indo ateacute o capiacutetulo 25 nordm 35 do Livro III Mais
tarde ao revisar suas obras Agostinho se propotildee terminar esta e o faz natildeo soacute
completando o livro III como tambeacutem acrescentando o livro IV A conclusatildeo desta obra
teria se dado laacute pelo ano de 4267
A ldquoDoutrina Cristatilderdquo eacute composta de um proacutelogo e quatro livros No proacutelogo
Agostinho relata o objetivo da obra oferecer normas uacuteteis acerca da interpretaccedilatildeo das
Sagradas Escrituras agravequeles que se dedicam a este estudo Atraveacutes destas normas o
estudioso poderaacute esclarecer muitas obscuridades que as Escrituras encerram Em
seguida Agostinho usa da comparaccedilatildeo de algueacutem que mostra a outra a lua com o dedo
para refutar eventuais contestadores de seu esforccedilo Os primeiros satildeo aqueles que natildeo
entendem as regras Estes se comportam como as pessoas que nem sequer veem o
dedo devido ao fato de a acuidade se sua visatildeo ser muito deficiente Os segundos satildeo
os que entendem as regras mas natildeo conseguem aplica-las Estes fixam o olhar no dedo
mas natildeo se voltam para mirar a lua Um terceiro tipo de opositores seria daquelas
pessoas que acham poderem se dispensar de instruccedilatildeo junto a seres humanos na
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pretensatildeo de terem conquistado o dom da compreensatildeo das divinas Escrituras
diretamente de Deus A estes Agostinho procura mostrar que a proacutepria Sagrada
Escritura pressupotildee a convivialidade dos que ensinam e aprendem mesmo
considerando que tanto uns como outros fundamentalmente aprendem de Deus Em
terceiro lugar o dom de interpretar as Escrituras natildeo dispensa mas ao contraacuterio exige
o esforccedilo de aprender Perspicaacutecia interesse de ir agraves coisas mesmas e disposiccedilatildeo de
aprender satildeo atitudes que devem ter quem quer ler esta obra
O objeto temaacutetico de ldquoA doutrina cristatilderdquo eacute a ldquotractatio scripturarumrdquo ou seja o
modo de proceder no trato com as Escrituras Isto comporta uma dupla implicaccedilatildeo
aprender a maneira de se descobrir o que eacute para ser entendido e por outro lado
aprender a maneira de se expor com propriedade o que foi entendido Os trecircs primeiros
livros da obra se atecircm agrave maneira de descobrir e o quarto livro agrave maneira de expor
Toda doutrina ou ciecircncia versa sobre coisas e sinais Coisas eacute tudo o que natildeo estaacute
empregado para significar algum outro objeto Sinais eacute tudo o que se emprega para
significar alguma coisa aleacutem de si mesmo As coisas satildeo conhecidas por meio de sinais
Os sinais devem ser entendidos como sinais e natildeo como coisas isto eacute na sua funccedilatildeo de
sinalizar e natildeo no seu ocorrer meramente factual O primeiro livro iraacute tratar das coisas
elementares da Sagrada Escritura isto eacute aquelas realidades junto agraves quais se empenha
o esforccedilo da compreensatildeo O segundo livro trata dos sinais da Sagrada Escritura e do
modo de chegar ao significado mediante o rigor da interpretaccedilatildeo O terceiro livro se
ocupa em ensinar como resolver as ambiguidades nos textos que se devem interpretar
quer em sentido proacuteprio quer em sentido figurado O quarto livro iraacute indicar como expor
as coisas da Sagrada Escritura com eloquecircncia e sabedoria
O primeiro livro expotildee algumas concepccedilotildees fundamentais sobre a realidade do
real (o ser do ente ndash das ldquocoisasrdquo) As coisas no seu todo se dividem em duas grandes
categorias aquelas que satildeo para a fruiccedilatildeo e aquelas que satildeo para o uso (uti et frui)
ldquoFruir (frui) eacute estar ligado a uma coisa por amor a ela Usar (frui) eacute relacionar aquilo de
que se tem uso com a posse daquilo que se amardquo (1 4 4) Notemos que Agostinho pensa
a realidade do real em seu concernir agrave vida humana A vida humana consiste em
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curare18 O uti (usar) eacute o cuidar que lida com aquilo que contribui para o viver O frui
(fruir) eacute gozar Por exemplo o belo que pertence agrave vigecircncia do ser eacute fruiacutedo A beata
vita (vida bem-aventurada feliz) eacute a do homem que goza do sumo bem (Deus) Eacute para
ser fruiacuteda aquela coisa que deleita por si mesma sem estar referida a outra coisa19 Eacute
para ser usada aquela coisa que eacute que eacute buscada desejada e que deleita por causa de
outra coisa As coisas temporais visiacuteveis satildeo para ser usadas As coisas eternas
invisiacuteveis para serem fruiacutedas O viacutecio a perversatildeo consiste em inverter esta ordem
querer fruir do que eacute para ser usado A virtude poreacutem consiste em fruir do que eacute para
ser fruiacutedo e usar do que eacute para ser usado20 A beatitude eacute a fruiccedilatildeo do sumo e imutaacutevel
bem a Trindade Deus eacute a beleza inteligiacutevel imutaacutevel inefaacutevel Toda a miacutestica medieval
iraacute visar a esta fruiccedilatildeo de Deus como o sumo bem como a suma beleza Na fruiccedilatildeo de
Deus o homem encontra o repouso a quietude (quies) Embora em tudo isso haja
elementos do pensamento grego (neoplatocircnico) no entanto a concepccedilatildeo da vida
humana e da realidade do real em Agostinho estaacute enraizada na compreensatildeo do Novo
Testamento Ele assim traz agrave fala em que consiste a ldquovita praesensrdquo (vida presente) do
cristatildeo eacute vida vivida ldquoin re laboris sed in spe quietis in carne vetustatis sed in fide
novitatisrdquo (no real do labor mas na esperanccedila do repouso na carne da velhice mas na
feacute da novidade) A esperanccedila precede A vida segue isso que a esperanccedila antecipa A
vida se realiza na direccedilatildeo daquilo que a esperanccedila antecipa21
Ainda no primeiro livro encontra-se uma exposiccedilatildeo do conteuacutedo da feacute a modo
de uma siacutentese dogmaacutetica fala da Trindade enquanto aquilo a que a aspiraccedilatildeo de
fruiccedilatildeo por parte do homem estaacute destinada Esta fala se articula em termos biacuteblicos e
tambeacutem em termos metafiacutesicos Trata-se de uma exposiccedilatildeo dogmaacutetico-metafiacutesica dos
misteacuterios e arcanos da feacute cristatilde Ao seu fundo poreacutem estaacute toda uma experiecircncia faacutetica
da vida22 Depois desta exposiccedilatildeo sobre a essecircncia da feacute cristatilde (os misteacuterios que nela satildeo
18 Curo curas curare curavi curatum Verbo transitivo ndash Sentido proacuteprio 1) cuidar olhar por tratar velar Daiacute 2) tratar curar 3) no contexto administrativo governar dirigir administrar 4) no contexto militar comandar 5) no contexto comercial fazer pagar 4) fazer por ter em conta de ter cuidado de 19 De civitate Dei (A cidade de Deus) XI 25 20 De Diversibus quaestionibus XXX 21 Cf Heidegger M Fenomenologia da Vida Religiosa p 258-260 22 A uacutenica ldquocoisardquo (o uacutenico real) a ser fruiacuteda eacute a Trindade Agostinho remete pois inicialmente ao Triuno Deus de quem por quem e para quem existem todas as coisas Os mesmos atributos divinos devem ser predicados de cada uma das pessoas da Trindade isto eacute do Pai do Filho e do Espiacuterito Santo Cada um deles eacute ele proacuteprio na plenitude de sua substacircncia O ser do Pai estaacute na Unidade o ser do Filho na
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cridos) Agostinho trata do ldquoethosrdquo do viver cristatildeo seguindo ainda pelo fio condutor
do ldquouti et fruirdquo (usar e fruir) O essencial do ethos cristatildeo eacute o duplo preceito do amor a
Deus e ao proacuteximo O ethos do viver cristatildeo se instaura segundo a ldquoOrdo dilectionisrdquo
(ordem da dileccedilatildeo ou do amor) A identidade do cristatildeo consiste no seu modo de amar23
Igualdade e o ser do Espiacuterito Santo na harmonia da unidade e da igualdade Natildeo obstante natildeo se trata de trecircs seres mas de um uacutenico Ser Agostinho estaacute ciente da limitaccedilatildeo do entendimento no vigor do silecircncio que se recolhe diante do misteacuterio divino do Deus uno e trino arcano fundamental da feacute cristatilde Deus eacute antes de tudo o inefaacutevel Quando a mente humana cogita acerca do misteacuterio divino que se doa ao se retrair ela busca captar uma realidade transcendental a mais proacutexima visto ser a mais iacutentima mais iacutentima a noacutes que noacutes mesmos e ao mesmo tempo a mais distante (inacessiacutevel justamente em virtude desta proximidade) Eacute esta realidade primeira que institui todo o real quer nas suas realizaccedilotildees sensiacuteveis quer nas inteligiacuteveis Percorrendo-se os diversos niacuteveis de constituiccedilatildeo da vida chega-se agravequela Vida que se define como Sabedoria imutaacutevel isto eacute sempre idecircntica consigo mesma O Deus vivo que eacute o Vivente por excelecircncia eacute o anseio mais profundo da alma humana Contemplaacute-lo e fruir da sua bondade e beleza eacute a beatitude do homem Contudo para que o homem possa chegar agrave visatildeo e fruiccedilatildeo de Deus eacute necessaacuteria a purificaccedilatildeo interior ao longo de sua vida que aparece como um caminho uma viagem uma travessia de retorno agrave paacutetria Esta purificaccedilatildeo se daacute mediante o bom empenho os bons desejos e os costumes No entanto natildeo podemos ir agrave Sabedoria se ela natildeo se dispotildee a vir a noacutes adaptando-se agrave fraqueza dede nossa condiccedilatildeo carnal isto eacute finita fraacutegil decadente mortal No entanto esta Sabedoria que se encarna na realidade da vida faacutetica humana foi rejeitada por muitos como fraqueza e loucura Eacute o misteacuterio da keacutenosis (esvaziamento) do rebaixamento do Filho de Deus o Verbo que se fez carne e atendou entre os homens Mas eacute justamente por esta fraqueza e loucura divina manifestada na encarnaccedilatildeo e na paixatildeo do Verbo humanado Jesus Cristo que acontece a redenccedilatildeo isto eacute a libertaccedilatildeo e a salvaccedilatildeo de todos os homens Nele a Sabedoria cura o homem impregnado de fraqueza e mergulhado na loucura O homem usou mal do dom da imortalidade e caiu na morte Cristo usou bem de nossa mortalidade e isso devolveu ao homem o acesso agrave plenitude da vida Atraveacutes dos misteacuterios da vida de Cristo isto eacute dos misteacuterios de sua encarnaccedilatildeo de sua paixatildeo e tambeacutem de sua ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo com o consequente envio do Espiacuterito Santo os homens satildeo fortalecidos na feacute e avivados no conhecimento Nestes misteacuterios os que creem consideram o quatildeo livremente Cristo deu sua vida pelos homens ele que possuiacutea o poder de retomaacute-la Aqueles que favorecidos pela graccedila da redenccedilatildeo creram no Filho de Deus encarnado e crucificado como Senhor (o Ressuscitado) formam um soacute corpo constituindo deste modo a realidade da Igreja Esta eacute a esposa de Cristo Atraveacutes dos sacramentos ela se purifica para vir se unir ao Esposo Cristo Jesus na eternidade apresentando-se diante dele sem manchas nem rugas Eacute no interior desta Igreja que os homens satildeo gerados para a semelhanccedila com Cristo e recebem o perdatildeo dos pecados (batismo) Desta mesma Igreja recebem a feacute na ressurreiccedilatildeo do corpo e na vida eterna Estes misteacuterios e arcanos cristatildeos satildeo acolhidos pelo homem que estaacute a caminho da paacutetria (a vida eterna) Neste caminho o crente sempre de novo morre para o mundo e vive para Deus Verdade e Vida 23 O homem haacute de amar a Deus por causa dele proacuteprio As criaturas em contrapartida satildeo amadas agrave medida que ajudam o homem a crescer no amor de Deus O amor a si mesmo e ao proacuteprio corpo eacute uma lei natural e por isso natildeo requer nenhum preceito (mandamento) Mas o amor ao que estaacute ao seu lado (o proacuteximo) e o amor ao que estaacute acima dele (Deus) requer preceito Haacute no entanto um falso e um verdadeiro amor de si proacuteprio O verdadeiro amor de si consiste em buscar o que eacute uacutetil e salutar para si mesmo crescendo na caridade (o amor gratuito a Deus e ao proacuteximo) O falso amor de si consiste em submeter o proacuteximo e o proacuteprio corpo a fim de fruir deles Quanto ao amor ao proacuteprio corpo Agostinho relembra a citaccedilatildeo do Apoacutestolo (Paulo) que diz ldquoningueacutem jamais quis mal agrave sua proacutepria carnerdquo (Ef 5 29) Mesmo os que reconhecem sadiamente a necessidade da ascese fazem-no para submeter o corpo ao espiacuterito segundo a ordem da natureza buscando assim a paz e a harmonia O preceito da caridade eacute duplo exige o amor a Deus acima de tudo e o amor ao proacuteximo como a si mesmo A partir do duplo amor natural e do duplo preceito da caridade descobre a ldquoOrdo Dilectionisrdquo (ordem da dileccedilatildeo isto eacute do amor) Ordem implica numa estruturaccedilatildeo em niacuteveis neste caso em niacuteveis de dignidade A ordenaccedilatildeo do amor eacute instaurada quando o homem ama o que deve ser amado (o bem) e natildeo ama o que natildeo deve ser amado (o mal o viacutecio o pecado) Depois quando o homem ama menos o que eacute menos digno de amor (o corpo)
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O amor (dilectio caritas) eacute o princiacutepio que rege toda a vida humana na perspectiva da
feacute cristatilde24 O duplo preceito do amor (a Deus e ao proacuteximo) eacute aqui a norma universal e
primordial que rege toda a ordem do viver O amor a Deus acima de tudo e o amor ao
proacuteximo eacute a essecircncia a substacircncia da revelaccedilatildeo divina (ldquoa Lei e os Profetasrdquo) que foi
radicalizada e consumada em Jesus Cristo no seu novo e eterno testamento
(testemunho) Daiacute se segue que a edificaccedilatildeo da caridade eacute a norma reacutegia e suprema de
toda a interpretaccedilatildeo das Sagradas Escrituras25 Para o homem que atingiu a perfeiccedilatildeo
do amor (caridade perfeita) as Sagradas Escrituras deixam de ser necessaacuterias uma vez
que toda a finalidade delas eacute levar o homem agrave perfeiccedilatildeo do amor (caridade perfeita)
Deste modo as Escrituras Sagradas requerem um leitor que entenda que o fim de tudo
o que ali estaacute escrito eacute a caridade perfeita consumada que aparece concreta e
historicamente em Jesus Cristo o Deus encarnado (humanado) e crucificado A feacute e a
esperanccedila satildeo outras duas virtudes que ajudam o homem a crescer e se perfazer na
perfeiccedilatildeo da caridade no seguimento de Jesus Cristo O essencial do ser cristatildeo se
encontra neste seguimento
Depois quando ama igualmente o que eacute igualmente digno de amor (o proacuteximo) Por fim quando ama absolutamente o que eacute absolutamente digno de ser amado (Deus) Ao amor de Deus assim deve se subordinar e convergir todo amor pela criatura O preceito do amor aleacutem disso comporta universalidade isto eacute ningueacutem eacute dele excluiacutedo A boa vontade do amor se estende a todos mesmo ao inimigo O amor de Deus pelo homem eacute gratuito visto que Deus natildeo precisa do homem mas se basta a si mesmo Seu amor eacute pura gratuita absoluta bondade O grau de perfeiccedilatildeo de um homem depende do grau de perfeiccedilatildeo e da universalidade de seu amor O ser do homem se determina pelo seu amor O homem eacute o que ele ama e como ele ama Ele cresce no ser se cresce na perfeiccedilatildeo (e na universalidade) do amor Ele diminui no ser se decresce na capacidade de amar O homem pode encontrar deleite nos outros homens quando estes o ajudam a crescer no amor a Deus Eacute quando se ama e se gosta do outro em Deus Os homens podem e devem constituir uma fraternidade no amor ajudando-se mutuamente a prosseguir seu itineraacuterio para Deus Nenhuma homem pode se considerar fim absoluto do amor do outro Ele natildeo eacute o destinataacuterio uacuteltimo do amor do outro Eacute apenas companheiro na viagem da vida e como tal haacute de ser amado Neste itineraacuterio para Deus Cristo eacute o caminho a verdade e a vida isto eacute ele eacute aquele por quem o homem vai aquele a quem o homem alcanccedila e em quem ele permanece no amor 24 Cf Arendt Hanna O conceito de amor em Santo Agostinho Ensaio de interpretaccedilatildeo filosoacutefica Lisboa Instituto Piaget 1997 25 Para o ldquohomo viatorrdquo (homem a caminho) a feacute nas Escrituras fortalece a feacute a esperanccedila e a caridade Nestas trecircs virtudes teologais se encerram e se subsumem toda a ciecircncia e toda a profecia A caridade permanece para sempre enquanto que a feacute e a esperanccedila se extinguem quando o homem chega a seu destino (a Paacutetria o Reino dos Ceacuteus) A caridade visa um bem eterno Se os bens temporais satildeo amados antes de serem possuiacutedos pois ao serem conquistados natildeo saciam a alma na sua sede do absoluto bem o bem eterno eacute o que eacute amado com tanto mais ardor ao ser possuiacutedo do que fora ao ser desejado pois a ningueacutem que a deseja a beatitude concedida eacute menor do que a desejada
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O livro II eacute um verdadeiro tratado de semiologia26 Todo o pensamento a respeito
da linguagem do ocidente se baseia no triacircngulo semioacutetico signo conceito coisa A base
desta concepccedilatildeo de Aristoacuteteles Ela eacute exposta no ὶ ἑί (perigrave hermeneiacuteas)
ldquoDe interpretationerdquo (16a 3-8)
Satildeo pois aquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz siacutembolos das paixotildees (afecccedilotildees disposiccedilotildees) na alma e as coisas que satildeo escritas satildeo siacutembolos daquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz E assim como as coisas escritas natildeo satildeo as mesmas para todos do mesmo modo tambeacutem os sons da voz natildeo satildeo os mesmos Aquelas coisas de que isso (coisas escritas e sons da voz) satildeo primordialmente signos (coisas que mostram) satildeo para todos (os homens) as mesmas paixotildees da alma e as coisas das quais estas (paixotildees da alma) formam apresentaccedilotildees assemelhadas satildeo igualmente as mesmas27
O texto de Aristoacuteteles se manteacutem numa fala esclarecida e soacutebria que torna
visiacutevel a claacutessica estruturaccedilatildeo que abriga a linguagem como discurso ou fala As letras
do alfabeto28 mostram os fonemas29 Os fonemas mostram as disposiccedilotildees na alma30 As
disposiccedilotildees na alma mostram as coisas que que lhe con-cernem31 O mostrar configura
e sustenta as escoras dessa construccedilatildeo De maneira variada o mostrar conduz algo para
um aparecer deixando assim apreender o que aparece e permitindo que se discuta o
que se apreende
26 A semiologia (ou semioacutetica) eacute a ciecircncia dos signos Como os signos verbais tecircm na vida humana um papel de primeiro plano a semiologia se concentrou em grande parte na linguagem Haacute uma semiologia nas especulaccedilotildees linguiacutestica da antiguidade entre os modistas da Idade Meacutedia etc Mas o nome ldquosemioacuteticardquo surge na modernidade com Locke Torna-se poreacutem uma disciplina independente na obra do filoacutesofo americano Charles Sanders Peirce (1839-1914) 27 A traduccedilatildeo entende os σημεῖα (semeia ndash os signos aquelas coisas que mostram) os σύμβολα (symbola - os siacutembolos ndash o que eacute lanccedilado junto e nessa junccedilatildeo deixa e faz com que um se atenha ao outro) e os ὁμοιώματα (homoioacutemata ndash as apresentaccedilotildees assemelhadas as semelhanccedilas) como um mostrar no sentido de deixar aparecer o que por sua vez encontra-se no acircmbito do desencobrimento (αλήθεια ndash aleacutetheia) 28 τὰ γραφόμενα ndash taacute graphoacutemena 29 τὰ ἐν τῇ φωνῇ - taacute en te phoneacute 30 παθήματα τῆς ψυχῆς ndash patheacutemata tecircs psykhecircs 31 πράγματα - praacutegmata
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Antes de nos apropriarmos da semiologia de Agostinho tentemos aqui uma
consideraccedilatildeo fenomenoloacutegica sobre o sinal e a linguagem
O falar acontece por mor do dizer Dizer eacute mostrar O falar enquanto dizer se
realiza como um discurso mostrador loacutegos apophaacutentikoacutes32 O falar estaacute a serviccedilo do
dizer Dizer eacute mostrar no sentido de deixar e fazer ver a quem se fala aquilo de que se
fala Dizer eacute dar algo a compreender eacute fazer-se compreender sobre algo a quem escuta
O mostrar no falar acontece como um conceder acenos dar indiacutecios oferecer
indicaccedilotildees oferecer sinais33 Mas tudo isso acontece no sentido de um anunciar que se
cumpre como um revelar um divulgar um mencionar (fazer menccedilatildeo de referir relatar
expor narrar) um lembrar um recordar e um comemorar O anunciar eacute entendido pois
pelos gregos como um mostrar deiknymi34 O sinal eacute uma referecircncia uma remissatildeo O
remeter proacuteprio do sinal consiste em mostrar O mostrar do sinal se funda na referecircncia
na remissatildeo Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo No entanto
Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo eacute uma referecircncia Toda lsquoaccedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma referecircncia mas nem toda referecircncia mostra Com isso tambeacutem se diz toda accedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo mostra Assim aparece o caraacuteter formal e geral da relaccedilatildeo Para se investigar os fenocircmenos de referecircncia sinal e significado de nada adianta caracterizaacute-los como relaccedilatildeo Deve-se em uacuteltima instacircncia mostrar que a proacutepria lsquorelaccedilatildeorsquo devido a seu
32 O loacutegos eacute um reunir e um recolher (leacutegein) que potildee expotildee e depotildee abre e manifesta traz ao desencobrimento agrave revelaccedilatildeo Como abrir e manifestar leacutegein estaacute em contraste com krypto cobrir encobrir esconder ocultar no sentido de guardar Conhecemos um fragmento de Heraacuteclito (fr 93) que traz este contraste Ele diz Ho aacutenax hou tograve manteion esti tograve en Delphois oute leacutegei oute kryptei allagrave semainei ndash O Autor de quem eacute o oraacuteculo de Delfos natildeo traz ao desencobrimento nem encobre mas acena 33 Semainein eacute um conceder semata (acenos indiacutecios indicaccedilotildees) A palavra grega no singular eacute ldquosemardquo indiacutecio vestiacutegio marca distintiva senha sinal ldquoSemardquo eacute tambeacutem pressaacutegio auguacuterio auspiacutecio Eacute ainda o astro ou uma constelaccedilatildeo da qual se tiram indicaccedilotildees na orientaccedilatildeo concernente ao ceacuteu Eacute por fim o tuacutemulo a tumba 34 Da mesma raiz de ldquodeiknymirdquo (mostrar) eacute o verbo latino ldquodicererdquo dizer Dizer eacute mostrar isto eacute deixar e fazer ver trazer agrave evidecircncia alguma coisa O sinal pois no falar precisa ser entendido na dinacircmica do dizer isto eacute do mostrar
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caraacuteter formal geral tem sua origem ontoloacutegica numa referecircncia35
Haacute uma multiplicidade de sinais anuacutencios prenuacutencios vestiacutegios marcas
distintivos cuja accedilatildeo de mostrar difere a cada caso Satildeo sinais diferentes o rastro o
resto o monumento o documento o testemunho o siacutembolo a expressatildeo a
manifestaccedilatildeo a significaccedilatildeo O sinal tem a sua serventia no mostrar no sentido de fazer
sobressair de dar na vista salientar fazer reparar estranhar alguma coisa Aquilo que
normalmente natildeo causa surpresa eacute ressaltado pelo sinal O sinal permite a descoberta
de alguma coisa
O mundo eacute o ldquoonderdquo das descobertas O homem se orienta se dirige se
direciona em seus comportamentos com as coisas com os entes agrave matildeo a partir de uma
familiaridade com o mundo A abertura de mundo se daacute como compreensatildeo Trata-se
poreacutem de uma compreensatildeo operativa natildeo teoacuterica Compreender significa aqui reunir
as remissotildees recolher as referecircncias O caraacuteter de remissatildeo das remissotildees das
referecircncias eacute o que se chama de significar Significar (be-deuten) eacute aqui mostrar
(deuten) no sentido de pocircr a caminho um clarear um esclarecer Eacute o processo e o
movimento de estruturaccedilatildeo do mundo Significar eacute aqui oferecer alguma coisa para a
compreensatildeo e para a interpretaccedilatildeo Significacircncia (Bedeutsamkeit) eacute o todo das
remissotildees do acontecimento e do processo do significar que eacute a estruturaccedilatildeo de
mundo Noacutes nos encontramos a noacutes mesmos jaacute sempre no mundo entendendo o mundo
antes de tudo como uma totalidade de significacircncias Eacute um encontrar-se a si mesmo
sempre numa situaccedilatildeo de ocupaccedilatildeo e preocupaccedilatildeo de cuidado com o proacuteprio ser-no-
mundo Tudo aquilo com que podemos nos relacionar e comportar tem este caraacuteter
estaacute aiacute e eacute encontrado no caminho do cuidado eacute experimentado como significativo a
partir de um determinado cuidado Significacircncia indica este modo fundamental como
algo segundo o seu teor proacuteprio eacute encontrado na vida como ele se deteacutem e se reteacutem
no meio do mundo da vida
Soacute acontece linguagem onde noacutes falamos uns com os outros A linguagem
acontece de iniacutecio e na maior parte das vezes na conversa com suas falas e seus
silecircncios Para noacutes isto eacute na ordem da nossa experiecircncia cotidiana a primeira
35 Heidegger M Ser e Tempo sect 17
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dimensatildeo pois da linguagem eacute a fala o discurso O discurso traz agrave fala uma
compreensatildeo Chamamos de sentido o que pode ser articulado O sentido eacute o que torna
compreensiacutevel algo enquanto algo Compreender eacute fundamentalmente apreender algo
enquanto algo Tudo que apreendemos se mostra a si mesmo como isso ou aquilo Isso
quer dizer noacutes aprendemos cada coisa em sua significacircncia A percepccedilatildeo natural em
que noacutes vivemos cotidianamente jaacute eacute sempre uma compreensatildeo uma captaccedilatildeo da coisa
como esta coisa do sapato como sapato do livro como livro do reloacutegio como reloacutegio
Natildeo eacute assim que eu primeiro apreendo uma coisa na sua nua e crua factualidade e
depois lhe atribuo este ou aquele significado Cada vez eu apreendo uma coisa como
tal coisa isto eacute eu apreendo a coisa dentro de uma determinada significacircncia36
A coisa que me vem ao encontro dentro do mundo se mostra como isto ou
aquilo37 Ela instaura um conjunto de referecircncias ela remete a isto ou aquilo ela soa
desta ou daquela maneira em meu mundo ela fala disto ou daquilo em minha vida A
coisa significa a si mesma Mas o seu poder significar a si mesma soacute eacute possiacutevel porque
ela jaacute eacute descoberta como coisa que vem ao encontro dentro do mundo isto eacute dentro de
uma totalidade de sentido Que a coisa se faccedila encontrar e descobrir deste ou daquele
modo e que ela se decirc a compreender como isto ou aquilo ndash isto soacute eacute possiacutevel porque ao
apreendecirc-la numa percepccedilatildeo concreta um mundo jaacute se me abriu Com a coisa se
anuncia o mundo da vida ou melhor os mundos da vida o mundo circunstante o
mundo partilhado da convivecircncia o mundo proacuteprio pessoal A coisa soacute pode ser
apreendida na sua significacircncia a partir da abertura do mundo ou dos mundos
Perceber eacute jaacute compreender as coisas na sua significacircncia Perceber eacute estruturar
e configurar o mundo como estrutura significativa Em toda percepccedilatildeo atua pois um
ato fundamental de significaccedilatildeo Chamamos de significar o ato pelo qual o homem
estrutura a significacircncia das coisas no horizonte do mundo enquanto totalidade
significativa Da compreensatildeo que articula a significaccedilatildeo das coisas numa totalidade
sentido brota a possibilidade da interpretaccedilatildeo Pela compreensatildeo o homem estaacute
sempre se projetando abrindo lances de perspectivas entrevendo de antematildeo
36 Cfr M HEIDEGGER GP 102-110 37 Cfr M HEIDEGGER Ontologie (Hermeneutik der Faktizitaumlt) (OHF) Gesamtausgabe ndash Band 63 Vittorio Klostermann Frankfurt am Main 1995 p 93-104
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aberturas de possibilidades Pela compreensatildeo o homem opera um ver que eacute projetivo
e criativo de possibilidades de ser Esse ver projetivo e criativo configura isto eacute elabora
em formas significativas essas possibilidades de ser Agrave elaboraccedilatildeo e exposiccedilatildeo dessas
formas chamamos de interpretaccedilatildeo Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo se apropria do
que compreende Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo busca chegar a uma maturaccedilatildeo
isto eacute busca maturar as possibilidades de ser que ela jaacute entreviu A interpretaccedilatildeo eacute uma
explicitaccedilatildeo da compreensatildeo O que entra como componente da explicitaccedilatildeo possui o
caraacuteter de significacircncia eacute o mostrar-se de algo como algo Em todo o nosso
comportamento noacutes jaacute estamos sempre compreendendo e interpretando apreendendo
algo como algo e referindo algo a algo articulando significados numa totalidade de
sentido que eacute o mundo O homem sempre interpreta Pois interpretar eacute ser homem
A articulaccedilatildeo dos significados numa totalidade de sentido se daacute atraveacutes do falar
quer do falar de si consigo mesmo quer do falar uns com os outros Na fala noacutes
pronunciamos o que compreendemos e como interpretamos o que estaacute em questatildeo Pro-
nunciar eacute pro-ferir isto eacute trazer agrave luz ao aberto do mundo da convivecircncia aquilo que
compreendemos e interpretamos Pelo discurso vecircm agrave fala os entes e o ser dos entes
tais como se oferecem agrave nossa compreensatildeo e interpretaccedilatildeo Vem agrave fala agrave medida que
se articulam num horizonte de compreensibilidade que noacutes chamamos de sentido O
sentido eacute o que se articula na compreensatildeo e interpretaccedilatildeo como horizonte daquilo que
compreendemos e interpretamos Todo discurso eacute o pronunciar o vir agrave fala daquilo que
compreendemos e interpretamos dos significados das coisas agrave luz do sentido de ser que
noacutes lhes damos
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Os medievais iratildeo precisar e aprofundar a concepccedilatildeo de signo Assim para
Tomaacutes de Aquino o signum eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro
A palavra proferida exteriormente pela voz eacute a fala A fala eacute proferida a modo de uma
voz articulada significativa Nem todo o som eacute voz A voz enquanto haacutelito sopro som
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que sai da boca com efeito soacute chega a ser palavra quando eacute significativa38 Sem a
significaccedilatildeo (significatio) uma voz natildeo eacute palavra A significaccedilatildeo torna a voz uma
expressatildeo do pensamento39 Por isso somente um vivente inteligente (animal rationale)
tem voz enquanto palavra40 Um vivente melhor um animal emite sons para se
comunicar Mas os seus sons natildeo satildeo vozes articuladas significativas Os gritos os
alaridos de animais natildeo satildeo palavras Sua comunicaccedilatildeo natildeo eacute fala O berrar de um
bezerro o mugir de uma vaca o balar de uma ovelha o balir de um cordeiro o arrulhar
de uma pomba o latir de um catildeo o miar de um gato ndash tudo isso natildeo eacute fala Seus sons
natildeo satildeo vozes significativas Indicam alguma coisa Mas o seu indicar natildeo tem o sentido
de significar alguma coisa Significar eacute dar a conhecer algo como algo a algueacutem41 Fumaccedila
indica fogo Bandeira branca indica rendiccedilatildeo Indicar poreacutem natildeo eacute significar Todo
significar eacute um indicar mas nem todo indicar eacute significar Significar eacute dar a conhecer no
sentido de dar a compreender algo como algo A fala daacute a conhecer alguma coisa Ela
faz-se notar e faz notar alguma coisa A fala eacute um fazer notar que daacute a conhecer alguma
coisa42 A fala faz notar daacute a conhecer isto eacute gera uma ldquonotiordquo ou uma ldquonotitiardquo
(conhecimento noccedilatildeo sentido)43 Notar quer dizer aqui dirigir-se a alguma coisa
orientando-se no mundo (intencionalidade) tornando-se atento a ela ao seu ser
Joatildeo Duns Scotus iraacute retomar o triacircngulo semioacutetico do Peri hermeneiacuteas de
Aristoacuteteles Ele questiona sobre a distinccedilatildeo de litteras et voces (letras e vozes) de um
lado passiones (disposiccedilotildees da alma) e res (coisa) de outro lado na quarta das questotildees
sobre o primeiro livro do ldquoPerigrave hermeneiasrdquo e conclui pela sua conveniecircncia As
disposiccedilotildees da alma (significaccedilatildeo e sentido) satildeo as mesmas em todos bem como as
coisas que elas significam enquanto as letras e vozes satildeo diferentes dependendo da
liacutengua Com outras palavras as letras e vozes que satildeo diferentes de liacutengua para liacutengua
38 ldquoVox quae non est significativa verbum dici non potestrdquo (A voz que natildeo eacute significativa natildeo pode ser dita palavra) ndash Tomaacutes de Aquino op Cit (I341) 39 ldquoLocutio est proprium opus rationis (I913 ad 3) falar -diz Tomaacutes- eacute operaccedilatildeo proacutepria da razatildeo 40 Agrave base desta concepccedilatildeo estaacute a concepccedilatildeo grega do homem aacutenthropos como zoon logon echon (vivente que tem linguagem) Nesta traduccedilatildeo o loacutegos eacute tanto ratio (pensamento) quanto oratio (fala no sentido de discurso) 41 Em Tomaacutes no acircmbito da vox situa-se a palavra (verbum) A palavra eacute uma realizaccedilatildeo especial do signo (signum) que por sua vez eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro (III604) 42 Cfr Heidegger M Vom Wesen der Sprache Die Metaphysik der Sprache und die Wesung des Wortes - Zu Herders Abhandlung ldquoUumlber den Ursprung der Spracherdquo Gesammtausgabe Band 85 p 3-4 43 Cfr idem p 20
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satildeo sinais instituiacutedos pelo arbiacutetrio humano que representam as disposiccedilotildees da alma (no
caso significaccedilatildeo e sentido) que por sua vez satildeo sinais naturais representativos das
coisas44
As expressotildees orais ou escritas satildeo formas linguiacutesticas dotadas de significaccedilotildees e
de sentido Sentidos e significaccedilotildees que satildeo pensados vecircm agrave expressatildeo Eles satildeo
exprimiacuteveis atraveacutes de formaccedilotildees linguiacutesticas Uma coisa eacute a forma linguiacutestica da
expressatildeo o complexo graacutefico ou focircnico ou como dizem os medievais as voces (vozes)
Outra coisa eacute o conteuacutedo da expressatildeo a significaccedilatildeo o sentido no juiacutezo e no
entrelaccedilamento de juiacutezos (conclusatildeo silogismo) O conteuacutedo eacute um ldquosignificatumrdquo que
estaacute intencionalmente ldquoin menterdquo45
A voz se torna expressatildeo agrave medida que eacute dotada de significaccedilotildees e de sentido
Assim a proposiccedilatildeo enquanto sequecircncia de palavras eacute singular Mas o conteuacutedo da
proposiccedilatildeo o juiacutezo ora eacute singular se o predicado eacute dito de um soacute ou universal se o
predicado eacute dito de muitos A proposiccedilatildeo como uma sequecircncia de palavras natildeo eacute
verdadeira ou falsa Ela eacute ou natildeo eacute Eacute falada ou escrita Mas natildeo eacute verdadeira ou falsa O
sentido da proposiccedilatildeo o juiacutezo eacute que eacute verdadeiro ou falso natildeo poreacutem enquanto
simples conteuacutedo da proposiccedilatildeo mas soacute agrave medida que ele tem um valor objetivaacutevel um
valor de conhecimento objetivo46 Proposiccedilatildeo e sentido palavra e significaccedilatildeo
pertencem a acircmbitos de realidade diversos Os elementos linguiacutesticos que constituem
proposiccedilatildeo e palavra satildeo sensivelmente perceptiacuteveis (satildeo acuacutesticos visuais motores)
satildeo reais e temporais Jaacute as significaccedilotildees e o sentido se subtraem a uma percepccedilatildeo
sensorial e satildeo atemporais O elemento linguiacutestico de uma expressatildeo eacute um signum ad
44 Cfr Quaestiones in I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 7) ldquoAd quaestionem dicendum quod differentia est conveniens quia passiones inquanto sunt signa et res inquanto sunt significata sunt eandem apud omnes nam eadem passio in anima apud quoscumque concipientes repraesentat eamdem rem quia eadem similitudo in anima semper est eiusdem repraesentativa sicut est similitudo sensibilis in sensu litterae et voces in se eaedem non sunt eaedem apud omnes inquanto sunt signa quia nec eadem littera apud omnes repraesentat eamdem vocem sed vel aliam vel nullam nec eadem vox apud omnes significat eamdem passionem sed vel aliam vel nullamrdquo (SCOTUS 1998 p 918) 45 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 12) ldquoAd quaestionem dici potest quod iste liber non est de decem vocibus ut de primo subiecto ndash nec aliqua pars logicae est de voce quia omnes passiones syllogismi et omnium partium eius possunt sibi inesse secundum esse quod habent in mente etsi non proferantur () sed est de aliquo priore quod respectu voces significativae tantum habet rationem significatirdquo (SCOTUS 1998 p 652) 46 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 22) ldquoSimiliter lsquosignificare verum vel falsumrsquo convenit enuntiationi sed non ut vox est significans conceptum sed ut conceptus significat remrdquo (SCOTUS 1998 p 653)
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placitum um signo instituiacutedo conforme o agrado ou o arbiacutetrio de quem o usa47 As
significaccedilotildees e os sentidos poreacutem se subtraem ao arbiacutetrio daquele que pensa por ter
a sua proacutepria necessidade ideal ou objetiva
A forma linguiacutestica eacute signo da significaccedilatildeo que por sua vez eacute signo de algo de
objetual de alguma objetualidade (objetos estados-de-coisas notas distintivas formas
reais ou categoriais) Trata-se do triacircngulo semioacutetico que constitui a base da
consideraccedilatildeo sobre a linguagem em toda a tradiccedilatildeo ocidental e que vem de Aristoacuteteles
Para Duns Scotus palavra e proposiccedilatildeo enquanto formaccedilotildees linguiacutesticas
dotadas de significaccedilatildeo e de sentido apontam para a esfera objetual A formaccedilatildeo
linguiacutestica eacute sinal da significaccedilatildeo e do sentido que eacute por sua vez sinal do objeto Enfim
palavra e proposiccedilatildeo satildeo sinais das coisas ldquoQuidquid est signum signi est signum
signatirdquo ndash o que quer que seja sinal do sinal eacute sinal do assinalado48 Assim palavra e
proposiccedilatildeo se tornam sinais das objetualidades agraves quais se referem No entendimento
de Duns Scotus o conceito eacute o que eacute designado imediatamente o objeto eacute o que eacute
designado mediatamente pela expressatildeo O doutor sutil esclarece que significare eacute dare
intelligere dar a compreender49 O signo eacute algo de relacional possui um caraacuteter ou uma
funccedilatildeo remissiva O signo graccedilas a sua funccedilatildeo remissiva eacute o fundamento material de
que parte o conhecimento do designado A expressatildeo linguiacutestica poreacutem natildeo eacute somente
um signo que remete ou se refere a algo Ele eacute um signo que significa algo ou seja que
daacute a compreender algo ou algo de algo e que ademais se refere a objetualidades
visando dizer ou seja mostrar o que se mostra e como se mostra50
47 Cfr Quaestiones super I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 14) ldquo et instrumenta naturalia formandi vocem potest homo aliqua imponere quae sunt signa ad placitum et non naturalia sive conceptusrdquo (SCOTUS 1998 p 919) 48 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 28 n 28) ldquo lsquoQuidquid est signum signi est signum signatirsquo ita quod signum intermedium non varietur in comparatione ad primum signum et ultimum signatumrdquo (SCOTUS 1998 p 751) 49 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 8 n 1) ldquoQuia significare est intellectum constituererdquo (SCOTUS 1998 p 679) 50 Assim para Husserl a expressatildeo que funde numa unidade a manifestaccedilatildeo sensiacutevel a significaccedilatildeo e a referecircncia ao objeto estaacute ordenada tanto a um valor de conhecimento quanto a um valor de verdade Agrave expressatildeo corresponde ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo se constitui uma relaccedilatildeo com o objeto Triacuteplice eacute o conteuacutedo de uma expressatildeo a significaccedilatildeo a referecircncia ao objeto e por fim o preenchimento de sentido A expressatildeo pela significaccedilatildeo e pela referecircncia ao objeto daacute a compreender alguma coisa acerca de algo O preenchimento da intenccedilatildeo signitiva vazia no modo da confirmaccedilatildeo da documentaccedilatildeo intuitiva leva por sua vez agrave experiecircncia da verdade Para Husserl expressotildees satildeo signos significativos distintos dos signos indicativos Numa descriccedilatildeo fenomenoloacutegica da expressatildeo dotada de sentido se
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No De dialectica (Da dialeacutetica) Agostinho define a palavra como um sinal de
alguma coisa que proferido por quem fala pode ser compreendido por quem escuta (De
Dialectica 5) 51 Nesta definiccedilatildeo podemos perceber as vaacuterias dimensotildees do exerciacutecio
humano da linguagem a da comunicaccedilatildeo em que homens falam uns com os outros
compartilhando suas vidas e coparticipando de um mesmo mundo a da expressatildeo em
que homens se pronunciam a partir de seu ser num mundo comum o discurso pelo
qual homens falam uns com os outros e escutam uns aos outros a compreensatildeo e
interpretaccedilatildeo em que homens ouvindo uns aos outros recebem a mensagem e se
apropriam de seu sentido Como ponta do ldquoicebergrdquo de toda esta vitalidade do concurso
comunicativo e do discurso temos o sinal que eacute proferido por quem fala o som da boca
a voz que longe de ser um mero ruiacutedo eacute um sinal um signo e se sinal eacute sinal de
alguma coisa ou seja algo vem a ser significado por este signo ou sinal
podem evidenciar trecircs momentos que no entanto formam uma unidade intimamente fundida a apariccedilatildeo fiacutesica da expressatildeo o ato doador de sentido e o ato preenchedor de sentido Assim palavras e proposiccedilotildees satildeo sons articulados animados de sentido Agraves expressotildees satildeo essenciais os atos que conferem a significaccedilatildeo respectivamente as intenccedilotildees de significaccedilatildeo A estes atos se acrescentam de modo extra-essencial os atos que preenchem as significaccedilotildees confirmando reforccedilando ilustrando as intenccedilotildees de significaccedilatildeo Para que o signo se torne expressatildeo eacute preciso que lhe seja imposto uma significaccedilatildeo Husserl fala de emprestar significaccedilatildeo de conferir sentido Expressotildees satildeo unidades de signos e designados (sinais e assinalados) de espeacutecie bem peculiar Expressotildees satildeo sinais significativos A significaccedilatildeo adere ao ato significativo Com a expressatildeo que suscita o ato que confere o sentido nos orientamos ao objeto Agrave expressatildeo compete ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo eacute que se constitui a relaccedilatildeo com o objeto ldquoToda e qualquer expressatildeo natildeo quer apenas dizer qualquer coisa mas tambeacutem diz algo acerca de qualquer coisa ela natildeo tem apenas a sua significaccedilatildeo mas refere-se tambeacutem a quaisquer objetosrdquo (HUSSERL 2012 p 38 ndash grifo de Husserl) Assim significaccedilatildeo e referecircncia objetiva se distinguem Expressotildees podem ter a mesma significaccedilatildeo mas objetos diferentes por um lado e por outro podem ter significaccedilotildees diferentes mas o mesmo objeto Assim considerando dois enunciados ldquoeste sendeiro eacute um cavalordquo e ldquoBuceacutefalo eacute um cavalordquo a expressatildeo um cavalo tem a mesma significaccedilatildeo mas os objetos satildeo diferentes Por sua vez dois nomes podem significar coisas diferentes mas nomear o mesmo como no exemplo ldquoO vencedor de Iena - O vencido de Waterloordquo Significaccedilatildeo e referecircncia objetiva no entanto estatildeo em iacutentima conexatildeo A expressatildeo se refere ao objeto por meio da significaccedilatildeo Uma expressatildeo adquire um referimento ao objeto pelo simples fato de que esta significa algo Por isso eacute que dizemos que uma expressatildeo designa ou denomina algo por meio do seu significado ou seja o ato de significar eacute o modo determinado de intencionar o objeto em questatildeo soacute que justamente este modo de intencionar e portanto o significado mesmo pode variar enquanto permanece idecircntica a direccedilatildeo para o objeto Se considerarmos pois os trecircs momentos que se fundem numa unidade na expressatildeo temos aquilo que de modo equiacutevoco se chama o expressado da expressatildeo ldquoOs termos em relaccedilatildeo ndash manifestaccedilatildeo significaccedilatildeo e objeto ndash pertencem essencialmente a toda e qualquer expressatildeo Em cada uma qualquer coisa eacute manifestada qualquer coisa eacute significada e qualquer coisa eacute nomeada ou de algum modo designada E no discurso equiacutevoco tudo isto se diz lsquoexpressorsquordquo 51 Idem p 14
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No escrito sobre a dialeacutetica Agostinho trata de quatro elementos desta arte o
verbum o dicibile52 a dictio53 e a res Vejamos como Agostinho expotildee o nexo entre estes
quatro elementos
Ora porque as palavras (verba) satildeo sinais das coisas (signa rerum) quando se ocupam com as coisas enquanto satildeo sinais das palavras (signa verborum) quando se discute sobre palavras ndash pois sobre palavras natildeo podemos falar a natildeo ser com palavras e quando falamos natildeo falamos a natildeo ser de coisas ndash ocorre agrave mente que as palavras satildeo sinais das coisas sem deixar de ser coisas
Quando pois a palavra sai da boca se sai por causa de si mesma isto eacute para que acerca dela se inquira ou se discuta haacute certamente uma coisa que eacute sujeita a discussatildeo e a investigaccedilatildeo mas justamente esta coisa eacute chamada palavra
E o que quer que a partir da palavra natildeo os ouvidos mas a mente (animus) percebe (sentit) e que a mente mesma manteacutem incluiacuteda em si se chama dicibile54 Quando poreacutem a palavra sai natildeo por causa de si mesma mas para significar algo de outro chama-se dictio55 E a coisa mesma que natildeo eacute uma palavra nem ainda uma concepccedilatildeo da palavra na mente seja que tenha uma palavra com a qual possa ser significada seja que natildeo a tenha daqui por diante natildeo eacute chamada com nome apropriado de outro modo do que de coisa
Estes quatro hatildeo de ser mantidos distintamente portanto a palavra (verbum) o dicibile a dictio a coisa Aquilo que defini como palavra eacute uma palavra e significa a palavra Aquilo que defini dicibile eacute uma palavra e todavia natildeo significa a palavra mas aquilo que graccedilas agrave palavra se compreende e estaacute contido na mente Aquilo que eu defini dictio eacute uma palavra mas uma palavra que significa contemporaneamente as outras duas ou seja a palavra mesma e aquilo que se faz na mente atraveacutes da palavra Aquela que eu defini como coisa eacute uma palavra que significa tudo aquilo que fica fora das trecircs que foram ditas
52 Seria o λεκτόν (lektoacuten) dos estoicos 53 Seria a λέξις (leacuteksis) dos estoicos 54 O exprimiacutevel ou melhor o diziacutevel no sentido do mostraacutevel 55 A expressatildeo o dito do dizer
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Depois destas digressotildees necessaacuterias para aclararmos o que estaacute em questatildeo
voltemos ao livro II do ldquoDe Doctrina Christianardquo de Agostinho Retomemos a sua
consideraccedilatildeo a respeito do signo
Haacute dois tipos de signos os naturais e os convencionais Os naturais datildeo a
conhecer por si proacuteprios alguma coisa aleacutem do que satildeo em si Assim fumaccedila eacute signo
de fogo Os signos convencionais (data signa) satildeo todos aqueles que os seres vivos em
especial o ser humano mutuamente se trocam para manifestar ndash o quanto lhes eacute
possiacutevel ndash os movimentos de sua alma tais como as sensaccedilotildees e os pensamentos Os
signos podem se dar em referecircncias a todos os sentidos a maioria dos signos poreacutem
se referem agrave audiccedilatildeo ou agrave visatildeo Dentre estes signos mais usuais e importantes satildeo os
signos verbais que satildeo sons significativos que se articulam mediante a voz humana
constituindo a palavra falada Os signos escritos poreacutem mostram os signos verbais de
maneira visiacutevel (e natildeo audiacutevel como fazem os signos falados)
A liacutengua eacute a realizaccedilatildeo concreta da linguagem humana mediante o uso de signos
verbais falados ou escritos As Sagradas Escrituras indicam pela histoacuteria da Torre de
Babel que liacutengua e linguagem sofrem com a decadecircncia do espiacuterito humano causada
pela soberba56 O contraacuterio da histoacuteria de Babel eacute poreacutem a histoacuteria de Pentecostes
narrada no livro dos Atos dos Apoacutestolos que aponta para a comunhatildeo do amor e o
muacutetuo entendimento entre os homens propiciado com o dom do Hagioacutes Pneuma
(Sopro Sagrado Espiacuterito Santo)
56 Na histoacuteria narrada pelo livro do Gecircnesis os homens se unem para erguer uma torre que una a terra ao ceacuteu a partir das proacuteprias forccedilas e da proacutepria engenhosidade Nos povos antigos encontramos monumentos que evocam algo disso O desejo do homem de uniatildeo entre o ceacuteu e a terra se manifesta nos zigurates da mesopotacircmia nas piracircmides das altas culturas das pedras (Egito Peru Meacutexico) nas estupas asiaacuteticas e quiccedilaacute em tempos mais primitivos aos dolmens menires nas cacircmaras funeraacuterias e nos obeliscos Junto com o esforccedilo de o homem erguer-se a si mesmo como homem erguendo pedras haacute o esforccedilo tambeacutem de alcanccedilar a vida dos imortais dos deuses tolhendo a proacutepria finitude Babel que era para ser a ldquoporta dos deusesrdquo (babilani) se torna poreacutem o lugar da confusatildeo (balal = confundir) O mundo se torna assim uma ldquoBabilocircniardquo isto eacute o lugar da confusatildeo em que os homens natildeo conseguem chegar ao entendimento muacutetuo Somente em Pentecostes em Jerusaleacutem celebra-se plenamente a superaccedilatildeo desta divisatildeo e desta confusatildeo em que as liacutenguas natildeo satildeo mais confusas e em que a linguagem do amor ardente une os homens e propicia-lhes a chance do entendimento muacutetuo e da verdadeira concoacuterdia uma concoacuterdia para o bem em favor de Deus
24
Aquele vento purificava os coraccedilotildees da palha carnal aquele fogo consumia o feno da antiga concupiscecircncia aquelas liacutenguas em que falavam os que estavam plenos do Espiacuterito Santo prefiguravam a futura Igreja mediante liacutenguas de todos os povos Pois assim como depois do diluacutevio a soberba impiedade dos homens edificou uma grandiosa torre contra o Senhor ocasiatildeo na qual o gecircnero humano mereceu ser dividido pela diversidade das liacutenguas de modo que cada naccedilatildeo falasse sua proacutepria liacutengua para natildeo ser entendido pelas demais assim a humilde piedade dos fieis reduziu a diversidade de liacutenguas agrave unidade da Igreja de maneira que aquilo que a discoacuterdia tinha dispersado o reunisse a caridade e assim os membros dispersos do gecircnero humano qual membros de um mesmo corpo fossem reintegrados agrave unidade de uma uacutenica cabeccedila que eacute Cristo e fundidos na unidade do corpo santo mediante o fogo do amor57
O maior sinal da comunhatildeo do amor eacute quando os homens conseguem falar uns
com os outros e se entender Embora sejam diferentes e falem liacutenguas diferentes falam
a partir de uma mesma linguagem a do amor-caridade (gratuidade) As liacutenguas se
tornam entatildeo como labaredas do amor As falas satildeo entatildeo falas inflamadas de um fogo
divino brilhantes e ardentes divinamente apaixonadas entusiasmadas O amor eacute o que
possibilita manter esta identidade na diferenccedila Cria-se uma identidade comum mas
sem desfazer antes protegendo as diferenccedilas Eacute o milagre das liacutenguas O contraacuterio de
Babel Recriaccedilatildeo do homem humano e da humanidade universal
Assim os homens podem voltar agrave linguagem comum apesar da diversidade das
liacutenguas unindo suas vontades no empenho de conhecer e realizar a vontade de Deus A
serviccedilo deste intento estatildeo as Sagradas Escrituras Estas satildeo obra do proacuteprio Deus que
usou de hagioacutegrafos inspirados para expressar a sua vontade na linguagem humana
mediante as diversas liacutenguas Os que leem as Sagradas Escrituras natildeo desejam encontrar
nelas mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram e desse modo chegar
a conhecer a vontade de Deus segundo a qual ordem esses homens compuseram
Entretanto o leitor das Sagradas Escrituras vai se deparar continuamente com
ambiguidades e obscuridades Para Agostinho estas fazem parte da proacutepria natureza das
Escrituras Sagradas Haacute um certo quecirc de hermeacutetico de enigmaacutetico de obscuro nelas
57 Sermatildeo 271
25
Mas eacute justamente isto que desafia a compreensatildeo e que a faz crescer na busca da
vontade divina As obscuridades e ambiguidades natildeo satildeo inuacuteteis Elas vencem o orgulho
do homem que se aproxima dos misteacuterios divinos sem reverecircncia e sem devoccedilatildeo Por
outro lado elas premunem o espiacuterito do fastio e do teacutedio que a facilidade sempre trazem
consigo As dificuldades de interpretaccedilatildeo cria-nos o gosto pelo exerciacutecio da
compreensatildeo na sua aventura de conquista do sentido Contudo natildeo se deve ter a
pretensatildeo de que se pode chegar a uma clareza que elimine toda sombra e obscuridade
A clareza do misteacuterio que se desvela sempre traz o veacuteu do pudor em que o misteacuterio
mesmo se encobre e assim se resguarda Os significados hauridos seratildeo sempre acenos
do inefaacutevel na medida em que o misteacuterio santo se deixa captar no horizonte do sentido
Uma vez que as Sagradas Escrituras satildeo linguagem do misteacuterio santo do Deus
absconditus (Deus escondido) que se re-vela (desvela e vela ao mesmo tempo) na
finitude da linguagem humana o leitor vai se deparar com desafios sempre novos
Agostinho recorre entatildeo agrave alegorese seguindo neste ponto a tradiccedilatildeo dos
alexandrinos As alegorias possuem encanto todo especial capaz de falar natildeo somente
ao entendimento mas tambeacutem ao coraccedilatildeo dos homens Com efeito a linguagem
imageacutetica concreta tem maior poder de comunicaccedilatildeo vital do que a linguagem
conceitual abstrata O uso de comparaccedilotildees leva o leitor a aprender mais
espontaneamente (libenter) As dificuldades de interpretaccedilatildeo levam-no a aprender com
maior prazer (gratius) As passagens obscuras das Escrituras aguccedilam a fome de
compreensatildeo do leitor Entretanto Agostinho daacute uma indicaccedilatildeo metodoloacutegica de leitura
importante para ir abrindo a compreensatildeo das Escrituras ganhar familiaridade com as
passagens claras e inequiacutevocas e com isso iluminar as passagens obscuras e
enigmaacuteticas Com efeito diz ele quase nada sobressai nas obscuridades que natildeo esteja
escrito mais claramente em outro lugar
Aquele que lecirc as Sagradas Escrituras procurando nelas a vontade divina eacute algueacutem
que estaacute a caminho numa viagem para a paacutetria da beatitude eterna Este caminhar
comporta determinado itineraacuterio no qual o homem vai se dispondo cada vez mais ao
Espiacuterito de Deus e ao seu modo de operar na alma os seus dons Eacute na medida que se
aproxima da Sabedoria do Espiacuterito que o leitor lecirc com maior proveito e profundidade as
26
Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
27
Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
28
Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
29
Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
30
(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
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Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
6
Seguindo esta diretriz de ordenaccedilatildeo do saber Agostinho recusa uma formaccedilatildeo e
uma cultura que se limita agraves artes liberais ou de um saber que forma apenas o litterator
ou grammaticus entregue agrave vaidade do falar bem Contra o esteticismo decadente da
cultura latina de seu tempo ele investe o seu princiacutepio Res non verba13 Opotildee-se
tambeacutem agrave curiositas (curiosidade) que ele toma como o oposto do studium ndash o curiosus
eacute para ele com efeito o oposto do studiosus14 Com efeito ao contraacuterio do homem
ldquostudiosusrdquo (estudioso) cuja busca do saber se compromete com a transformaccedilatildeo da
proacutepria mente por meio do conhecimento da verdade o homem ldquocuriosusrdquo (curioso)
que aparenta querer saber natildeo quer poreacutem que o saber o transforme e o forme em
sua interioridade em seu caraacuteter e em suas accedilotildees A curiosidade pertence agrave triacuteplice
concupiscecircncia que torna a vida do homem decadente miseraacutevel a que alude a Sagrada
Escritura15 Chama-a de ldquoconcupiscecircncia dos olhosrdquo (concupiscentia oculorum) o desejo
de tudo ver e experimentar (cupiditas experiendi) sem nenhum comprometimento
Atinge sobretudo o mundo da convivecircncia humana ldquoCuriosum genus ad cognoscendam
vitam alienam desidiosum ad corrigendam suam ndash uma raccedila curiosa para conhecer a
vida alheia indisposta para corrigir a suardquo
Aleacutem do studium sapientiae (estudo empenho da sabedoria) que constitui a
formaccedilatildeo filosoacutefica Agostinho considerava tambeacutem um outro niacutevel de formaccedilatildeo
propriamente cristatilde do homem a doctrina christiana que consistia no exerciacutecio da
inteligecircncia que aprofunda os dados da revelaccedilatildeo Seu programa inclui o estudo das
Escrituras Sagradas a exegese a exposiccedilatildeo especulativa da feacute a controveacutersia e a
apologeacutetica Os escritos de Agostinho voltados para este campo satildeo redigidos sobretudo
13 ldquoCoisa (o real) natildeo palavrasrdquo 14 Heidegger fez uma exposiccedilatildeo sobre a curiosidade em termos de hermenecircutica da facticidade e analiacutetica da existecircncia no sect 36 de Ser e Tempo 15 ldquoNatildeo ameis o mundo nem o que estaacute no mundo Se algueacutem ama o mundo o amor do Pai natildeo estaacute nele pois tudo o que estaacute no mundo ndash a concupiscecircncia da carne (epithymia thecircs sarkoacutes) a concupiscecircncia dos olhos (epithymia tocircn ophtalmocircn) e a confianccedila orgulhosa nos bens (alazoneacuteia tou biou) ndash natildeo vem do Pai mas vem do mundo Ora o mundo passa bem como sua concupiscecircncia mas o que faz a vontade de Deus permanece para semprerdquo (1 Jo 2 15-17) A concupiscecircncia da carne (concupiscentia carnis) na interpretaccedilatildeo de Agostinho eacute a a ldquolibidordquo a cobiccedila do prazer (cupiditas oblectandi) A concupiscecircncia ou cobiccedila dos olhos (concupiscentia oculorum) eacute a curiosidade o desejo de tudo ver e experimentar (cupiditas experiendi) sem comprometimento Talvez este fenocircmeno seja afim ao que Pascal em seus Pensamentos chama de ldquodivertissementrdquo A terceira forma de ldquotemptatiordquo (tentaccedilatildeo ser posto agrave prova) eacute a ldquoambitio saeculirdquo (ambiccedilatildeo do mundo) ou a jactacircncia (iactantia) que querer ser temido e amado pelos outros Heidegger fez uma interpretaccedilatildeo a partir da hermenecircutica da faticidade da exposiccedilatildeo desta triacuteplice tentaccedilatildeo humana em ldquoFenomenologia da Vida Religiosardquo (vol 60 das suas obras completas)
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apoacutes assumir encargos eclesiaacutesticos Natildeo obstante nestes escritos ele natildeo deixa de
filosofar (cf por exemplo o tratado sobre a Trindade) A sapientia adquire agora para
ele outro sentido mais elevado e abrangente contemplativo-religioso sapientia est
contemplatio veritatis pacificans totum hominem et suscipiens similitudinem Dei16 Esta
sabedoria no entanto natildeo exclui antes inclui tanto o aspecto eacutetico do estudo quanto
o aspecto metafiacutesico isto eacute a cognitio intellectualis (conhecimento intelectual) de anima
(a respeito da alma) e de Deo (a respeito de Deus)
Aleacutem da sapientia que visa o que eacute imutaacutevel eterno Agostinho considera
tambeacutem a scientia que visa o que eacute temporal histoacuterico cognitio historica
(conhecimento histoacuterico) Ora a revelaccedilatildeo divina que se propotildee agrave feacute se manifesta na
histoacuteria ela se transmite de modo empiacuterico por um testemunho materializado por
palavras por um livro a Escritura Sagrada Surge daiacute a demanda de uma scientia que
seraacute a atividade da inteligecircncia que se aplica ao conhecimento do conteuacutedo da feacute No
livro XIV da obra De Trinitate (Da Trindade) Agostinho escreve
Natildeo atribuo agrave ciecircncia (scientia) o que quer que possa ser sabido pelos homens nas coisas humanas aqui onde haacute grande quantidade de supeacuterfluo de vaidade e de curiosidade nociva mas tatildeo somente aquilo que gera nutre defende e fortalece a feacute sobremaneira salutar que conduz agrave verdadeira beatitude (quo fides sabuberrima quae ad verae beatitudinem ducit gignitur nutritur defenditur roboratur) A maior parte dos fieacuteis natildeo possuem esta ciecircncia seja qual for de resto a intensidade da feacute deles Uma coisa com efeito eacute saber simplesmente aquilo que o homem deve crer para obter a beatitude eterna outra coisa eacute saber (scire) como aportar este mesmo conteuacutedo da feacute agraves almas pias e defender contra os iacutempios eacute a respeito deste segundo aspecto que depois de Satildeo Paulo (1 Cor 12 8) se deve propriamente reservar o vocaacutebulo ciecircncia
Agostinho lecirc poreacutem a Escritura em consonacircncia com a tradiccedilatildeo e com a
autoridade da Igreja17 No seacuteculo XII esta ciecircncia levaraacute o nome de ldquoSacra Paginardquo
(sagrada paacutegina) Abelardo mesmo apresentaraacute a sua siacutentese especulativa do conteuacutedo
16 A sapiecircncia eacute a contemplaccedilatildeo da verdade pacificando o homem todo e recebendo a semelhanccedila de Deus De Sermone Domini in Monte 1 3 17 A hermenecircutica protestante com o Sola Scriptura excluiraacute a tradiccedilatildeo e o ensinamento autoritativo da Igreja (magisteacuterio) como criteacuterios que acompanham a leitura das Escrituras Sagradas
8
da feacute apenas como uma introduccedilatildeo agrave Sagrada Escritura Uma autonomia especulativa
da exposiccedilatildeo do conteuacutedo da feacute soacute aconteceraacute propriamente no seacuteculo XIII ndash eacute o
nascimento daquilo que noacutes hoje chamamos de ldquoteologiardquo Em Agostinho a exegese
biacuteblica e a exposiccedilatildeo dogmaacutetica especulativa se mesclam natildeo obstante hajam escritos
em que a exposiccedilatildeo dogmaacutetica e sistemaacutetica do conteuacutedo da feacute se potildeem em primeiro
plano O motivo poreacutem destas exposiccedilotildees estaacute quase sempre situado num contexto de
controveacutersia de polecircmica de apologeacutetica em torno do conteuacutedo da feacute Mas em
Agostinho toda discussatildeo dogmaacutetica toda controveacutersia e apologeacutetica natildeo visa outra
coisa que a defesa do conteuacutedo da feacute das Sagradas Escrituras
Uma obra fundamental para se entender a hermenecircutica em Agostinho eacute o ldquoDe
doctrina christianardquo (Da doutrina cristatilde) Apresentamos a seguir uma recensatildeo desta
escrito
Esta obra faz parte de uma seacuterie de obras exegeacuteticas do hiponense e parece
constituir-se numa espeacutecie de teoria da exegese contendo tambeacutem um livro sobre o
modo de se expor a Sagrada Escritura com eloquecircncia e sabedoria Ela comeccedilou a ser
escrita pouco depois de Agostinho se tornar bispo isto eacute pelo ano 397 Num primeiro
momento a obra foi publicada inacabada indo ateacute o capiacutetulo 25 nordm 35 do Livro III Mais
tarde ao revisar suas obras Agostinho se propotildee terminar esta e o faz natildeo soacute
completando o livro III como tambeacutem acrescentando o livro IV A conclusatildeo desta obra
teria se dado laacute pelo ano de 4267
A ldquoDoutrina Cristatilderdquo eacute composta de um proacutelogo e quatro livros No proacutelogo
Agostinho relata o objetivo da obra oferecer normas uacuteteis acerca da interpretaccedilatildeo das
Sagradas Escrituras agravequeles que se dedicam a este estudo Atraveacutes destas normas o
estudioso poderaacute esclarecer muitas obscuridades que as Escrituras encerram Em
seguida Agostinho usa da comparaccedilatildeo de algueacutem que mostra a outra a lua com o dedo
para refutar eventuais contestadores de seu esforccedilo Os primeiros satildeo aqueles que natildeo
entendem as regras Estes se comportam como as pessoas que nem sequer veem o
dedo devido ao fato de a acuidade se sua visatildeo ser muito deficiente Os segundos satildeo
os que entendem as regras mas natildeo conseguem aplica-las Estes fixam o olhar no dedo
mas natildeo se voltam para mirar a lua Um terceiro tipo de opositores seria daquelas
pessoas que acham poderem se dispensar de instruccedilatildeo junto a seres humanos na
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pretensatildeo de terem conquistado o dom da compreensatildeo das divinas Escrituras
diretamente de Deus A estes Agostinho procura mostrar que a proacutepria Sagrada
Escritura pressupotildee a convivialidade dos que ensinam e aprendem mesmo
considerando que tanto uns como outros fundamentalmente aprendem de Deus Em
terceiro lugar o dom de interpretar as Escrituras natildeo dispensa mas ao contraacuterio exige
o esforccedilo de aprender Perspicaacutecia interesse de ir agraves coisas mesmas e disposiccedilatildeo de
aprender satildeo atitudes que devem ter quem quer ler esta obra
O objeto temaacutetico de ldquoA doutrina cristatilderdquo eacute a ldquotractatio scripturarumrdquo ou seja o
modo de proceder no trato com as Escrituras Isto comporta uma dupla implicaccedilatildeo
aprender a maneira de se descobrir o que eacute para ser entendido e por outro lado
aprender a maneira de se expor com propriedade o que foi entendido Os trecircs primeiros
livros da obra se atecircm agrave maneira de descobrir e o quarto livro agrave maneira de expor
Toda doutrina ou ciecircncia versa sobre coisas e sinais Coisas eacute tudo o que natildeo estaacute
empregado para significar algum outro objeto Sinais eacute tudo o que se emprega para
significar alguma coisa aleacutem de si mesmo As coisas satildeo conhecidas por meio de sinais
Os sinais devem ser entendidos como sinais e natildeo como coisas isto eacute na sua funccedilatildeo de
sinalizar e natildeo no seu ocorrer meramente factual O primeiro livro iraacute tratar das coisas
elementares da Sagrada Escritura isto eacute aquelas realidades junto agraves quais se empenha
o esforccedilo da compreensatildeo O segundo livro trata dos sinais da Sagrada Escritura e do
modo de chegar ao significado mediante o rigor da interpretaccedilatildeo O terceiro livro se
ocupa em ensinar como resolver as ambiguidades nos textos que se devem interpretar
quer em sentido proacuteprio quer em sentido figurado O quarto livro iraacute indicar como expor
as coisas da Sagrada Escritura com eloquecircncia e sabedoria
O primeiro livro expotildee algumas concepccedilotildees fundamentais sobre a realidade do
real (o ser do ente ndash das ldquocoisasrdquo) As coisas no seu todo se dividem em duas grandes
categorias aquelas que satildeo para a fruiccedilatildeo e aquelas que satildeo para o uso (uti et frui)
ldquoFruir (frui) eacute estar ligado a uma coisa por amor a ela Usar (frui) eacute relacionar aquilo de
que se tem uso com a posse daquilo que se amardquo (1 4 4) Notemos que Agostinho pensa
a realidade do real em seu concernir agrave vida humana A vida humana consiste em
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curare18 O uti (usar) eacute o cuidar que lida com aquilo que contribui para o viver O frui
(fruir) eacute gozar Por exemplo o belo que pertence agrave vigecircncia do ser eacute fruiacutedo A beata
vita (vida bem-aventurada feliz) eacute a do homem que goza do sumo bem (Deus) Eacute para
ser fruiacuteda aquela coisa que deleita por si mesma sem estar referida a outra coisa19 Eacute
para ser usada aquela coisa que eacute que eacute buscada desejada e que deleita por causa de
outra coisa As coisas temporais visiacuteveis satildeo para ser usadas As coisas eternas
invisiacuteveis para serem fruiacutedas O viacutecio a perversatildeo consiste em inverter esta ordem
querer fruir do que eacute para ser usado A virtude poreacutem consiste em fruir do que eacute para
ser fruiacutedo e usar do que eacute para ser usado20 A beatitude eacute a fruiccedilatildeo do sumo e imutaacutevel
bem a Trindade Deus eacute a beleza inteligiacutevel imutaacutevel inefaacutevel Toda a miacutestica medieval
iraacute visar a esta fruiccedilatildeo de Deus como o sumo bem como a suma beleza Na fruiccedilatildeo de
Deus o homem encontra o repouso a quietude (quies) Embora em tudo isso haja
elementos do pensamento grego (neoplatocircnico) no entanto a concepccedilatildeo da vida
humana e da realidade do real em Agostinho estaacute enraizada na compreensatildeo do Novo
Testamento Ele assim traz agrave fala em que consiste a ldquovita praesensrdquo (vida presente) do
cristatildeo eacute vida vivida ldquoin re laboris sed in spe quietis in carne vetustatis sed in fide
novitatisrdquo (no real do labor mas na esperanccedila do repouso na carne da velhice mas na
feacute da novidade) A esperanccedila precede A vida segue isso que a esperanccedila antecipa A
vida se realiza na direccedilatildeo daquilo que a esperanccedila antecipa21
Ainda no primeiro livro encontra-se uma exposiccedilatildeo do conteuacutedo da feacute a modo
de uma siacutentese dogmaacutetica fala da Trindade enquanto aquilo a que a aspiraccedilatildeo de
fruiccedilatildeo por parte do homem estaacute destinada Esta fala se articula em termos biacuteblicos e
tambeacutem em termos metafiacutesicos Trata-se de uma exposiccedilatildeo dogmaacutetico-metafiacutesica dos
misteacuterios e arcanos da feacute cristatilde Ao seu fundo poreacutem estaacute toda uma experiecircncia faacutetica
da vida22 Depois desta exposiccedilatildeo sobre a essecircncia da feacute cristatilde (os misteacuterios que nela satildeo
18 Curo curas curare curavi curatum Verbo transitivo ndash Sentido proacuteprio 1) cuidar olhar por tratar velar Daiacute 2) tratar curar 3) no contexto administrativo governar dirigir administrar 4) no contexto militar comandar 5) no contexto comercial fazer pagar 4) fazer por ter em conta de ter cuidado de 19 De civitate Dei (A cidade de Deus) XI 25 20 De Diversibus quaestionibus XXX 21 Cf Heidegger M Fenomenologia da Vida Religiosa p 258-260 22 A uacutenica ldquocoisardquo (o uacutenico real) a ser fruiacuteda eacute a Trindade Agostinho remete pois inicialmente ao Triuno Deus de quem por quem e para quem existem todas as coisas Os mesmos atributos divinos devem ser predicados de cada uma das pessoas da Trindade isto eacute do Pai do Filho e do Espiacuterito Santo Cada um deles eacute ele proacuteprio na plenitude de sua substacircncia O ser do Pai estaacute na Unidade o ser do Filho na
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cridos) Agostinho trata do ldquoethosrdquo do viver cristatildeo seguindo ainda pelo fio condutor
do ldquouti et fruirdquo (usar e fruir) O essencial do ethos cristatildeo eacute o duplo preceito do amor a
Deus e ao proacuteximo O ethos do viver cristatildeo se instaura segundo a ldquoOrdo dilectionisrdquo
(ordem da dileccedilatildeo ou do amor) A identidade do cristatildeo consiste no seu modo de amar23
Igualdade e o ser do Espiacuterito Santo na harmonia da unidade e da igualdade Natildeo obstante natildeo se trata de trecircs seres mas de um uacutenico Ser Agostinho estaacute ciente da limitaccedilatildeo do entendimento no vigor do silecircncio que se recolhe diante do misteacuterio divino do Deus uno e trino arcano fundamental da feacute cristatilde Deus eacute antes de tudo o inefaacutevel Quando a mente humana cogita acerca do misteacuterio divino que se doa ao se retrair ela busca captar uma realidade transcendental a mais proacutexima visto ser a mais iacutentima mais iacutentima a noacutes que noacutes mesmos e ao mesmo tempo a mais distante (inacessiacutevel justamente em virtude desta proximidade) Eacute esta realidade primeira que institui todo o real quer nas suas realizaccedilotildees sensiacuteveis quer nas inteligiacuteveis Percorrendo-se os diversos niacuteveis de constituiccedilatildeo da vida chega-se agravequela Vida que se define como Sabedoria imutaacutevel isto eacute sempre idecircntica consigo mesma O Deus vivo que eacute o Vivente por excelecircncia eacute o anseio mais profundo da alma humana Contemplaacute-lo e fruir da sua bondade e beleza eacute a beatitude do homem Contudo para que o homem possa chegar agrave visatildeo e fruiccedilatildeo de Deus eacute necessaacuteria a purificaccedilatildeo interior ao longo de sua vida que aparece como um caminho uma viagem uma travessia de retorno agrave paacutetria Esta purificaccedilatildeo se daacute mediante o bom empenho os bons desejos e os costumes No entanto natildeo podemos ir agrave Sabedoria se ela natildeo se dispotildee a vir a noacutes adaptando-se agrave fraqueza dede nossa condiccedilatildeo carnal isto eacute finita fraacutegil decadente mortal No entanto esta Sabedoria que se encarna na realidade da vida faacutetica humana foi rejeitada por muitos como fraqueza e loucura Eacute o misteacuterio da keacutenosis (esvaziamento) do rebaixamento do Filho de Deus o Verbo que se fez carne e atendou entre os homens Mas eacute justamente por esta fraqueza e loucura divina manifestada na encarnaccedilatildeo e na paixatildeo do Verbo humanado Jesus Cristo que acontece a redenccedilatildeo isto eacute a libertaccedilatildeo e a salvaccedilatildeo de todos os homens Nele a Sabedoria cura o homem impregnado de fraqueza e mergulhado na loucura O homem usou mal do dom da imortalidade e caiu na morte Cristo usou bem de nossa mortalidade e isso devolveu ao homem o acesso agrave plenitude da vida Atraveacutes dos misteacuterios da vida de Cristo isto eacute dos misteacuterios de sua encarnaccedilatildeo de sua paixatildeo e tambeacutem de sua ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo com o consequente envio do Espiacuterito Santo os homens satildeo fortalecidos na feacute e avivados no conhecimento Nestes misteacuterios os que creem consideram o quatildeo livremente Cristo deu sua vida pelos homens ele que possuiacutea o poder de retomaacute-la Aqueles que favorecidos pela graccedila da redenccedilatildeo creram no Filho de Deus encarnado e crucificado como Senhor (o Ressuscitado) formam um soacute corpo constituindo deste modo a realidade da Igreja Esta eacute a esposa de Cristo Atraveacutes dos sacramentos ela se purifica para vir se unir ao Esposo Cristo Jesus na eternidade apresentando-se diante dele sem manchas nem rugas Eacute no interior desta Igreja que os homens satildeo gerados para a semelhanccedila com Cristo e recebem o perdatildeo dos pecados (batismo) Desta mesma Igreja recebem a feacute na ressurreiccedilatildeo do corpo e na vida eterna Estes misteacuterios e arcanos cristatildeos satildeo acolhidos pelo homem que estaacute a caminho da paacutetria (a vida eterna) Neste caminho o crente sempre de novo morre para o mundo e vive para Deus Verdade e Vida 23 O homem haacute de amar a Deus por causa dele proacuteprio As criaturas em contrapartida satildeo amadas agrave medida que ajudam o homem a crescer no amor de Deus O amor a si mesmo e ao proacuteprio corpo eacute uma lei natural e por isso natildeo requer nenhum preceito (mandamento) Mas o amor ao que estaacute ao seu lado (o proacuteximo) e o amor ao que estaacute acima dele (Deus) requer preceito Haacute no entanto um falso e um verdadeiro amor de si proacuteprio O verdadeiro amor de si consiste em buscar o que eacute uacutetil e salutar para si mesmo crescendo na caridade (o amor gratuito a Deus e ao proacuteximo) O falso amor de si consiste em submeter o proacuteximo e o proacuteprio corpo a fim de fruir deles Quanto ao amor ao proacuteprio corpo Agostinho relembra a citaccedilatildeo do Apoacutestolo (Paulo) que diz ldquoningueacutem jamais quis mal agrave sua proacutepria carnerdquo (Ef 5 29) Mesmo os que reconhecem sadiamente a necessidade da ascese fazem-no para submeter o corpo ao espiacuterito segundo a ordem da natureza buscando assim a paz e a harmonia O preceito da caridade eacute duplo exige o amor a Deus acima de tudo e o amor ao proacuteximo como a si mesmo A partir do duplo amor natural e do duplo preceito da caridade descobre a ldquoOrdo Dilectionisrdquo (ordem da dileccedilatildeo isto eacute do amor) Ordem implica numa estruturaccedilatildeo em niacuteveis neste caso em niacuteveis de dignidade A ordenaccedilatildeo do amor eacute instaurada quando o homem ama o que deve ser amado (o bem) e natildeo ama o que natildeo deve ser amado (o mal o viacutecio o pecado) Depois quando o homem ama menos o que eacute menos digno de amor (o corpo)
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O amor (dilectio caritas) eacute o princiacutepio que rege toda a vida humana na perspectiva da
feacute cristatilde24 O duplo preceito do amor (a Deus e ao proacuteximo) eacute aqui a norma universal e
primordial que rege toda a ordem do viver O amor a Deus acima de tudo e o amor ao
proacuteximo eacute a essecircncia a substacircncia da revelaccedilatildeo divina (ldquoa Lei e os Profetasrdquo) que foi
radicalizada e consumada em Jesus Cristo no seu novo e eterno testamento
(testemunho) Daiacute se segue que a edificaccedilatildeo da caridade eacute a norma reacutegia e suprema de
toda a interpretaccedilatildeo das Sagradas Escrituras25 Para o homem que atingiu a perfeiccedilatildeo
do amor (caridade perfeita) as Sagradas Escrituras deixam de ser necessaacuterias uma vez
que toda a finalidade delas eacute levar o homem agrave perfeiccedilatildeo do amor (caridade perfeita)
Deste modo as Escrituras Sagradas requerem um leitor que entenda que o fim de tudo
o que ali estaacute escrito eacute a caridade perfeita consumada que aparece concreta e
historicamente em Jesus Cristo o Deus encarnado (humanado) e crucificado A feacute e a
esperanccedila satildeo outras duas virtudes que ajudam o homem a crescer e se perfazer na
perfeiccedilatildeo da caridade no seguimento de Jesus Cristo O essencial do ser cristatildeo se
encontra neste seguimento
Depois quando ama igualmente o que eacute igualmente digno de amor (o proacuteximo) Por fim quando ama absolutamente o que eacute absolutamente digno de ser amado (Deus) Ao amor de Deus assim deve se subordinar e convergir todo amor pela criatura O preceito do amor aleacutem disso comporta universalidade isto eacute ningueacutem eacute dele excluiacutedo A boa vontade do amor se estende a todos mesmo ao inimigo O amor de Deus pelo homem eacute gratuito visto que Deus natildeo precisa do homem mas se basta a si mesmo Seu amor eacute pura gratuita absoluta bondade O grau de perfeiccedilatildeo de um homem depende do grau de perfeiccedilatildeo e da universalidade de seu amor O ser do homem se determina pelo seu amor O homem eacute o que ele ama e como ele ama Ele cresce no ser se cresce na perfeiccedilatildeo (e na universalidade) do amor Ele diminui no ser se decresce na capacidade de amar O homem pode encontrar deleite nos outros homens quando estes o ajudam a crescer no amor a Deus Eacute quando se ama e se gosta do outro em Deus Os homens podem e devem constituir uma fraternidade no amor ajudando-se mutuamente a prosseguir seu itineraacuterio para Deus Nenhuma homem pode se considerar fim absoluto do amor do outro Ele natildeo eacute o destinataacuterio uacuteltimo do amor do outro Eacute apenas companheiro na viagem da vida e como tal haacute de ser amado Neste itineraacuterio para Deus Cristo eacute o caminho a verdade e a vida isto eacute ele eacute aquele por quem o homem vai aquele a quem o homem alcanccedila e em quem ele permanece no amor 24 Cf Arendt Hanna O conceito de amor em Santo Agostinho Ensaio de interpretaccedilatildeo filosoacutefica Lisboa Instituto Piaget 1997 25 Para o ldquohomo viatorrdquo (homem a caminho) a feacute nas Escrituras fortalece a feacute a esperanccedila e a caridade Nestas trecircs virtudes teologais se encerram e se subsumem toda a ciecircncia e toda a profecia A caridade permanece para sempre enquanto que a feacute e a esperanccedila se extinguem quando o homem chega a seu destino (a Paacutetria o Reino dos Ceacuteus) A caridade visa um bem eterno Se os bens temporais satildeo amados antes de serem possuiacutedos pois ao serem conquistados natildeo saciam a alma na sua sede do absoluto bem o bem eterno eacute o que eacute amado com tanto mais ardor ao ser possuiacutedo do que fora ao ser desejado pois a ningueacutem que a deseja a beatitude concedida eacute menor do que a desejada
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O livro II eacute um verdadeiro tratado de semiologia26 Todo o pensamento a respeito
da linguagem do ocidente se baseia no triacircngulo semioacutetico signo conceito coisa A base
desta concepccedilatildeo de Aristoacuteteles Ela eacute exposta no ὶ ἑί (perigrave hermeneiacuteas)
ldquoDe interpretationerdquo (16a 3-8)
Satildeo pois aquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz siacutembolos das paixotildees (afecccedilotildees disposiccedilotildees) na alma e as coisas que satildeo escritas satildeo siacutembolos daquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz E assim como as coisas escritas natildeo satildeo as mesmas para todos do mesmo modo tambeacutem os sons da voz natildeo satildeo os mesmos Aquelas coisas de que isso (coisas escritas e sons da voz) satildeo primordialmente signos (coisas que mostram) satildeo para todos (os homens) as mesmas paixotildees da alma e as coisas das quais estas (paixotildees da alma) formam apresentaccedilotildees assemelhadas satildeo igualmente as mesmas27
O texto de Aristoacuteteles se manteacutem numa fala esclarecida e soacutebria que torna
visiacutevel a claacutessica estruturaccedilatildeo que abriga a linguagem como discurso ou fala As letras
do alfabeto28 mostram os fonemas29 Os fonemas mostram as disposiccedilotildees na alma30 As
disposiccedilotildees na alma mostram as coisas que que lhe con-cernem31 O mostrar configura
e sustenta as escoras dessa construccedilatildeo De maneira variada o mostrar conduz algo para
um aparecer deixando assim apreender o que aparece e permitindo que se discuta o
que se apreende
26 A semiologia (ou semioacutetica) eacute a ciecircncia dos signos Como os signos verbais tecircm na vida humana um papel de primeiro plano a semiologia se concentrou em grande parte na linguagem Haacute uma semiologia nas especulaccedilotildees linguiacutestica da antiguidade entre os modistas da Idade Meacutedia etc Mas o nome ldquosemioacuteticardquo surge na modernidade com Locke Torna-se poreacutem uma disciplina independente na obra do filoacutesofo americano Charles Sanders Peirce (1839-1914) 27 A traduccedilatildeo entende os σημεῖα (semeia ndash os signos aquelas coisas que mostram) os σύμβολα (symbola - os siacutembolos ndash o que eacute lanccedilado junto e nessa junccedilatildeo deixa e faz com que um se atenha ao outro) e os ὁμοιώματα (homoioacutemata ndash as apresentaccedilotildees assemelhadas as semelhanccedilas) como um mostrar no sentido de deixar aparecer o que por sua vez encontra-se no acircmbito do desencobrimento (αλήθεια ndash aleacutetheia) 28 τὰ γραφόμενα ndash taacute graphoacutemena 29 τὰ ἐν τῇ φωνῇ - taacute en te phoneacute 30 παθήματα τῆς ψυχῆς ndash patheacutemata tecircs psykhecircs 31 πράγματα - praacutegmata
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Antes de nos apropriarmos da semiologia de Agostinho tentemos aqui uma
consideraccedilatildeo fenomenoloacutegica sobre o sinal e a linguagem
O falar acontece por mor do dizer Dizer eacute mostrar O falar enquanto dizer se
realiza como um discurso mostrador loacutegos apophaacutentikoacutes32 O falar estaacute a serviccedilo do
dizer Dizer eacute mostrar no sentido de deixar e fazer ver a quem se fala aquilo de que se
fala Dizer eacute dar algo a compreender eacute fazer-se compreender sobre algo a quem escuta
O mostrar no falar acontece como um conceder acenos dar indiacutecios oferecer
indicaccedilotildees oferecer sinais33 Mas tudo isso acontece no sentido de um anunciar que se
cumpre como um revelar um divulgar um mencionar (fazer menccedilatildeo de referir relatar
expor narrar) um lembrar um recordar e um comemorar O anunciar eacute entendido pois
pelos gregos como um mostrar deiknymi34 O sinal eacute uma referecircncia uma remissatildeo O
remeter proacuteprio do sinal consiste em mostrar O mostrar do sinal se funda na referecircncia
na remissatildeo Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo No entanto
Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo eacute uma referecircncia Toda lsquoaccedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma referecircncia mas nem toda referecircncia mostra Com isso tambeacutem se diz toda accedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo mostra Assim aparece o caraacuteter formal e geral da relaccedilatildeo Para se investigar os fenocircmenos de referecircncia sinal e significado de nada adianta caracterizaacute-los como relaccedilatildeo Deve-se em uacuteltima instacircncia mostrar que a proacutepria lsquorelaccedilatildeorsquo devido a seu
32 O loacutegos eacute um reunir e um recolher (leacutegein) que potildee expotildee e depotildee abre e manifesta traz ao desencobrimento agrave revelaccedilatildeo Como abrir e manifestar leacutegein estaacute em contraste com krypto cobrir encobrir esconder ocultar no sentido de guardar Conhecemos um fragmento de Heraacuteclito (fr 93) que traz este contraste Ele diz Ho aacutenax hou tograve manteion esti tograve en Delphois oute leacutegei oute kryptei allagrave semainei ndash O Autor de quem eacute o oraacuteculo de Delfos natildeo traz ao desencobrimento nem encobre mas acena 33 Semainein eacute um conceder semata (acenos indiacutecios indicaccedilotildees) A palavra grega no singular eacute ldquosemardquo indiacutecio vestiacutegio marca distintiva senha sinal ldquoSemardquo eacute tambeacutem pressaacutegio auguacuterio auspiacutecio Eacute ainda o astro ou uma constelaccedilatildeo da qual se tiram indicaccedilotildees na orientaccedilatildeo concernente ao ceacuteu Eacute por fim o tuacutemulo a tumba 34 Da mesma raiz de ldquodeiknymirdquo (mostrar) eacute o verbo latino ldquodicererdquo dizer Dizer eacute mostrar isto eacute deixar e fazer ver trazer agrave evidecircncia alguma coisa O sinal pois no falar precisa ser entendido na dinacircmica do dizer isto eacute do mostrar
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caraacuteter formal geral tem sua origem ontoloacutegica numa referecircncia35
Haacute uma multiplicidade de sinais anuacutencios prenuacutencios vestiacutegios marcas
distintivos cuja accedilatildeo de mostrar difere a cada caso Satildeo sinais diferentes o rastro o
resto o monumento o documento o testemunho o siacutembolo a expressatildeo a
manifestaccedilatildeo a significaccedilatildeo O sinal tem a sua serventia no mostrar no sentido de fazer
sobressair de dar na vista salientar fazer reparar estranhar alguma coisa Aquilo que
normalmente natildeo causa surpresa eacute ressaltado pelo sinal O sinal permite a descoberta
de alguma coisa
O mundo eacute o ldquoonderdquo das descobertas O homem se orienta se dirige se
direciona em seus comportamentos com as coisas com os entes agrave matildeo a partir de uma
familiaridade com o mundo A abertura de mundo se daacute como compreensatildeo Trata-se
poreacutem de uma compreensatildeo operativa natildeo teoacuterica Compreender significa aqui reunir
as remissotildees recolher as referecircncias O caraacuteter de remissatildeo das remissotildees das
referecircncias eacute o que se chama de significar Significar (be-deuten) eacute aqui mostrar
(deuten) no sentido de pocircr a caminho um clarear um esclarecer Eacute o processo e o
movimento de estruturaccedilatildeo do mundo Significar eacute aqui oferecer alguma coisa para a
compreensatildeo e para a interpretaccedilatildeo Significacircncia (Bedeutsamkeit) eacute o todo das
remissotildees do acontecimento e do processo do significar que eacute a estruturaccedilatildeo de
mundo Noacutes nos encontramos a noacutes mesmos jaacute sempre no mundo entendendo o mundo
antes de tudo como uma totalidade de significacircncias Eacute um encontrar-se a si mesmo
sempre numa situaccedilatildeo de ocupaccedilatildeo e preocupaccedilatildeo de cuidado com o proacuteprio ser-no-
mundo Tudo aquilo com que podemos nos relacionar e comportar tem este caraacuteter
estaacute aiacute e eacute encontrado no caminho do cuidado eacute experimentado como significativo a
partir de um determinado cuidado Significacircncia indica este modo fundamental como
algo segundo o seu teor proacuteprio eacute encontrado na vida como ele se deteacutem e se reteacutem
no meio do mundo da vida
Soacute acontece linguagem onde noacutes falamos uns com os outros A linguagem
acontece de iniacutecio e na maior parte das vezes na conversa com suas falas e seus
silecircncios Para noacutes isto eacute na ordem da nossa experiecircncia cotidiana a primeira
35 Heidegger M Ser e Tempo sect 17
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dimensatildeo pois da linguagem eacute a fala o discurso O discurso traz agrave fala uma
compreensatildeo Chamamos de sentido o que pode ser articulado O sentido eacute o que torna
compreensiacutevel algo enquanto algo Compreender eacute fundamentalmente apreender algo
enquanto algo Tudo que apreendemos se mostra a si mesmo como isso ou aquilo Isso
quer dizer noacutes aprendemos cada coisa em sua significacircncia A percepccedilatildeo natural em
que noacutes vivemos cotidianamente jaacute eacute sempre uma compreensatildeo uma captaccedilatildeo da coisa
como esta coisa do sapato como sapato do livro como livro do reloacutegio como reloacutegio
Natildeo eacute assim que eu primeiro apreendo uma coisa na sua nua e crua factualidade e
depois lhe atribuo este ou aquele significado Cada vez eu apreendo uma coisa como
tal coisa isto eacute eu apreendo a coisa dentro de uma determinada significacircncia36
A coisa que me vem ao encontro dentro do mundo se mostra como isto ou
aquilo37 Ela instaura um conjunto de referecircncias ela remete a isto ou aquilo ela soa
desta ou daquela maneira em meu mundo ela fala disto ou daquilo em minha vida A
coisa significa a si mesma Mas o seu poder significar a si mesma soacute eacute possiacutevel porque
ela jaacute eacute descoberta como coisa que vem ao encontro dentro do mundo isto eacute dentro de
uma totalidade de sentido Que a coisa se faccedila encontrar e descobrir deste ou daquele
modo e que ela se decirc a compreender como isto ou aquilo ndash isto soacute eacute possiacutevel porque ao
apreendecirc-la numa percepccedilatildeo concreta um mundo jaacute se me abriu Com a coisa se
anuncia o mundo da vida ou melhor os mundos da vida o mundo circunstante o
mundo partilhado da convivecircncia o mundo proacuteprio pessoal A coisa soacute pode ser
apreendida na sua significacircncia a partir da abertura do mundo ou dos mundos
Perceber eacute jaacute compreender as coisas na sua significacircncia Perceber eacute estruturar
e configurar o mundo como estrutura significativa Em toda percepccedilatildeo atua pois um
ato fundamental de significaccedilatildeo Chamamos de significar o ato pelo qual o homem
estrutura a significacircncia das coisas no horizonte do mundo enquanto totalidade
significativa Da compreensatildeo que articula a significaccedilatildeo das coisas numa totalidade
sentido brota a possibilidade da interpretaccedilatildeo Pela compreensatildeo o homem estaacute
sempre se projetando abrindo lances de perspectivas entrevendo de antematildeo
36 Cfr M HEIDEGGER GP 102-110 37 Cfr M HEIDEGGER Ontologie (Hermeneutik der Faktizitaumlt) (OHF) Gesamtausgabe ndash Band 63 Vittorio Klostermann Frankfurt am Main 1995 p 93-104
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aberturas de possibilidades Pela compreensatildeo o homem opera um ver que eacute projetivo
e criativo de possibilidades de ser Esse ver projetivo e criativo configura isto eacute elabora
em formas significativas essas possibilidades de ser Agrave elaboraccedilatildeo e exposiccedilatildeo dessas
formas chamamos de interpretaccedilatildeo Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo se apropria do
que compreende Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo busca chegar a uma maturaccedilatildeo
isto eacute busca maturar as possibilidades de ser que ela jaacute entreviu A interpretaccedilatildeo eacute uma
explicitaccedilatildeo da compreensatildeo O que entra como componente da explicitaccedilatildeo possui o
caraacuteter de significacircncia eacute o mostrar-se de algo como algo Em todo o nosso
comportamento noacutes jaacute estamos sempre compreendendo e interpretando apreendendo
algo como algo e referindo algo a algo articulando significados numa totalidade de
sentido que eacute o mundo O homem sempre interpreta Pois interpretar eacute ser homem
A articulaccedilatildeo dos significados numa totalidade de sentido se daacute atraveacutes do falar
quer do falar de si consigo mesmo quer do falar uns com os outros Na fala noacutes
pronunciamos o que compreendemos e como interpretamos o que estaacute em questatildeo Pro-
nunciar eacute pro-ferir isto eacute trazer agrave luz ao aberto do mundo da convivecircncia aquilo que
compreendemos e interpretamos Pelo discurso vecircm agrave fala os entes e o ser dos entes
tais como se oferecem agrave nossa compreensatildeo e interpretaccedilatildeo Vem agrave fala agrave medida que
se articulam num horizonte de compreensibilidade que noacutes chamamos de sentido O
sentido eacute o que se articula na compreensatildeo e interpretaccedilatildeo como horizonte daquilo que
compreendemos e interpretamos Todo discurso eacute o pronunciar o vir agrave fala daquilo que
compreendemos e interpretamos dos significados das coisas agrave luz do sentido de ser que
noacutes lhes damos
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Os medievais iratildeo precisar e aprofundar a concepccedilatildeo de signo Assim para
Tomaacutes de Aquino o signum eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro
A palavra proferida exteriormente pela voz eacute a fala A fala eacute proferida a modo de uma
voz articulada significativa Nem todo o som eacute voz A voz enquanto haacutelito sopro som
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que sai da boca com efeito soacute chega a ser palavra quando eacute significativa38 Sem a
significaccedilatildeo (significatio) uma voz natildeo eacute palavra A significaccedilatildeo torna a voz uma
expressatildeo do pensamento39 Por isso somente um vivente inteligente (animal rationale)
tem voz enquanto palavra40 Um vivente melhor um animal emite sons para se
comunicar Mas os seus sons natildeo satildeo vozes articuladas significativas Os gritos os
alaridos de animais natildeo satildeo palavras Sua comunicaccedilatildeo natildeo eacute fala O berrar de um
bezerro o mugir de uma vaca o balar de uma ovelha o balir de um cordeiro o arrulhar
de uma pomba o latir de um catildeo o miar de um gato ndash tudo isso natildeo eacute fala Seus sons
natildeo satildeo vozes significativas Indicam alguma coisa Mas o seu indicar natildeo tem o sentido
de significar alguma coisa Significar eacute dar a conhecer algo como algo a algueacutem41 Fumaccedila
indica fogo Bandeira branca indica rendiccedilatildeo Indicar poreacutem natildeo eacute significar Todo
significar eacute um indicar mas nem todo indicar eacute significar Significar eacute dar a conhecer no
sentido de dar a compreender algo como algo A fala daacute a conhecer alguma coisa Ela
faz-se notar e faz notar alguma coisa A fala eacute um fazer notar que daacute a conhecer alguma
coisa42 A fala faz notar daacute a conhecer isto eacute gera uma ldquonotiordquo ou uma ldquonotitiardquo
(conhecimento noccedilatildeo sentido)43 Notar quer dizer aqui dirigir-se a alguma coisa
orientando-se no mundo (intencionalidade) tornando-se atento a ela ao seu ser
Joatildeo Duns Scotus iraacute retomar o triacircngulo semioacutetico do Peri hermeneiacuteas de
Aristoacuteteles Ele questiona sobre a distinccedilatildeo de litteras et voces (letras e vozes) de um
lado passiones (disposiccedilotildees da alma) e res (coisa) de outro lado na quarta das questotildees
sobre o primeiro livro do ldquoPerigrave hermeneiasrdquo e conclui pela sua conveniecircncia As
disposiccedilotildees da alma (significaccedilatildeo e sentido) satildeo as mesmas em todos bem como as
coisas que elas significam enquanto as letras e vozes satildeo diferentes dependendo da
liacutengua Com outras palavras as letras e vozes que satildeo diferentes de liacutengua para liacutengua
38 ldquoVox quae non est significativa verbum dici non potestrdquo (A voz que natildeo eacute significativa natildeo pode ser dita palavra) ndash Tomaacutes de Aquino op Cit (I341) 39 ldquoLocutio est proprium opus rationis (I913 ad 3) falar -diz Tomaacutes- eacute operaccedilatildeo proacutepria da razatildeo 40 Agrave base desta concepccedilatildeo estaacute a concepccedilatildeo grega do homem aacutenthropos como zoon logon echon (vivente que tem linguagem) Nesta traduccedilatildeo o loacutegos eacute tanto ratio (pensamento) quanto oratio (fala no sentido de discurso) 41 Em Tomaacutes no acircmbito da vox situa-se a palavra (verbum) A palavra eacute uma realizaccedilatildeo especial do signo (signum) que por sua vez eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro (III604) 42 Cfr Heidegger M Vom Wesen der Sprache Die Metaphysik der Sprache und die Wesung des Wortes - Zu Herders Abhandlung ldquoUumlber den Ursprung der Spracherdquo Gesammtausgabe Band 85 p 3-4 43 Cfr idem p 20
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satildeo sinais instituiacutedos pelo arbiacutetrio humano que representam as disposiccedilotildees da alma (no
caso significaccedilatildeo e sentido) que por sua vez satildeo sinais naturais representativos das
coisas44
As expressotildees orais ou escritas satildeo formas linguiacutesticas dotadas de significaccedilotildees e
de sentido Sentidos e significaccedilotildees que satildeo pensados vecircm agrave expressatildeo Eles satildeo
exprimiacuteveis atraveacutes de formaccedilotildees linguiacutesticas Uma coisa eacute a forma linguiacutestica da
expressatildeo o complexo graacutefico ou focircnico ou como dizem os medievais as voces (vozes)
Outra coisa eacute o conteuacutedo da expressatildeo a significaccedilatildeo o sentido no juiacutezo e no
entrelaccedilamento de juiacutezos (conclusatildeo silogismo) O conteuacutedo eacute um ldquosignificatumrdquo que
estaacute intencionalmente ldquoin menterdquo45
A voz se torna expressatildeo agrave medida que eacute dotada de significaccedilotildees e de sentido
Assim a proposiccedilatildeo enquanto sequecircncia de palavras eacute singular Mas o conteuacutedo da
proposiccedilatildeo o juiacutezo ora eacute singular se o predicado eacute dito de um soacute ou universal se o
predicado eacute dito de muitos A proposiccedilatildeo como uma sequecircncia de palavras natildeo eacute
verdadeira ou falsa Ela eacute ou natildeo eacute Eacute falada ou escrita Mas natildeo eacute verdadeira ou falsa O
sentido da proposiccedilatildeo o juiacutezo eacute que eacute verdadeiro ou falso natildeo poreacutem enquanto
simples conteuacutedo da proposiccedilatildeo mas soacute agrave medida que ele tem um valor objetivaacutevel um
valor de conhecimento objetivo46 Proposiccedilatildeo e sentido palavra e significaccedilatildeo
pertencem a acircmbitos de realidade diversos Os elementos linguiacutesticos que constituem
proposiccedilatildeo e palavra satildeo sensivelmente perceptiacuteveis (satildeo acuacutesticos visuais motores)
satildeo reais e temporais Jaacute as significaccedilotildees e o sentido se subtraem a uma percepccedilatildeo
sensorial e satildeo atemporais O elemento linguiacutestico de uma expressatildeo eacute um signum ad
44 Cfr Quaestiones in I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 7) ldquoAd quaestionem dicendum quod differentia est conveniens quia passiones inquanto sunt signa et res inquanto sunt significata sunt eandem apud omnes nam eadem passio in anima apud quoscumque concipientes repraesentat eamdem rem quia eadem similitudo in anima semper est eiusdem repraesentativa sicut est similitudo sensibilis in sensu litterae et voces in se eaedem non sunt eaedem apud omnes inquanto sunt signa quia nec eadem littera apud omnes repraesentat eamdem vocem sed vel aliam vel nullam nec eadem vox apud omnes significat eamdem passionem sed vel aliam vel nullamrdquo (SCOTUS 1998 p 918) 45 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 12) ldquoAd quaestionem dici potest quod iste liber non est de decem vocibus ut de primo subiecto ndash nec aliqua pars logicae est de voce quia omnes passiones syllogismi et omnium partium eius possunt sibi inesse secundum esse quod habent in mente etsi non proferantur () sed est de aliquo priore quod respectu voces significativae tantum habet rationem significatirdquo (SCOTUS 1998 p 652) 46 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 22) ldquoSimiliter lsquosignificare verum vel falsumrsquo convenit enuntiationi sed non ut vox est significans conceptum sed ut conceptus significat remrdquo (SCOTUS 1998 p 653)
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placitum um signo instituiacutedo conforme o agrado ou o arbiacutetrio de quem o usa47 As
significaccedilotildees e os sentidos poreacutem se subtraem ao arbiacutetrio daquele que pensa por ter
a sua proacutepria necessidade ideal ou objetiva
A forma linguiacutestica eacute signo da significaccedilatildeo que por sua vez eacute signo de algo de
objetual de alguma objetualidade (objetos estados-de-coisas notas distintivas formas
reais ou categoriais) Trata-se do triacircngulo semioacutetico que constitui a base da
consideraccedilatildeo sobre a linguagem em toda a tradiccedilatildeo ocidental e que vem de Aristoacuteteles
Para Duns Scotus palavra e proposiccedilatildeo enquanto formaccedilotildees linguiacutesticas
dotadas de significaccedilatildeo e de sentido apontam para a esfera objetual A formaccedilatildeo
linguiacutestica eacute sinal da significaccedilatildeo e do sentido que eacute por sua vez sinal do objeto Enfim
palavra e proposiccedilatildeo satildeo sinais das coisas ldquoQuidquid est signum signi est signum
signatirdquo ndash o que quer que seja sinal do sinal eacute sinal do assinalado48 Assim palavra e
proposiccedilatildeo se tornam sinais das objetualidades agraves quais se referem No entendimento
de Duns Scotus o conceito eacute o que eacute designado imediatamente o objeto eacute o que eacute
designado mediatamente pela expressatildeo O doutor sutil esclarece que significare eacute dare
intelligere dar a compreender49 O signo eacute algo de relacional possui um caraacuteter ou uma
funccedilatildeo remissiva O signo graccedilas a sua funccedilatildeo remissiva eacute o fundamento material de
que parte o conhecimento do designado A expressatildeo linguiacutestica poreacutem natildeo eacute somente
um signo que remete ou se refere a algo Ele eacute um signo que significa algo ou seja que
daacute a compreender algo ou algo de algo e que ademais se refere a objetualidades
visando dizer ou seja mostrar o que se mostra e como se mostra50
47 Cfr Quaestiones super I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 14) ldquo et instrumenta naturalia formandi vocem potest homo aliqua imponere quae sunt signa ad placitum et non naturalia sive conceptusrdquo (SCOTUS 1998 p 919) 48 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 28 n 28) ldquo lsquoQuidquid est signum signi est signum signatirsquo ita quod signum intermedium non varietur in comparatione ad primum signum et ultimum signatumrdquo (SCOTUS 1998 p 751) 49 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 8 n 1) ldquoQuia significare est intellectum constituererdquo (SCOTUS 1998 p 679) 50 Assim para Husserl a expressatildeo que funde numa unidade a manifestaccedilatildeo sensiacutevel a significaccedilatildeo e a referecircncia ao objeto estaacute ordenada tanto a um valor de conhecimento quanto a um valor de verdade Agrave expressatildeo corresponde ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo se constitui uma relaccedilatildeo com o objeto Triacuteplice eacute o conteuacutedo de uma expressatildeo a significaccedilatildeo a referecircncia ao objeto e por fim o preenchimento de sentido A expressatildeo pela significaccedilatildeo e pela referecircncia ao objeto daacute a compreender alguma coisa acerca de algo O preenchimento da intenccedilatildeo signitiva vazia no modo da confirmaccedilatildeo da documentaccedilatildeo intuitiva leva por sua vez agrave experiecircncia da verdade Para Husserl expressotildees satildeo signos significativos distintos dos signos indicativos Numa descriccedilatildeo fenomenoloacutegica da expressatildeo dotada de sentido se
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No De dialectica (Da dialeacutetica) Agostinho define a palavra como um sinal de
alguma coisa que proferido por quem fala pode ser compreendido por quem escuta (De
Dialectica 5) 51 Nesta definiccedilatildeo podemos perceber as vaacuterias dimensotildees do exerciacutecio
humano da linguagem a da comunicaccedilatildeo em que homens falam uns com os outros
compartilhando suas vidas e coparticipando de um mesmo mundo a da expressatildeo em
que homens se pronunciam a partir de seu ser num mundo comum o discurso pelo
qual homens falam uns com os outros e escutam uns aos outros a compreensatildeo e
interpretaccedilatildeo em que homens ouvindo uns aos outros recebem a mensagem e se
apropriam de seu sentido Como ponta do ldquoicebergrdquo de toda esta vitalidade do concurso
comunicativo e do discurso temos o sinal que eacute proferido por quem fala o som da boca
a voz que longe de ser um mero ruiacutedo eacute um sinal um signo e se sinal eacute sinal de
alguma coisa ou seja algo vem a ser significado por este signo ou sinal
podem evidenciar trecircs momentos que no entanto formam uma unidade intimamente fundida a apariccedilatildeo fiacutesica da expressatildeo o ato doador de sentido e o ato preenchedor de sentido Assim palavras e proposiccedilotildees satildeo sons articulados animados de sentido Agraves expressotildees satildeo essenciais os atos que conferem a significaccedilatildeo respectivamente as intenccedilotildees de significaccedilatildeo A estes atos se acrescentam de modo extra-essencial os atos que preenchem as significaccedilotildees confirmando reforccedilando ilustrando as intenccedilotildees de significaccedilatildeo Para que o signo se torne expressatildeo eacute preciso que lhe seja imposto uma significaccedilatildeo Husserl fala de emprestar significaccedilatildeo de conferir sentido Expressotildees satildeo unidades de signos e designados (sinais e assinalados) de espeacutecie bem peculiar Expressotildees satildeo sinais significativos A significaccedilatildeo adere ao ato significativo Com a expressatildeo que suscita o ato que confere o sentido nos orientamos ao objeto Agrave expressatildeo compete ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo eacute que se constitui a relaccedilatildeo com o objeto ldquoToda e qualquer expressatildeo natildeo quer apenas dizer qualquer coisa mas tambeacutem diz algo acerca de qualquer coisa ela natildeo tem apenas a sua significaccedilatildeo mas refere-se tambeacutem a quaisquer objetosrdquo (HUSSERL 2012 p 38 ndash grifo de Husserl) Assim significaccedilatildeo e referecircncia objetiva se distinguem Expressotildees podem ter a mesma significaccedilatildeo mas objetos diferentes por um lado e por outro podem ter significaccedilotildees diferentes mas o mesmo objeto Assim considerando dois enunciados ldquoeste sendeiro eacute um cavalordquo e ldquoBuceacutefalo eacute um cavalordquo a expressatildeo um cavalo tem a mesma significaccedilatildeo mas os objetos satildeo diferentes Por sua vez dois nomes podem significar coisas diferentes mas nomear o mesmo como no exemplo ldquoO vencedor de Iena - O vencido de Waterloordquo Significaccedilatildeo e referecircncia objetiva no entanto estatildeo em iacutentima conexatildeo A expressatildeo se refere ao objeto por meio da significaccedilatildeo Uma expressatildeo adquire um referimento ao objeto pelo simples fato de que esta significa algo Por isso eacute que dizemos que uma expressatildeo designa ou denomina algo por meio do seu significado ou seja o ato de significar eacute o modo determinado de intencionar o objeto em questatildeo soacute que justamente este modo de intencionar e portanto o significado mesmo pode variar enquanto permanece idecircntica a direccedilatildeo para o objeto Se considerarmos pois os trecircs momentos que se fundem numa unidade na expressatildeo temos aquilo que de modo equiacutevoco se chama o expressado da expressatildeo ldquoOs termos em relaccedilatildeo ndash manifestaccedilatildeo significaccedilatildeo e objeto ndash pertencem essencialmente a toda e qualquer expressatildeo Em cada uma qualquer coisa eacute manifestada qualquer coisa eacute significada e qualquer coisa eacute nomeada ou de algum modo designada E no discurso equiacutevoco tudo isto se diz lsquoexpressorsquordquo 51 Idem p 14
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No escrito sobre a dialeacutetica Agostinho trata de quatro elementos desta arte o
verbum o dicibile52 a dictio53 e a res Vejamos como Agostinho expotildee o nexo entre estes
quatro elementos
Ora porque as palavras (verba) satildeo sinais das coisas (signa rerum) quando se ocupam com as coisas enquanto satildeo sinais das palavras (signa verborum) quando se discute sobre palavras ndash pois sobre palavras natildeo podemos falar a natildeo ser com palavras e quando falamos natildeo falamos a natildeo ser de coisas ndash ocorre agrave mente que as palavras satildeo sinais das coisas sem deixar de ser coisas
Quando pois a palavra sai da boca se sai por causa de si mesma isto eacute para que acerca dela se inquira ou se discuta haacute certamente uma coisa que eacute sujeita a discussatildeo e a investigaccedilatildeo mas justamente esta coisa eacute chamada palavra
E o que quer que a partir da palavra natildeo os ouvidos mas a mente (animus) percebe (sentit) e que a mente mesma manteacutem incluiacuteda em si se chama dicibile54 Quando poreacutem a palavra sai natildeo por causa de si mesma mas para significar algo de outro chama-se dictio55 E a coisa mesma que natildeo eacute uma palavra nem ainda uma concepccedilatildeo da palavra na mente seja que tenha uma palavra com a qual possa ser significada seja que natildeo a tenha daqui por diante natildeo eacute chamada com nome apropriado de outro modo do que de coisa
Estes quatro hatildeo de ser mantidos distintamente portanto a palavra (verbum) o dicibile a dictio a coisa Aquilo que defini como palavra eacute uma palavra e significa a palavra Aquilo que defini dicibile eacute uma palavra e todavia natildeo significa a palavra mas aquilo que graccedilas agrave palavra se compreende e estaacute contido na mente Aquilo que eu defini dictio eacute uma palavra mas uma palavra que significa contemporaneamente as outras duas ou seja a palavra mesma e aquilo que se faz na mente atraveacutes da palavra Aquela que eu defini como coisa eacute uma palavra que significa tudo aquilo que fica fora das trecircs que foram ditas
52 Seria o λεκτόν (lektoacuten) dos estoicos 53 Seria a λέξις (leacuteksis) dos estoicos 54 O exprimiacutevel ou melhor o diziacutevel no sentido do mostraacutevel 55 A expressatildeo o dito do dizer
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Depois destas digressotildees necessaacuterias para aclararmos o que estaacute em questatildeo
voltemos ao livro II do ldquoDe Doctrina Christianardquo de Agostinho Retomemos a sua
consideraccedilatildeo a respeito do signo
Haacute dois tipos de signos os naturais e os convencionais Os naturais datildeo a
conhecer por si proacuteprios alguma coisa aleacutem do que satildeo em si Assim fumaccedila eacute signo
de fogo Os signos convencionais (data signa) satildeo todos aqueles que os seres vivos em
especial o ser humano mutuamente se trocam para manifestar ndash o quanto lhes eacute
possiacutevel ndash os movimentos de sua alma tais como as sensaccedilotildees e os pensamentos Os
signos podem se dar em referecircncias a todos os sentidos a maioria dos signos poreacutem
se referem agrave audiccedilatildeo ou agrave visatildeo Dentre estes signos mais usuais e importantes satildeo os
signos verbais que satildeo sons significativos que se articulam mediante a voz humana
constituindo a palavra falada Os signos escritos poreacutem mostram os signos verbais de
maneira visiacutevel (e natildeo audiacutevel como fazem os signos falados)
A liacutengua eacute a realizaccedilatildeo concreta da linguagem humana mediante o uso de signos
verbais falados ou escritos As Sagradas Escrituras indicam pela histoacuteria da Torre de
Babel que liacutengua e linguagem sofrem com a decadecircncia do espiacuterito humano causada
pela soberba56 O contraacuterio da histoacuteria de Babel eacute poreacutem a histoacuteria de Pentecostes
narrada no livro dos Atos dos Apoacutestolos que aponta para a comunhatildeo do amor e o
muacutetuo entendimento entre os homens propiciado com o dom do Hagioacutes Pneuma
(Sopro Sagrado Espiacuterito Santo)
56 Na histoacuteria narrada pelo livro do Gecircnesis os homens se unem para erguer uma torre que una a terra ao ceacuteu a partir das proacuteprias forccedilas e da proacutepria engenhosidade Nos povos antigos encontramos monumentos que evocam algo disso O desejo do homem de uniatildeo entre o ceacuteu e a terra se manifesta nos zigurates da mesopotacircmia nas piracircmides das altas culturas das pedras (Egito Peru Meacutexico) nas estupas asiaacuteticas e quiccedilaacute em tempos mais primitivos aos dolmens menires nas cacircmaras funeraacuterias e nos obeliscos Junto com o esforccedilo de o homem erguer-se a si mesmo como homem erguendo pedras haacute o esforccedilo tambeacutem de alcanccedilar a vida dos imortais dos deuses tolhendo a proacutepria finitude Babel que era para ser a ldquoporta dos deusesrdquo (babilani) se torna poreacutem o lugar da confusatildeo (balal = confundir) O mundo se torna assim uma ldquoBabilocircniardquo isto eacute o lugar da confusatildeo em que os homens natildeo conseguem chegar ao entendimento muacutetuo Somente em Pentecostes em Jerusaleacutem celebra-se plenamente a superaccedilatildeo desta divisatildeo e desta confusatildeo em que as liacutenguas natildeo satildeo mais confusas e em que a linguagem do amor ardente une os homens e propicia-lhes a chance do entendimento muacutetuo e da verdadeira concoacuterdia uma concoacuterdia para o bem em favor de Deus
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Aquele vento purificava os coraccedilotildees da palha carnal aquele fogo consumia o feno da antiga concupiscecircncia aquelas liacutenguas em que falavam os que estavam plenos do Espiacuterito Santo prefiguravam a futura Igreja mediante liacutenguas de todos os povos Pois assim como depois do diluacutevio a soberba impiedade dos homens edificou uma grandiosa torre contra o Senhor ocasiatildeo na qual o gecircnero humano mereceu ser dividido pela diversidade das liacutenguas de modo que cada naccedilatildeo falasse sua proacutepria liacutengua para natildeo ser entendido pelas demais assim a humilde piedade dos fieis reduziu a diversidade de liacutenguas agrave unidade da Igreja de maneira que aquilo que a discoacuterdia tinha dispersado o reunisse a caridade e assim os membros dispersos do gecircnero humano qual membros de um mesmo corpo fossem reintegrados agrave unidade de uma uacutenica cabeccedila que eacute Cristo e fundidos na unidade do corpo santo mediante o fogo do amor57
O maior sinal da comunhatildeo do amor eacute quando os homens conseguem falar uns
com os outros e se entender Embora sejam diferentes e falem liacutenguas diferentes falam
a partir de uma mesma linguagem a do amor-caridade (gratuidade) As liacutenguas se
tornam entatildeo como labaredas do amor As falas satildeo entatildeo falas inflamadas de um fogo
divino brilhantes e ardentes divinamente apaixonadas entusiasmadas O amor eacute o que
possibilita manter esta identidade na diferenccedila Cria-se uma identidade comum mas
sem desfazer antes protegendo as diferenccedilas Eacute o milagre das liacutenguas O contraacuterio de
Babel Recriaccedilatildeo do homem humano e da humanidade universal
Assim os homens podem voltar agrave linguagem comum apesar da diversidade das
liacutenguas unindo suas vontades no empenho de conhecer e realizar a vontade de Deus A
serviccedilo deste intento estatildeo as Sagradas Escrituras Estas satildeo obra do proacuteprio Deus que
usou de hagioacutegrafos inspirados para expressar a sua vontade na linguagem humana
mediante as diversas liacutenguas Os que leem as Sagradas Escrituras natildeo desejam encontrar
nelas mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram e desse modo chegar
a conhecer a vontade de Deus segundo a qual ordem esses homens compuseram
Entretanto o leitor das Sagradas Escrituras vai se deparar continuamente com
ambiguidades e obscuridades Para Agostinho estas fazem parte da proacutepria natureza das
Escrituras Sagradas Haacute um certo quecirc de hermeacutetico de enigmaacutetico de obscuro nelas
57 Sermatildeo 271
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Mas eacute justamente isto que desafia a compreensatildeo e que a faz crescer na busca da
vontade divina As obscuridades e ambiguidades natildeo satildeo inuacuteteis Elas vencem o orgulho
do homem que se aproxima dos misteacuterios divinos sem reverecircncia e sem devoccedilatildeo Por
outro lado elas premunem o espiacuterito do fastio e do teacutedio que a facilidade sempre trazem
consigo As dificuldades de interpretaccedilatildeo cria-nos o gosto pelo exerciacutecio da
compreensatildeo na sua aventura de conquista do sentido Contudo natildeo se deve ter a
pretensatildeo de que se pode chegar a uma clareza que elimine toda sombra e obscuridade
A clareza do misteacuterio que se desvela sempre traz o veacuteu do pudor em que o misteacuterio
mesmo se encobre e assim se resguarda Os significados hauridos seratildeo sempre acenos
do inefaacutevel na medida em que o misteacuterio santo se deixa captar no horizonte do sentido
Uma vez que as Sagradas Escrituras satildeo linguagem do misteacuterio santo do Deus
absconditus (Deus escondido) que se re-vela (desvela e vela ao mesmo tempo) na
finitude da linguagem humana o leitor vai se deparar com desafios sempre novos
Agostinho recorre entatildeo agrave alegorese seguindo neste ponto a tradiccedilatildeo dos
alexandrinos As alegorias possuem encanto todo especial capaz de falar natildeo somente
ao entendimento mas tambeacutem ao coraccedilatildeo dos homens Com efeito a linguagem
imageacutetica concreta tem maior poder de comunicaccedilatildeo vital do que a linguagem
conceitual abstrata O uso de comparaccedilotildees leva o leitor a aprender mais
espontaneamente (libenter) As dificuldades de interpretaccedilatildeo levam-no a aprender com
maior prazer (gratius) As passagens obscuras das Escrituras aguccedilam a fome de
compreensatildeo do leitor Entretanto Agostinho daacute uma indicaccedilatildeo metodoloacutegica de leitura
importante para ir abrindo a compreensatildeo das Escrituras ganhar familiaridade com as
passagens claras e inequiacutevocas e com isso iluminar as passagens obscuras e
enigmaacuteticas Com efeito diz ele quase nada sobressai nas obscuridades que natildeo esteja
escrito mais claramente em outro lugar
Aquele que lecirc as Sagradas Escrituras procurando nelas a vontade divina eacute algueacutem
que estaacute a caminho numa viagem para a paacutetria da beatitude eterna Este caminhar
comporta determinado itineraacuterio no qual o homem vai se dispondo cada vez mais ao
Espiacuterito de Deus e ao seu modo de operar na alma os seus dons Eacute na medida que se
aproxima da Sabedoria do Espiacuterito que o leitor lecirc com maior proveito e profundidade as
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Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
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Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
28
Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
29
Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
30
(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
35
derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
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Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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apoacutes assumir encargos eclesiaacutesticos Natildeo obstante nestes escritos ele natildeo deixa de
filosofar (cf por exemplo o tratado sobre a Trindade) A sapientia adquire agora para
ele outro sentido mais elevado e abrangente contemplativo-religioso sapientia est
contemplatio veritatis pacificans totum hominem et suscipiens similitudinem Dei16 Esta
sabedoria no entanto natildeo exclui antes inclui tanto o aspecto eacutetico do estudo quanto
o aspecto metafiacutesico isto eacute a cognitio intellectualis (conhecimento intelectual) de anima
(a respeito da alma) e de Deo (a respeito de Deus)
Aleacutem da sapientia que visa o que eacute imutaacutevel eterno Agostinho considera
tambeacutem a scientia que visa o que eacute temporal histoacuterico cognitio historica
(conhecimento histoacuterico) Ora a revelaccedilatildeo divina que se propotildee agrave feacute se manifesta na
histoacuteria ela se transmite de modo empiacuterico por um testemunho materializado por
palavras por um livro a Escritura Sagrada Surge daiacute a demanda de uma scientia que
seraacute a atividade da inteligecircncia que se aplica ao conhecimento do conteuacutedo da feacute No
livro XIV da obra De Trinitate (Da Trindade) Agostinho escreve
Natildeo atribuo agrave ciecircncia (scientia) o que quer que possa ser sabido pelos homens nas coisas humanas aqui onde haacute grande quantidade de supeacuterfluo de vaidade e de curiosidade nociva mas tatildeo somente aquilo que gera nutre defende e fortalece a feacute sobremaneira salutar que conduz agrave verdadeira beatitude (quo fides sabuberrima quae ad verae beatitudinem ducit gignitur nutritur defenditur roboratur) A maior parte dos fieacuteis natildeo possuem esta ciecircncia seja qual for de resto a intensidade da feacute deles Uma coisa com efeito eacute saber simplesmente aquilo que o homem deve crer para obter a beatitude eterna outra coisa eacute saber (scire) como aportar este mesmo conteuacutedo da feacute agraves almas pias e defender contra os iacutempios eacute a respeito deste segundo aspecto que depois de Satildeo Paulo (1 Cor 12 8) se deve propriamente reservar o vocaacutebulo ciecircncia
Agostinho lecirc poreacutem a Escritura em consonacircncia com a tradiccedilatildeo e com a
autoridade da Igreja17 No seacuteculo XII esta ciecircncia levaraacute o nome de ldquoSacra Paginardquo
(sagrada paacutegina) Abelardo mesmo apresentaraacute a sua siacutentese especulativa do conteuacutedo
16 A sapiecircncia eacute a contemplaccedilatildeo da verdade pacificando o homem todo e recebendo a semelhanccedila de Deus De Sermone Domini in Monte 1 3 17 A hermenecircutica protestante com o Sola Scriptura excluiraacute a tradiccedilatildeo e o ensinamento autoritativo da Igreja (magisteacuterio) como criteacuterios que acompanham a leitura das Escrituras Sagradas
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da feacute apenas como uma introduccedilatildeo agrave Sagrada Escritura Uma autonomia especulativa
da exposiccedilatildeo do conteuacutedo da feacute soacute aconteceraacute propriamente no seacuteculo XIII ndash eacute o
nascimento daquilo que noacutes hoje chamamos de ldquoteologiardquo Em Agostinho a exegese
biacuteblica e a exposiccedilatildeo dogmaacutetica especulativa se mesclam natildeo obstante hajam escritos
em que a exposiccedilatildeo dogmaacutetica e sistemaacutetica do conteuacutedo da feacute se potildeem em primeiro
plano O motivo poreacutem destas exposiccedilotildees estaacute quase sempre situado num contexto de
controveacutersia de polecircmica de apologeacutetica em torno do conteuacutedo da feacute Mas em
Agostinho toda discussatildeo dogmaacutetica toda controveacutersia e apologeacutetica natildeo visa outra
coisa que a defesa do conteuacutedo da feacute das Sagradas Escrituras
Uma obra fundamental para se entender a hermenecircutica em Agostinho eacute o ldquoDe
doctrina christianardquo (Da doutrina cristatilde) Apresentamos a seguir uma recensatildeo desta
escrito
Esta obra faz parte de uma seacuterie de obras exegeacuteticas do hiponense e parece
constituir-se numa espeacutecie de teoria da exegese contendo tambeacutem um livro sobre o
modo de se expor a Sagrada Escritura com eloquecircncia e sabedoria Ela comeccedilou a ser
escrita pouco depois de Agostinho se tornar bispo isto eacute pelo ano 397 Num primeiro
momento a obra foi publicada inacabada indo ateacute o capiacutetulo 25 nordm 35 do Livro III Mais
tarde ao revisar suas obras Agostinho se propotildee terminar esta e o faz natildeo soacute
completando o livro III como tambeacutem acrescentando o livro IV A conclusatildeo desta obra
teria se dado laacute pelo ano de 4267
A ldquoDoutrina Cristatilderdquo eacute composta de um proacutelogo e quatro livros No proacutelogo
Agostinho relata o objetivo da obra oferecer normas uacuteteis acerca da interpretaccedilatildeo das
Sagradas Escrituras agravequeles que se dedicam a este estudo Atraveacutes destas normas o
estudioso poderaacute esclarecer muitas obscuridades que as Escrituras encerram Em
seguida Agostinho usa da comparaccedilatildeo de algueacutem que mostra a outra a lua com o dedo
para refutar eventuais contestadores de seu esforccedilo Os primeiros satildeo aqueles que natildeo
entendem as regras Estes se comportam como as pessoas que nem sequer veem o
dedo devido ao fato de a acuidade se sua visatildeo ser muito deficiente Os segundos satildeo
os que entendem as regras mas natildeo conseguem aplica-las Estes fixam o olhar no dedo
mas natildeo se voltam para mirar a lua Um terceiro tipo de opositores seria daquelas
pessoas que acham poderem se dispensar de instruccedilatildeo junto a seres humanos na
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pretensatildeo de terem conquistado o dom da compreensatildeo das divinas Escrituras
diretamente de Deus A estes Agostinho procura mostrar que a proacutepria Sagrada
Escritura pressupotildee a convivialidade dos que ensinam e aprendem mesmo
considerando que tanto uns como outros fundamentalmente aprendem de Deus Em
terceiro lugar o dom de interpretar as Escrituras natildeo dispensa mas ao contraacuterio exige
o esforccedilo de aprender Perspicaacutecia interesse de ir agraves coisas mesmas e disposiccedilatildeo de
aprender satildeo atitudes que devem ter quem quer ler esta obra
O objeto temaacutetico de ldquoA doutrina cristatilderdquo eacute a ldquotractatio scripturarumrdquo ou seja o
modo de proceder no trato com as Escrituras Isto comporta uma dupla implicaccedilatildeo
aprender a maneira de se descobrir o que eacute para ser entendido e por outro lado
aprender a maneira de se expor com propriedade o que foi entendido Os trecircs primeiros
livros da obra se atecircm agrave maneira de descobrir e o quarto livro agrave maneira de expor
Toda doutrina ou ciecircncia versa sobre coisas e sinais Coisas eacute tudo o que natildeo estaacute
empregado para significar algum outro objeto Sinais eacute tudo o que se emprega para
significar alguma coisa aleacutem de si mesmo As coisas satildeo conhecidas por meio de sinais
Os sinais devem ser entendidos como sinais e natildeo como coisas isto eacute na sua funccedilatildeo de
sinalizar e natildeo no seu ocorrer meramente factual O primeiro livro iraacute tratar das coisas
elementares da Sagrada Escritura isto eacute aquelas realidades junto agraves quais se empenha
o esforccedilo da compreensatildeo O segundo livro trata dos sinais da Sagrada Escritura e do
modo de chegar ao significado mediante o rigor da interpretaccedilatildeo O terceiro livro se
ocupa em ensinar como resolver as ambiguidades nos textos que se devem interpretar
quer em sentido proacuteprio quer em sentido figurado O quarto livro iraacute indicar como expor
as coisas da Sagrada Escritura com eloquecircncia e sabedoria
O primeiro livro expotildee algumas concepccedilotildees fundamentais sobre a realidade do
real (o ser do ente ndash das ldquocoisasrdquo) As coisas no seu todo se dividem em duas grandes
categorias aquelas que satildeo para a fruiccedilatildeo e aquelas que satildeo para o uso (uti et frui)
ldquoFruir (frui) eacute estar ligado a uma coisa por amor a ela Usar (frui) eacute relacionar aquilo de
que se tem uso com a posse daquilo que se amardquo (1 4 4) Notemos que Agostinho pensa
a realidade do real em seu concernir agrave vida humana A vida humana consiste em
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curare18 O uti (usar) eacute o cuidar que lida com aquilo que contribui para o viver O frui
(fruir) eacute gozar Por exemplo o belo que pertence agrave vigecircncia do ser eacute fruiacutedo A beata
vita (vida bem-aventurada feliz) eacute a do homem que goza do sumo bem (Deus) Eacute para
ser fruiacuteda aquela coisa que deleita por si mesma sem estar referida a outra coisa19 Eacute
para ser usada aquela coisa que eacute que eacute buscada desejada e que deleita por causa de
outra coisa As coisas temporais visiacuteveis satildeo para ser usadas As coisas eternas
invisiacuteveis para serem fruiacutedas O viacutecio a perversatildeo consiste em inverter esta ordem
querer fruir do que eacute para ser usado A virtude poreacutem consiste em fruir do que eacute para
ser fruiacutedo e usar do que eacute para ser usado20 A beatitude eacute a fruiccedilatildeo do sumo e imutaacutevel
bem a Trindade Deus eacute a beleza inteligiacutevel imutaacutevel inefaacutevel Toda a miacutestica medieval
iraacute visar a esta fruiccedilatildeo de Deus como o sumo bem como a suma beleza Na fruiccedilatildeo de
Deus o homem encontra o repouso a quietude (quies) Embora em tudo isso haja
elementos do pensamento grego (neoplatocircnico) no entanto a concepccedilatildeo da vida
humana e da realidade do real em Agostinho estaacute enraizada na compreensatildeo do Novo
Testamento Ele assim traz agrave fala em que consiste a ldquovita praesensrdquo (vida presente) do
cristatildeo eacute vida vivida ldquoin re laboris sed in spe quietis in carne vetustatis sed in fide
novitatisrdquo (no real do labor mas na esperanccedila do repouso na carne da velhice mas na
feacute da novidade) A esperanccedila precede A vida segue isso que a esperanccedila antecipa A
vida se realiza na direccedilatildeo daquilo que a esperanccedila antecipa21
Ainda no primeiro livro encontra-se uma exposiccedilatildeo do conteuacutedo da feacute a modo
de uma siacutentese dogmaacutetica fala da Trindade enquanto aquilo a que a aspiraccedilatildeo de
fruiccedilatildeo por parte do homem estaacute destinada Esta fala se articula em termos biacuteblicos e
tambeacutem em termos metafiacutesicos Trata-se de uma exposiccedilatildeo dogmaacutetico-metafiacutesica dos
misteacuterios e arcanos da feacute cristatilde Ao seu fundo poreacutem estaacute toda uma experiecircncia faacutetica
da vida22 Depois desta exposiccedilatildeo sobre a essecircncia da feacute cristatilde (os misteacuterios que nela satildeo
18 Curo curas curare curavi curatum Verbo transitivo ndash Sentido proacuteprio 1) cuidar olhar por tratar velar Daiacute 2) tratar curar 3) no contexto administrativo governar dirigir administrar 4) no contexto militar comandar 5) no contexto comercial fazer pagar 4) fazer por ter em conta de ter cuidado de 19 De civitate Dei (A cidade de Deus) XI 25 20 De Diversibus quaestionibus XXX 21 Cf Heidegger M Fenomenologia da Vida Religiosa p 258-260 22 A uacutenica ldquocoisardquo (o uacutenico real) a ser fruiacuteda eacute a Trindade Agostinho remete pois inicialmente ao Triuno Deus de quem por quem e para quem existem todas as coisas Os mesmos atributos divinos devem ser predicados de cada uma das pessoas da Trindade isto eacute do Pai do Filho e do Espiacuterito Santo Cada um deles eacute ele proacuteprio na plenitude de sua substacircncia O ser do Pai estaacute na Unidade o ser do Filho na
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cridos) Agostinho trata do ldquoethosrdquo do viver cristatildeo seguindo ainda pelo fio condutor
do ldquouti et fruirdquo (usar e fruir) O essencial do ethos cristatildeo eacute o duplo preceito do amor a
Deus e ao proacuteximo O ethos do viver cristatildeo se instaura segundo a ldquoOrdo dilectionisrdquo
(ordem da dileccedilatildeo ou do amor) A identidade do cristatildeo consiste no seu modo de amar23
Igualdade e o ser do Espiacuterito Santo na harmonia da unidade e da igualdade Natildeo obstante natildeo se trata de trecircs seres mas de um uacutenico Ser Agostinho estaacute ciente da limitaccedilatildeo do entendimento no vigor do silecircncio que se recolhe diante do misteacuterio divino do Deus uno e trino arcano fundamental da feacute cristatilde Deus eacute antes de tudo o inefaacutevel Quando a mente humana cogita acerca do misteacuterio divino que se doa ao se retrair ela busca captar uma realidade transcendental a mais proacutexima visto ser a mais iacutentima mais iacutentima a noacutes que noacutes mesmos e ao mesmo tempo a mais distante (inacessiacutevel justamente em virtude desta proximidade) Eacute esta realidade primeira que institui todo o real quer nas suas realizaccedilotildees sensiacuteveis quer nas inteligiacuteveis Percorrendo-se os diversos niacuteveis de constituiccedilatildeo da vida chega-se agravequela Vida que se define como Sabedoria imutaacutevel isto eacute sempre idecircntica consigo mesma O Deus vivo que eacute o Vivente por excelecircncia eacute o anseio mais profundo da alma humana Contemplaacute-lo e fruir da sua bondade e beleza eacute a beatitude do homem Contudo para que o homem possa chegar agrave visatildeo e fruiccedilatildeo de Deus eacute necessaacuteria a purificaccedilatildeo interior ao longo de sua vida que aparece como um caminho uma viagem uma travessia de retorno agrave paacutetria Esta purificaccedilatildeo se daacute mediante o bom empenho os bons desejos e os costumes No entanto natildeo podemos ir agrave Sabedoria se ela natildeo se dispotildee a vir a noacutes adaptando-se agrave fraqueza dede nossa condiccedilatildeo carnal isto eacute finita fraacutegil decadente mortal No entanto esta Sabedoria que se encarna na realidade da vida faacutetica humana foi rejeitada por muitos como fraqueza e loucura Eacute o misteacuterio da keacutenosis (esvaziamento) do rebaixamento do Filho de Deus o Verbo que se fez carne e atendou entre os homens Mas eacute justamente por esta fraqueza e loucura divina manifestada na encarnaccedilatildeo e na paixatildeo do Verbo humanado Jesus Cristo que acontece a redenccedilatildeo isto eacute a libertaccedilatildeo e a salvaccedilatildeo de todos os homens Nele a Sabedoria cura o homem impregnado de fraqueza e mergulhado na loucura O homem usou mal do dom da imortalidade e caiu na morte Cristo usou bem de nossa mortalidade e isso devolveu ao homem o acesso agrave plenitude da vida Atraveacutes dos misteacuterios da vida de Cristo isto eacute dos misteacuterios de sua encarnaccedilatildeo de sua paixatildeo e tambeacutem de sua ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo com o consequente envio do Espiacuterito Santo os homens satildeo fortalecidos na feacute e avivados no conhecimento Nestes misteacuterios os que creem consideram o quatildeo livremente Cristo deu sua vida pelos homens ele que possuiacutea o poder de retomaacute-la Aqueles que favorecidos pela graccedila da redenccedilatildeo creram no Filho de Deus encarnado e crucificado como Senhor (o Ressuscitado) formam um soacute corpo constituindo deste modo a realidade da Igreja Esta eacute a esposa de Cristo Atraveacutes dos sacramentos ela se purifica para vir se unir ao Esposo Cristo Jesus na eternidade apresentando-se diante dele sem manchas nem rugas Eacute no interior desta Igreja que os homens satildeo gerados para a semelhanccedila com Cristo e recebem o perdatildeo dos pecados (batismo) Desta mesma Igreja recebem a feacute na ressurreiccedilatildeo do corpo e na vida eterna Estes misteacuterios e arcanos cristatildeos satildeo acolhidos pelo homem que estaacute a caminho da paacutetria (a vida eterna) Neste caminho o crente sempre de novo morre para o mundo e vive para Deus Verdade e Vida 23 O homem haacute de amar a Deus por causa dele proacuteprio As criaturas em contrapartida satildeo amadas agrave medida que ajudam o homem a crescer no amor de Deus O amor a si mesmo e ao proacuteprio corpo eacute uma lei natural e por isso natildeo requer nenhum preceito (mandamento) Mas o amor ao que estaacute ao seu lado (o proacuteximo) e o amor ao que estaacute acima dele (Deus) requer preceito Haacute no entanto um falso e um verdadeiro amor de si proacuteprio O verdadeiro amor de si consiste em buscar o que eacute uacutetil e salutar para si mesmo crescendo na caridade (o amor gratuito a Deus e ao proacuteximo) O falso amor de si consiste em submeter o proacuteximo e o proacuteprio corpo a fim de fruir deles Quanto ao amor ao proacuteprio corpo Agostinho relembra a citaccedilatildeo do Apoacutestolo (Paulo) que diz ldquoningueacutem jamais quis mal agrave sua proacutepria carnerdquo (Ef 5 29) Mesmo os que reconhecem sadiamente a necessidade da ascese fazem-no para submeter o corpo ao espiacuterito segundo a ordem da natureza buscando assim a paz e a harmonia O preceito da caridade eacute duplo exige o amor a Deus acima de tudo e o amor ao proacuteximo como a si mesmo A partir do duplo amor natural e do duplo preceito da caridade descobre a ldquoOrdo Dilectionisrdquo (ordem da dileccedilatildeo isto eacute do amor) Ordem implica numa estruturaccedilatildeo em niacuteveis neste caso em niacuteveis de dignidade A ordenaccedilatildeo do amor eacute instaurada quando o homem ama o que deve ser amado (o bem) e natildeo ama o que natildeo deve ser amado (o mal o viacutecio o pecado) Depois quando o homem ama menos o que eacute menos digno de amor (o corpo)
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O amor (dilectio caritas) eacute o princiacutepio que rege toda a vida humana na perspectiva da
feacute cristatilde24 O duplo preceito do amor (a Deus e ao proacuteximo) eacute aqui a norma universal e
primordial que rege toda a ordem do viver O amor a Deus acima de tudo e o amor ao
proacuteximo eacute a essecircncia a substacircncia da revelaccedilatildeo divina (ldquoa Lei e os Profetasrdquo) que foi
radicalizada e consumada em Jesus Cristo no seu novo e eterno testamento
(testemunho) Daiacute se segue que a edificaccedilatildeo da caridade eacute a norma reacutegia e suprema de
toda a interpretaccedilatildeo das Sagradas Escrituras25 Para o homem que atingiu a perfeiccedilatildeo
do amor (caridade perfeita) as Sagradas Escrituras deixam de ser necessaacuterias uma vez
que toda a finalidade delas eacute levar o homem agrave perfeiccedilatildeo do amor (caridade perfeita)
Deste modo as Escrituras Sagradas requerem um leitor que entenda que o fim de tudo
o que ali estaacute escrito eacute a caridade perfeita consumada que aparece concreta e
historicamente em Jesus Cristo o Deus encarnado (humanado) e crucificado A feacute e a
esperanccedila satildeo outras duas virtudes que ajudam o homem a crescer e se perfazer na
perfeiccedilatildeo da caridade no seguimento de Jesus Cristo O essencial do ser cristatildeo se
encontra neste seguimento
Depois quando ama igualmente o que eacute igualmente digno de amor (o proacuteximo) Por fim quando ama absolutamente o que eacute absolutamente digno de ser amado (Deus) Ao amor de Deus assim deve se subordinar e convergir todo amor pela criatura O preceito do amor aleacutem disso comporta universalidade isto eacute ningueacutem eacute dele excluiacutedo A boa vontade do amor se estende a todos mesmo ao inimigo O amor de Deus pelo homem eacute gratuito visto que Deus natildeo precisa do homem mas se basta a si mesmo Seu amor eacute pura gratuita absoluta bondade O grau de perfeiccedilatildeo de um homem depende do grau de perfeiccedilatildeo e da universalidade de seu amor O ser do homem se determina pelo seu amor O homem eacute o que ele ama e como ele ama Ele cresce no ser se cresce na perfeiccedilatildeo (e na universalidade) do amor Ele diminui no ser se decresce na capacidade de amar O homem pode encontrar deleite nos outros homens quando estes o ajudam a crescer no amor a Deus Eacute quando se ama e se gosta do outro em Deus Os homens podem e devem constituir uma fraternidade no amor ajudando-se mutuamente a prosseguir seu itineraacuterio para Deus Nenhuma homem pode se considerar fim absoluto do amor do outro Ele natildeo eacute o destinataacuterio uacuteltimo do amor do outro Eacute apenas companheiro na viagem da vida e como tal haacute de ser amado Neste itineraacuterio para Deus Cristo eacute o caminho a verdade e a vida isto eacute ele eacute aquele por quem o homem vai aquele a quem o homem alcanccedila e em quem ele permanece no amor 24 Cf Arendt Hanna O conceito de amor em Santo Agostinho Ensaio de interpretaccedilatildeo filosoacutefica Lisboa Instituto Piaget 1997 25 Para o ldquohomo viatorrdquo (homem a caminho) a feacute nas Escrituras fortalece a feacute a esperanccedila e a caridade Nestas trecircs virtudes teologais se encerram e se subsumem toda a ciecircncia e toda a profecia A caridade permanece para sempre enquanto que a feacute e a esperanccedila se extinguem quando o homem chega a seu destino (a Paacutetria o Reino dos Ceacuteus) A caridade visa um bem eterno Se os bens temporais satildeo amados antes de serem possuiacutedos pois ao serem conquistados natildeo saciam a alma na sua sede do absoluto bem o bem eterno eacute o que eacute amado com tanto mais ardor ao ser possuiacutedo do que fora ao ser desejado pois a ningueacutem que a deseja a beatitude concedida eacute menor do que a desejada
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O livro II eacute um verdadeiro tratado de semiologia26 Todo o pensamento a respeito
da linguagem do ocidente se baseia no triacircngulo semioacutetico signo conceito coisa A base
desta concepccedilatildeo de Aristoacuteteles Ela eacute exposta no ὶ ἑί (perigrave hermeneiacuteas)
ldquoDe interpretationerdquo (16a 3-8)
Satildeo pois aquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz siacutembolos das paixotildees (afecccedilotildees disposiccedilotildees) na alma e as coisas que satildeo escritas satildeo siacutembolos daquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz E assim como as coisas escritas natildeo satildeo as mesmas para todos do mesmo modo tambeacutem os sons da voz natildeo satildeo os mesmos Aquelas coisas de que isso (coisas escritas e sons da voz) satildeo primordialmente signos (coisas que mostram) satildeo para todos (os homens) as mesmas paixotildees da alma e as coisas das quais estas (paixotildees da alma) formam apresentaccedilotildees assemelhadas satildeo igualmente as mesmas27
O texto de Aristoacuteteles se manteacutem numa fala esclarecida e soacutebria que torna
visiacutevel a claacutessica estruturaccedilatildeo que abriga a linguagem como discurso ou fala As letras
do alfabeto28 mostram os fonemas29 Os fonemas mostram as disposiccedilotildees na alma30 As
disposiccedilotildees na alma mostram as coisas que que lhe con-cernem31 O mostrar configura
e sustenta as escoras dessa construccedilatildeo De maneira variada o mostrar conduz algo para
um aparecer deixando assim apreender o que aparece e permitindo que se discuta o
que se apreende
26 A semiologia (ou semioacutetica) eacute a ciecircncia dos signos Como os signos verbais tecircm na vida humana um papel de primeiro plano a semiologia se concentrou em grande parte na linguagem Haacute uma semiologia nas especulaccedilotildees linguiacutestica da antiguidade entre os modistas da Idade Meacutedia etc Mas o nome ldquosemioacuteticardquo surge na modernidade com Locke Torna-se poreacutem uma disciplina independente na obra do filoacutesofo americano Charles Sanders Peirce (1839-1914) 27 A traduccedilatildeo entende os σημεῖα (semeia ndash os signos aquelas coisas que mostram) os σύμβολα (symbola - os siacutembolos ndash o que eacute lanccedilado junto e nessa junccedilatildeo deixa e faz com que um se atenha ao outro) e os ὁμοιώματα (homoioacutemata ndash as apresentaccedilotildees assemelhadas as semelhanccedilas) como um mostrar no sentido de deixar aparecer o que por sua vez encontra-se no acircmbito do desencobrimento (αλήθεια ndash aleacutetheia) 28 τὰ γραφόμενα ndash taacute graphoacutemena 29 τὰ ἐν τῇ φωνῇ - taacute en te phoneacute 30 παθήματα τῆς ψυχῆς ndash patheacutemata tecircs psykhecircs 31 πράγματα - praacutegmata
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Antes de nos apropriarmos da semiologia de Agostinho tentemos aqui uma
consideraccedilatildeo fenomenoloacutegica sobre o sinal e a linguagem
O falar acontece por mor do dizer Dizer eacute mostrar O falar enquanto dizer se
realiza como um discurso mostrador loacutegos apophaacutentikoacutes32 O falar estaacute a serviccedilo do
dizer Dizer eacute mostrar no sentido de deixar e fazer ver a quem se fala aquilo de que se
fala Dizer eacute dar algo a compreender eacute fazer-se compreender sobre algo a quem escuta
O mostrar no falar acontece como um conceder acenos dar indiacutecios oferecer
indicaccedilotildees oferecer sinais33 Mas tudo isso acontece no sentido de um anunciar que se
cumpre como um revelar um divulgar um mencionar (fazer menccedilatildeo de referir relatar
expor narrar) um lembrar um recordar e um comemorar O anunciar eacute entendido pois
pelos gregos como um mostrar deiknymi34 O sinal eacute uma referecircncia uma remissatildeo O
remeter proacuteprio do sinal consiste em mostrar O mostrar do sinal se funda na referecircncia
na remissatildeo Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo No entanto
Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo eacute uma referecircncia Toda lsquoaccedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma referecircncia mas nem toda referecircncia mostra Com isso tambeacutem se diz toda accedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo mostra Assim aparece o caraacuteter formal e geral da relaccedilatildeo Para se investigar os fenocircmenos de referecircncia sinal e significado de nada adianta caracterizaacute-los como relaccedilatildeo Deve-se em uacuteltima instacircncia mostrar que a proacutepria lsquorelaccedilatildeorsquo devido a seu
32 O loacutegos eacute um reunir e um recolher (leacutegein) que potildee expotildee e depotildee abre e manifesta traz ao desencobrimento agrave revelaccedilatildeo Como abrir e manifestar leacutegein estaacute em contraste com krypto cobrir encobrir esconder ocultar no sentido de guardar Conhecemos um fragmento de Heraacuteclito (fr 93) que traz este contraste Ele diz Ho aacutenax hou tograve manteion esti tograve en Delphois oute leacutegei oute kryptei allagrave semainei ndash O Autor de quem eacute o oraacuteculo de Delfos natildeo traz ao desencobrimento nem encobre mas acena 33 Semainein eacute um conceder semata (acenos indiacutecios indicaccedilotildees) A palavra grega no singular eacute ldquosemardquo indiacutecio vestiacutegio marca distintiva senha sinal ldquoSemardquo eacute tambeacutem pressaacutegio auguacuterio auspiacutecio Eacute ainda o astro ou uma constelaccedilatildeo da qual se tiram indicaccedilotildees na orientaccedilatildeo concernente ao ceacuteu Eacute por fim o tuacutemulo a tumba 34 Da mesma raiz de ldquodeiknymirdquo (mostrar) eacute o verbo latino ldquodicererdquo dizer Dizer eacute mostrar isto eacute deixar e fazer ver trazer agrave evidecircncia alguma coisa O sinal pois no falar precisa ser entendido na dinacircmica do dizer isto eacute do mostrar
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caraacuteter formal geral tem sua origem ontoloacutegica numa referecircncia35
Haacute uma multiplicidade de sinais anuacutencios prenuacutencios vestiacutegios marcas
distintivos cuja accedilatildeo de mostrar difere a cada caso Satildeo sinais diferentes o rastro o
resto o monumento o documento o testemunho o siacutembolo a expressatildeo a
manifestaccedilatildeo a significaccedilatildeo O sinal tem a sua serventia no mostrar no sentido de fazer
sobressair de dar na vista salientar fazer reparar estranhar alguma coisa Aquilo que
normalmente natildeo causa surpresa eacute ressaltado pelo sinal O sinal permite a descoberta
de alguma coisa
O mundo eacute o ldquoonderdquo das descobertas O homem se orienta se dirige se
direciona em seus comportamentos com as coisas com os entes agrave matildeo a partir de uma
familiaridade com o mundo A abertura de mundo se daacute como compreensatildeo Trata-se
poreacutem de uma compreensatildeo operativa natildeo teoacuterica Compreender significa aqui reunir
as remissotildees recolher as referecircncias O caraacuteter de remissatildeo das remissotildees das
referecircncias eacute o que se chama de significar Significar (be-deuten) eacute aqui mostrar
(deuten) no sentido de pocircr a caminho um clarear um esclarecer Eacute o processo e o
movimento de estruturaccedilatildeo do mundo Significar eacute aqui oferecer alguma coisa para a
compreensatildeo e para a interpretaccedilatildeo Significacircncia (Bedeutsamkeit) eacute o todo das
remissotildees do acontecimento e do processo do significar que eacute a estruturaccedilatildeo de
mundo Noacutes nos encontramos a noacutes mesmos jaacute sempre no mundo entendendo o mundo
antes de tudo como uma totalidade de significacircncias Eacute um encontrar-se a si mesmo
sempre numa situaccedilatildeo de ocupaccedilatildeo e preocupaccedilatildeo de cuidado com o proacuteprio ser-no-
mundo Tudo aquilo com que podemos nos relacionar e comportar tem este caraacuteter
estaacute aiacute e eacute encontrado no caminho do cuidado eacute experimentado como significativo a
partir de um determinado cuidado Significacircncia indica este modo fundamental como
algo segundo o seu teor proacuteprio eacute encontrado na vida como ele se deteacutem e se reteacutem
no meio do mundo da vida
Soacute acontece linguagem onde noacutes falamos uns com os outros A linguagem
acontece de iniacutecio e na maior parte das vezes na conversa com suas falas e seus
silecircncios Para noacutes isto eacute na ordem da nossa experiecircncia cotidiana a primeira
35 Heidegger M Ser e Tempo sect 17
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dimensatildeo pois da linguagem eacute a fala o discurso O discurso traz agrave fala uma
compreensatildeo Chamamos de sentido o que pode ser articulado O sentido eacute o que torna
compreensiacutevel algo enquanto algo Compreender eacute fundamentalmente apreender algo
enquanto algo Tudo que apreendemos se mostra a si mesmo como isso ou aquilo Isso
quer dizer noacutes aprendemos cada coisa em sua significacircncia A percepccedilatildeo natural em
que noacutes vivemos cotidianamente jaacute eacute sempre uma compreensatildeo uma captaccedilatildeo da coisa
como esta coisa do sapato como sapato do livro como livro do reloacutegio como reloacutegio
Natildeo eacute assim que eu primeiro apreendo uma coisa na sua nua e crua factualidade e
depois lhe atribuo este ou aquele significado Cada vez eu apreendo uma coisa como
tal coisa isto eacute eu apreendo a coisa dentro de uma determinada significacircncia36
A coisa que me vem ao encontro dentro do mundo se mostra como isto ou
aquilo37 Ela instaura um conjunto de referecircncias ela remete a isto ou aquilo ela soa
desta ou daquela maneira em meu mundo ela fala disto ou daquilo em minha vida A
coisa significa a si mesma Mas o seu poder significar a si mesma soacute eacute possiacutevel porque
ela jaacute eacute descoberta como coisa que vem ao encontro dentro do mundo isto eacute dentro de
uma totalidade de sentido Que a coisa se faccedila encontrar e descobrir deste ou daquele
modo e que ela se decirc a compreender como isto ou aquilo ndash isto soacute eacute possiacutevel porque ao
apreendecirc-la numa percepccedilatildeo concreta um mundo jaacute se me abriu Com a coisa se
anuncia o mundo da vida ou melhor os mundos da vida o mundo circunstante o
mundo partilhado da convivecircncia o mundo proacuteprio pessoal A coisa soacute pode ser
apreendida na sua significacircncia a partir da abertura do mundo ou dos mundos
Perceber eacute jaacute compreender as coisas na sua significacircncia Perceber eacute estruturar
e configurar o mundo como estrutura significativa Em toda percepccedilatildeo atua pois um
ato fundamental de significaccedilatildeo Chamamos de significar o ato pelo qual o homem
estrutura a significacircncia das coisas no horizonte do mundo enquanto totalidade
significativa Da compreensatildeo que articula a significaccedilatildeo das coisas numa totalidade
sentido brota a possibilidade da interpretaccedilatildeo Pela compreensatildeo o homem estaacute
sempre se projetando abrindo lances de perspectivas entrevendo de antematildeo
36 Cfr M HEIDEGGER GP 102-110 37 Cfr M HEIDEGGER Ontologie (Hermeneutik der Faktizitaumlt) (OHF) Gesamtausgabe ndash Band 63 Vittorio Klostermann Frankfurt am Main 1995 p 93-104
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aberturas de possibilidades Pela compreensatildeo o homem opera um ver que eacute projetivo
e criativo de possibilidades de ser Esse ver projetivo e criativo configura isto eacute elabora
em formas significativas essas possibilidades de ser Agrave elaboraccedilatildeo e exposiccedilatildeo dessas
formas chamamos de interpretaccedilatildeo Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo se apropria do
que compreende Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo busca chegar a uma maturaccedilatildeo
isto eacute busca maturar as possibilidades de ser que ela jaacute entreviu A interpretaccedilatildeo eacute uma
explicitaccedilatildeo da compreensatildeo O que entra como componente da explicitaccedilatildeo possui o
caraacuteter de significacircncia eacute o mostrar-se de algo como algo Em todo o nosso
comportamento noacutes jaacute estamos sempre compreendendo e interpretando apreendendo
algo como algo e referindo algo a algo articulando significados numa totalidade de
sentido que eacute o mundo O homem sempre interpreta Pois interpretar eacute ser homem
A articulaccedilatildeo dos significados numa totalidade de sentido se daacute atraveacutes do falar
quer do falar de si consigo mesmo quer do falar uns com os outros Na fala noacutes
pronunciamos o que compreendemos e como interpretamos o que estaacute em questatildeo Pro-
nunciar eacute pro-ferir isto eacute trazer agrave luz ao aberto do mundo da convivecircncia aquilo que
compreendemos e interpretamos Pelo discurso vecircm agrave fala os entes e o ser dos entes
tais como se oferecem agrave nossa compreensatildeo e interpretaccedilatildeo Vem agrave fala agrave medida que
se articulam num horizonte de compreensibilidade que noacutes chamamos de sentido O
sentido eacute o que se articula na compreensatildeo e interpretaccedilatildeo como horizonte daquilo que
compreendemos e interpretamos Todo discurso eacute o pronunciar o vir agrave fala daquilo que
compreendemos e interpretamos dos significados das coisas agrave luz do sentido de ser que
noacutes lhes damos
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Os medievais iratildeo precisar e aprofundar a concepccedilatildeo de signo Assim para
Tomaacutes de Aquino o signum eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro
A palavra proferida exteriormente pela voz eacute a fala A fala eacute proferida a modo de uma
voz articulada significativa Nem todo o som eacute voz A voz enquanto haacutelito sopro som
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que sai da boca com efeito soacute chega a ser palavra quando eacute significativa38 Sem a
significaccedilatildeo (significatio) uma voz natildeo eacute palavra A significaccedilatildeo torna a voz uma
expressatildeo do pensamento39 Por isso somente um vivente inteligente (animal rationale)
tem voz enquanto palavra40 Um vivente melhor um animal emite sons para se
comunicar Mas os seus sons natildeo satildeo vozes articuladas significativas Os gritos os
alaridos de animais natildeo satildeo palavras Sua comunicaccedilatildeo natildeo eacute fala O berrar de um
bezerro o mugir de uma vaca o balar de uma ovelha o balir de um cordeiro o arrulhar
de uma pomba o latir de um catildeo o miar de um gato ndash tudo isso natildeo eacute fala Seus sons
natildeo satildeo vozes significativas Indicam alguma coisa Mas o seu indicar natildeo tem o sentido
de significar alguma coisa Significar eacute dar a conhecer algo como algo a algueacutem41 Fumaccedila
indica fogo Bandeira branca indica rendiccedilatildeo Indicar poreacutem natildeo eacute significar Todo
significar eacute um indicar mas nem todo indicar eacute significar Significar eacute dar a conhecer no
sentido de dar a compreender algo como algo A fala daacute a conhecer alguma coisa Ela
faz-se notar e faz notar alguma coisa A fala eacute um fazer notar que daacute a conhecer alguma
coisa42 A fala faz notar daacute a conhecer isto eacute gera uma ldquonotiordquo ou uma ldquonotitiardquo
(conhecimento noccedilatildeo sentido)43 Notar quer dizer aqui dirigir-se a alguma coisa
orientando-se no mundo (intencionalidade) tornando-se atento a ela ao seu ser
Joatildeo Duns Scotus iraacute retomar o triacircngulo semioacutetico do Peri hermeneiacuteas de
Aristoacuteteles Ele questiona sobre a distinccedilatildeo de litteras et voces (letras e vozes) de um
lado passiones (disposiccedilotildees da alma) e res (coisa) de outro lado na quarta das questotildees
sobre o primeiro livro do ldquoPerigrave hermeneiasrdquo e conclui pela sua conveniecircncia As
disposiccedilotildees da alma (significaccedilatildeo e sentido) satildeo as mesmas em todos bem como as
coisas que elas significam enquanto as letras e vozes satildeo diferentes dependendo da
liacutengua Com outras palavras as letras e vozes que satildeo diferentes de liacutengua para liacutengua
38 ldquoVox quae non est significativa verbum dici non potestrdquo (A voz que natildeo eacute significativa natildeo pode ser dita palavra) ndash Tomaacutes de Aquino op Cit (I341) 39 ldquoLocutio est proprium opus rationis (I913 ad 3) falar -diz Tomaacutes- eacute operaccedilatildeo proacutepria da razatildeo 40 Agrave base desta concepccedilatildeo estaacute a concepccedilatildeo grega do homem aacutenthropos como zoon logon echon (vivente que tem linguagem) Nesta traduccedilatildeo o loacutegos eacute tanto ratio (pensamento) quanto oratio (fala no sentido de discurso) 41 Em Tomaacutes no acircmbito da vox situa-se a palavra (verbum) A palavra eacute uma realizaccedilatildeo especial do signo (signum) que por sua vez eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro (III604) 42 Cfr Heidegger M Vom Wesen der Sprache Die Metaphysik der Sprache und die Wesung des Wortes - Zu Herders Abhandlung ldquoUumlber den Ursprung der Spracherdquo Gesammtausgabe Band 85 p 3-4 43 Cfr idem p 20
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satildeo sinais instituiacutedos pelo arbiacutetrio humano que representam as disposiccedilotildees da alma (no
caso significaccedilatildeo e sentido) que por sua vez satildeo sinais naturais representativos das
coisas44
As expressotildees orais ou escritas satildeo formas linguiacutesticas dotadas de significaccedilotildees e
de sentido Sentidos e significaccedilotildees que satildeo pensados vecircm agrave expressatildeo Eles satildeo
exprimiacuteveis atraveacutes de formaccedilotildees linguiacutesticas Uma coisa eacute a forma linguiacutestica da
expressatildeo o complexo graacutefico ou focircnico ou como dizem os medievais as voces (vozes)
Outra coisa eacute o conteuacutedo da expressatildeo a significaccedilatildeo o sentido no juiacutezo e no
entrelaccedilamento de juiacutezos (conclusatildeo silogismo) O conteuacutedo eacute um ldquosignificatumrdquo que
estaacute intencionalmente ldquoin menterdquo45
A voz se torna expressatildeo agrave medida que eacute dotada de significaccedilotildees e de sentido
Assim a proposiccedilatildeo enquanto sequecircncia de palavras eacute singular Mas o conteuacutedo da
proposiccedilatildeo o juiacutezo ora eacute singular se o predicado eacute dito de um soacute ou universal se o
predicado eacute dito de muitos A proposiccedilatildeo como uma sequecircncia de palavras natildeo eacute
verdadeira ou falsa Ela eacute ou natildeo eacute Eacute falada ou escrita Mas natildeo eacute verdadeira ou falsa O
sentido da proposiccedilatildeo o juiacutezo eacute que eacute verdadeiro ou falso natildeo poreacutem enquanto
simples conteuacutedo da proposiccedilatildeo mas soacute agrave medida que ele tem um valor objetivaacutevel um
valor de conhecimento objetivo46 Proposiccedilatildeo e sentido palavra e significaccedilatildeo
pertencem a acircmbitos de realidade diversos Os elementos linguiacutesticos que constituem
proposiccedilatildeo e palavra satildeo sensivelmente perceptiacuteveis (satildeo acuacutesticos visuais motores)
satildeo reais e temporais Jaacute as significaccedilotildees e o sentido se subtraem a uma percepccedilatildeo
sensorial e satildeo atemporais O elemento linguiacutestico de uma expressatildeo eacute um signum ad
44 Cfr Quaestiones in I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 7) ldquoAd quaestionem dicendum quod differentia est conveniens quia passiones inquanto sunt signa et res inquanto sunt significata sunt eandem apud omnes nam eadem passio in anima apud quoscumque concipientes repraesentat eamdem rem quia eadem similitudo in anima semper est eiusdem repraesentativa sicut est similitudo sensibilis in sensu litterae et voces in se eaedem non sunt eaedem apud omnes inquanto sunt signa quia nec eadem littera apud omnes repraesentat eamdem vocem sed vel aliam vel nullam nec eadem vox apud omnes significat eamdem passionem sed vel aliam vel nullamrdquo (SCOTUS 1998 p 918) 45 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 12) ldquoAd quaestionem dici potest quod iste liber non est de decem vocibus ut de primo subiecto ndash nec aliqua pars logicae est de voce quia omnes passiones syllogismi et omnium partium eius possunt sibi inesse secundum esse quod habent in mente etsi non proferantur () sed est de aliquo priore quod respectu voces significativae tantum habet rationem significatirdquo (SCOTUS 1998 p 652) 46 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 22) ldquoSimiliter lsquosignificare verum vel falsumrsquo convenit enuntiationi sed non ut vox est significans conceptum sed ut conceptus significat remrdquo (SCOTUS 1998 p 653)
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placitum um signo instituiacutedo conforme o agrado ou o arbiacutetrio de quem o usa47 As
significaccedilotildees e os sentidos poreacutem se subtraem ao arbiacutetrio daquele que pensa por ter
a sua proacutepria necessidade ideal ou objetiva
A forma linguiacutestica eacute signo da significaccedilatildeo que por sua vez eacute signo de algo de
objetual de alguma objetualidade (objetos estados-de-coisas notas distintivas formas
reais ou categoriais) Trata-se do triacircngulo semioacutetico que constitui a base da
consideraccedilatildeo sobre a linguagem em toda a tradiccedilatildeo ocidental e que vem de Aristoacuteteles
Para Duns Scotus palavra e proposiccedilatildeo enquanto formaccedilotildees linguiacutesticas
dotadas de significaccedilatildeo e de sentido apontam para a esfera objetual A formaccedilatildeo
linguiacutestica eacute sinal da significaccedilatildeo e do sentido que eacute por sua vez sinal do objeto Enfim
palavra e proposiccedilatildeo satildeo sinais das coisas ldquoQuidquid est signum signi est signum
signatirdquo ndash o que quer que seja sinal do sinal eacute sinal do assinalado48 Assim palavra e
proposiccedilatildeo se tornam sinais das objetualidades agraves quais se referem No entendimento
de Duns Scotus o conceito eacute o que eacute designado imediatamente o objeto eacute o que eacute
designado mediatamente pela expressatildeo O doutor sutil esclarece que significare eacute dare
intelligere dar a compreender49 O signo eacute algo de relacional possui um caraacuteter ou uma
funccedilatildeo remissiva O signo graccedilas a sua funccedilatildeo remissiva eacute o fundamento material de
que parte o conhecimento do designado A expressatildeo linguiacutestica poreacutem natildeo eacute somente
um signo que remete ou se refere a algo Ele eacute um signo que significa algo ou seja que
daacute a compreender algo ou algo de algo e que ademais se refere a objetualidades
visando dizer ou seja mostrar o que se mostra e como se mostra50
47 Cfr Quaestiones super I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 14) ldquo et instrumenta naturalia formandi vocem potest homo aliqua imponere quae sunt signa ad placitum et non naturalia sive conceptusrdquo (SCOTUS 1998 p 919) 48 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 28 n 28) ldquo lsquoQuidquid est signum signi est signum signatirsquo ita quod signum intermedium non varietur in comparatione ad primum signum et ultimum signatumrdquo (SCOTUS 1998 p 751) 49 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 8 n 1) ldquoQuia significare est intellectum constituererdquo (SCOTUS 1998 p 679) 50 Assim para Husserl a expressatildeo que funde numa unidade a manifestaccedilatildeo sensiacutevel a significaccedilatildeo e a referecircncia ao objeto estaacute ordenada tanto a um valor de conhecimento quanto a um valor de verdade Agrave expressatildeo corresponde ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo se constitui uma relaccedilatildeo com o objeto Triacuteplice eacute o conteuacutedo de uma expressatildeo a significaccedilatildeo a referecircncia ao objeto e por fim o preenchimento de sentido A expressatildeo pela significaccedilatildeo e pela referecircncia ao objeto daacute a compreender alguma coisa acerca de algo O preenchimento da intenccedilatildeo signitiva vazia no modo da confirmaccedilatildeo da documentaccedilatildeo intuitiva leva por sua vez agrave experiecircncia da verdade Para Husserl expressotildees satildeo signos significativos distintos dos signos indicativos Numa descriccedilatildeo fenomenoloacutegica da expressatildeo dotada de sentido se
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No De dialectica (Da dialeacutetica) Agostinho define a palavra como um sinal de
alguma coisa que proferido por quem fala pode ser compreendido por quem escuta (De
Dialectica 5) 51 Nesta definiccedilatildeo podemos perceber as vaacuterias dimensotildees do exerciacutecio
humano da linguagem a da comunicaccedilatildeo em que homens falam uns com os outros
compartilhando suas vidas e coparticipando de um mesmo mundo a da expressatildeo em
que homens se pronunciam a partir de seu ser num mundo comum o discurso pelo
qual homens falam uns com os outros e escutam uns aos outros a compreensatildeo e
interpretaccedilatildeo em que homens ouvindo uns aos outros recebem a mensagem e se
apropriam de seu sentido Como ponta do ldquoicebergrdquo de toda esta vitalidade do concurso
comunicativo e do discurso temos o sinal que eacute proferido por quem fala o som da boca
a voz que longe de ser um mero ruiacutedo eacute um sinal um signo e se sinal eacute sinal de
alguma coisa ou seja algo vem a ser significado por este signo ou sinal
podem evidenciar trecircs momentos que no entanto formam uma unidade intimamente fundida a apariccedilatildeo fiacutesica da expressatildeo o ato doador de sentido e o ato preenchedor de sentido Assim palavras e proposiccedilotildees satildeo sons articulados animados de sentido Agraves expressotildees satildeo essenciais os atos que conferem a significaccedilatildeo respectivamente as intenccedilotildees de significaccedilatildeo A estes atos se acrescentam de modo extra-essencial os atos que preenchem as significaccedilotildees confirmando reforccedilando ilustrando as intenccedilotildees de significaccedilatildeo Para que o signo se torne expressatildeo eacute preciso que lhe seja imposto uma significaccedilatildeo Husserl fala de emprestar significaccedilatildeo de conferir sentido Expressotildees satildeo unidades de signos e designados (sinais e assinalados) de espeacutecie bem peculiar Expressotildees satildeo sinais significativos A significaccedilatildeo adere ao ato significativo Com a expressatildeo que suscita o ato que confere o sentido nos orientamos ao objeto Agrave expressatildeo compete ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo eacute que se constitui a relaccedilatildeo com o objeto ldquoToda e qualquer expressatildeo natildeo quer apenas dizer qualquer coisa mas tambeacutem diz algo acerca de qualquer coisa ela natildeo tem apenas a sua significaccedilatildeo mas refere-se tambeacutem a quaisquer objetosrdquo (HUSSERL 2012 p 38 ndash grifo de Husserl) Assim significaccedilatildeo e referecircncia objetiva se distinguem Expressotildees podem ter a mesma significaccedilatildeo mas objetos diferentes por um lado e por outro podem ter significaccedilotildees diferentes mas o mesmo objeto Assim considerando dois enunciados ldquoeste sendeiro eacute um cavalordquo e ldquoBuceacutefalo eacute um cavalordquo a expressatildeo um cavalo tem a mesma significaccedilatildeo mas os objetos satildeo diferentes Por sua vez dois nomes podem significar coisas diferentes mas nomear o mesmo como no exemplo ldquoO vencedor de Iena - O vencido de Waterloordquo Significaccedilatildeo e referecircncia objetiva no entanto estatildeo em iacutentima conexatildeo A expressatildeo se refere ao objeto por meio da significaccedilatildeo Uma expressatildeo adquire um referimento ao objeto pelo simples fato de que esta significa algo Por isso eacute que dizemos que uma expressatildeo designa ou denomina algo por meio do seu significado ou seja o ato de significar eacute o modo determinado de intencionar o objeto em questatildeo soacute que justamente este modo de intencionar e portanto o significado mesmo pode variar enquanto permanece idecircntica a direccedilatildeo para o objeto Se considerarmos pois os trecircs momentos que se fundem numa unidade na expressatildeo temos aquilo que de modo equiacutevoco se chama o expressado da expressatildeo ldquoOs termos em relaccedilatildeo ndash manifestaccedilatildeo significaccedilatildeo e objeto ndash pertencem essencialmente a toda e qualquer expressatildeo Em cada uma qualquer coisa eacute manifestada qualquer coisa eacute significada e qualquer coisa eacute nomeada ou de algum modo designada E no discurso equiacutevoco tudo isto se diz lsquoexpressorsquordquo 51 Idem p 14
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No escrito sobre a dialeacutetica Agostinho trata de quatro elementos desta arte o
verbum o dicibile52 a dictio53 e a res Vejamos como Agostinho expotildee o nexo entre estes
quatro elementos
Ora porque as palavras (verba) satildeo sinais das coisas (signa rerum) quando se ocupam com as coisas enquanto satildeo sinais das palavras (signa verborum) quando se discute sobre palavras ndash pois sobre palavras natildeo podemos falar a natildeo ser com palavras e quando falamos natildeo falamos a natildeo ser de coisas ndash ocorre agrave mente que as palavras satildeo sinais das coisas sem deixar de ser coisas
Quando pois a palavra sai da boca se sai por causa de si mesma isto eacute para que acerca dela se inquira ou se discuta haacute certamente uma coisa que eacute sujeita a discussatildeo e a investigaccedilatildeo mas justamente esta coisa eacute chamada palavra
E o que quer que a partir da palavra natildeo os ouvidos mas a mente (animus) percebe (sentit) e que a mente mesma manteacutem incluiacuteda em si se chama dicibile54 Quando poreacutem a palavra sai natildeo por causa de si mesma mas para significar algo de outro chama-se dictio55 E a coisa mesma que natildeo eacute uma palavra nem ainda uma concepccedilatildeo da palavra na mente seja que tenha uma palavra com a qual possa ser significada seja que natildeo a tenha daqui por diante natildeo eacute chamada com nome apropriado de outro modo do que de coisa
Estes quatro hatildeo de ser mantidos distintamente portanto a palavra (verbum) o dicibile a dictio a coisa Aquilo que defini como palavra eacute uma palavra e significa a palavra Aquilo que defini dicibile eacute uma palavra e todavia natildeo significa a palavra mas aquilo que graccedilas agrave palavra se compreende e estaacute contido na mente Aquilo que eu defini dictio eacute uma palavra mas uma palavra que significa contemporaneamente as outras duas ou seja a palavra mesma e aquilo que se faz na mente atraveacutes da palavra Aquela que eu defini como coisa eacute uma palavra que significa tudo aquilo que fica fora das trecircs que foram ditas
52 Seria o λεκτόν (lektoacuten) dos estoicos 53 Seria a λέξις (leacuteksis) dos estoicos 54 O exprimiacutevel ou melhor o diziacutevel no sentido do mostraacutevel 55 A expressatildeo o dito do dizer
23
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Depois destas digressotildees necessaacuterias para aclararmos o que estaacute em questatildeo
voltemos ao livro II do ldquoDe Doctrina Christianardquo de Agostinho Retomemos a sua
consideraccedilatildeo a respeito do signo
Haacute dois tipos de signos os naturais e os convencionais Os naturais datildeo a
conhecer por si proacuteprios alguma coisa aleacutem do que satildeo em si Assim fumaccedila eacute signo
de fogo Os signos convencionais (data signa) satildeo todos aqueles que os seres vivos em
especial o ser humano mutuamente se trocam para manifestar ndash o quanto lhes eacute
possiacutevel ndash os movimentos de sua alma tais como as sensaccedilotildees e os pensamentos Os
signos podem se dar em referecircncias a todos os sentidos a maioria dos signos poreacutem
se referem agrave audiccedilatildeo ou agrave visatildeo Dentre estes signos mais usuais e importantes satildeo os
signos verbais que satildeo sons significativos que se articulam mediante a voz humana
constituindo a palavra falada Os signos escritos poreacutem mostram os signos verbais de
maneira visiacutevel (e natildeo audiacutevel como fazem os signos falados)
A liacutengua eacute a realizaccedilatildeo concreta da linguagem humana mediante o uso de signos
verbais falados ou escritos As Sagradas Escrituras indicam pela histoacuteria da Torre de
Babel que liacutengua e linguagem sofrem com a decadecircncia do espiacuterito humano causada
pela soberba56 O contraacuterio da histoacuteria de Babel eacute poreacutem a histoacuteria de Pentecostes
narrada no livro dos Atos dos Apoacutestolos que aponta para a comunhatildeo do amor e o
muacutetuo entendimento entre os homens propiciado com o dom do Hagioacutes Pneuma
(Sopro Sagrado Espiacuterito Santo)
56 Na histoacuteria narrada pelo livro do Gecircnesis os homens se unem para erguer uma torre que una a terra ao ceacuteu a partir das proacuteprias forccedilas e da proacutepria engenhosidade Nos povos antigos encontramos monumentos que evocam algo disso O desejo do homem de uniatildeo entre o ceacuteu e a terra se manifesta nos zigurates da mesopotacircmia nas piracircmides das altas culturas das pedras (Egito Peru Meacutexico) nas estupas asiaacuteticas e quiccedilaacute em tempos mais primitivos aos dolmens menires nas cacircmaras funeraacuterias e nos obeliscos Junto com o esforccedilo de o homem erguer-se a si mesmo como homem erguendo pedras haacute o esforccedilo tambeacutem de alcanccedilar a vida dos imortais dos deuses tolhendo a proacutepria finitude Babel que era para ser a ldquoporta dos deusesrdquo (babilani) se torna poreacutem o lugar da confusatildeo (balal = confundir) O mundo se torna assim uma ldquoBabilocircniardquo isto eacute o lugar da confusatildeo em que os homens natildeo conseguem chegar ao entendimento muacutetuo Somente em Pentecostes em Jerusaleacutem celebra-se plenamente a superaccedilatildeo desta divisatildeo e desta confusatildeo em que as liacutenguas natildeo satildeo mais confusas e em que a linguagem do amor ardente une os homens e propicia-lhes a chance do entendimento muacutetuo e da verdadeira concoacuterdia uma concoacuterdia para o bem em favor de Deus
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Aquele vento purificava os coraccedilotildees da palha carnal aquele fogo consumia o feno da antiga concupiscecircncia aquelas liacutenguas em que falavam os que estavam plenos do Espiacuterito Santo prefiguravam a futura Igreja mediante liacutenguas de todos os povos Pois assim como depois do diluacutevio a soberba impiedade dos homens edificou uma grandiosa torre contra o Senhor ocasiatildeo na qual o gecircnero humano mereceu ser dividido pela diversidade das liacutenguas de modo que cada naccedilatildeo falasse sua proacutepria liacutengua para natildeo ser entendido pelas demais assim a humilde piedade dos fieis reduziu a diversidade de liacutenguas agrave unidade da Igreja de maneira que aquilo que a discoacuterdia tinha dispersado o reunisse a caridade e assim os membros dispersos do gecircnero humano qual membros de um mesmo corpo fossem reintegrados agrave unidade de uma uacutenica cabeccedila que eacute Cristo e fundidos na unidade do corpo santo mediante o fogo do amor57
O maior sinal da comunhatildeo do amor eacute quando os homens conseguem falar uns
com os outros e se entender Embora sejam diferentes e falem liacutenguas diferentes falam
a partir de uma mesma linguagem a do amor-caridade (gratuidade) As liacutenguas se
tornam entatildeo como labaredas do amor As falas satildeo entatildeo falas inflamadas de um fogo
divino brilhantes e ardentes divinamente apaixonadas entusiasmadas O amor eacute o que
possibilita manter esta identidade na diferenccedila Cria-se uma identidade comum mas
sem desfazer antes protegendo as diferenccedilas Eacute o milagre das liacutenguas O contraacuterio de
Babel Recriaccedilatildeo do homem humano e da humanidade universal
Assim os homens podem voltar agrave linguagem comum apesar da diversidade das
liacutenguas unindo suas vontades no empenho de conhecer e realizar a vontade de Deus A
serviccedilo deste intento estatildeo as Sagradas Escrituras Estas satildeo obra do proacuteprio Deus que
usou de hagioacutegrafos inspirados para expressar a sua vontade na linguagem humana
mediante as diversas liacutenguas Os que leem as Sagradas Escrituras natildeo desejam encontrar
nelas mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram e desse modo chegar
a conhecer a vontade de Deus segundo a qual ordem esses homens compuseram
Entretanto o leitor das Sagradas Escrituras vai se deparar continuamente com
ambiguidades e obscuridades Para Agostinho estas fazem parte da proacutepria natureza das
Escrituras Sagradas Haacute um certo quecirc de hermeacutetico de enigmaacutetico de obscuro nelas
57 Sermatildeo 271
25
Mas eacute justamente isto que desafia a compreensatildeo e que a faz crescer na busca da
vontade divina As obscuridades e ambiguidades natildeo satildeo inuacuteteis Elas vencem o orgulho
do homem que se aproxima dos misteacuterios divinos sem reverecircncia e sem devoccedilatildeo Por
outro lado elas premunem o espiacuterito do fastio e do teacutedio que a facilidade sempre trazem
consigo As dificuldades de interpretaccedilatildeo cria-nos o gosto pelo exerciacutecio da
compreensatildeo na sua aventura de conquista do sentido Contudo natildeo se deve ter a
pretensatildeo de que se pode chegar a uma clareza que elimine toda sombra e obscuridade
A clareza do misteacuterio que se desvela sempre traz o veacuteu do pudor em que o misteacuterio
mesmo se encobre e assim se resguarda Os significados hauridos seratildeo sempre acenos
do inefaacutevel na medida em que o misteacuterio santo se deixa captar no horizonte do sentido
Uma vez que as Sagradas Escrituras satildeo linguagem do misteacuterio santo do Deus
absconditus (Deus escondido) que se re-vela (desvela e vela ao mesmo tempo) na
finitude da linguagem humana o leitor vai se deparar com desafios sempre novos
Agostinho recorre entatildeo agrave alegorese seguindo neste ponto a tradiccedilatildeo dos
alexandrinos As alegorias possuem encanto todo especial capaz de falar natildeo somente
ao entendimento mas tambeacutem ao coraccedilatildeo dos homens Com efeito a linguagem
imageacutetica concreta tem maior poder de comunicaccedilatildeo vital do que a linguagem
conceitual abstrata O uso de comparaccedilotildees leva o leitor a aprender mais
espontaneamente (libenter) As dificuldades de interpretaccedilatildeo levam-no a aprender com
maior prazer (gratius) As passagens obscuras das Escrituras aguccedilam a fome de
compreensatildeo do leitor Entretanto Agostinho daacute uma indicaccedilatildeo metodoloacutegica de leitura
importante para ir abrindo a compreensatildeo das Escrituras ganhar familiaridade com as
passagens claras e inequiacutevocas e com isso iluminar as passagens obscuras e
enigmaacuteticas Com efeito diz ele quase nada sobressai nas obscuridades que natildeo esteja
escrito mais claramente em outro lugar
Aquele que lecirc as Sagradas Escrituras procurando nelas a vontade divina eacute algueacutem
que estaacute a caminho numa viagem para a paacutetria da beatitude eterna Este caminhar
comporta determinado itineraacuterio no qual o homem vai se dispondo cada vez mais ao
Espiacuterito de Deus e ao seu modo de operar na alma os seus dons Eacute na medida que se
aproxima da Sabedoria do Espiacuterito que o leitor lecirc com maior proveito e profundidade as
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Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
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Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
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Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
29
Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
30
(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
xxxxxxxxxxxx
Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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da feacute apenas como uma introduccedilatildeo agrave Sagrada Escritura Uma autonomia especulativa
da exposiccedilatildeo do conteuacutedo da feacute soacute aconteceraacute propriamente no seacuteculo XIII ndash eacute o
nascimento daquilo que noacutes hoje chamamos de ldquoteologiardquo Em Agostinho a exegese
biacuteblica e a exposiccedilatildeo dogmaacutetica especulativa se mesclam natildeo obstante hajam escritos
em que a exposiccedilatildeo dogmaacutetica e sistemaacutetica do conteuacutedo da feacute se potildeem em primeiro
plano O motivo poreacutem destas exposiccedilotildees estaacute quase sempre situado num contexto de
controveacutersia de polecircmica de apologeacutetica em torno do conteuacutedo da feacute Mas em
Agostinho toda discussatildeo dogmaacutetica toda controveacutersia e apologeacutetica natildeo visa outra
coisa que a defesa do conteuacutedo da feacute das Sagradas Escrituras
Uma obra fundamental para se entender a hermenecircutica em Agostinho eacute o ldquoDe
doctrina christianardquo (Da doutrina cristatilde) Apresentamos a seguir uma recensatildeo desta
escrito
Esta obra faz parte de uma seacuterie de obras exegeacuteticas do hiponense e parece
constituir-se numa espeacutecie de teoria da exegese contendo tambeacutem um livro sobre o
modo de se expor a Sagrada Escritura com eloquecircncia e sabedoria Ela comeccedilou a ser
escrita pouco depois de Agostinho se tornar bispo isto eacute pelo ano 397 Num primeiro
momento a obra foi publicada inacabada indo ateacute o capiacutetulo 25 nordm 35 do Livro III Mais
tarde ao revisar suas obras Agostinho se propotildee terminar esta e o faz natildeo soacute
completando o livro III como tambeacutem acrescentando o livro IV A conclusatildeo desta obra
teria se dado laacute pelo ano de 4267
A ldquoDoutrina Cristatilderdquo eacute composta de um proacutelogo e quatro livros No proacutelogo
Agostinho relata o objetivo da obra oferecer normas uacuteteis acerca da interpretaccedilatildeo das
Sagradas Escrituras agravequeles que se dedicam a este estudo Atraveacutes destas normas o
estudioso poderaacute esclarecer muitas obscuridades que as Escrituras encerram Em
seguida Agostinho usa da comparaccedilatildeo de algueacutem que mostra a outra a lua com o dedo
para refutar eventuais contestadores de seu esforccedilo Os primeiros satildeo aqueles que natildeo
entendem as regras Estes se comportam como as pessoas que nem sequer veem o
dedo devido ao fato de a acuidade se sua visatildeo ser muito deficiente Os segundos satildeo
os que entendem as regras mas natildeo conseguem aplica-las Estes fixam o olhar no dedo
mas natildeo se voltam para mirar a lua Um terceiro tipo de opositores seria daquelas
pessoas que acham poderem se dispensar de instruccedilatildeo junto a seres humanos na
9
pretensatildeo de terem conquistado o dom da compreensatildeo das divinas Escrituras
diretamente de Deus A estes Agostinho procura mostrar que a proacutepria Sagrada
Escritura pressupotildee a convivialidade dos que ensinam e aprendem mesmo
considerando que tanto uns como outros fundamentalmente aprendem de Deus Em
terceiro lugar o dom de interpretar as Escrituras natildeo dispensa mas ao contraacuterio exige
o esforccedilo de aprender Perspicaacutecia interesse de ir agraves coisas mesmas e disposiccedilatildeo de
aprender satildeo atitudes que devem ter quem quer ler esta obra
O objeto temaacutetico de ldquoA doutrina cristatilderdquo eacute a ldquotractatio scripturarumrdquo ou seja o
modo de proceder no trato com as Escrituras Isto comporta uma dupla implicaccedilatildeo
aprender a maneira de se descobrir o que eacute para ser entendido e por outro lado
aprender a maneira de se expor com propriedade o que foi entendido Os trecircs primeiros
livros da obra se atecircm agrave maneira de descobrir e o quarto livro agrave maneira de expor
Toda doutrina ou ciecircncia versa sobre coisas e sinais Coisas eacute tudo o que natildeo estaacute
empregado para significar algum outro objeto Sinais eacute tudo o que se emprega para
significar alguma coisa aleacutem de si mesmo As coisas satildeo conhecidas por meio de sinais
Os sinais devem ser entendidos como sinais e natildeo como coisas isto eacute na sua funccedilatildeo de
sinalizar e natildeo no seu ocorrer meramente factual O primeiro livro iraacute tratar das coisas
elementares da Sagrada Escritura isto eacute aquelas realidades junto agraves quais se empenha
o esforccedilo da compreensatildeo O segundo livro trata dos sinais da Sagrada Escritura e do
modo de chegar ao significado mediante o rigor da interpretaccedilatildeo O terceiro livro se
ocupa em ensinar como resolver as ambiguidades nos textos que se devem interpretar
quer em sentido proacuteprio quer em sentido figurado O quarto livro iraacute indicar como expor
as coisas da Sagrada Escritura com eloquecircncia e sabedoria
O primeiro livro expotildee algumas concepccedilotildees fundamentais sobre a realidade do
real (o ser do ente ndash das ldquocoisasrdquo) As coisas no seu todo se dividem em duas grandes
categorias aquelas que satildeo para a fruiccedilatildeo e aquelas que satildeo para o uso (uti et frui)
ldquoFruir (frui) eacute estar ligado a uma coisa por amor a ela Usar (frui) eacute relacionar aquilo de
que se tem uso com a posse daquilo que se amardquo (1 4 4) Notemos que Agostinho pensa
a realidade do real em seu concernir agrave vida humana A vida humana consiste em
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curare18 O uti (usar) eacute o cuidar que lida com aquilo que contribui para o viver O frui
(fruir) eacute gozar Por exemplo o belo que pertence agrave vigecircncia do ser eacute fruiacutedo A beata
vita (vida bem-aventurada feliz) eacute a do homem que goza do sumo bem (Deus) Eacute para
ser fruiacuteda aquela coisa que deleita por si mesma sem estar referida a outra coisa19 Eacute
para ser usada aquela coisa que eacute que eacute buscada desejada e que deleita por causa de
outra coisa As coisas temporais visiacuteveis satildeo para ser usadas As coisas eternas
invisiacuteveis para serem fruiacutedas O viacutecio a perversatildeo consiste em inverter esta ordem
querer fruir do que eacute para ser usado A virtude poreacutem consiste em fruir do que eacute para
ser fruiacutedo e usar do que eacute para ser usado20 A beatitude eacute a fruiccedilatildeo do sumo e imutaacutevel
bem a Trindade Deus eacute a beleza inteligiacutevel imutaacutevel inefaacutevel Toda a miacutestica medieval
iraacute visar a esta fruiccedilatildeo de Deus como o sumo bem como a suma beleza Na fruiccedilatildeo de
Deus o homem encontra o repouso a quietude (quies) Embora em tudo isso haja
elementos do pensamento grego (neoplatocircnico) no entanto a concepccedilatildeo da vida
humana e da realidade do real em Agostinho estaacute enraizada na compreensatildeo do Novo
Testamento Ele assim traz agrave fala em que consiste a ldquovita praesensrdquo (vida presente) do
cristatildeo eacute vida vivida ldquoin re laboris sed in spe quietis in carne vetustatis sed in fide
novitatisrdquo (no real do labor mas na esperanccedila do repouso na carne da velhice mas na
feacute da novidade) A esperanccedila precede A vida segue isso que a esperanccedila antecipa A
vida se realiza na direccedilatildeo daquilo que a esperanccedila antecipa21
Ainda no primeiro livro encontra-se uma exposiccedilatildeo do conteuacutedo da feacute a modo
de uma siacutentese dogmaacutetica fala da Trindade enquanto aquilo a que a aspiraccedilatildeo de
fruiccedilatildeo por parte do homem estaacute destinada Esta fala se articula em termos biacuteblicos e
tambeacutem em termos metafiacutesicos Trata-se de uma exposiccedilatildeo dogmaacutetico-metafiacutesica dos
misteacuterios e arcanos da feacute cristatilde Ao seu fundo poreacutem estaacute toda uma experiecircncia faacutetica
da vida22 Depois desta exposiccedilatildeo sobre a essecircncia da feacute cristatilde (os misteacuterios que nela satildeo
18 Curo curas curare curavi curatum Verbo transitivo ndash Sentido proacuteprio 1) cuidar olhar por tratar velar Daiacute 2) tratar curar 3) no contexto administrativo governar dirigir administrar 4) no contexto militar comandar 5) no contexto comercial fazer pagar 4) fazer por ter em conta de ter cuidado de 19 De civitate Dei (A cidade de Deus) XI 25 20 De Diversibus quaestionibus XXX 21 Cf Heidegger M Fenomenologia da Vida Religiosa p 258-260 22 A uacutenica ldquocoisardquo (o uacutenico real) a ser fruiacuteda eacute a Trindade Agostinho remete pois inicialmente ao Triuno Deus de quem por quem e para quem existem todas as coisas Os mesmos atributos divinos devem ser predicados de cada uma das pessoas da Trindade isto eacute do Pai do Filho e do Espiacuterito Santo Cada um deles eacute ele proacuteprio na plenitude de sua substacircncia O ser do Pai estaacute na Unidade o ser do Filho na
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cridos) Agostinho trata do ldquoethosrdquo do viver cristatildeo seguindo ainda pelo fio condutor
do ldquouti et fruirdquo (usar e fruir) O essencial do ethos cristatildeo eacute o duplo preceito do amor a
Deus e ao proacuteximo O ethos do viver cristatildeo se instaura segundo a ldquoOrdo dilectionisrdquo
(ordem da dileccedilatildeo ou do amor) A identidade do cristatildeo consiste no seu modo de amar23
Igualdade e o ser do Espiacuterito Santo na harmonia da unidade e da igualdade Natildeo obstante natildeo se trata de trecircs seres mas de um uacutenico Ser Agostinho estaacute ciente da limitaccedilatildeo do entendimento no vigor do silecircncio que se recolhe diante do misteacuterio divino do Deus uno e trino arcano fundamental da feacute cristatilde Deus eacute antes de tudo o inefaacutevel Quando a mente humana cogita acerca do misteacuterio divino que se doa ao se retrair ela busca captar uma realidade transcendental a mais proacutexima visto ser a mais iacutentima mais iacutentima a noacutes que noacutes mesmos e ao mesmo tempo a mais distante (inacessiacutevel justamente em virtude desta proximidade) Eacute esta realidade primeira que institui todo o real quer nas suas realizaccedilotildees sensiacuteveis quer nas inteligiacuteveis Percorrendo-se os diversos niacuteveis de constituiccedilatildeo da vida chega-se agravequela Vida que se define como Sabedoria imutaacutevel isto eacute sempre idecircntica consigo mesma O Deus vivo que eacute o Vivente por excelecircncia eacute o anseio mais profundo da alma humana Contemplaacute-lo e fruir da sua bondade e beleza eacute a beatitude do homem Contudo para que o homem possa chegar agrave visatildeo e fruiccedilatildeo de Deus eacute necessaacuteria a purificaccedilatildeo interior ao longo de sua vida que aparece como um caminho uma viagem uma travessia de retorno agrave paacutetria Esta purificaccedilatildeo se daacute mediante o bom empenho os bons desejos e os costumes No entanto natildeo podemos ir agrave Sabedoria se ela natildeo se dispotildee a vir a noacutes adaptando-se agrave fraqueza dede nossa condiccedilatildeo carnal isto eacute finita fraacutegil decadente mortal No entanto esta Sabedoria que se encarna na realidade da vida faacutetica humana foi rejeitada por muitos como fraqueza e loucura Eacute o misteacuterio da keacutenosis (esvaziamento) do rebaixamento do Filho de Deus o Verbo que se fez carne e atendou entre os homens Mas eacute justamente por esta fraqueza e loucura divina manifestada na encarnaccedilatildeo e na paixatildeo do Verbo humanado Jesus Cristo que acontece a redenccedilatildeo isto eacute a libertaccedilatildeo e a salvaccedilatildeo de todos os homens Nele a Sabedoria cura o homem impregnado de fraqueza e mergulhado na loucura O homem usou mal do dom da imortalidade e caiu na morte Cristo usou bem de nossa mortalidade e isso devolveu ao homem o acesso agrave plenitude da vida Atraveacutes dos misteacuterios da vida de Cristo isto eacute dos misteacuterios de sua encarnaccedilatildeo de sua paixatildeo e tambeacutem de sua ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo com o consequente envio do Espiacuterito Santo os homens satildeo fortalecidos na feacute e avivados no conhecimento Nestes misteacuterios os que creem consideram o quatildeo livremente Cristo deu sua vida pelos homens ele que possuiacutea o poder de retomaacute-la Aqueles que favorecidos pela graccedila da redenccedilatildeo creram no Filho de Deus encarnado e crucificado como Senhor (o Ressuscitado) formam um soacute corpo constituindo deste modo a realidade da Igreja Esta eacute a esposa de Cristo Atraveacutes dos sacramentos ela se purifica para vir se unir ao Esposo Cristo Jesus na eternidade apresentando-se diante dele sem manchas nem rugas Eacute no interior desta Igreja que os homens satildeo gerados para a semelhanccedila com Cristo e recebem o perdatildeo dos pecados (batismo) Desta mesma Igreja recebem a feacute na ressurreiccedilatildeo do corpo e na vida eterna Estes misteacuterios e arcanos cristatildeos satildeo acolhidos pelo homem que estaacute a caminho da paacutetria (a vida eterna) Neste caminho o crente sempre de novo morre para o mundo e vive para Deus Verdade e Vida 23 O homem haacute de amar a Deus por causa dele proacuteprio As criaturas em contrapartida satildeo amadas agrave medida que ajudam o homem a crescer no amor de Deus O amor a si mesmo e ao proacuteprio corpo eacute uma lei natural e por isso natildeo requer nenhum preceito (mandamento) Mas o amor ao que estaacute ao seu lado (o proacuteximo) e o amor ao que estaacute acima dele (Deus) requer preceito Haacute no entanto um falso e um verdadeiro amor de si proacuteprio O verdadeiro amor de si consiste em buscar o que eacute uacutetil e salutar para si mesmo crescendo na caridade (o amor gratuito a Deus e ao proacuteximo) O falso amor de si consiste em submeter o proacuteximo e o proacuteprio corpo a fim de fruir deles Quanto ao amor ao proacuteprio corpo Agostinho relembra a citaccedilatildeo do Apoacutestolo (Paulo) que diz ldquoningueacutem jamais quis mal agrave sua proacutepria carnerdquo (Ef 5 29) Mesmo os que reconhecem sadiamente a necessidade da ascese fazem-no para submeter o corpo ao espiacuterito segundo a ordem da natureza buscando assim a paz e a harmonia O preceito da caridade eacute duplo exige o amor a Deus acima de tudo e o amor ao proacuteximo como a si mesmo A partir do duplo amor natural e do duplo preceito da caridade descobre a ldquoOrdo Dilectionisrdquo (ordem da dileccedilatildeo isto eacute do amor) Ordem implica numa estruturaccedilatildeo em niacuteveis neste caso em niacuteveis de dignidade A ordenaccedilatildeo do amor eacute instaurada quando o homem ama o que deve ser amado (o bem) e natildeo ama o que natildeo deve ser amado (o mal o viacutecio o pecado) Depois quando o homem ama menos o que eacute menos digno de amor (o corpo)
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O amor (dilectio caritas) eacute o princiacutepio que rege toda a vida humana na perspectiva da
feacute cristatilde24 O duplo preceito do amor (a Deus e ao proacuteximo) eacute aqui a norma universal e
primordial que rege toda a ordem do viver O amor a Deus acima de tudo e o amor ao
proacuteximo eacute a essecircncia a substacircncia da revelaccedilatildeo divina (ldquoa Lei e os Profetasrdquo) que foi
radicalizada e consumada em Jesus Cristo no seu novo e eterno testamento
(testemunho) Daiacute se segue que a edificaccedilatildeo da caridade eacute a norma reacutegia e suprema de
toda a interpretaccedilatildeo das Sagradas Escrituras25 Para o homem que atingiu a perfeiccedilatildeo
do amor (caridade perfeita) as Sagradas Escrituras deixam de ser necessaacuterias uma vez
que toda a finalidade delas eacute levar o homem agrave perfeiccedilatildeo do amor (caridade perfeita)
Deste modo as Escrituras Sagradas requerem um leitor que entenda que o fim de tudo
o que ali estaacute escrito eacute a caridade perfeita consumada que aparece concreta e
historicamente em Jesus Cristo o Deus encarnado (humanado) e crucificado A feacute e a
esperanccedila satildeo outras duas virtudes que ajudam o homem a crescer e se perfazer na
perfeiccedilatildeo da caridade no seguimento de Jesus Cristo O essencial do ser cristatildeo se
encontra neste seguimento
Depois quando ama igualmente o que eacute igualmente digno de amor (o proacuteximo) Por fim quando ama absolutamente o que eacute absolutamente digno de ser amado (Deus) Ao amor de Deus assim deve se subordinar e convergir todo amor pela criatura O preceito do amor aleacutem disso comporta universalidade isto eacute ningueacutem eacute dele excluiacutedo A boa vontade do amor se estende a todos mesmo ao inimigo O amor de Deus pelo homem eacute gratuito visto que Deus natildeo precisa do homem mas se basta a si mesmo Seu amor eacute pura gratuita absoluta bondade O grau de perfeiccedilatildeo de um homem depende do grau de perfeiccedilatildeo e da universalidade de seu amor O ser do homem se determina pelo seu amor O homem eacute o que ele ama e como ele ama Ele cresce no ser se cresce na perfeiccedilatildeo (e na universalidade) do amor Ele diminui no ser se decresce na capacidade de amar O homem pode encontrar deleite nos outros homens quando estes o ajudam a crescer no amor a Deus Eacute quando se ama e se gosta do outro em Deus Os homens podem e devem constituir uma fraternidade no amor ajudando-se mutuamente a prosseguir seu itineraacuterio para Deus Nenhuma homem pode se considerar fim absoluto do amor do outro Ele natildeo eacute o destinataacuterio uacuteltimo do amor do outro Eacute apenas companheiro na viagem da vida e como tal haacute de ser amado Neste itineraacuterio para Deus Cristo eacute o caminho a verdade e a vida isto eacute ele eacute aquele por quem o homem vai aquele a quem o homem alcanccedila e em quem ele permanece no amor 24 Cf Arendt Hanna O conceito de amor em Santo Agostinho Ensaio de interpretaccedilatildeo filosoacutefica Lisboa Instituto Piaget 1997 25 Para o ldquohomo viatorrdquo (homem a caminho) a feacute nas Escrituras fortalece a feacute a esperanccedila e a caridade Nestas trecircs virtudes teologais se encerram e se subsumem toda a ciecircncia e toda a profecia A caridade permanece para sempre enquanto que a feacute e a esperanccedila se extinguem quando o homem chega a seu destino (a Paacutetria o Reino dos Ceacuteus) A caridade visa um bem eterno Se os bens temporais satildeo amados antes de serem possuiacutedos pois ao serem conquistados natildeo saciam a alma na sua sede do absoluto bem o bem eterno eacute o que eacute amado com tanto mais ardor ao ser possuiacutedo do que fora ao ser desejado pois a ningueacutem que a deseja a beatitude concedida eacute menor do que a desejada
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O livro II eacute um verdadeiro tratado de semiologia26 Todo o pensamento a respeito
da linguagem do ocidente se baseia no triacircngulo semioacutetico signo conceito coisa A base
desta concepccedilatildeo de Aristoacuteteles Ela eacute exposta no ὶ ἑί (perigrave hermeneiacuteas)
ldquoDe interpretationerdquo (16a 3-8)
Satildeo pois aquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz siacutembolos das paixotildees (afecccedilotildees disposiccedilotildees) na alma e as coisas que satildeo escritas satildeo siacutembolos daquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz E assim como as coisas escritas natildeo satildeo as mesmas para todos do mesmo modo tambeacutem os sons da voz natildeo satildeo os mesmos Aquelas coisas de que isso (coisas escritas e sons da voz) satildeo primordialmente signos (coisas que mostram) satildeo para todos (os homens) as mesmas paixotildees da alma e as coisas das quais estas (paixotildees da alma) formam apresentaccedilotildees assemelhadas satildeo igualmente as mesmas27
O texto de Aristoacuteteles se manteacutem numa fala esclarecida e soacutebria que torna
visiacutevel a claacutessica estruturaccedilatildeo que abriga a linguagem como discurso ou fala As letras
do alfabeto28 mostram os fonemas29 Os fonemas mostram as disposiccedilotildees na alma30 As
disposiccedilotildees na alma mostram as coisas que que lhe con-cernem31 O mostrar configura
e sustenta as escoras dessa construccedilatildeo De maneira variada o mostrar conduz algo para
um aparecer deixando assim apreender o que aparece e permitindo que se discuta o
que se apreende
26 A semiologia (ou semioacutetica) eacute a ciecircncia dos signos Como os signos verbais tecircm na vida humana um papel de primeiro plano a semiologia se concentrou em grande parte na linguagem Haacute uma semiologia nas especulaccedilotildees linguiacutestica da antiguidade entre os modistas da Idade Meacutedia etc Mas o nome ldquosemioacuteticardquo surge na modernidade com Locke Torna-se poreacutem uma disciplina independente na obra do filoacutesofo americano Charles Sanders Peirce (1839-1914) 27 A traduccedilatildeo entende os σημεῖα (semeia ndash os signos aquelas coisas que mostram) os σύμβολα (symbola - os siacutembolos ndash o que eacute lanccedilado junto e nessa junccedilatildeo deixa e faz com que um se atenha ao outro) e os ὁμοιώματα (homoioacutemata ndash as apresentaccedilotildees assemelhadas as semelhanccedilas) como um mostrar no sentido de deixar aparecer o que por sua vez encontra-se no acircmbito do desencobrimento (αλήθεια ndash aleacutetheia) 28 τὰ γραφόμενα ndash taacute graphoacutemena 29 τὰ ἐν τῇ φωνῇ - taacute en te phoneacute 30 παθήματα τῆς ψυχῆς ndash patheacutemata tecircs psykhecircs 31 πράγματα - praacutegmata
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Antes de nos apropriarmos da semiologia de Agostinho tentemos aqui uma
consideraccedilatildeo fenomenoloacutegica sobre o sinal e a linguagem
O falar acontece por mor do dizer Dizer eacute mostrar O falar enquanto dizer se
realiza como um discurso mostrador loacutegos apophaacutentikoacutes32 O falar estaacute a serviccedilo do
dizer Dizer eacute mostrar no sentido de deixar e fazer ver a quem se fala aquilo de que se
fala Dizer eacute dar algo a compreender eacute fazer-se compreender sobre algo a quem escuta
O mostrar no falar acontece como um conceder acenos dar indiacutecios oferecer
indicaccedilotildees oferecer sinais33 Mas tudo isso acontece no sentido de um anunciar que se
cumpre como um revelar um divulgar um mencionar (fazer menccedilatildeo de referir relatar
expor narrar) um lembrar um recordar e um comemorar O anunciar eacute entendido pois
pelos gregos como um mostrar deiknymi34 O sinal eacute uma referecircncia uma remissatildeo O
remeter proacuteprio do sinal consiste em mostrar O mostrar do sinal se funda na referecircncia
na remissatildeo Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo No entanto
Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo eacute uma referecircncia Toda lsquoaccedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma referecircncia mas nem toda referecircncia mostra Com isso tambeacutem se diz toda accedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo mostra Assim aparece o caraacuteter formal e geral da relaccedilatildeo Para se investigar os fenocircmenos de referecircncia sinal e significado de nada adianta caracterizaacute-los como relaccedilatildeo Deve-se em uacuteltima instacircncia mostrar que a proacutepria lsquorelaccedilatildeorsquo devido a seu
32 O loacutegos eacute um reunir e um recolher (leacutegein) que potildee expotildee e depotildee abre e manifesta traz ao desencobrimento agrave revelaccedilatildeo Como abrir e manifestar leacutegein estaacute em contraste com krypto cobrir encobrir esconder ocultar no sentido de guardar Conhecemos um fragmento de Heraacuteclito (fr 93) que traz este contraste Ele diz Ho aacutenax hou tograve manteion esti tograve en Delphois oute leacutegei oute kryptei allagrave semainei ndash O Autor de quem eacute o oraacuteculo de Delfos natildeo traz ao desencobrimento nem encobre mas acena 33 Semainein eacute um conceder semata (acenos indiacutecios indicaccedilotildees) A palavra grega no singular eacute ldquosemardquo indiacutecio vestiacutegio marca distintiva senha sinal ldquoSemardquo eacute tambeacutem pressaacutegio auguacuterio auspiacutecio Eacute ainda o astro ou uma constelaccedilatildeo da qual se tiram indicaccedilotildees na orientaccedilatildeo concernente ao ceacuteu Eacute por fim o tuacutemulo a tumba 34 Da mesma raiz de ldquodeiknymirdquo (mostrar) eacute o verbo latino ldquodicererdquo dizer Dizer eacute mostrar isto eacute deixar e fazer ver trazer agrave evidecircncia alguma coisa O sinal pois no falar precisa ser entendido na dinacircmica do dizer isto eacute do mostrar
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caraacuteter formal geral tem sua origem ontoloacutegica numa referecircncia35
Haacute uma multiplicidade de sinais anuacutencios prenuacutencios vestiacutegios marcas
distintivos cuja accedilatildeo de mostrar difere a cada caso Satildeo sinais diferentes o rastro o
resto o monumento o documento o testemunho o siacutembolo a expressatildeo a
manifestaccedilatildeo a significaccedilatildeo O sinal tem a sua serventia no mostrar no sentido de fazer
sobressair de dar na vista salientar fazer reparar estranhar alguma coisa Aquilo que
normalmente natildeo causa surpresa eacute ressaltado pelo sinal O sinal permite a descoberta
de alguma coisa
O mundo eacute o ldquoonderdquo das descobertas O homem se orienta se dirige se
direciona em seus comportamentos com as coisas com os entes agrave matildeo a partir de uma
familiaridade com o mundo A abertura de mundo se daacute como compreensatildeo Trata-se
poreacutem de uma compreensatildeo operativa natildeo teoacuterica Compreender significa aqui reunir
as remissotildees recolher as referecircncias O caraacuteter de remissatildeo das remissotildees das
referecircncias eacute o que se chama de significar Significar (be-deuten) eacute aqui mostrar
(deuten) no sentido de pocircr a caminho um clarear um esclarecer Eacute o processo e o
movimento de estruturaccedilatildeo do mundo Significar eacute aqui oferecer alguma coisa para a
compreensatildeo e para a interpretaccedilatildeo Significacircncia (Bedeutsamkeit) eacute o todo das
remissotildees do acontecimento e do processo do significar que eacute a estruturaccedilatildeo de
mundo Noacutes nos encontramos a noacutes mesmos jaacute sempre no mundo entendendo o mundo
antes de tudo como uma totalidade de significacircncias Eacute um encontrar-se a si mesmo
sempre numa situaccedilatildeo de ocupaccedilatildeo e preocupaccedilatildeo de cuidado com o proacuteprio ser-no-
mundo Tudo aquilo com que podemos nos relacionar e comportar tem este caraacuteter
estaacute aiacute e eacute encontrado no caminho do cuidado eacute experimentado como significativo a
partir de um determinado cuidado Significacircncia indica este modo fundamental como
algo segundo o seu teor proacuteprio eacute encontrado na vida como ele se deteacutem e se reteacutem
no meio do mundo da vida
Soacute acontece linguagem onde noacutes falamos uns com os outros A linguagem
acontece de iniacutecio e na maior parte das vezes na conversa com suas falas e seus
silecircncios Para noacutes isto eacute na ordem da nossa experiecircncia cotidiana a primeira
35 Heidegger M Ser e Tempo sect 17
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dimensatildeo pois da linguagem eacute a fala o discurso O discurso traz agrave fala uma
compreensatildeo Chamamos de sentido o que pode ser articulado O sentido eacute o que torna
compreensiacutevel algo enquanto algo Compreender eacute fundamentalmente apreender algo
enquanto algo Tudo que apreendemos se mostra a si mesmo como isso ou aquilo Isso
quer dizer noacutes aprendemos cada coisa em sua significacircncia A percepccedilatildeo natural em
que noacutes vivemos cotidianamente jaacute eacute sempre uma compreensatildeo uma captaccedilatildeo da coisa
como esta coisa do sapato como sapato do livro como livro do reloacutegio como reloacutegio
Natildeo eacute assim que eu primeiro apreendo uma coisa na sua nua e crua factualidade e
depois lhe atribuo este ou aquele significado Cada vez eu apreendo uma coisa como
tal coisa isto eacute eu apreendo a coisa dentro de uma determinada significacircncia36
A coisa que me vem ao encontro dentro do mundo se mostra como isto ou
aquilo37 Ela instaura um conjunto de referecircncias ela remete a isto ou aquilo ela soa
desta ou daquela maneira em meu mundo ela fala disto ou daquilo em minha vida A
coisa significa a si mesma Mas o seu poder significar a si mesma soacute eacute possiacutevel porque
ela jaacute eacute descoberta como coisa que vem ao encontro dentro do mundo isto eacute dentro de
uma totalidade de sentido Que a coisa se faccedila encontrar e descobrir deste ou daquele
modo e que ela se decirc a compreender como isto ou aquilo ndash isto soacute eacute possiacutevel porque ao
apreendecirc-la numa percepccedilatildeo concreta um mundo jaacute se me abriu Com a coisa se
anuncia o mundo da vida ou melhor os mundos da vida o mundo circunstante o
mundo partilhado da convivecircncia o mundo proacuteprio pessoal A coisa soacute pode ser
apreendida na sua significacircncia a partir da abertura do mundo ou dos mundos
Perceber eacute jaacute compreender as coisas na sua significacircncia Perceber eacute estruturar
e configurar o mundo como estrutura significativa Em toda percepccedilatildeo atua pois um
ato fundamental de significaccedilatildeo Chamamos de significar o ato pelo qual o homem
estrutura a significacircncia das coisas no horizonte do mundo enquanto totalidade
significativa Da compreensatildeo que articula a significaccedilatildeo das coisas numa totalidade
sentido brota a possibilidade da interpretaccedilatildeo Pela compreensatildeo o homem estaacute
sempre se projetando abrindo lances de perspectivas entrevendo de antematildeo
36 Cfr M HEIDEGGER GP 102-110 37 Cfr M HEIDEGGER Ontologie (Hermeneutik der Faktizitaumlt) (OHF) Gesamtausgabe ndash Band 63 Vittorio Klostermann Frankfurt am Main 1995 p 93-104
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aberturas de possibilidades Pela compreensatildeo o homem opera um ver que eacute projetivo
e criativo de possibilidades de ser Esse ver projetivo e criativo configura isto eacute elabora
em formas significativas essas possibilidades de ser Agrave elaboraccedilatildeo e exposiccedilatildeo dessas
formas chamamos de interpretaccedilatildeo Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo se apropria do
que compreende Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo busca chegar a uma maturaccedilatildeo
isto eacute busca maturar as possibilidades de ser que ela jaacute entreviu A interpretaccedilatildeo eacute uma
explicitaccedilatildeo da compreensatildeo O que entra como componente da explicitaccedilatildeo possui o
caraacuteter de significacircncia eacute o mostrar-se de algo como algo Em todo o nosso
comportamento noacutes jaacute estamos sempre compreendendo e interpretando apreendendo
algo como algo e referindo algo a algo articulando significados numa totalidade de
sentido que eacute o mundo O homem sempre interpreta Pois interpretar eacute ser homem
A articulaccedilatildeo dos significados numa totalidade de sentido se daacute atraveacutes do falar
quer do falar de si consigo mesmo quer do falar uns com os outros Na fala noacutes
pronunciamos o que compreendemos e como interpretamos o que estaacute em questatildeo Pro-
nunciar eacute pro-ferir isto eacute trazer agrave luz ao aberto do mundo da convivecircncia aquilo que
compreendemos e interpretamos Pelo discurso vecircm agrave fala os entes e o ser dos entes
tais como se oferecem agrave nossa compreensatildeo e interpretaccedilatildeo Vem agrave fala agrave medida que
se articulam num horizonte de compreensibilidade que noacutes chamamos de sentido O
sentido eacute o que se articula na compreensatildeo e interpretaccedilatildeo como horizonte daquilo que
compreendemos e interpretamos Todo discurso eacute o pronunciar o vir agrave fala daquilo que
compreendemos e interpretamos dos significados das coisas agrave luz do sentido de ser que
noacutes lhes damos
xxxxxxxxxx
Os medievais iratildeo precisar e aprofundar a concepccedilatildeo de signo Assim para
Tomaacutes de Aquino o signum eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro
A palavra proferida exteriormente pela voz eacute a fala A fala eacute proferida a modo de uma
voz articulada significativa Nem todo o som eacute voz A voz enquanto haacutelito sopro som
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que sai da boca com efeito soacute chega a ser palavra quando eacute significativa38 Sem a
significaccedilatildeo (significatio) uma voz natildeo eacute palavra A significaccedilatildeo torna a voz uma
expressatildeo do pensamento39 Por isso somente um vivente inteligente (animal rationale)
tem voz enquanto palavra40 Um vivente melhor um animal emite sons para se
comunicar Mas os seus sons natildeo satildeo vozes articuladas significativas Os gritos os
alaridos de animais natildeo satildeo palavras Sua comunicaccedilatildeo natildeo eacute fala O berrar de um
bezerro o mugir de uma vaca o balar de uma ovelha o balir de um cordeiro o arrulhar
de uma pomba o latir de um catildeo o miar de um gato ndash tudo isso natildeo eacute fala Seus sons
natildeo satildeo vozes significativas Indicam alguma coisa Mas o seu indicar natildeo tem o sentido
de significar alguma coisa Significar eacute dar a conhecer algo como algo a algueacutem41 Fumaccedila
indica fogo Bandeira branca indica rendiccedilatildeo Indicar poreacutem natildeo eacute significar Todo
significar eacute um indicar mas nem todo indicar eacute significar Significar eacute dar a conhecer no
sentido de dar a compreender algo como algo A fala daacute a conhecer alguma coisa Ela
faz-se notar e faz notar alguma coisa A fala eacute um fazer notar que daacute a conhecer alguma
coisa42 A fala faz notar daacute a conhecer isto eacute gera uma ldquonotiordquo ou uma ldquonotitiardquo
(conhecimento noccedilatildeo sentido)43 Notar quer dizer aqui dirigir-se a alguma coisa
orientando-se no mundo (intencionalidade) tornando-se atento a ela ao seu ser
Joatildeo Duns Scotus iraacute retomar o triacircngulo semioacutetico do Peri hermeneiacuteas de
Aristoacuteteles Ele questiona sobre a distinccedilatildeo de litteras et voces (letras e vozes) de um
lado passiones (disposiccedilotildees da alma) e res (coisa) de outro lado na quarta das questotildees
sobre o primeiro livro do ldquoPerigrave hermeneiasrdquo e conclui pela sua conveniecircncia As
disposiccedilotildees da alma (significaccedilatildeo e sentido) satildeo as mesmas em todos bem como as
coisas que elas significam enquanto as letras e vozes satildeo diferentes dependendo da
liacutengua Com outras palavras as letras e vozes que satildeo diferentes de liacutengua para liacutengua
38 ldquoVox quae non est significativa verbum dici non potestrdquo (A voz que natildeo eacute significativa natildeo pode ser dita palavra) ndash Tomaacutes de Aquino op Cit (I341) 39 ldquoLocutio est proprium opus rationis (I913 ad 3) falar -diz Tomaacutes- eacute operaccedilatildeo proacutepria da razatildeo 40 Agrave base desta concepccedilatildeo estaacute a concepccedilatildeo grega do homem aacutenthropos como zoon logon echon (vivente que tem linguagem) Nesta traduccedilatildeo o loacutegos eacute tanto ratio (pensamento) quanto oratio (fala no sentido de discurso) 41 Em Tomaacutes no acircmbito da vox situa-se a palavra (verbum) A palavra eacute uma realizaccedilatildeo especial do signo (signum) que por sua vez eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro (III604) 42 Cfr Heidegger M Vom Wesen der Sprache Die Metaphysik der Sprache und die Wesung des Wortes - Zu Herders Abhandlung ldquoUumlber den Ursprung der Spracherdquo Gesammtausgabe Band 85 p 3-4 43 Cfr idem p 20
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satildeo sinais instituiacutedos pelo arbiacutetrio humano que representam as disposiccedilotildees da alma (no
caso significaccedilatildeo e sentido) que por sua vez satildeo sinais naturais representativos das
coisas44
As expressotildees orais ou escritas satildeo formas linguiacutesticas dotadas de significaccedilotildees e
de sentido Sentidos e significaccedilotildees que satildeo pensados vecircm agrave expressatildeo Eles satildeo
exprimiacuteveis atraveacutes de formaccedilotildees linguiacutesticas Uma coisa eacute a forma linguiacutestica da
expressatildeo o complexo graacutefico ou focircnico ou como dizem os medievais as voces (vozes)
Outra coisa eacute o conteuacutedo da expressatildeo a significaccedilatildeo o sentido no juiacutezo e no
entrelaccedilamento de juiacutezos (conclusatildeo silogismo) O conteuacutedo eacute um ldquosignificatumrdquo que
estaacute intencionalmente ldquoin menterdquo45
A voz se torna expressatildeo agrave medida que eacute dotada de significaccedilotildees e de sentido
Assim a proposiccedilatildeo enquanto sequecircncia de palavras eacute singular Mas o conteuacutedo da
proposiccedilatildeo o juiacutezo ora eacute singular se o predicado eacute dito de um soacute ou universal se o
predicado eacute dito de muitos A proposiccedilatildeo como uma sequecircncia de palavras natildeo eacute
verdadeira ou falsa Ela eacute ou natildeo eacute Eacute falada ou escrita Mas natildeo eacute verdadeira ou falsa O
sentido da proposiccedilatildeo o juiacutezo eacute que eacute verdadeiro ou falso natildeo poreacutem enquanto
simples conteuacutedo da proposiccedilatildeo mas soacute agrave medida que ele tem um valor objetivaacutevel um
valor de conhecimento objetivo46 Proposiccedilatildeo e sentido palavra e significaccedilatildeo
pertencem a acircmbitos de realidade diversos Os elementos linguiacutesticos que constituem
proposiccedilatildeo e palavra satildeo sensivelmente perceptiacuteveis (satildeo acuacutesticos visuais motores)
satildeo reais e temporais Jaacute as significaccedilotildees e o sentido se subtraem a uma percepccedilatildeo
sensorial e satildeo atemporais O elemento linguiacutestico de uma expressatildeo eacute um signum ad
44 Cfr Quaestiones in I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 7) ldquoAd quaestionem dicendum quod differentia est conveniens quia passiones inquanto sunt signa et res inquanto sunt significata sunt eandem apud omnes nam eadem passio in anima apud quoscumque concipientes repraesentat eamdem rem quia eadem similitudo in anima semper est eiusdem repraesentativa sicut est similitudo sensibilis in sensu litterae et voces in se eaedem non sunt eaedem apud omnes inquanto sunt signa quia nec eadem littera apud omnes repraesentat eamdem vocem sed vel aliam vel nullam nec eadem vox apud omnes significat eamdem passionem sed vel aliam vel nullamrdquo (SCOTUS 1998 p 918) 45 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 12) ldquoAd quaestionem dici potest quod iste liber non est de decem vocibus ut de primo subiecto ndash nec aliqua pars logicae est de voce quia omnes passiones syllogismi et omnium partium eius possunt sibi inesse secundum esse quod habent in mente etsi non proferantur () sed est de aliquo priore quod respectu voces significativae tantum habet rationem significatirdquo (SCOTUS 1998 p 652) 46 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 22) ldquoSimiliter lsquosignificare verum vel falsumrsquo convenit enuntiationi sed non ut vox est significans conceptum sed ut conceptus significat remrdquo (SCOTUS 1998 p 653)
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placitum um signo instituiacutedo conforme o agrado ou o arbiacutetrio de quem o usa47 As
significaccedilotildees e os sentidos poreacutem se subtraem ao arbiacutetrio daquele que pensa por ter
a sua proacutepria necessidade ideal ou objetiva
A forma linguiacutestica eacute signo da significaccedilatildeo que por sua vez eacute signo de algo de
objetual de alguma objetualidade (objetos estados-de-coisas notas distintivas formas
reais ou categoriais) Trata-se do triacircngulo semioacutetico que constitui a base da
consideraccedilatildeo sobre a linguagem em toda a tradiccedilatildeo ocidental e que vem de Aristoacuteteles
Para Duns Scotus palavra e proposiccedilatildeo enquanto formaccedilotildees linguiacutesticas
dotadas de significaccedilatildeo e de sentido apontam para a esfera objetual A formaccedilatildeo
linguiacutestica eacute sinal da significaccedilatildeo e do sentido que eacute por sua vez sinal do objeto Enfim
palavra e proposiccedilatildeo satildeo sinais das coisas ldquoQuidquid est signum signi est signum
signatirdquo ndash o que quer que seja sinal do sinal eacute sinal do assinalado48 Assim palavra e
proposiccedilatildeo se tornam sinais das objetualidades agraves quais se referem No entendimento
de Duns Scotus o conceito eacute o que eacute designado imediatamente o objeto eacute o que eacute
designado mediatamente pela expressatildeo O doutor sutil esclarece que significare eacute dare
intelligere dar a compreender49 O signo eacute algo de relacional possui um caraacuteter ou uma
funccedilatildeo remissiva O signo graccedilas a sua funccedilatildeo remissiva eacute o fundamento material de
que parte o conhecimento do designado A expressatildeo linguiacutestica poreacutem natildeo eacute somente
um signo que remete ou se refere a algo Ele eacute um signo que significa algo ou seja que
daacute a compreender algo ou algo de algo e que ademais se refere a objetualidades
visando dizer ou seja mostrar o que se mostra e como se mostra50
47 Cfr Quaestiones super I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 14) ldquo et instrumenta naturalia formandi vocem potest homo aliqua imponere quae sunt signa ad placitum et non naturalia sive conceptusrdquo (SCOTUS 1998 p 919) 48 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 28 n 28) ldquo lsquoQuidquid est signum signi est signum signatirsquo ita quod signum intermedium non varietur in comparatione ad primum signum et ultimum signatumrdquo (SCOTUS 1998 p 751) 49 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 8 n 1) ldquoQuia significare est intellectum constituererdquo (SCOTUS 1998 p 679) 50 Assim para Husserl a expressatildeo que funde numa unidade a manifestaccedilatildeo sensiacutevel a significaccedilatildeo e a referecircncia ao objeto estaacute ordenada tanto a um valor de conhecimento quanto a um valor de verdade Agrave expressatildeo corresponde ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo se constitui uma relaccedilatildeo com o objeto Triacuteplice eacute o conteuacutedo de uma expressatildeo a significaccedilatildeo a referecircncia ao objeto e por fim o preenchimento de sentido A expressatildeo pela significaccedilatildeo e pela referecircncia ao objeto daacute a compreender alguma coisa acerca de algo O preenchimento da intenccedilatildeo signitiva vazia no modo da confirmaccedilatildeo da documentaccedilatildeo intuitiva leva por sua vez agrave experiecircncia da verdade Para Husserl expressotildees satildeo signos significativos distintos dos signos indicativos Numa descriccedilatildeo fenomenoloacutegica da expressatildeo dotada de sentido se
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No De dialectica (Da dialeacutetica) Agostinho define a palavra como um sinal de
alguma coisa que proferido por quem fala pode ser compreendido por quem escuta (De
Dialectica 5) 51 Nesta definiccedilatildeo podemos perceber as vaacuterias dimensotildees do exerciacutecio
humano da linguagem a da comunicaccedilatildeo em que homens falam uns com os outros
compartilhando suas vidas e coparticipando de um mesmo mundo a da expressatildeo em
que homens se pronunciam a partir de seu ser num mundo comum o discurso pelo
qual homens falam uns com os outros e escutam uns aos outros a compreensatildeo e
interpretaccedilatildeo em que homens ouvindo uns aos outros recebem a mensagem e se
apropriam de seu sentido Como ponta do ldquoicebergrdquo de toda esta vitalidade do concurso
comunicativo e do discurso temos o sinal que eacute proferido por quem fala o som da boca
a voz que longe de ser um mero ruiacutedo eacute um sinal um signo e se sinal eacute sinal de
alguma coisa ou seja algo vem a ser significado por este signo ou sinal
podem evidenciar trecircs momentos que no entanto formam uma unidade intimamente fundida a apariccedilatildeo fiacutesica da expressatildeo o ato doador de sentido e o ato preenchedor de sentido Assim palavras e proposiccedilotildees satildeo sons articulados animados de sentido Agraves expressotildees satildeo essenciais os atos que conferem a significaccedilatildeo respectivamente as intenccedilotildees de significaccedilatildeo A estes atos se acrescentam de modo extra-essencial os atos que preenchem as significaccedilotildees confirmando reforccedilando ilustrando as intenccedilotildees de significaccedilatildeo Para que o signo se torne expressatildeo eacute preciso que lhe seja imposto uma significaccedilatildeo Husserl fala de emprestar significaccedilatildeo de conferir sentido Expressotildees satildeo unidades de signos e designados (sinais e assinalados) de espeacutecie bem peculiar Expressotildees satildeo sinais significativos A significaccedilatildeo adere ao ato significativo Com a expressatildeo que suscita o ato que confere o sentido nos orientamos ao objeto Agrave expressatildeo compete ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo eacute que se constitui a relaccedilatildeo com o objeto ldquoToda e qualquer expressatildeo natildeo quer apenas dizer qualquer coisa mas tambeacutem diz algo acerca de qualquer coisa ela natildeo tem apenas a sua significaccedilatildeo mas refere-se tambeacutem a quaisquer objetosrdquo (HUSSERL 2012 p 38 ndash grifo de Husserl) Assim significaccedilatildeo e referecircncia objetiva se distinguem Expressotildees podem ter a mesma significaccedilatildeo mas objetos diferentes por um lado e por outro podem ter significaccedilotildees diferentes mas o mesmo objeto Assim considerando dois enunciados ldquoeste sendeiro eacute um cavalordquo e ldquoBuceacutefalo eacute um cavalordquo a expressatildeo um cavalo tem a mesma significaccedilatildeo mas os objetos satildeo diferentes Por sua vez dois nomes podem significar coisas diferentes mas nomear o mesmo como no exemplo ldquoO vencedor de Iena - O vencido de Waterloordquo Significaccedilatildeo e referecircncia objetiva no entanto estatildeo em iacutentima conexatildeo A expressatildeo se refere ao objeto por meio da significaccedilatildeo Uma expressatildeo adquire um referimento ao objeto pelo simples fato de que esta significa algo Por isso eacute que dizemos que uma expressatildeo designa ou denomina algo por meio do seu significado ou seja o ato de significar eacute o modo determinado de intencionar o objeto em questatildeo soacute que justamente este modo de intencionar e portanto o significado mesmo pode variar enquanto permanece idecircntica a direccedilatildeo para o objeto Se considerarmos pois os trecircs momentos que se fundem numa unidade na expressatildeo temos aquilo que de modo equiacutevoco se chama o expressado da expressatildeo ldquoOs termos em relaccedilatildeo ndash manifestaccedilatildeo significaccedilatildeo e objeto ndash pertencem essencialmente a toda e qualquer expressatildeo Em cada uma qualquer coisa eacute manifestada qualquer coisa eacute significada e qualquer coisa eacute nomeada ou de algum modo designada E no discurso equiacutevoco tudo isto se diz lsquoexpressorsquordquo 51 Idem p 14
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No escrito sobre a dialeacutetica Agostinho trata de quatro elementos desta arte o
verbum o dicibile52 a dictio53 e a res Vejamos como Agostinho expotildee o nexo entre estes
quatro elementos
Ora porque as palavras (verba) satildeo sinais das coisas (signa rerum) quando se ocupam com as coisas enquanto satildeo sinais das palavras (signa verborum) quando se discute sobre palavras ndash pois sobre palavras natildeo podemos falar a natildeo ser com palavras e quando falamos natildeo falamos a natildeo ser de coisas ndash ocorre agrave mente que as palavras satildeo sinais das coisas sem deixar de ser coisas
Quando pois a palavra sai da boca se sai por causa de si mesma isto eacute para que acerca dela se inquira ou se discuta haacute certamente uma coisa que eacute sujeita a discussatildeo e a investigaccedilatildeo mas justamente esta coisa eacute chamada palavra
E o que quer que a partir da palavra natildeo os ouvidos mas a mente (animus) percebe (sentit) e que a mente mesma manteacutem incluiacuteda em si se chama dicibile54 Quando poreacutem a palavra sai natildeo por causa de si mesma mas para significar algo de outro chama-se dictio55 E a coisa mesma que natildeo eacute uma palavra nem ainda uma concepccedilatildeo da palavra na mente seja que tenha uma palavra com a qual possa ser significada seja que natildeo a tenha daqui por diante natildeo eacute chamada com nome apropriado de outro modo do que de coisa
Estes quatro hatildeo de ser mantidos distintamente portanto a palavra (verbum) o dicibile a dictio a coisa Aquilo que defini como palavra eacute uma palavra e significa a palavra Aquilo que defini dicibile eacute uma palavra e todavia natildeo significa a palavra mas aquilo que graccedilas agrave palavra se compreende e estaacute contido na mente Aquilo que eu defini dictio eacute uma palavra mas uma palavra que significa contemporaneamente as outras duas ou seja a palavra mesma e aquilo que se faz na mente atraveacutes da palavra Aquela que eu defini como coisa eacute uma palavra que significa tudo aquilo que fica fora das trecircs que foram ditas
52 Seria o λεκτόν (lektoacuten) dos estoicos 53 Seria a λέξις (leacuteksis) dos estoicos 54 O exprimiacutevel ou melhor o diziacutevel no sentido do mostraacutevel 55 A expressatildeo o dito do dizer
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Depois destas digressotildees necessaacuterias para aclararmos o que estaacute em questatildeo
voltemos ao livro II do ldquoDe Doctrina Christianardquo de Agostinho Retomemos a sua
consideraccedilatildeo a respeito do signo
Haacute dois tipos de signos os naturais e os convencionais Os naturais datildeo a
conhecer por si proacuteprios alguma coisa aleacutem do que satildeo em si Assim fumaccedila eacute signo
de fogo Os signos convencionais (data signa) satildeo todos aqueles que os seres vivos em
especial o ser humano mutuamente se trocam para manifestar ndash o quanto lhes eacute
possiacutevel ndash os movimentos de sua alma tais como as sensaccedilotildees e os pensamentos Os
signos podem se dar em referecircncias a todos os sentidos a maioria dos signos poreacutem
se referem agrave audiccedilatildeo ou agrave visatildeo Dentre estes signos mais usuais e importantes satildeo os
signos verbais que satildeo sons significativos que se articulam mediante a voz humana
constituindo a palavra falada Os signos escritos poreacutem mostram os signos verbais de
maneira visiacutevel (e natildeo audiacutevel como fazem os signos falados)
A liacutengua eacute a realizaccedilatildeo concreta da linguagem humana mediante o uso de signos
verbais falados ou escritos As Sagradas Escrituras indicam pela histoacuteria da Torre de
Babel que liacutengua e linguagem sofrem com a decadecircncia do espiacuterito humano causada
pela soberba56 O contraacuterio da histoacuteria de Babel eacute poreacutem a histoacuteria de Pentecostes
narrada no livro dos Atos dos Apoacutestolos que aponta para a comunhatildeo do amor e o
muacutetuo entendimento entre os homens propiciado com o dom do Hagioacutes Pneuma
(Sopro Sagrado Espiacuterito Santo)
56 Na histoacuteria narrada pelo livro do Gecircnesis os homens se unem para erguer uma torre que una a terra ao ceacuteu a partir das proacuteprias forccedilas e da proacutepria engenhosidade Nos povos antigos encontramos monumentos que evocam algo disso O desejo do homem de uniatildeo entre o ceacuteu e a terra se manifesta nos zigurates da mesopotacircmia nas piracircmides das altas culturas das pedras (Egito Peru Meacutexico) nas estupas asiaacuteticas e quiccedilaacute em tempos mais primitivos aos dolmens menires nas cacircmaras funeraacuterias e nos obeliscos Junto com o esforccedilo de o homem erguer-se a si mesmo como homem erguendo pedras haacute o esforccedilo tambeacutem de alcanccedilar a vida dos imortais dos deuses tolhendo a proacutepria finitude Babel que era para ser a ldquoporta dos deusesrdquo (babilani) se torna poreacutem o lugar da confusatildeo (balal = confundir) O mundo se torna assim uma ldquoBabilocircniardquo isto eacute o lugar da confusatildeo em que os homens natildeo conseguem chegar ao entendimento muacutetuo Somente em Pentecostes em Jerusaleacutem celebra-se plenamente a superaccedilatildeo desta divisatildeo e desta confusatildeo em que as liacutenguas natildeo satildeo mais confusas e em que a linguagem do amor ardente une os homens e propicia-lhes a chance do entendimento muacutetuo e da verdadeira concoacuterdia uma concoacuterdia para o bem em favor de Deus
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Aquele vento purificava os coraccedilotildees da palha carnal aquele fogo consumia o feno da antiga concupiscecircncia aquelas liacutenguas em que falavam os que estavam plenos do Espiacuterito Santo prefiguravam a futura Igreja mediante liacutenguas de todos os povos Pois assim como depois do diluacutevio a soberba impiedade dos homens edificou uma grandiosa torre contra o Senhor ocasiatildeo na qual o gecircnero humano mereceu ser dividido pela diversidade das liacutenguas de modo que cada naccedilatildeo falasse sua proacutepria liacutengua para natildeo ser entendido pelas demais assim a humilde piedade dos fieis reduziu a diversidade de liacutenguas agrave unidade da Igreja de maneira que aquilo que a discoacuterdia tinha dispersado o reunisse a caridade e assim os membros dispersos do gecircnero humano qual membros de um mesmo corpo fossem reintegrados agrave unidade de uma uacutenica cabeccedila que eacute Cristo e fundidos na unidade do corpo santo mediante o fogo do amor57
O maior sinal da comunhatildeo do amor eacute quando os homens conseguem falar uns
com os outros e se entender Embora sejam diferentes e falem liacutenguas diferentes falam
a partir de uma mesma linguagem a do amor-caridade (gratuidade) As liacutenguas se
tornam entatildeo como labaredas do amor As falas satildeo entatildeo falas inflamadas de um fogo
divino brilhantes e ardentes divinamente apaixonadas entusiasmadas O amor eacute o que
possibilita manter esta identidade na diferenccedila Cria-se uma identidade comum mas
sem desfazer antes protegendo as diferenccedilas Eacute o milagre das liacutenguas O contraacuterio de
Babel Recriaccedilatildeo do homem humano e da humanidade universal
Assim os homens podem voltar agrave linguagem comum apesar da diversidade das
liacutenguas unindo suas vontades no empenho de conhecer e realizar a vontade de Deus A
serviccedilo deste intento estatildeo as Sagradas Escrituras Estas satildeo obra do proacuteprio Deus que
usou de hagioacutegrafos inspirados para expressar a sua vontade na linguagem humana
mediante as diversas liacutenguas Os que leem as Sagradas Escrituras natildeo desejam encontrar
nelas mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram e desse modo chegar
a conhecer a vontade de Deus segundo a qual ordem esses homens compuseram
Entretanto o leitor das Sagradas Escrituras vai se deparar continuamente com
ambiguidades e obscuridades Para Agostinho estas fazem parte da proacutepria natureza das
Escrituras Sagradas Haacute um certo quecirc de hermeacutetico de enigmaacutetico de obscuro nelas
57 Sermatildeo 271
25
Mas eacute justamente isto que desafia a compreensatildeo e que a faz crescer na busca da
vontade divina As obscuridades e ambiguidades natildeo satildeo inuacuteteis Elas vencem o orgulho
do homem que se aproxima dos misteacuterios divinos sem reverecircncia e sem devoccedilatildeo Por
outro lado elas premunem o espiacuterito do fastio e do teacutedio que a facilidade sempre trazem
consigo As dificuldades de interpretaccedilatildeo cria-nos o gosto pelo exerciacutecio da
compreensatildeo na sua aventura de conquista do sentido Contudo natildeo se deve ter a
pretensatildeo de que se pode chegar a uma clareza que elimine toda sombra e obscuridade
A clareza do misteacuterio que se desvela sempre traz o veacuteu do pudor em que o misteacuterio
mesmo se encobre e assim se resguarda Os significados hauridos seratildeo sempre acenos
do inefaacutevel na medida em que o misteacuterio santo se deixa captar no horizonte do sentido
Uma vez que as Sagradas Escrituras satildeo linguagem do misteacuterio santo do Deus
absconditus (Deus escondido) que se re-vela (desvela e vela ao mesmo tempo) na
finitude da linguagem humana o leitor vai se deparar com desafios sempre novos
Agostinho recorre entatildeo agrave alegorese seguindo neste ponto a tradiccedilatildeo dos
alexandrinos As alegorias possuem encanto todo especial capaz de falar natildeo somente
ao entendimento mas tambeacutem ao coraccedilatildeo dos homens Com efeito a linguagem
imageacutetica concreta tem maior poder de comunicaccedilatildeo vital do que a linguagem
conceitual abstrata O uso de comparaccedilotildees leva o leitor a aprender mais
espontaneamente (libenter) As dificuldades de interpretaccedilatildeo levam-no a aprender com
maior prazer (gratius) As passagens obscuras das Escrituras aguccedilam a fome de
compreensatildeo do leitor Entretanto Agostinho daacute uma indicaccedilatildeo metodoloacutegica de leitura
importante para ir abrindo a compreensatildeo das Escrituras ganhar familiaridade com as
passagens claras e inequiacutevocas e com isso iluminar as passagens obscuras e
enigmaacuteticas Com efeito diz ele quase nada sobressai nas obscuridades que natildeo esteja
escrito mais claramente em outro lugar
Aquele que lecirc as Sagradas Escrituras procurando nelas a vontade divina eacute algueacutem
que estaacute a caminho numa viagem para a paacutetria da beatitude eterna Este caminhar
comporta determinado itineraacuterio no qual o homem vai se dispondo cada vez mais ao
Espiacuterito de Deus e ao seu modo de operar na alma os seus dons Eacute na medida que se
aproxima da Sabedoria do Espiacuterito que o leitor lecirc com maior proveito e profundidade as
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Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
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Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
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Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
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Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
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(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
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Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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pretensatildeo de terem conquistado o dom da compreensatildeo das divinas Escrituras
diretamente de Deus A estes Agostinho procura mostrar que a proacutepria Sagrada
Escritura pressupotildee a convivialidade dos que ensinam e aprendem mesmo
considerando que tanto uns como outros fundamentalmente aprendem de Deus Em
terceiro lugar o dom de interpretar as Escrituras natildeo dispensa mas ao contraacuterio exige
o esforccedilo de aprender Perspicaacutecia interesse de ir agraves coisas mesmas e disposiccedilatildeo de
aprender satildeo atitudes que devem ter quem quer ler esta obra
O objeto temaacutetico de ldquoA doutrina cristatilderdquo eacute a ldquotractatio scripturarumrdquo ou seja o
modo de proceder no trato com as Escrituras Isto comporta uma dupla implicaccedilatildeo
aprender a maneira de se descobrir o que eacute para ser entendido e por outro lado
aprender a maneira de se expor com propriedade o que foi entendido Os trecircs primeiros
livros da obra se atecircm agrave maneira de descobrir e o quarto livro agrave maneira de expor
Toda doutrina ou ciecircncia versa sobre coisas e sinais Coisas eacute tudo o que natildeo estaacute
empregado para significar algum outro objeto Sinais eacute tudo o que se emprega para
significar alguma coisa aleacutem de si mesmo As coisas satildeo conhecidas por meio de sinais
Os sinais devem ser entendidos como sinais e natildeo como coisas isto eacute na sua funccedilatildeo de
sinalizar e natildeo no seu ocorrer meramente factual O primeiro livro iraacute tratar das coisas
elementares da Sagrada Escritura isto eacute aquelas realidades junto agraves quais se empenha
o esforccedilo da compreensatildeo O segundo livro trata dos sinais da Sagrada Escritura e do
modo de chegar ao significado mediante o rigor da interpretaccedilatildeo O terceiro livro se
ocupa em ensinar como resolver as ambiguidades nos textos que se devem interpretar
quer em sentido proacuteprio quer em sentido figurado O quarto livro iraacute indicar como expor
as coisas da Sagrada Escritura com eloquecircncia e sabedoria
O primeiro livro expotildee algumas concepccedilotildees fundamentais sobre a realidade do
real (o ser do ente ndash das ldquocoisasrdquo) As coisas no seu todo se dividem em duas grandes
categorias aquelas que satildeo para a fruiccedilatildeo e aquelas que satildeo para o uso (uti et frui)
ldquoFruir (frui) eacute estar ligado a uma coisa por amor a ela Usar (frui) eacute relacionar aquilo de
que se tem uso com a posse daquilo que se amardquo (1 4 4) Notemos que Agostinho pensa
a realidade do real em seu concernir agrave vida humana A vida humana consiste em
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curare18 O uti (usar) eacute o cuidar que lida com aquilo que contribui para o viver O frui
(fruir) eacute gozar Por exemplo o belo que pertence agrave vigecircncia do ser eacute fruiacutedo A beata
vita (vida bem-aventurada feliz) eacute a do homem que goza do sumo bem (Deus) Eacute para
ser fruiacuteda aquela coisa que deleita por si mesma sem estar referida a outra coisa19 Eacute
para ser usada aquela coisa que eacute que eacute buscada desejada e que deleita por causa de
outra coisa As coisas temporais visiacuteveis satildeo para ser usadas As coisas eternas
invisiacuteveis para serem fruiacutedas O viacutecio a perversatildeo consiste em inverter esta ordem
querer fruir do que eacute para ser usado A virtude poreacutem consiste em fruir do que eacute para
ser fruiacutedo e usar do que eacute para ser usado20 A beatitude eacute a fruiccedilatildeo do sumo e imutaacutevel
bem a Trindade Deus eacute a beleza inteligiacutevel imutaacutevel inefaacutevel Toda a miacutestica medieval
iraacute visar a esta fruiccedilatildeo de Deus como o sumo bem como a suma beleza Na fruiccedilatildeo de
Deus o homem encontra o repouso a quietude (quies) Embora em tudo isso haja
elementos do pensamento grego (neoplatocircnico) no entanto a concepccedilatildeo da vida
humana e da realidade do real em Agostinho estaacute enraizada na compreensatildeo do Novo
Testamento Ele assim traz agrave fala em que consiste a ldquovita praesensrdquo (vida presente) do
cristatildeo eacute vida vivida ldquoin re laboris sed in spe quietis in carne vetustatis sed in fide
novitatisrdquo (no real do labor mas na esperanccedila do repouso na carne da velhice mas na
feacute da novidade) A esperanccedila precede A vida segue isso que a esperanccedila antecipa A
vida se realiza na direccedilatildeo daquilo que a esperanccedila antecipa21
Ainda no primeiro livro encontra-se uma exposiccedilatildeo do conteuacutedo da feacute a modo
de uma siacutentese dogmaacutetica fala da Trindade enquanto aquilo a que a aspiraccedilatildeo de
fruiccedilatildeo por parte do homem estaacute destinada Esta fala se articula em termos biacuteblicos e
tambeacutem em termos metafiacutesicos Trata-se de uma exposiccedilatildeo dogmaacutetico-metafiacutesica dos
misteacuterios e arcanos da feacute cristatilde Ao seu fundo poreacutem estaacute toda uma experiecircncia faacutetica
da vida22 Depois desta exposiccedilatildeo sobre a essecircncia da feacute cristatilde (os misteacuterios que nela satildeo
18 Curo curas curare curavi curatum Verbo transitivo ndash Sentido proacuteprio 1) cuidar olhar por tratar velar Daiacute 2) tratar curar 3) no contexto administrativo governar dirigir administrar 4) no contexto militar comandar 5) no contexto comercial fazer pagar 4) fazer por ter em conta de ter cuidado de 19 De civitate Dei (A cidade de Deus) XI 25 20 De Diversibus quaestionibus XXX 21 Cf Heidegger M Fenomenologia da Vida Religiosa p 258-260 22 A uacutenica ldquocoisardquo (o uacutenico real) a ser fruiacuteda eacute a Trindade Agostinho remete pois inicialmente ao Triuno Deus de quem por quem e para quem existem todas as coisas Os mesmos atributos divinos devem ser predicados de cada uma das pessoas da Trindade isto eacute do Pai do Filho e do Espiacuterito Santo Cada um deles eacute ele proacuteprio na plenitude de sua substacircncia O ser do Pai estaacute na Unidade o ser do Filho na
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cridos) Agostinho trata do ldquoethosrdquo do viver cristatildeo seguindo ainda pelo fio condutor
do ldquouti et fruirdquo (usar e fruir) O essencial do ethos cristatildeo eacute o duplo preceito do amor a
Deus e ao proacuteximo O ethos do viver cristatildeo se instaura segundo a ldquoOrdo dilectionisrdquo
(ordem da dileccedilatildeo ou do amor) A identidade do cristatildeo consiste no seu modo de amar23
Igualdade e o ser do Espiacuterito Santo na harmonia da unidade e da igualdade Natildeo obstante natildeo se trata de trecircs seres mas de um uacutenico Ser Agostinho estaacute ciente da limitaccedilatildeo do entendimento no vigor do silecircncio que se recolhe diante do misteacuterio divino do Deus uno e trino arcano fundamental da feacute cristatilde Deus eacute antes de tudo o inefaacutevel Quando a mente humana cogita acerca do misteacuterio divino que se doa ao se retrair ela busca captar uma realidade transcendental a mais proacutexima visto ser a mais iacutentima mais iacutentima a noacutes que noacutes mesmos e ao mesmo tempo a mais distante (inacessiacutevel justamente em virtude desta proximidade) Eacute esta realidade primeira que institui todo o real quer nas suas realizaccedilotildees sensiacuteveis quer nas inteligiacuteveis Percorrendo-se os diversos niacuteveis de constituiccedilatildeo da vida chega-se agravequela Vida que se define como Sabedoria imutaacutevel isto eacute sempre idecircntica consigo mesma O Deus vivo que eacute o Vivente por excelecircncia eacute o anseio mais profundo da alma humana Contemplaacute-lo e fruir da sua bondade e beleza eacute a beatitude do homem Contudo para que o homem possa chegar agrave visatildeo e fruiccedilatildeo de Deus eacute necessaacuteria a purificaccedilatildeo interior ao longo de sua vida que aparece como um caminho uma viagem uma travessia de retorno agrave paacutetria Esta purificaccedilatildeo se daacute mediante o bom empenho os bons desejos e os costumes No entanto natildeo podemos ir agrave Sabedoria se ela natildeo se dispotildee a vir a noacutes adaptando-se agrave fraqueza dede nossa condiccedilatildeo carnal isto eacute finita fraacutegil decadente mortal No entanto esta Sabedoria que se encarna na realidade da vida faacutetica humana foi rejeitada por muitos como fraqueza e loucura Eacute o misteacuterio da keacutenosis (esvaziamento) do rebaixamento do Filho de Deus o Verbo que se fez carne e atendou entre os homens Mas eacute justamente por esta fraqueza e loucura divina manifestada na encarnaccedilatildeo e na paixatildeo do Verbo humanado Jesus Cristo que acontece a redenccedilatildeo isto eacute a libertaccedilatildeo e a salvaccedilatildeo de todos os homens Nele a Sabedoria cura o homem impregnado de fraqueza e mergulhado na loucura O homem usou mal do dom da imortalidade e caiu na morte Cristo usou bem de nossa mortalidade e isso devolveu ao homem o acesso agrave plenitude da vida Atraveacutes dos misteacuterios da vida de Cristo isto eacute dos misteacuterios de sua encarnaccedilatildeo de sua paixatildeo e tambeacutem de sua ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo com o consequente envio do Espiacuterito Santo os homens satildeo fortalecidos na feacute e avivados no conhecimento Nestes misteacuterios os que creem consideram o quatildeo livremente Cristo deu sua vida pelos homens ele que possuiacutea o poder de retomaacute-la Aqueles que favorecidos pela graccedila da redenccedilatildeo creram no Filho de Deus encarnado e crucificado como Senhor (o Ressuscitado) formam um soacute corpo constituindo deste modo a realidade da Igreja Esta eacute a esposa de Cristo Atraveacutes dos sacramentos ela se purifica para vir se unir ao Esposo Cristo Jesus na eternidade apresentando-se diante dele sem manchas nem rugas Eacute no interior desta Igreja que os homens satildeo gerados para a semelhanccedila com Cristo e recebem o perdatildeo dos pecados (batismo) Desta mesma Igreja recebem a feacute na ressurreiccedilatildeo do corpo e na vida eterna Estes misteacuterios e arcanos cristatildeos satildeo acolhidos pelo homem que estaacute a caminho da paacutetria (a vida eterna) Neste caminho o crente sempre de novo morre para o mundo e vive para Deus Verdade e Vida 23 O homem haacute de amar a Deus por causa dele proacuteprio As criaturas em contrapartida satildeo amadas agrave medida que ajudam o homem a crescer no amor de Deus O amor a si mesmo e ao proacuteprio corpo eacute uma lei natural e por isso natildeo requer nenhum preceito (mandamento) Mas o amor ao que estaacute ao seu lado (o proacuteximo) e o amor ao que estaacute acima dele (Deus) requer preceito Haacute no entanto um falso e um verdadeiro amor de si proacuteprio O verdadeiro amor de si consiste em buscar o que eacute uacutetil e salutar para si mesmo crescendo na caridade (o amor gratuito a Deus e ao proacuteximo) O falso amor de si consiste em submeter o proacuteximo e o proacuteprio corpo a fim de fruir deles Quanto ao amor ao proacuteprio corpo Agostinho relembra a citaccedilatildeo do Apoacutestolo (Paulo) que diz ldquoningueacutem jamais quis mal agrave sua proacutepria carnerdquo (Ef 5 29) Mesmo os que reconhecem sadiamente a necessidade da ascese fazem-no para submeter o corpo ao espiacuterito segundo a ordem da natureza buscando assim a paz e a harmonia O preceito da caridade eacute duplo exige o amor a Deus acima de tudo e o amor ao proacuteximo como a si mesmo A partir do duplo amor natural e do duplo preceito da caridade descobre a ldquoOrdo Dilectionisrdquo (ordem da dileccedilatildeo isto eacute do amor) Ordem implica numa estruturaccedilatildeo em niacuteveis neste caso em niacuteveis de dignidade A ordenaccedilatildeo do amor eacute instaurada quando o homem ama o que deve ser amado (o bem) e natildeo ama o que natildeo deve ser amado (o mal o viacutecio o pecado) Depois quando o homem ama menos o que eacute menos digno de amor (o corpo)
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O amor (dilectio caritas) eacute o princiacutepio que rege toda a vida humana na perspectiva da
feacute cristatilde24 O duplo preceito do amor (a Deus e ao proacuteximo) eacute aqui a norma universal e
primordial que rege toda a ordem do viver O amor a Deus acima de tudo e o amor ao
proacuteximo eacute a essecircncia a substacircncia da revelaccedilatildeo divina (ldquoa Lei e os Profetasrdquo) que foi
radicalizada e consumada em Jesus Cristo no seu novo e eterno testamento
(testemunho) Daiacute se segue que a edificaccedilatildeo da caridade eacute a norma reacutegia e suprema de
toda a interpretaccedilatildeo das Sagradas Escrituras25 Para o homem que atingiu a perfeiccedilatildeo
do amor (caridade perfeita) as Sagradas Escrituras deixam de ser necessaacuterias uma vez
que toda a finalidade delas eacute levar o homem agrave perfeiccedilatildeo do amor (caridade perfeita)
Deste modo as Escrituras Sagradas requerem um leitor que entenda que o fim de tudo
o que ali estaacute escrito eacute a caridade perfeita consumada que aparece concreta e
historicamente em Jesus Cristo o Deus encarnado (humanado) e crucificado A feacute e a
esperanccedila satildeo outras duas virtudes que ajudam o homem a crescer e se perfazer na
perfeiccedilatildeo da caridade no seguimento de Jesus Cristo O essencial do ser cristatildeo se
encontra neste seguimento
Depois quando ama igualmente o que eacute igualmente digno de amor (o proacuteximo) Por fim quando ama absolutamente o que eacute absolutamente digno de ser amado (Deus) Ao amor de Deus assim deve se subordinar e convergir todo amor pela criatura O preceito do amor aleacutem disso comporta universalidade isto eacute ningueacutem eacute dele excluiacutedo A boa vontade do amor se estende a todos mesmo ao inimigo O amor de Deus pelo homem eacute gratuito visto que Deus natildeo precisa do homem mas se basta a si mesmo Seu amor eacute pura gratuita absoluta bondade O grau de perfeiccedilatildeo de um homem depende do grau de perfeiccedilatildeo e da universalidade de seu amor O ser do homem se determina pelo seu amor O homem eacute o que ele ama e como ele ama Ele cresce no ser se cresce na perfeiccedilatildeo (e na universalidade) do amor Ele diminui no ser se decresce na capacidade de amar O homem pode encontrar deleite nos outros homens quando estes o ajudam a crescer no amor a Deus Eacute quando se ama e se gosta do outro em Deus Os homens podem e devem constituir uma fraternidade no amor ajudando-se mutuamente a prosseguir seu itineraacuterio para Deus Nenhuma homem pode se considerar fim absoluto do amor do outro Ele natildeo eacute o destinataacuterio uacuteltimo do amor do outro Eacute apenas companheiro na viagem da vida e como tal haacute de ser amado Neste itineraacuterio para Deus Cristo eacute o caminho a verdade e a vida isto eacute ele eacute aquele por quem o homem vai aquele a quem o homem alcanccedila e em quem ele permanece no amor 24 Cf Arendt Hanna O conceito de amor em Santo Agostinho Ensaio de interpretaccedilatildeo filosoacutefica Lisboa Instituto Piaget 1997 25 Para o ldquohomo viatorrdquo (homem a caminho) a feacute nas Escrituras fortalece a feacute a esperanccedila e a caridade Nestas trecircs virtudes teologais se encerram e se subsumem toda a ciecircncia e toda a profecia A caridade permanece para sempre enquanto que a feacute e a esperanccedila se extinguem quando o homem chega a seu destino (a Paacutetria o Reino dos Ceacuteus) A caridade visa um bem eterno Se os bens temporais satildeo amados antes de serem possuiacutedos pois ao serem conquistados natildeo saciam a alma na sua sede do absoluto bem o bem eterno eacute o que eacute amado com tanto mais ardor ao ser possuiacutedo do que fora ao ser desejado pois a ningueacutem que a deseja a beatitude concedida eacute menor do que a desejada
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O livro II eacute um verdadeiro tratado de semiologia26 Todo o pensamento a respeito
da linguagem do ocidente se baseia no triacircngulo semioacutetico signo conceito coisa A base
desta concepccedilatildeo de Aristoacuteteles Ela eacute exposta no ὶ ἑί (perigrave hermeneiacuteas)
ldquoDe interpretationerdquo (16a 3-8)
Satildeo pois aquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz siacutembolos das paixotildees (afecccedilotildees disposiccedilotildees) na alma e as coisas que satildeo escritas satildeo siacutembolos daquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz E assim como as coisas escritas natildeo satildeo as mesmas para todos do mesmo modo tambeacutem os sons da voz natildeo satildeo os mesmos Aquelas coisas de que isso (coisas escritas e sons da voz) satildeo primordialmente signos (coisas que mostram) satildeo para todos (os homens) as mesmas paixotildees da alma e as coisas das quais estas (paixotildees da alma) formam apresentaccedilotildees assemelhadas satildeo igualmente as mesmas27
O texto de Aristoacuteteles se manteacutem numa fala esclarecida e soacutebria que torna
visiacutevel a claacutessica estruturaccedilatildeo que abriga a linguagem como discurso ou fala As letras
do alfabeto28 mostram os fonemas29 Os fonemas mostram as disposiccedilotildees na alma30 As
disposiccedilotildees na alma mostram as coisas que que lhe con-cernem31 O mostrar configura
e sustenta as escoras dessa construccedilatildeo De maneira variada o mostrar conduz algo para
um aparecer deixando assim apreender o que aparece e permitindo que se discuta o
que se apreende
26 A semiologia (ou semioacutetica) eacute a ciecircncia dos signos Como os signos verbais tecircm na vida humana um papel de primeiro plano a semiologia se concentrou em grande parte na linguagem Haacute uma semiologia nas especulaccedilotildees linguiacutestica da antiguidade entre os modistas da Idade Meacutedia etc Mas o nome ldquosemioacuteticardquo surge na modernidade com Locke Torna-se poreacutem uma disciplina independente na obra do filoacutesofo americano Charles Sanders Peirce (1839-1914) 27 A traduccedilatildeo entende os σημεῖα (semeia ndash os signos aquelas coisas que mostram) os σύμβολα (symbola - os siacutembolos ndash o que eacute lanccedilado junto e nessa junccedilatildeo deixa e faz com que um se atenha ao outro) e os ὁμοιώματα (homoioacutemata ndash as apresentaccedilotildees assemelhadas as semelhanccedilas) como um mostrar no sentido de deixar aparecer o que por sua vez encontra-se no acircmbito do desencobrimento (αλήθεια ndash aleacutetheia) 28 τὰ γραφόμενα ndash taacute graphoacutemena 29 τὰ ἐν τῇ φωνῇ - taacute en te phoneacute 30 παθήματα τῆς ψυχῆς ndash patheacutemata tecircs psykhecircs 31 πράγματα - praacutegmata
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Antes de nos apropriarmos da semiologia de Agostinho tentemos aqui uma
consideraccedilatildeo fenomenoloacutegica sobre o sinal e a linguagem
O falar acontece por mor do dizer Dizer eacute mostrar O falar enquanto dizer se
realiza como um discurso mostrador loacutegos apophaacutentikoacutes32 O falar estaacute a serviccedilo do
dizer Dizer eacute mostrar no sentido de deixar e fazer ver a quem se fala aquilo de que se
fala Dizer eacute dar algo a compreender eacute fazer-se compreender sobre algo a quem escuta
O mostrar no falar acontece como um conceder acenos dar indiacutecios oferecer
indicaccedilotildees oferecer sinais33 Mas tudo isso acontece no sentido de um anunciar que se
cumpre como um revelar um divulgar um mencionar (fazer menccedilatildeo de referir relatar
expor narrar) um lembrar um recordar e um comemorar O anunciar eacute entendido pois
pelos gregos como um mostrar deiknymi34 O sinal eacute uma referecircncia uma remissatildeo O
remeter proacuteprio do sinal consiste em mostrar O mostrar do sinal se funda na referecircncia
na remissatildeo Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo No entanto
Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo eacute uma referecircncia Toda lsquoaccedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma referecircncia mas nem toda referecircncia mostra Com isso tambeacutem se diz toda accedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo mostra Assim aparece o caraacuteter formal e geral da relaccedilatildeo Para se investigar os fenocircmenos de referecircncia sinal e significado de nada adianta caracterizaacute-los como relaccedilatildeo Deve-se em uacuteltima instacircncia mostrar que a proacutepria lsquorelaccedilatildeorsquo devido a seu
32 O loacutegos eacute um reunir e um recolher (leacutegein) que potildee expotildee e depotildee abre e manifesta traz ao desencobrimento agrave revelaccedilatildeo Como abrir e manifestar leacutegein estaacute em contraste com krypto cobrir encobrir esconder ocultar no sentido de guardar Conhecemos um fragmento de Heraacuteclito (fr 93) que traz este contraste Ele diz Ho aacutenax hou tograve manteion esti tograve en Delphois oute leacutegei oute kryptei allagrave semainei ndash O Autor de quem eacute o oraacuteculo de Delfos natildeo traz ao desencobrimento nem encobre mas acena 33 Semainein eacute um conceder semata (acenos indiacutecios indicaccedilotildees) A palavra grega no singular eacute ldquosemardquo indiacutecio vestiacutegio marca distintiva senha sinal ldquoSemardquo eacute tambeacutem pressaacutegio auguacuterio auspiacutecio Eacute ainda o astro ou uma constelaccedilatildeo da qual se tiram indicaccedilotildees na orientaccedilatildeo concernente ao ceacuteu Eacute por fim o tuacutemulo a tumba 34 Da mesma raiz de ldquodeiknymirdquo (mostrar) eacute o verbo latino ldquodicererdquo dizer Dizer eacute mostrar isto eacute deixar e fazer ver trazer agrave evidecircncia alguma coisa O sinal pois no falar precisa ser entendido na dinacircmica do dizer isto eacute do mostrar
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caraacuteter formal geral tem sua origem ontoloacutegica numa referecircncia35
Haacute uma multiplicidade de sinais anuacutencios prenuacutencios vestiacutegios marcas
distintivos cuja accedilatildeo de mostrar difere a cada caso Satildeo sinais diferentes o rastro o
resto o monumento o documento o testemunho o siacutembolo a expressatildeo a
manifestaccedilatildeo a significaccedilatildeo O sinal tem a sua serventia no mostrar no sentido de fazer
sobressair de dar na vista salientar fazer reparar estranhar alguma coisa Aquilo que
normalmente natildeo causa surpresa eacute ressaltado pelo sinal O sinal permite a descoberta
de alguma coisa
O mundo eacute o ldquoonderdquo das descobertas O homem se orienta se dirige se
direciona em seus comportamentos com as coisas com os entes agrave matildeo a partir de uma
familiaridade com o mundo A abertura de mundo se daacute como compreensatildeo Trata-se
poreacutem de uma compreensatildeo operativa natildeo teoacuterica Compreender significa aqui reunir
as remissotildees recolher as referecircncias O caraacuteter de remissatildeo das remissotildees das
referecircncias eacute o que se chama de significar Significar (be-deuten) eacute aqui mostrar
(deuten) no sentido de pocircr a caminho um clarear um esclarecer Eacute o processo e o
movimento de estruturaccedilatildeo do mundo Significar eacute aqui oferecer alguma coisa para a
compreensatildeo e para a interpretaccedilatildeo Significacircncia (Bedeutsamkeit) eacute o todo das
remissotildees do acontecimento e do processo do significar que eacute a estruturaccedilatildeo de
mundo Noacutes nos encontramos a noacutes mesmos jaacute sempre no mundo entendendo o mundo
antes de tudo como uma totalidade de significacircncias Eacute um encontrar-se a si mesmo
sempre numa situaccedilatildeo de ocupaccedilatildeo e preocupaccedilatildeo de cuidado com o proacuteprio ser-no-
mundo Tudo aquilo com que podemos nos relacionar e comportar tem este caraacuteter
estaacute aiacute e eacute encontrado no caminho do cuidado eacute experimentado como significativo a
partir de um determinado cuidado Significacircncia indica este modo fundamental como
algo segundo o seu teor proacuteprio eacute encontrado na vida como ele se deteacutem e se reteacutem
no meio do mundo da vida
Soacute acontece linguagem onde noacutes falamos uns com os outros A linguagem
acontece de iniacutecio e na maior parte das vezes na conversa com suas falas e seus
silecircncios Para noacutes isto eacute na ordem da nossa experiecircncia cotidiana a primeira
35 Heidegger M Ser e Tempo sect 17
16
dimensatildeo pois da linguagem eacute a fala o discurso O discurso traz agrave fala uma
compreensatildeo Chamamos de sentido o que pode ser articulado O sentido eacute o que torna
compreensiacutevel algo enquanto algo Compreender eacute fundamentalmente apreender algo
enquanto algo Tudo que apreendemos se mostra a si mesmo como isso ou aquilo Isso
quer dizer noacutes aprendemos cada coisa em sua significacircncia A percepccedilatildeo natural em
que noacutes vivemos cotidianamente jaacute eacute sempre uma compreensatildeo uma captaccedilatildeo da coisa
como esta coisa do sapato como sapato do livro como livro do reloacutegio como reloacutegio
Natildeo eacute assim que eu primeiro apreendo uma coisa na sua nua e crua factualidade e
depois lhe atribuo este ou aquele significado Cada vez eu apreendo uma coisa como
tal coisa isto eacute eu apreendo a coisa dentro de uma determinada significacircncia36
A coisa que me vem ao encontro dentro do mundo se mostra como isto ou
aquilo37 Ela instaura um conjunto de referecircncias ela remete a isto ou aquilo ela soa
desta ou daquela maneira em meu mundo ela fala disto ou daquilo em minha vida A
coisa significa a si mesma Mas o seu poder significar a si mesma soacute eacute possiacutevel porque
ela jaacute eacute descoberta como coisa que vem ao encontro dentro do mundo isto eacute dentro de
uma totalidade de sentido Que a coisa se faccedila encontrar e descobrir deste ou daquele
modo e que ela se decirc a compreender como isto ou aquilo ndash isto soacute eacute possiacutevel porque ao
apreendecirc-la numa percepccedilatildeo concreta um mundo jaacute se me abriu Com a coisa se
anuncia o mundo da vida ou melhor os mundos da vida o mundo circunstante o
mundo partilhado da convivecircncia o mundo proacuteprio pessoal A coisa soacute pode ser
apreendida na sua significacircncia a partir da abertura do mundo ou dos mundos
Perceber eacute jaacute compreender as coisas na sua significacircncia Perceber eacute estruturar
e configurar o mundo como estrutura significativa Em toda percepccedilatildeo atua pois um
ato fundamental de significaccedilatildeo Chamamos de significar o ato pelo qual o homem
estrutura a significacircncia das coisas no horizonte do mundo enquanto totalidade
significativa Da compreensatildeo que articula a significaccedilatildeo das coisas numa totalidade
sentido brota a possibilidade da interpretaccedilatildeo Pela compreensatildeo o homem estaacute
sempre se projetando abrindo lances de perspectivas entrevendo de antematildeo
36 Cfr M HEIDEGGER GP 102-110 37 Cfr M HEIDEGGER Ontologie (Hermeneutik der Faktizitaumlt) (OHF) Gesamtausgabe ndash Band 63 Vittorio Klostermann Frankfurt am Main 1995 p 93-104
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aberturas de possibilidades Pela compreensatildeo o homem opera um ver que eacute projetivo
e criativo de possibilidades de ser Esse ver projetivo e criativo configura isto eacute elabora
em formas significativas essas possibilidades de ser Agrave elaboraccedilatildeo e exposiccedilatildeo dessas
formas chamamos de interpretaccedilatildeo Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo se apropria do
que compreende Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo busca chegar a uma maturaccedilatildeo
isto eacute busca maturar as possibilidades de ser que ela jaacute entreviu A interpretaccedilatildeo eacute uma
explicitaccedilatildeo da compreensatildeo O que entra como componente da explicitaccedilatildeo possui o
caraacuteter de significacircncia eacute o mostrar-se de algo como algo Em todo o nosso
comportamento noacutes jaacute estamos sempre compreendendo e interpretando apreendendo
algo como algo e referindo algo a algo articulando significados numa totalidade de
sentido que eacute o mundo O homem sempre interpreta Pois interpretar eacute ser homem
A articulaccedilatildeo dos significados numa totalidade de sentido se daacute atraveacutes do falar
quer do falar de si consigo mesmo quer do falar uns com os outros Na fala noacutes
pronunciamos o que compreendemos e como interpretamos o que estaacute em questatildeo Pro-
nunciar eacute pro-ferir isto eacute trazer agrave luz ao aberto do mundo da convivecircncia aquilo que
compreendemos e interpretamos Pelo discurso vecircm agrave fala os entes e o ser dos entes
tais como se oferecem agrave nossa compreensatildeo e interpretaccedilatildeo Vem agrave fala agrave medida que
se articulam num horizonte de compreensibilidade que noacutes chamamos de sentido O
sentido eacute o que se articula na compreensatildeo e interpretaccedilatildeo como horizonte daquilo que
compreendemos e interpretamos Todo discurso eacute o pronunciar o vir agrave fala daquilo que
compreendemos e interpretamos dos significados das coisas agrave luz do sentido de ser que
noacutes lhes damos
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Os medievais iratildeo precisar e aprofundar a concepccedilatildeo de signo Assim para
Tomaacutes de Aquino o signum eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro
A palavra proferida exteriormente pela voz eacute a fala A fala eacute proferida a modo de uma
voz articulada significativa Nem todo o som eacute voz A voz enquanto haacutelito sopro som
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que sai da boca com efeito soacute chega a ser palavra quando eacute significativa38 Sem a
significaccedilatildeo (significatio) uma voz natildeo eacute palavra A significaccedilatildeo torna a voz uma
expressatildeo do pensamento39 Por isso somente um vivente inteligente (animal rationale)
tem voz enquanto palavra40 Um vivente melhor um animal emite sons para se
comunicar Mas os seus sons natildeo satildeo vozes articuladas significativas Os gritos os
alaridos de animais natildeo satildeo palavras Sua comunicaccedilatildeo natildeo eacute fala O berrar de um
bezerro o mugir de uma vaca o balar de uma ovelha o balir de um cordeiro o arrulhar
de uma pomba o latir de um catildeo o miar de um gato ndash tudo isso natildeo eacute fala Seus sons
natildeo satildeo vozes significativas Indicam alguma coisa Mas o seu indicar natildeo tem o sentido
de significar alguma coisa Significar eacute dar a conhecer algo como algo a algueacutem41 Fumaccedila
indica fogo Bandeira branca indica rendiccedilatildeo Indicar poreacutem natildeo eacute significar Todo
significar eacute um indicar mas nem todo indicar eacute significar Significar eacute dar a conhecer no
sentido de dar a compreender algo como algo A fala daacute a conhecer alguma coisa Ela
faz-se notar e faz notar alguma coisa A fala eacute um fazer notar que daacute a conhecer alguma
coisa42 A fala faz notar daacute a conhecer isto eacute gera uma ldquonotiordquo ou uma ldquonotitiardquo
(conhecimento noccedilatildeo sentido)43 Notar quer dizer aqui dirigir-se a alguma coisa
orientando-se no mundo (intencionalidade) tornando-se atento a ela ao seu ser
Joatildeo Duns Scotus iraacute retomar o triacircngulo semioacutetico do Peri hermeneiacuteas de
Aristoacuteteles Ele questiona sobre a distinccedilatildeo de litteras et voces (letras e vozes) de um
lado passiones (disposiccedilotildees da alma) e res (coisa) de outro lado na quarta das questotildees
sobre o primeiro livro do ldquoPerigrave hermeneiasrdquo e conclui pela sua conveniecircncia As
disposiccedilotildees da alma (significaccedilatildeo e sentido) satildeo as mesmas em todos bem como as
coisas que elas significam enquanto as letras e vozes satildeo diferentes dependendo da
liacutengua Com outras palavras as letras e vozes que satildeo diferentes de liacutengua para liacutengua
38 ldquoVox quae non est significativa verbum dici non potestrdquo (A voz que natildeo eacute significativa natildeo pode ser dita palavra) ndash Tomaacutes de Aquino op Cit (I341) 39 ldquoLocutio est proprium opus rationis (I913 ad 3) falar -diz Tomaacutes- eacute operaccedilatildeo proacutepria da razatildeo 40 Agrave base desta concepccedilatildeo estaacute a concepccedilatildeo grega do homem aacutenthropos como zoon logon echon (vivente que tem linguagem) Nesta traduccedilatildeo o loacutegos eacute tanto ratio (pensamento) quanto oratio (fala no sentido de discurso) 41 Em Tomaacutes no acircmbito da vox situa-se a palavra (verbum) A palavra eacute uma realizaccedilatildeo especial do signo (signum) que por sua vez eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro (III604) 42 Cfr Heidegger M Vom Wesen der Sprache Die Metaphysik der Sprache und die Wesung des Wortes - Zu Herders Abhandlung ldquoUumlber den Ursprung der Spracherdquo Gesammtausgabe Band 85 p 3-4 43 Cfr idem p 20
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satildeo sinais instituiacutedos pelo arbiacutetrio humano que representam as disposiccedilotildees da alma (no
caso significaccedilatildeo e sentido) que por sua vez satildeo sinais naturais representativos das
coisas44
As expressotildees orais ou escritas satildeo formas linguiacutesticas dotadas de significaccedilotildees e
de sentido Sentidos e significaccedilotildees que satildeo pensados vecircm agrave expressatildeo Eles satildeo
exprimiacuteveis atraveacutes de formaccedilotildees linguiacutesticas Uma coisa eacute a forma linguiacutestica da
expressatildeo o complexo graacutefico ou focircnico ou como dizem os medievais as voces (vozes)
Outra coisa eacute o conteuacutedo da expressatildeo a significaccedilatildeo o sentido no juiacutezo e no
entrelaccedilamento de juiacutezos (conclusatildeo silogismo) O conteuacutedo eacute um ldquosignificatumrdquo que
estaacute intencionalmente ldquoin menterdquo45
A voz se torna expressatildeo agrave medida que eacute dotada de significaccedilotildees e de sentido
Assim a proposiccedilatildeo enquanto sequecircncia de palavras eacute singular Mas o conteuacutedo da
proposiccedilatildeo o juiacutezo ora eacute singular se o predicado eacute dito de um soacute ou universal se o
predicado eacute dito de muitos A proposiccedilatildeo como uma sequecircncia de palavras natildeo eacute
verdadeira ou falsa Ela eacute ou natildeo eacute Eacute falada ou escrita Mas natildeo eacute verdadeira ou falsa O
sentido da proposiccedilatildeo o juiacutezo eacute que eacute verdadeiro ou falso natildeo poreacutem enquanto
simples conteuacutedo da proposiccedilatildeo mas soacute agrave medida que ele tem um valor objetivaacutevel um
valor de conhecimento objetivo46 Proposiccedilatildeo e sentido palavra e significaccedilatildeo
pertencem a acircmbitos de realidade diversos Os elementos linguiacutesticos que constituem
proposiccedilatildeo e palavra satildeo sensivelmente perceptiacuteveis (satildeo acuacutesticos visuais motores)
satildeo reais e temporais Jaacute as significaccedilotildees e o sentido se subtraem a uma percepccedilatildeo
sensorial e satildeo atemporais O elemento linguiacutestico de uma expressatildeo eacute um signum ad
44 Cfr Quaestiones in I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 7) ldquoAd quaestionem dicendum quod differentia est conveniens quia passiones inquanto sunt signa et res inquanto sunt significata sunt eandem apud omnes nam eadem passio in anima apud quoscumque concipientes repraesentat eamdem rem quia eadem similitudo in anima semper est eiusdem repraesentativa sicut est similitudo sensibilis in sensu litterae et voces in se eaedem non sunt eaedem apud omnes inquanto sunt signa quia nec eadem littera apud omnes repraesentat eamdem vocem sed vel aliam vel nullam nec eadem vox apud omnes significat eamdem passionem sed vel aliam vel nullamrdquo (SCOTUS 1998 p 918) 45 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 12) ldquoAd quaestionem dici potest quod iste liber non est de decem vocibus ut de primo subiecto ndash nec aliqua pars logicae est de voce quia omnes passiones syllogismi et omnium partium eius possunt sibi inesse secundum esse quod habent in mente etsi non proferantur () sed est de aliquo priore quod respectu voces significativae tantum habet rationem significatirdquo (SCOTUS 1998 p 652) 46 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 22) ldquoSimiliter lsquosignificare verum vel falsumrsquo convenit enuntiationi sed non ut vox est significans conceptum sed ut conceptus significat remrdquo (SCOTUS 1998 p 653)
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placitum um signo instituiacutedo conforme o agrado ou o arbiacutetrio de quem o usa47 As
significaccedilotildees e os sentidos poreacutem se subtraem ao arbiacutetrio daquele que pensa por ter
a sua proacutepria necessidade ideal ou objetiva
A forma linguiacutestica eacute signo da significaccedilatildeo que por sua vez eacute signo de algo de
objetual de alguma objetualidade (objetos estados-de-coisas notas distintivas formas
reais ou categoriais) Trata-se do triacircngulo semioacutetico que constitui a base da
consideraccedilatildeo sobre a linguagem em toda a tradiccedilatildeo ocidental e que vem de Aristoacuteteles
Para Duns Scotus palavra e proposiccedilatildeo enquanto formaccedilotildees linguiacutesticas
dotadas de significaccedilatildeo e de sentido apontam para a esfera objetual A formaccedilatildeo
linguiacutestica eacute sinal da significaccedilatildeo e do sentido que eacute por sua vez sinal do objeto Enfim
palavra e proposiccedilatildeo satildeo sinais das coisas ldquoQuidquid est signum signi est signum
signatirdquo ndash o que quer que seja sinal do sinal eacute sinal do assinalado48 Assim palavra e
proposiccedilatildeo se tornam sinais das objetualidades agraves quais se referem No entendimento
de Duns Scotus o conceito eacute o que eacute designado imediatamente o objeto eacute o que eacute
designado mediatamente pela expressatildeo O doutor sutil esclarece que significare eacute dare
intelligere dar a compreender49 O signo eacute algo de relacional possui um caraacuteter ou uma
funccedilatildeo remissiva O signo graccedilas a sua funccedilatildeo remissiva eacute o fundamento material de
que parte o conhecimento do designado A expressatildeo linguiacutestica poreacutem natildeo eacute somente
um signo que remete ou se refere a algo Ele eacute um signo que significa algo ou seja que
daacute a compreender algo ou algo de algo e que ademais se refere a objetualidades
visando dizer ou seja mostrar o que se mostra e como se mostra50
47 Cfr Quaestiones super I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 14) ldquo et instrumenta naturalia formandi vocem potest homo aliqua imponere quae sunt signa ad placitum et non naturalia sive conceptusrdquo (SCOTUS 1998 p 919) 48 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 28 n 28) ldquo lsquoQuidquid est signum signi est signum signatirsquo ita quod signum intermedium non varietur in comparatione ad primum signum et ultimum signatumrdquo (SCOTUS 1998 p 751) 49 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 8 n 1) ldquoQuia significare est intellectum constituererdquo (SCOTUS 1998 p 679) 50 Assim para Husserl a expressatildeo que funde numa unidade a manifestaccedilatildeo sensiacutevel a significaccedilatildeo e a referecircncia ao objeto estaacute ordenada tanto a um valor de conhecimento quanto a um valor de verdade Agrave expressatildeo corresponde ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo se constitui uma relaccedilatildeo com o objeto Triacuteplice eacute o conteuacutedo de uma expressatildeo a significaccedilatildeo a referecircncia ao objeto e por fim o preenchimento de sentido A expressatildeo pela significaccedilatildeo e pela referecircncia ao objeto daacute a compreender alguma coisa acerca de algo O preenchimento da intenccedilatildeo signitiva vazia no modo da confirmaccedilatildeo da documentaccedilatildeo intuitiva leva por sua vez agrave experiecircncia da verdade Para Husserl expressotildees satildeo signos significativos distintos dos signos indicativos Numa descriccedilatildeo fenomenoloacutegica da expressatildeo dotada de sentido se
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No De dialectica (Da dialeacutetica) Agostinho define a palavra como um sinal de
alguma coisa que proferido por quem fala pode ser compreendido por quem escuta (De
Dialectica 5) 51 Nesta definiccedilatildeo podemos perceber as vaacuterias dimensotildees do exerciacutecio
humano da linguagem a da comunicaccedilatildeo em que homens falam uns com os outros
compartilhando suas vidas e coparticipando de um mesmo mundo a da expressatildeo em
que homens se pronunciam a partir de seu ser num mundo comum o discurso pelo
qual homens falam uns com os outros e escutam uns aos outros a compreensatildeo e
interpretaccedilatildeo em que homens ouvindo uns aos outros recebem a mensagem e se
apropriam de seu sentido Como ponta do ldquoicebergrdquo de toda esta vitalidade do concurso
comunicativo e do discurso temos o sinal que eacute proferido por quem fala o som da boca
a voz que longe de ser um mero ruiacutedo eacute um sinal um signo e se sinal eacute sinal de
alguma coisa ou seja algo vem a ser significado por este signo ou sinal
podem evidenciar trecircs momentos que no entanto formam uma unidade intimamente fundida a apariccedilatildeo fiacutesica da expressatildeo o ato doador de sentido e o ato preenchedor de sentido Assim palavras e proposiccedilotildees satildeo sons articulados animados de sentido Agraves expressotildees satildeo essenciais os atos que conferem a significaccedilatildeo respectivamente as intenccedilotildees de significaccedilatildeo A estes atos se acrescentam de modo extra-essencial os atos que preenchem as significaccedilotildees confirmando reforccedilando ilustrando as intenccedilotildees de significaccedilatildeo Para que o signo se torne expressatildeo eacute preciso que lhe seja imposto uma significaccedilatildeo Husserl fala de emprestar significaccedilatildeo de conferir sentido Expressotildees satildeo unidades de signos e designados (sinais e assinalados) de espeacutecie bem peculiar Expressotildees satildeo sinais significativos A significaccedilatildeo adere ao ato significativo Com a expressatildeo que suscita o ato que confere o sentido nos orientamos ao objeto Agrave expressatildeo compete ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo eacute que se constitui a relaccedilatildeo com o objeto ldquoToda e qualquer expressatildeo natildeo quer apenas dizer qualquer coisa mas tambeacutem diz algo acerca de qualquer coisa ela natildeo tem apenas a sua significaccedilatildeo mas refere-se tambeacutem a quaisquer objetosrdquo (HUSSERL 2012 p 38 ndash grifo de Husserl) Assim significaccedilatildeo e referecircncia objetiva se distinguem Expressotildees podem ter a mesma significaccedilatildeo mas objetos diferentes por um lado e por outro podem ter significaccedilotildees diferentes mas o mesmo objeto Assim considerando dois enunciados ldquoeste sendeiro eacute um cavalordquo e ldquoBuceacutefalo eacute um cavalordquo a expressatildeo um cavalo tem a mesma significaccedilatildeo mas os objetos satildeo diferentes Por sua vez dois nomes podem significar coisas diferentes mas nomear o mesmo como no exemplo ldquoO vencedor de Iena - O vencido de Waterloordquo Significaccedilatildeo e referecircncia objetiva no entanto estatildeo em iacutentima conexatildeo A expressatildeo se refere ao objeto por meio da significaccedilatildeo Uma expressatildeo adquire um referimento ao objeto pelo simples fato de que esta significa algo Por isso eacute que dizemos que uma expressatildeo designa ou denomina algo por meio do seu significado ou seja o ato de significar eacute o modo determinado de intencionar o objeto em questatildeo soacute que justamente este modo de intencionar e portanto o significado mesmo pode variar enquanto permanece idecircntica a direccedilatildeo para o objeto Se considerarmos pois os trecircs momentos que se fundem numa unidade na expressatildeo temos aquilo que de modo equiacutevoco se chama o expressado da expressatildeo ldquoOs termos em relaccedilatildeo ndash manifestaccedilatildeo significaccedilatildeo e objeto ndash pertencem essencialmente a toda e qualquer expressatildeo Em cada uma qualquer coisa eacute manifestada qualquer coisa eacute significada e qualquer coisa eacute nomeada ou de algum modo designada E no discurso equiacutevoco tudo isto se diz lsquoexpressorsquordquo 51 Idem p 14
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No escrito sobre a dialeacutetica Agostinho trata de quatro elementos desta arte o
verbum o dicibile52 a dictio53 e a res Vejamos como Agostinho expotildee o nexo entre estes
quatro elementos
Ora porque as palavras (verba) satildeo sinais das coisas (signa rerum) quando se ocupam com as coisas enquanto satildeo sinais das palavras (signa verborum) quando se discute sobre palavras ndash pois sobre palavras natildeo podemos falar a natildeo ser com palavras e quando falamos natildeo falamos a natildeo ser de coisas ndash ocorre agrave mente que as palavras satildeo sinais das coisas sem deixar de ser coisas
Quando pois a palavra sai da boca se sai por causa de si mesma isto eacute para que acerca dela se inquira ou se discuta haacute certamente uma coisa que eacute sujeita a discussatildeo e a investigaccedilatildeo mas justamente esta coisa eacute chamada palavra
E o que quer que a partir da palavra natildeo os ouvidos mas a mente (animus) percebe (sentit) e que a mente mesma manteacutem incluiacuteda em si se chama dicibile54 Quando poreacutem a palavra sai natildeo por causa de si mesma mas para significar algo de outro chama-se dictio55 E a coisa mesma que natildeo eacute uma palavra nem ainda uma concepccedilatildeo da palavra na mente seja que tenha uma palavra com a qual possa ser significada seja que natildeo a tenha daqui por diante natildeo eacute chamada com nome apropriado de outro modo do que de coisa
Estes quatro hatildeo de ser mantidos distintamente portanto a palavra (verbum) o dicibile a dictio a coisa Aquilo que defini como palavra eacute uma palavra e significa a palavra Aquilo que defini dicibile eacute uma palavra e todavia natildeo significa a palavra mas aquilo que graccedilas agrave palavra se compreende e estaacute contido na mente Aquilo que eu defini dictio eacute uma palavra mas uma palavra que significa contemporaneamente as outras duas ou seja a palavra mesma e aquilo que se faz na mente atraveacutes da palavra Aquela que eu defini como coisa eacute uma palavra que significa tudo aquilo que fica fora das trecircs que foram ditas
52 Seria o λεκτόν (lektoacuten) dos estoicos 53 Seria a λέξις (leacuteksis) dos estoicos 54 O exprimiacutevel ou melhor o diziacutevel no sentido do mostraacutevel 55 A expressatildeo o dito do dizer
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Depois destas digressotildees necessaacuterias para aclararmos o que estaacute em questatildeo
voltemos ao livro II do ldquoDe Doctrina Christianardquo de Agostinho Retomemos a sua
consideraccedilatildeo a respeito do signo
Haacute dois tipos de signos os naturais e os convencionais Os naturais datildeo a
conhecer por si proacuteprios alguma coisa aleacutem do que satildeo em si Assim fumaccedila eacute signo
de fogo Os signos convencionais (data signa) satildeo todos aqueles que os seres vivos em
especial o ser humano mutuamente se trocam para manifestar ndash o quanto lhes eacute
possiacutevel ndash os movimentos de sua alma tais como as sensaccedilotildees e os pensamentos Os
signos podem se dar em referecircncias a todos os sentidos a maioria dos signos poreacutem
se referem agrave audiccedilatildeo ou agrave visatildeo Dentre estes signos mais usuais e importantes satildeo os
signos verbais que satildeo sons significativos que se articulam mediante a voz humana
constituindo a palavra falada Os signos escritos poreacutem mostram os signos verbais de
maneira visiacutevel (e natildeo audiacutevel como fazem os signos falados)
A liacutengua eacute a realizaccedilatildeo concreta da linguagem humana mediante o uso de signos
verbais falados ou escritos As Sagradas Escrituras indicam pela histoacuteria da Torre de
Babel que liacutengua e linguagem sofrem com a decadecircncia do espiacuterito humano causada
pela soberba56 O contraacuterio da histoacuteria de Babel eacute poreacutem a histoacuteria de Pentecostes
narrada no livro dos Atos dos Apoacutestolos que aponta para a comunhatildeo do amor e o
muacutetuo entendimento entre os homens propiciado com o dom do Hagioacutes Pneuma
(Sopro Sagrado Espiacuterito Santo)
56 Na histoacuteria narrada pelo livro do Gecircnesis os homens se unem para erguer uma torre que una a terra ao ceacuteu a partir das proacuteprias forccedilas e da proacutepria engenhosidade Nos povos antigos encontramos monumentos que evocam algo disso O desejo do homem de uniatildeo entre o ceacuteu e a terra se manifesta nos zigurates da mesopotacircmia nas piracircmides das altas culturas das pedras (Egito Peru Meacutexico) nas estupas asiaacuteticas e quiccedilaacute em tempos mais primitivos aos dolmens menires nas cacircmaras funeraacuterias e nos obeliscos Junto com o esforccedilo de o homem erguer-se a si mesmo como homem erguendo pedras haacute o esforccedilo tambeacutem de alcanccedilar a vida dos imortais dos deuses tolhendo a proacutepria finitude Babel que era para ser a ldquoporta dos deusesrdquo (babilani) se torna poreacutem o lugar da confusatildeo (balal = confundir) O mundo se torna assim uma ldquoBabilocircniardquo isto eacute o lugar da confusatildeo em que os homens natildeo conseguem chegar ao entendimento muacutetuo Somente em Pentecostes em Jerusaleacutem celebra-se plenamente a superaccedilatildeo desta divisatildeo e desta confusatildeo em que as liacutenguas natildeo satildeo mais confusas e em que a linguagem do amor ardente une os homens e propicia-lhes a chance do entendimento muacutetuo e da verdadeira concoacuterdia uma concoacuterdia para o bem em favor de Deus
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Aquele vento purificava os coraccedilotildees da palha carnal aquele fogo consumia o feno da antiga concupiscecircncia aquelas liacutenguas em que falavam os que estavam plenos do Espiacuterito Santo prefiguravam a futura Igreja mediante liacutenguas de todos os povos Pois assim como depois do diluacutevio a soberba impiedade dos homens edificou uma grandiosa torre contra o Senhor ocasiatildeo na qual o gecircnero humano mereceu ser dividido pela diversidade das liacutenguas de modo que cada naccedilatildeo falasse sua proacutepria liacutengua para natildeo ser entendido pelas demais assim a humilde piedade dos fieis reduziu a diversidade de liacutenguas agrave unidade da Igreja de maneira que aquilo que a discoacuterdia tinha dispersado o reunisse a caridade e assim os membros dispersos do gecircnero humano qual membros de um mesmo corpo fossem reintegrados agrave unidade de uma uacutenica cabeccedila que eacute Cristo e fundidos na unidade do corpo santo mediante o fogo do amor57
O maior sinal da comunhatildeo do amor eacute quando os homens conseguem falar uns
com os outros e se entender Embora sejam diferentes e falem liacutenguas diferentes falam
a partir de uma mesma linguagem a do amor-caridade (gratuidade) As liacutenguas se
tornam entatildeo como labaredas do amor As falas satildeo entatildeo falas inflamadas de um fogo
divino brilhantes e ardentes divinamente apaixonadas entusiasmadas O amor eacute o que
possibilita manter esta identidade na diferenccedila Cria-se uma identidade comum mas
sem desfazer antes protegendo as diferenccedilas Eacute o milagre das liacutenguas O contraacuterio de
Babel Recriaccedilatildeo do homem humano e da humanidade universal
Assim os homens podem voltar agrave linguagem comum apesar da diversidade das
liacutenguas unindo suas vontades no empenho de conhecer e realizar a vontade de Deus A
serviccedilo deste intento estatildeo as Sagradas Escrituras Estas satildeo obra do proacuteprio Deus que
usou de hagioacutegrafos inspirados para expressar a sua vontade na linguagem humana
mediante as diversas liacutenguas Os que leem as Sagradas Escrituras natildeo desejam encontrar
nelas mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram e desse modo chegar
a conhecer a vontade de Deus segundo a qual ordem esses homens compuseram
Entretanto o leitor das Sagradas Escrituras vai se deparar continuamente com
ambiguidades e obscuridades Para Agostinho estas fazem parte da proacutepria natureza das
Escrituras Sagradas Haacute um certo quecirc de hermeacutetico de enigmaacutetico de obscuro nelas
57 Sermatildeo 271
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Mas eacute justamente isto que desafia a compreensatildeo e que a faz crescer na busca da
vontade divina As obscuridades e ambiguidades natildeo satildeo inuacuteteis Elas vencem o orgulho
do homem que se aproxima dos misteacuterios divinos sem reverecircncia e sem devoccedilatildeo Por
outro lado elas premunem o espiacuterito do fastio e do teacutedio que a facilidade sempre trazem
consigo As dificuldades de interpretaccedilatildeo cria-nos o gosto pelo exerciacutecio da
compreensatildeo na sua aventura de conquista do sentido Contudo natildeo se deve ter a
pretensatildeo de que se pode chegar a uma clareza que elimine toda sombra e obscuridade
A clareza do misteacuterio que se desvela sempre traz o veacuteu do pudor em que o misteacuterio
mesmo se encobre e assim se resguarda Os significados hauridos seratildeo sempre acenos
do inefaacutevel na medida em que o misteacuterio santo se deixa captar no horizonte do sentido
Uma vez que as Sagradas Escrituras satildeo linguagem do misteacuterio santo do Deus
absconditus (Deus escondido) que se re-vela (desvela e vela ao mesmo tempo) na
finitude da linguagem humana o leitor vai se deparar com desafios sempre novos
Agostinho recorre entatildeo agrave alegorese seguindo neste ponto a tradiccedilatildeo dos
alexandrinos As alegorias possuem encanto todo especial capaz de falar natildeo somente
ao entendimento mas tambeacutem ao coraccedilatildeo dos homens Com efeito a linguagem
imageacutetica concreta tem maior poder de comunicaccedilatildeo vital do que a linguagem
conceitual abstrata O uso de comparaccedilotildees leva o leitor a aprender mais
espontaneamente (libenter) As dificuldades de interpretaccedilatildeo levam-no a aprender com
maior prazer (gratius) As passagens obscuras das Escrituras aguccedilam a fome de
compreensatildeo do leitor Entretanto Agostinho daacute uma indicaccedilatildeo metodoloacutegica de leitura
importante para ir abrindo a compreensatildeo das Escrituras ganhar familiaridade com as
passagens claras e inequiacutevocas e com isso iluminar as passagens obscuras e
enigmaacuteticas Com efeito diz ele quase nada sobressai nas obscuridades que natildeo esteja
escrito mais claramente em outro lugar
Aquele que lecirc as Sagradas Escrituras procurando nelas a vontade divina eacute algueacutem
que estaacute a caminho numa viagem para a paacutetria da beatitude eterna Este caminhar
comporta determinado itineraacuterio no qual o homem vai se dispondo cada vez mais ao
Espiacuterito de Deus e ao seu modo de operar na alma os seus dons Eacute na medida que se
aproxima da Sabedoria do Espiacuterito que o leitor lecirc com maior proveito e profundidade as
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Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
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Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
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Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
29
Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
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(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
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Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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curare18 O uti (usar) eacute o cuidar que lida com aquilo que contribui para o viver O frui
(fruir) eacute gozar Por exemplo o belo que pertence agrave vigecircncia do ser eacute fruiacutedo A beata
vita (vida bem-aventurada feliz) eacute a do homem que goza do sumo bem (Deus) Eacute para
ser fruiacuteda aquela coisa que deleita por si mesma sem estar referida a outra coisa19 Eacute
para ser usada aquela coisa que eacute que eacute buscada desejada e que deleita por causa de
outra coisa As coisas temporais visiacuteveis satildeo para ser usadas As coisas eternas
invisiacuteveis para serem fruiacutedas O viacutecio a perversatildeo consiste em inverter esta ordem
querer fruir do que eacute para ser usado A virtude poreacutem consiste em fruir do que eacute para
ser fruiacutedo e usar do que eacute para ser usado20 A beatitude eacute a fruiccedilatildeo do sumo e imutaacutevel
bem a Trindade Deus eacute a beleza inteligiacutevel imutaacutevel inefaacutevel Toda a miacutestica medieval
iraacute visar a esta fruiccedilatildeo de Deus como o sumo bem como a suma beleza Na fruiccedilatildeo de
Deus o homem encontra o repouso a quietude (quies) Embora em tudo isso haja
elementos do pensamento grego (neoplatocircnico) no entanto a concepccedilatildeo da vida
humana e da realidade do real em Agostinho estaacute enraizada na compreensatildeo do Novo
Testamento Ele assim traz agrave fala em que consiste a ldquovita praesensrdquo (vida presente) do
cristatildeo eacute vida vivida ldquoin re laboris sed in spe quietis in carne vetustatis sed in fide
novitatisrdquo (no real do labor mas na esperanccedila do repouso na carne da velhice mas na
feacute da novidade) A esperanccedila precede A vida segue isso que a esperanccedila antecipa A
vida se realiza na direccedilatildeo daquilo que a esperanccedila antecipa21
Ainda no primeiro livro encontra-se uma exposiccedilatildeo do conteuacutedo da feacute a modo
de uma siacutentese dogmaacutetica fala da Trindade enquanto aquilo a que a aspiraccedilatildeo de
fruiccedilatildeo por parte do homem estaacute destinada Esta fala se articula em termos biacuteblicos e
tambeacutem em termos metafiacutesicos Trata-se de uma exposiccedilatildeo dogmaacutetico-metafiacutesica dos
misteacuterios e arcanos da feacute cristatilde Ao seu fundo poreacutem estaacute toda uma experiecircncia faacutetica
da vida22 Depois desta exposiccedilatildeo sobre a essecircncia da feacute cristatilde (os misteacuterios que nela satildeo
18 Curo curas curare curavi curatum Verbo transitivo ndash Sentido proacuteprio 1) cuidar olhar por tratar velar Daiacute 2) tratar curar 3) no contexto administrativo governar dirigir administrar 4) no contexto militar comandar 5) no contexto comercial fazer pagar 4) fazer por ter em conta de ter cuidado de 19 De civitate Dei (A cidade de Deus) XI 25 20 De Diversibus quaestionibus XXX 21 Cf Heidegger M Fenomenologia da Vida Religiosa p 258-260 22 A uacutenica ldquocoisardquo (o uacutenico real) a ser fruiacuteda eacute a Trindade Agostinho remete pois inicialmente ao Triuno Deus de quem por quem e para quem existem todas as coisas Os mesmos atributos divinos devem ser predicados de cada uma das pessoas da Trindade isto eacute do Pai do Filho e do Espiacuterito Santo Cada um deles eacute ele proacuteprio na plenitude de sua substacircncia O ser do Pai estaacute na Unidade o ser do Filho na
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cridos) Agostinho trata do ldquoethosrdquo do viver cristatildeo seguindo ainda pelo fio condutor
do ldquouti et fruirdquo (usar e fruir) O essencial do ethos cristatildeo eacute o duplo preceito do amor a
Deus e ao proacuteximo O ethos do viver cristatildeo se instaura segundo a ldquoOrdo dilectionisrdquo
(ordem da dileccedilatildeo ou do amor) A identidade do cristatildeo consiste no seu modo de amar23
Igualdade e o ser do Espiacuterito Santo na harmonia da unidade e da igualdade Natildeo obstante natildeo se trata de trecircs seres mas de um uacutenico Ser Agostinho estaacute ciente da limitaccedilatildeo do entendimento no vigor do silecircncio que se recolhe diante do misteacuterio divino do Deus uno e trino arcano fundamental da feacute cristatilde Deus eacute antes de tudo o inefaacutevel Quando a mente humana cogita acerca do misteacuterio divino que se doa ao se retrair ela busca captar uma realidade transcendental a mais proacutexima visto ser a mais iacutentima mais iacutentima a noacutes que noacutes mesmos e ao mesmo tempo a mais distante (inacessiacutevel justamente em virtude desta proximidade) Eacute esta realidade primeira que institui todo o real quer nas suas realizaccedilotildees sensiacuteveis quer nas inteligiacuteveis Percorrendo-se os diversos niacuteveis de constituiccedilatildeo da vida chega-se agravequela Vida que se define como Sabedoria imutaacutevel isto eacute sempre idecircntica consigo mesma O Deus vivo que eacute o Vivente por excelecircncia eacute o anseio mais profundo da alma humana Contemplaacute-lo e fruir da sua bondade e beleza eacute a beatitude do homem Contudo para que o homem possa chegar agrave visatildeo e fruiccedilatildeo de Deus eacute necessaacuteria a purificaccedilatildeo interior ao longo de sua vida que aparece como um caminho uma viagem uma travessia de retorno agrave paacutetria Esta purificaccedilatildeo se daacute mediante o bom empenho os bons desejos e os costumes No entanto natildeo podemos ir agrave Sabedoria se ela natildeo se dispotildee a vir a noacutes adaptando-se agrave fraqueza dede nossa condiccedilatildeo carnal isto eacute finita fraacutegil decadente mortal No entanto esta Sabedoria que se encarna na realidade da vida faacutetica humana foi rejeitada por muitos como fraqueza e loucura Eacute o misteacuterio da keacutenosis (esvaziamento) do rebaixamento do Filho de Deus o Verbo que se fez carne e atendou entre os homens Mas eacute justamente por esta fraqueza e loucura divina manifestada na encarnaccedilatildeo e na paixatildeo do Verbo humanado Jesus Cristo que acontece a redenccedilatildeo isto eacute a libertaccedilatildeo e a salvaccedilatildeo de todos os homens Nele a Sabedoria cura o homem impregnado de fraqueza e mergulhado na loucura O homem usou mal do dom da imortalidade e caiu na morte Cristo usou bem de nossa mortalidade e isso devolveu ao homem o acesso agrave plenitude da vida Atraveacutes dos misteacuterios da vida de Cristo isto eacute dos misteacuterios de sua encarnaccedilatildeo de sua paixatildeo e tambeacutem de sua ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo com o consequente envio do Espiacuterito Santo os homens satildeo fortalecidos na feacute e avivados no conhecimento Nestes misteacuterios os que creem consideram o quatildeo livremente Cristo deu sua vida pelos homens ele que possuiacutea o poder de retomaacute-la Aqueles que favorecidos pela graccedila da redenccedilatildeo creram no Filho de Deus encarnado e crucificado como Senhor (o Ressuscitado) formam um soacute corpo constituindo deste modo a realidade da Igreja Esta eacute a esposa de Cristo Atraveacutes dos sacramentos ela se purifica para vir se unir ao Esposo Cristo Jesus na eternidade apresentando-se diante dele sem manchas nem rugas Eacute no interior desta Igreja que os homens satildeo gerados para a semelhanccedila com Cristo e recebem o perdatildeo dos pecados (batismo) Desta mesma Igreja recebem a feacute na ressurreiccedilatildeo do corpo e na vida eterna Estes misteacuterios e arcanos cristatildeos satildeo acolhidos pelo homem que estaacute a caminho da paacutetria (a vida eterna) Neste caminho o crente sempre de novo morre para o mundo e vive para Deus Verdade e Vida 23 O homem haacute de amar a Deus por causa dele proacuteprio As criaturas em contrapartida satildeo amadas agrave medida que ajudam o homem a crescer no amor de Deus O amor a si mesmo e ao proacuteprio corpo eacute uma lei natural e por isso natildeo requer nenhum preceito (mandamento) Mas o amor ao que estaacute ao seu lado (o proacuteximo) e o amor ao que estaacute acima dele (Deus) requer preceito Haacute no entanto um falso e um verdadeiro amor de si proacuteprio O verdadeiro amor de si consiste em buscar o que eacute uacutetil e salutar para si mesmo crescendo na caridade (o amor gratuito a Deus e ao proacuteximo) O falso amor de si consiste em submeter o proacuteximo e o proacuteprio corpo a fim de fruir deles Quanto ao amor ao proacuteprio corpo Agostinho relembra a citaccedilatildeo do Apoacutestolo (Paulo) que diz ldquoningueacutem jamais quis mal agrave sua proacutepria carnerdquo (Ef 5 29) Mesmo os que reconhecem sadiamente a necessidade da ascese fazem-no para submeter o corpo ao espiacuterito segundo a ordem da natureza buscando assim a paz e a harmonia O preceito da caridade eacute duplo exige o amor a Deus acima de tudo e o amor ao proacuteximo como a si mesmo A partir do duplo amor natural e do duplo preceito da caridade descobre a ldquoOrdo Dilectionisrdquo (ordem da dileccedilatildeo isto eacute do amor) Ordem implica numa estruturaccedilatildeo em niacuteveis neste caso em niacuteveis de dignidade A ordenaccedilatildeo do amor eacute instaurada quando o homem ama o que deve ser amado (o bem) e natildeo ama o que natildeo deve ser amado (o mal o viacutecio o pecado) Depois quando o homem ama menos o que eacute menos digno de amor (o corpo)
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O amor (dilectio caritas) eacute o princiacutepio que rege toda a vida humana na perspectiva da
feacute cristatilde24 O duplo preceito do amor (a Deus e ao proacuteximo) eacute aqui a norma universal e
primordial que rege toda a ordem do viver O amor a Deus acima de tudo e o amor ao
proacuteximo eacute a essecircncia a substacircncia da revelaccedilatildeo divina (ldquoa Lei e os Profetasrdquo) que foi
radicalizada e consumada em Jesus Cristo no seu novo e eterno testamento
(testemunho) Daiacute se segue que a edificaccedilatildeo da caridade eacute a norma reacutegia e suprema de
toda a interpretaccedilatildeo das Sagradas Escrituras25 Para o homem que atingiu a perfeiccedilatildeo
do amor (caridade perfeita) as Sagradas Escrituras deixam de ser necessaacuterias uma vez
que toda a finalidade delas eacute levar o homem agrave perfeiccedilatildeo do amor (caridade perfeita)
Deste modo as Escrituras Sagradas requerem um leitor que entenda que o fim de tudo
o que ali estaacute escrito eacute a caridade perfeita consumada que aparece concreta e
historicamente em Jesus Cristo o Deus encarnado (humanado) e crucificado A feacute e a
esperanccedila satildeo outras duas virtudes que ajudam o homem a crescer e se perfazer na
perfeiccedilatildeo da caridade no seguimento de Jesus Cristo O essencial do ser cristatildeo se
encontra neste seguimento
Depois quando ama igualmente o que eacute igualmente digno de amor (o proacuteximo) Por fim quando ama absolutamente o que eacute absolutamente digno de ser amado (Deus) Ao amor de Deus assim deve se subordinar e convergir todo amor pela criatura O preceito do amor aleacutem disso comporta universalidade isto eacute ningueacutem eacute dele excluiacutedo A boa vontade do amor se estende a todos mesmo ao inimigo O amor de Deus pelo homem eacute gratuito visto que Deus natildeo precisa do homem mas se basta a si mesmo Seu amor eacute pura gratuita absoluta bondade O grau de perfeiccedilatildeo de um homem depende do grau de perfeiccedilatildeo e da universalidade de seu amor O ser do homem se determina pelo seu amor O homem eacute o que ele ama e como ele ama Ele cresce no ser se cresce na perfeiccedilatildeo (e na universalidade) do amor Ele diminui no ser se decresce na capacidade de amar O homem pode encontrar deleite nos outros homens quando estes o ajudam a crescer no amor a Deus Eacute quando se ama e se gosta do outro em Deus Os homens podem e devem constituir uma fraternidade no amor ajudando-se mutuamente a prosseguir seu itineraacuterio para Deus Nenhuma homem pode se considerar fim absoluto do amor do outro Ele natildeo eacute o destinataacuterio uacuteltimo do amor do outro Eacute apenas companheiro na viagem da vida e como tal haacute de ser amado Neste itineraacuterio para Deus Cristo eacute o caminho a verdade e a vida isto eacute ele eacute aquele por quem o homem vai aquele a quem o homem alcanccedila e em quem ele permanece no amor 24 Cf Arendt Hanna O conceito de amor em Santo Agostinho Ensaio de interpretaccedilatildeo filosoacutefica Lisboa Instituto Piaget 1997 25 Para o ldquohomo viatorrdquo (homem a caminho) a feacute nas Escrituras fortalece a feacute a esperanccedila e a caridade Nestas trecircs virtudes teologais se encerram e se subsumem toda a ciecircncia e toda a profecia A caridade permanece para sempre enquanto que a feacute e a esperanccedila se extinguem quando o homem chega a seu destino (a Paacutetria o Reino dos Ceacuteus) A caridade visa um bem eterno Se os bens temporais satildeo amados antes de serem possuiacutedos pois ao serem conquistados natildeo saciam a alma na sua sede do absoluto bem o bem eterno eacute o que eacute amado com tanto mais ardor ao ser possuiacutedo do que fora ao ser desejado pois a ningueacutem que a deseja a beatitude concedida eacute menor do que a desejada
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O livro II eacute um verdadeiro tratado de semiologia26 Todo o pensamento a respeito
da linguagem do ocidente se baseia no triacircngulo semioacutetico signo conceito coisa A base
desta concepccedilatildeo de Aristoacuteteles Ela eacute exposta no ὶ ἑί (perigrave hermeneiacuteas)
ldquoDe interpretationerdquo (16a 3-8)
Satildeo pois aquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz siacutembolos das paixotildees (afecccedilotildees disposiccedilotildees) na alma e as coisas que satildeo escritas satildeo siacutembolos daquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz E assim como as coisas escritas natildeo satildeo as mesmas para todos do mesmo modo tambeacutem os sons da voz natildeo satildeo os mesmos Aquelas coisas de que isso (coisas escritas e sons da voz) satildeo primordialmente signos (coisas que mostram) satildeo para todos (os homens) as mesmas paixotildees da alma e as coisas das quais estas (paixotildees da alma) formam apresentaccedilotildees assemelhadas satildeo igualmente as mesmas27
O texto de Aristoacuteteles se manteacutem numa fala esclarecida e soacutebria que torna
visiacutevel a claacutessica estruturaccedilatildeo que abriga a linguagem como discurso ou fala As letras
do alfabeto28 mostram os fonemas29 Os fonemas mostram as disposiccedilotildees na alma30 As
disposiccedilotildees na alma mostram as coisas que que lhe con-cernem31 O mostrar configura
e sustenta as escoras dessa construccedilatildeo De maneira variada o mostrar conduz algo para
um aparecer deixando assim apreender o que aparece e permitindo que se discuta o
que se apreende
26 A semiologia (ou semioacutetica) eacute a ciecircncia dos signos Como os signos verbais tecircm na vida humana um papel de primeiro plano a semiologia se concentrou em grande parte na linguagem Haacute uma semiologia nas especulaccedilotildees linguiacutestica da antiguidade entre os modistas da Idade Meacutedia etc Mas o nome ldquosemioacuteticardquo surge na modernidade com Locke Torna-se poreacutem uma disciplina independente na obra do filoacutesofo americano Charles Sanders Peirce (1839-1914) 27 A traduccedilatildeo entende os σημεῖα (semeia ndash os signos aquelas coisas que mostram) os σύμβολα (symbola - os siacutembolos ndash o que eacute lanccedilado junto e nessa junccedilatildeo deixa e faz com que um se atenha ao outro) e os ὁμοιώματα (homoioacutemata ndash as apresentaccedilotildees assemelhadas as semelhanccedilas) como um mostrar no sentido de deixar aparecer o que por sua vez encontra-se no acircmbito do desencobrimento (αλήθεια ndash aleacutetheia) 28 τὰ γραφόμενα ndash taacute graphoacutemena 29 τὰ ἐν τῇ φωνῇ - taacute en te phoneacute 30 παθήματα τῆς ψυχῆς ndash patheacutemata tecircs psykhecircs 31 πράγματα - praacutegmata
14
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Antes de nos apropriarmos da semiologia de Agostinho tentemos aqui uma
consideraccedilatildeo fenomenoloacutegica sobre o sinal e a linguagem
O falar acontece por mor do dizer Dizer eacute mostrar O falar enquanto dizer se
realiza como um discurso mostrador loacutegos apophaacutentikoacutes32 O falar estaacute a serviccedilo do
dizer Dizer eacute mostrar no sentido de deixar e fazer ver a quem se fala aquilo de que se
fala Dizer eacute dar algo a compreender eacute fazer-se compreender sobre algo a quem escuta
O mostrar no falar acontece como um conceder acenos dar indiacutecios oferecer
indicaccedilotildees oferecer sinais33 Mas tudo isso acontece no sentido de um anunciar que se
cumpre como um revelar um divulgar um mencionar (fazer menccedilatildeo de referir relatar
expor narrar) um lembrar um recordar e um comemorar O anunciar eacute entendido pois
pelos gregos como um mostrar deiknymi34 O sinal eacute uma referecircncia uma remissatildeo O
remeter proacuteprio do sinal consiste em mostrar O mostrar do sinal se funda na referecircncia
na remissatildeo Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo No entanto
Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo eacute uma referecircncia Toda lsquoaccedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma referecircncia mas nem toda referecircncia mostra Com isso tambeacutem se diz toda accedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo mostra Assim aparece o caraacuteter formal e geral da relaccedilatildeo Para se investigar os fenocircmenos de referecircncia sinal e significado de nada adianta caracterizaacute-los como relaccedilatildeo Deve-se em uacuteltima instacircncia mostrar que a proacutepria lsquorelaccedilatildeorsquo devido a seu
32 O loacutegos eacute um reunir e um recolher (leacutegein) que potildee expotildee e depotildee abre e manifesta traz ao desencobrimento agrave revelaccedilatildeo Como abrir e manifestar leacutegein estaacute em contraste com krypto cobrir encobrir esconder ocultar no sentido de guardar Conhecemos um fragmento de Heraacuteclito (fr 93) que traz este contraste Ele diz Ho aacutenax hou tograve manteion esti tograve en Delphois oute leacutegei oute kryptei allagrave semainei ndash O Autor de quem eacute o oraacuteculo de Delfos natildeo traz ao desencobrimento nem encobre mas acena 33 Semainein eacute um conceder semata (acenos indiacutecios indicaccedilotildees) A palavra grega no singular eacute ldquosemardquo indiacutecio vestiacutegio marca distintiva senha sinal ldquoSemardquo eacute tambeacutem pressaacutegio auguacuterio auspiacutecio Eacute ainda o astro ou uma constelaccedilatildeo da qual se tiram indicaccedilotildees na orientaccedilatildeo concernente ao ceacuteu Eacute por fim o tuacutemulo a tumba 34 Da mesma raiz de ldquodeiknymirdquo (mostrar) eacute o verbo latino ldquodicererdquo dizer Dizer eacute mostrar isto eacute deixar e fazer ver trazer agrave evidecircncia alguma coisa O sinal pois no falar precisa ser entendido na dinacircmica do dizer isto eacute do mostrar
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caraacuteter formal geral tem sua origem ontoloacutegica numa referecircncia35
Haacute uma multiplicidade de sinais anuacutencios prenuacutencios vestiacutegios marcas
distintivos cuja accedilatildeo de mostrar difere a cada caso Satildeo sinais diferentes o rastro o
resto o monumento o documento o testemunho o siacutembolo a expressatildeo a
manifestaccedilatildeo a significaccedilatildeo O sinal tem a sua serventia no mostrar no sentido de fazer
sobressair de dar na vista salientar fazer reparar estranhar alguma coisa Aquilo que
normalmente natildeo causa surpresa eacute ressaltado pelo sinal O sinal permite a descoberta
de alguma coisa
O mundo eacute o ldquoonderdquo das descobertas O homem se orienta se dirige se
direciona em seus comportamentos com as coisas com os entes agrave matildeo a partir de uma
familiaridade com o mundo A abertura de mundo se daacute como compreensatildeo Trata-se
poreacutem de uma compreensatildeo operativa natildeo teoacuterica Compreender significa aqui reunir
as remissotildees recolher as referecircncias O caraacuteter de remissatildeo das remissotildees das
referecircncias eacute o que se chama de significar Significar (be-deuten) eacute aqui mostrar
(deuten) no sentido de pocircr a caminho um clarear um esclarecer Eacute o processo e o
movimento de estruturaccedilatildeo do mundo Significar eacute aqui oferecer alguma coisa para a
compreensatildeo e para a interpretaccedilatildeo Significacircncia (Bedeutsamkeit) eacute o todo das
remissotildees do acontecimento e do processo do significar que eacute a estruturaccedilatildeo de
mundo Noacutes nos encontramos a noacutes mesmos jaacute sempre no mundo entendendo o mundo
antes de tudo como uma totalidade de significacircncias Eacute um encontrar-se a si mesmo
sempre numa situaccedilatildeo de ocupaccedilatildeo e preocupaccedilatildeo de cuidado com o proacuteprio ser-no-
mundo Tudo aquilo com que podemos nos relacionar e comportar tem este caraacuteter
estaacute aiacute e eacute encontrado no caminho do cuidado eacute experimentado como significativo a
partir de um determinado cuidado Significacircncia indica este modo fundamental como
algo segundo o seu teor proacuteprio eacute encontrado na vida como ele se deteacutem e se reteacutem
no meio do mundo da vida
Soacute acontece linguagem onde noacutes falamos uns com os outros A linguagem
acontece de iniacutecio e na maior parte das vezes na conversa com suas falas e seus
silecircncios Para noacutes isto eacute na ordem da nossa experiecircncia cotidiana a primeira
35 Heidegger M Ser e Tempo sect 17
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dimensatildeo pois da linguagem eacute a fala o discurso O discurso traz agrave fala uma
compreensatildeo Chamamos de sentido o que pode ser articulado O sentido eacute o que torna
compreensiacutevel algo enquanto algo Compreender eacute fundamentalmente apreender algo
enquanto algo Tudo que apreendemos se mostra a si mesmo como isso ou aquilo Isso
quer dizer noacutes aprendemos cada coisa em sua significacircncia A percepccedilatildeo natural em
que noacutes vivemos cotidianamente jaacute eacute sempre uma compreensatildeo uma captaccedilatildeo da coisa
como esta coisa do sapato como sapato do livro como livro do reloacutegio como reloacutegio
Natildeo eacute assim que eu primeiro apreendo uma coisa na sua nua e crua factualidade e
depois lhe atribuo este ou aquele significado Cada vez eu apreendo uma coisa como
tal coisa isto eacute eu apreendo a coisa dentro de uma determinada significacircncia36
A coisa que me vem ao encontro dentro do mundo se mostra como isto ou
aquilo37 Ela instaura um conjunto de referecircncias ela remete a isto ou aquilo ela soa
desta ou daquela maneira em meu mundo ela fala disto ou daquilo em minha vida A
coisa significa a si mesma Mas o seu poder significar a si mesma soacute eacute possiacutevel porque
ela jaacute eacute descoberta como coisa que vem ao encontro dentro do mundo isto eacute dentro de
uma totalidade de sentido Que a coisa se faccedila encontrar e descobrir deste ou daquele
modo e que ela se decirc a compreender como isto ou aquilo ndash isto soacute eacute possiacutevel porque ao
apreendecirc-la numa percepccedilatildeo concreta um mundo jaacute se me abriu Com a coisa se
anuncia o mundo da vida ou melhor os mundos da vida o mundo circunstante o
mundo partilhado da convivecircncia o mundo proacuteprio pessoal A coisa soacute pode ser
apreendida na sua significacircncia a partir da abertura do mundo ou dos mundos
Perceber eacute jaacute compreender as coisas na sua significacircncia Perceber eacute estruturar
e configurar o mundo como estrutura significativa Em toda percepccedilatildeo atua pois um
ato fundamental de significaccedilatildeo Chamamos de significar o ato pelo qual o homem
estrutura a significacircncia das coisas no horizonte do mundo enquanto totalidade
significativa Da compreensatildeo que articula a significaccedilatildeo das coisas numa totalidade
sentido brota a possibilidade da interpretaccedilatildeo Pela compreensatildeo o homem estaacute
sempre se projetando abrindo lances de perspectivas entrevendo de antematildeo
36 Cfr M HEIDEGGER GP 102-110 37 Cfr M HEIDEGGER Ontologie (Hermeneutik der Faktizitaumlt) (OHF) Gesamtausgabe ndash Band 63 Vittorio Klostermann Frankfurt am Main 1995 p 93-104
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aberturas de possibilidades Pela compreensatildeo o homem opera um ver que eacute projetivo
e criativo de possibilidades de ser Esse ver projetivo e criativo configura isto eacute elabora
em formas significativas essas possibilidades de ser Agrave elaboraccedilatildeo e exposiccedilatildeo dessas
formas chamamos de interpretaccedilatildeo Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo se apropria do
que compreende Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo busca chegar a uma maturaccedilatildeo
isto eacute busca maturar as possibilidades de ser que ela jaacute entreviu A interpretaccedilatildeo eacute uma
explicitaccedilatildeo da compreensatildeo O que entra como componente da explicitaccedilatildeo possui o
caraacuteter de significacircncia eacute o mostrar-se de algo como algo Em todo o nosso
comportamento noacutes jaacute estamos sempre compreendendo e interpretando apreendendo
algo como algo e referindo algo a algo articulando significados numa totalidade de
sentido que eacute o mundo O homem sempre interpreta Pois interpretar eacute ser homem
A articulaccedilatildeo dos significados numa totalidade de sentido se daacute atraveacutes do falar
quer do falar de si consigo mesmo quer do falar uns com os outros Na fala noacutes
pronunciamos o que compreendemos e como interpretamos o que estaacute em questatildeo Pro-
nunciar eacute pro-ferir isto eacute trazer agrave luz ao aberto do mundo da convivecircncia aquilo que
compreendemos e interpretamos Pelo discurso vecircm agrave fala os entes e o ser dos entes
tais como se oferecem agrave nossa compreensatildeo e interpretaccedilatildeo Vem agrave fala agrave medida que
se articulam num horizonte de compreensibilidade que noacutes chamamos de sentido O
sentido eacute o que se articula na compreensatildeo e interpretaccedilatildeo como horizonte daquilo que
compreendemos e interpretamos Todo discurso eacute o pronunciar o vir agrave fala daquilo que
compreendemos e interpretamos dos significados das coisas agrave luz do sentido de ser que
noacutes lhes damos
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Os medievais iratildeo precisar e aprofundar a concepccedilatildeo de signo Assim para
Tomaacutes de Aquino o signum eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro
A palavra proferida exteriormente pela voz eacute a fala A fala eacute proferida a modo de uma
voz articulada significativa Nem todo o som eacute voz A voz enquanto haacutelito sopro som
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que sai da boca com efeito soacute chega a ser palavra quando eacute significativa38 Sem a
significaccedilatildeo (significatio) uma voz natildeo eacute palavra A significaccedilatildeo torna a voz uma
expressatildeo do pensamento39 Por isso somente um vivente inteligente (animal rationale)
tem voz enquanto palavra40 Um vivente melhor um animal emite sons para se
comunicar Mas os seus sons natildeo satildeo vozes articuladas significativas Os gritos os
alaridos de animais natildeo satildeo palavras Sua comunicaccedilatildeo natildeo eacute fala O berrar de um
bezerro o mugir de uma vaca o balar de uma ovelha o balir de um cordeiro o arrulhar
de uma pomba o latir de um catildeo o miar de um gato ndash tudo isso natildeo eacute fala Seus sons
natildeo satildeo vozes significativas Indicam alguma coisa Mas o seu indicar natildeo tem o sentido
de significar alguma coisa Significar eacute dar a conhecer algo como algo a algueacutem41 Fumaccedila
indica fogo Bandeira branca indica rendiccedilatildeo Indicar poreacutem natildeo eacute significar Todo
significar eacute um indicar mas nem todo indicar eacute significar Significar eacute dar a conhecer no
sentido de dar a compreender algo como algo A fala daacute a conhecer alguma coisa Ela
faz-se notar e faz notar alguma coisa A fala eacute um fazer notar que daacute a conhecer alguma
coisa42 A fala faz notar daacute a conhecer isto eacute gera uma ldquonotiordquo ou uma ldquonotitiardquo
(conhecimento noccedilatildeo sentido)43 Notar quer dizer aqui dirigir-se a alguma coisa
orientando-se no mundo (intencionalidade) tornando-se atento a ela ao seu ser
Joatildeo Duns Scotus iraacute retomar o triacircngulo semioacutetico do Peri hermeneiacuteas de
Aristoacuteteles Ele questiona sobre a distinccedilatildeo de litteras et voces (letras e vozes) de um
lado passiones (disposiccedilotildees da alma) e res (coisa) de outro lado na quarta das questotildees
sobre o primeiro livro do ldquoPerigrave hermeneiasrdquo e conclui pela sua conveniecircncia As
disposiccedilotildees da alma (significaccedilatildeo e sentido) satildeo as mesmas em todos bem como as
coisas que elas significam enquanto as letras e vozes satildeo diferentes dependendo da
liacutengua Com outras palavras as letras e vozes que satildeo diferentes de liacutengua para liacutengua
38 ldquoVox quae non est significativa verbum dici non potestrdquo (A voz que natildeo eacute significativa natildeo pode ser dita palavra) ndash Tomaacutes de Aquino op Cit (I341) 39 ldquoLocutio est proprium opus rationis (I913 ad 3) falar -diz Tomaacutes- eacute operaccedilatildeo proacutepria da razatildeo 40 Agrave base desta concepccedilatildeo estaacute a concepccedilatildeo grega do homem aacutenthropos como zoon logon echon (vivente que tem linguagem) Nesta traduccedilatildeo o loacutegos eacute tanto ratio (pensamento) quanto oratio (fala no sentido de discurso) 41 Em Tomaacutes no acircmbito da vox situa-se a palavra (verbum) A palavra eacute uma realizaccedilatildeo especial do signo (signum) que por sua vez eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro (III604) 42 Cfr Heidegger M Vom Wesen der Sprache Die Metaphysik der Sprache und die Wesung des Wortes - Zu Herders Abhandlung ldquoUumlber den Ursprung der Spracherdquo Gesammtausgabe Band 85 p 3-4 43 Cfr idem p 20
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satildeo sinais instituiacutedos pelo arbiacutetrio humano que representam as disposiccedilotildees da alma (no
caso significaccedilatildeo e sentido) que por sua vez satildeo sinais naturais representativos das
coisas44
As expressotildees orais ou escritas satildeo formas linguiacutesticas dotadas de significaccedilotildees e
de sentido Sentidos e significaccedilotildees que satildeo pensados vecircm agrave expressatildeo Eles satildeo
exprimiacuteveis atraveacutes de formaccedilotildees linguiacutesticas Uma coisa eacute a forma linguiacutestica da
expressatildeo o complexo graacutefico ou focircnico ou como dizem os medievais as voces (vozes)
Outra coisa eacute o conteuacutedo da expressatildeo a significaccedilatildeo o sentido no juiacutezo e no
entrelaccedilamento de juiacutezos (conclusatildeo silogismo) O conteuacutedo eacute um ldquosignificatumrdquo que
estaacute intencionalmente ldquoin menterdquo45
A voz se torna expressatildeo agrave medida que eacute dotada de significaccedilotildees e de sentido
Assim a proposiccedilatildeo enquanto sequecircncia de palavras eacute singular Mas o conteuacutedo da
proposiccedilatildeo o juiacutezo ora eacute singular se o predicado eacute dito de um soacute ou universal se o
predicado eacute dito de muitos A proposiccedilatildeo como uma sequecircncia de palavras natildeo eacute
verdadeira ou falsa Ela eacute ou natildeo eacute Eacute falada ou escrita Mas natildeo eacute verdadeira ou falsa O
sentido da proposiccedilatildeo o juiacutezo eacute que eacute verdadeiro ou falso natildeo poreacutem enquanto
simples conteuacutedo da proposiccedilatildeo mas soacute agrave medida que ele tem um valor objetivaacutevel um
valor de conhecimento objetivo46 Proposiccedilatildeo e sentido palavra e significaccedilatildeo
pertencem a acircmbitos de realidade diversos Os elementos linguiacutesticos que constituem
proposiccedilatildeo e palavra satildeo sensivelmente perceptiacuteveis (satildeo acuacutesticos visuais motores)
satildeo reais e temporais Jaacute as significaccedilotildees e o sentido se subtraem a uma percepccedilatildeo
sensorial e satildeo atemporais O elemento linguiacutestico de uma expressatildeo eacute um signum ad
44 Cfr Quaestiones in I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 7) ldquoAd quaestionem dicendum quod differentia est conveniens quia passiones inquanto sunt signa et res inquanto sunt significata sunt eandem apud omnes nam eadem passio in anima apud quoscumque concipientes repraesentat eamdem rem quia eadem similitudo in anima semper est eiusdem repraesentativa sicut est similitudo sensibilis in sensu litterae et voces in se eaedem non sunt eaedem apud omnes inquanto sunt signa quia nec eadem littera apud omnes repraesentat eamdem vocem sed vel aliam vel nullam nec eadem vox apud omnes significat eamdem passionem sed vel aliam vel nullamrdquo (SCOTUS 1998 p 918) 45 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 12) ldquoAd quaestionem dici potest quod iste liber non est de decem vocibus ut de primo subiecto ndash nec aliqua pars logicae est de voce quia omnes passiones syllogismi et omnium partium eius possunt sibi inesse secundum esse quod habent in mente etsi non proferantur () sed est de aliquo priore quod respectu voces significativae tantum habet rationem significatirdquo (SCOTUS 1998 p 652) 46 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 22) ldquoSimiliter lsquosignificare verum vel falsumrsquo convenit enuntiationi sed non ut vox est significans conceptum sed ut conceptus significat remrdquo (SCOTUS 1998 p 653)
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placitum um signo instituiacutedo conforme o agrado ou o arbiacutetrio de quem o usa47 As
significaccedilotildees e os sentidos poreacutem se subtraem ao arbiacutetrio daquele que pensa por ter
a sua proacutepria necessidade ideal ou objetiva
A forma linguiacutestica eacute signo da significaccedilatildeo que por sua vez eacute signo de algo de
objetual de alguma objetualidade (objetos estados-de-coisas notas distintivas formas
reais ou categoriais) Trata-se do triacircngulo semioacutetico que constitui a base da
consideraccedilatildeo sobre a linguagem em toda a tradiccedilatildeo ocidental e que vem de Aristoacuteteles
Para Duns Scotus palavra e proposiccedilatildeo enquanto formaccedilotildees linguiacutesticas
dotadas de significaccedilatildeo e de sentido apontam para a esfera objetual A formaccedilatildeo
linguiacutestica eacute sinal da significaccedilatildeo e do sentido que eacute por sua vez sinal do objeto Enfim
palavra e proposiccedilatildeo satildeo sinais das coisas ldquoQuidquid est signum signi est signum
signatirdquo ndash o que quer que seja sinal do sinal eacute sinal do assinalado48 Assim palavra e
proposiccedilatildeo se tornam sinais das objetualidades agraves quais se referem No entendimento
de Duns Scotus o conceito eacute o que eacute designado imediatamente o objeto eacute o que eacute
designado mediatamente pela expressatildeo O doutor sutil esclarece que significare eacute dare
intelligere dar a compreender49 O signo eacute algo de relacional possui um caraacuteter ou uma
funccedilatildeo remissiva O signo graccedilas a sua funccedilatildeo remissiva eacute o fundamento material de
que parte o conhecimento do designado A expressatildeo linguiacutestica poreacutem natildeo eacute somente
um signo que remete ou se refere a algo Ele eacute um signo que significa algo ou seja que
daacute a compreender algo ou algo de algo e que ademais se refere a objetualidades
visando dizer ou seja mostrar o que se mostra e como se mostra50
47 Cfr Quaestiones super I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 14) ldquo et instrumenta naturalia formandi vocem potest homo aliqua imponere quae sunt signa ad placitum et non naturalia sive conceptusrdquo (SCOTUS 1998 p 919) 48 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 28 n 28) ldquo lsquoQuidquid est signum signi est signum signatirsquo ita quod signum intermedium non varietur in comparatione ad primum signum et ultimum signatumrdquo (SCOTUS 1998 p 751) 49 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 8 n 1) ldquoQuia significare est intellectum constituererdquo (SCOTUS 1998 p 679) 50 Assim para Husserl a expressatildeo que funde numa unidade a manifestaccedilatildeo sensiacutevel a significaccedilatildeo e a referecircncia ao objeto estaacute ordenada tanto a um valor de conhecimento quanto a um valor de verdade Agrave expressatildeo corresponde ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo se constitui uma relaccedilatildeo com o objeto Triacuteplice eacute o conteuacutedo de uma expressatildeo a significaccedilatildeo a referecircncia ao objeto e por fim o preenchimento de sentido A expressatildeo pela significaccedilatildeo e pela referecircncia ao objeto daacute a compreender alguma coisa acerca de algo O preenchimento da intenccedilatildeo signitiva vazia no modo da confirmaccedilatildeo da documentaccedilatildeo intuitiva leva por sua vez agrave experiecircncia da verdade Para Husserl expressotildees satildeo signos significativos distintos dos signos indicativos Numa descriccedilatildeo fenomenoloacutegica da expressatildeo dotada de sentido se
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No De dialectica (Da dialeacutetica) Agostinho define a palavra como um sinal de
alguma coisa que proferido por quem fala pode ser compreendido por quem escuta (De
Dialectica 5) 51 Nesta definiccedilatildeo podemos perceber as vaacuterias dimensotildees do exerciacutecio
humano da linguagem a da comunicaccedilatildeo em que homens falam uns com os outros
compartilhando suas vidas e coparticipando de um mesmo mundo a da expressatildeo em
que homens se pronunciam a partir de seu ser num mundo comum o discurso pelo
qual homens falam uns com os outros e escutam uns aos outros a compreensatildeo e
interpretaccedilatildeo em que homens ouvindo uns aos outros recebem a mensagem e se
apropriam de seu sentido Como ponta do ldquoicebergrdquo de toda esta vitalidade do concurso
comunicativo e do discurso temos o sinal que eacute proferido por quem fala o som da boca
a voz que longe de ser um mero ruiacutedo eacute um sinal um signo e se sinal eacute sinal de
alguma coisa ou seja algo vem a ser significado por este signo ou sinal
podem evidenciar trecircs momentos que no entanto formam uma unidade intimamente fundida a apariccedilatildeo fiacutesica da expressatildeo o ato doador de sentido e o ato preenchedor de sentido Assim palavras e proposiccedilotildees satildeo sons articulados animados de sentido Agraves expressotildees satildeo essenciais os atos que conferem a significaccedilatildeo respectivamente as intenccedilotildees de significaccedilatildeo A estes atos se acrescentam de modo extra-essencial os atos que preenchem as significaccedilotildees confirmando reforccedilando ilustrando as intenccedilotildees de significaccedilatildeo Para que o signo se torne expressatildeo eacute preciso que lhe seja imposto uma significaccedilatildeo Husserl fala de emprestar significaccedilatildeo de conferir sentido Expressotildees satildeo unidades de signos e designados (sinais e assinalados) de espeacutecie bem peculiar Expressotildees satildeo sinais significativos A significaccedilatildeo adere ao ato significativo Com a expressatildeo que suscita o ato que confere o sentido nos orientamos ao objeto Agrave expressatildeo compete ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo eacute que se constitui a relaccedilatildeo com o objeto ldquoToda e qualquer expressatildeo natildeo quer apenas dizer qualquer coisa mas tambeacutem diz algo acerca de qualquer coisa ela natildeo tem apenas a sua significaccedilatildeo mas refere-se tambeacutem a quaisquer objetosrdquo (HUSSERL 2012 p 38 ndash grifo de Husserl) Assim significaccedilatildeo e referecircncia objetiva se distinguem Expressotildees podem ter a mesma significaccedilatildeo mas objetos diferentes por um lado e por outro podem ter significaccedilotildees diferentes mas o mesmo objeto Assim considerando dois enunciados ldquoeste sendeiro eacute um cavalordquo e ldquoBuceacutefalo eacute um cavalordquo a expressatildeo um cavalo tem a mesma significaccedilatildeo mas os objetos satildeo diferentes Por sua vez dois nomes podem significar coisas diferentes mas nomear o mesmo como no exemplo ldquoO vencedor de Iena - O vencido de Waterloordquo Significaccedilatildeo e referecircncia objetiva no entanto estatildeo em iacutentima conexatildeo A expressatildeo se refere ao objeto por meio da significaccedilatildeo Uma expressatildeo adquire um referimento ao objeto pelo simples fato de que esta significa algo Por isso eacute que dizemos que uma expressatildeo designa ou denomina algo por meio do seu significado ou seja o ato de significar eacute o modo determinado de intencionar o objeto em questatildeo soacute que justamente este modo de intencionar e portanto o significado mesmo pode variar enquanto permanece idecircntica a direccedilatildeo para o objeto Se considerarmos pois os trecircs momentos que se fundem numa unidade na expressatildeo temos aquilo que de modo equiacutevoco se chama o expressado da expressatildeo ldquoOs termos em relaccedilatildeo ndash manifestaccedilatildeo significaccedilatildeo e objeto ndash pertencem essencialmente a toda e qualquer expressatildeo Em cada uma qualquer coisa eacute manifestada qualquer coisa eacute significada e qualquer coisa eacute nomeada ou de algum modo designada E no discurso equiacutevoco tudo isto se diz lsquoexpressorsquordquo 51 Idem p 14
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No escrito sobre a dialeacutetica Agostinho trata de quatro elementos desta arte o
verbum o dicibile52 a dictio53 e a res Vejamos como Agostinho expotildee o nexo entre estes
quatro elementos
Ora porque as palavras (verba) satildeo sinais das coisas (signa rerum) quando se ocupam com as coisas enquanto satildeo sinais das palavras (signa verborum) quando se discute sobre palavras ndash pois sobre palavras natildeo podemos falar a natildeo ser com palavras e quando falamos natildeo falamos a natildeo ser de coisas ndash ocorre agrave mente que as palavras satildeo sinais das coisas sem deixar de ser coisas
Quando pois a palavra sai da boca se sai por causa de si mesma isto eacute para que acerca dela se inquira ou se discuta haacute certamente uma coisa que eacute sujeita a discussatildeo e a investigaccedilatildeo mas justamente esta coisa eacute chamada palavra
E o que quer que a partir da palavra natildeo os ouvidos mas a mente (animus) percebe (sentit) e que a mente mesma manteacutem incluiacuteda em si se chama dicibile54 Quando poreacutem a palavra sai natildeo por causa de si mesma mas para significar algo de outro chama-se dictio55 E a coisa mesma que natildeo eacute uma palavra nem ainda uma concepccedilatildeo da palavra na mente seja que tenha uma palavra com a qual possa ser significada seja que natildeo a tenha daqui por diante natildeo eacute chamada com nome apropriado de outro modo do que de coisa
Estes quatro hatildeo de ser mantidos distintamente portanto a palavra (verbum) o dicibile a dictio a coisa Aquilo que defini como palavra eacute uma palavra e significa a palavra Aquilo que defini dicibile eacute uma palavra e todavia natildeo significa a palavra mas aquilo que graccedilas agrave palavra se compreende e estaacute contido na mente Aquilo que eu defini dictio eacute uma palavra mas uma palavra que significa contemporaneamente as outras duas ou seja a palavra mesma e aquilo que se faz na mente atraveacutes da palavra Aquela que eu defini como coisa eacute uma palavra que significa tudo aquilo que fica fora das trecircs que foram ditas
52 Seria o λεκτόν (lektoacuten) dos estoicos 53 Seria a λέξις (leacuteksis) dos estoicos 54 O exprimiacutevel ou melhor o diziacutevel no sentido do mostraacutevel 55 A expressatildeo o dito do dizer
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Depois destas digressotildees necessaacuterias para aclararmos o que estaacute em questatildeo
voltemos ao livro II do ldquoDe Doctrina Christianardquo de Agostinho Retomemos a sua
consideraccedilatildeo a respeito do signo
Haacute dois tipos de signos os naturais e os convencionais Os naturais datildeo a
conhecer por si proacuteprios alguma coisa aleacutem do que satildeo em si Assim fumaccedila eacute signo
de fogo Os signos convencionais (data signa) satildeo todos aqueles que os seres vivos em
especial o ser humano mutuamente se trocam para manifestar ndash o quanto lhes eacute
possiacutevel ndash os movimentos de sua alma tais como as sensaccedilotildees e os pensamentos Os
signos podem se dar em referecircncias a todos os sentidos a maioria dos signos poreacutem
se referem agrave audiccedilatildeo ou agrave visatildeo Dentre estes signos mais usuais e importantes satildeo os
signos verbais que satildeo sons significativos que se articulam mediante a voz humana
constituindo a palavra falada Os signos escritos poreacutem mostram os signos verbais de
maneira visiacutevel (e natildeo audiacutevel como fazem os signos falados)
A liacutengua eacute a realizaccedilatildeo concreta da linguagem humana mediante o uso de signos
verbais falados ou escritos As Sagradas Escrituras indicam pela histoacuteria da Torre de
Babel que liacutengua e linguagem sofrem com a decadecircncia do espiacuterito humano causada
pela soberba56 O contraacuterio da histoacuteria de Babel eacute poreacutem a histoacuteria de Pentecostes
narrada no livro dos Atos dos Apoacutestolos que aponta para a comunhatildeo do amor e o
muacutetuo entendimento entre os homens propiciado com o dom do Hagioacutes Pneuma
(Sopro Sagrado Espiacuterito Santo)
56 Na histoacuteria narrada pelo livro do Gecircnesis os homens se unem para erguer uma torre que una a terra ao ceacuteu a partir das proacuteprias forccedilas e da proacutepria engenhosidade Nos povos antigos encontramos monumentos que evocam algo disso O desejo do homem de uniatildeo entre o ceacuteu e a terra se manifesta nos zigurates da mesopotacircmia nas piracircmides das altas culturas das pedras (Egito Peru Meacutexico) nas estupas asiaacuteticas e quiccedilaacute em tempos mais primitivos aos dolmens menires nas cacircmaras funeraacuterias e nos obeliscos Junto com o esforccedilo de o homem erguer-se a si mesmo como homem erguendo pedras haacute o esforccedilo tambeacutem de alcanccedilar a vida dos imortais dos deuses tolhendo a proacutepria finitude Babel que era para ser a ldquoporta dos deusesrdquo (babilani) se torna poreacutem o lugar da confusatildeo (balal = confundir) O mundo se torna assim uma ldquoBabilocircniardquo isto eacute o lugar da confusatildeo em que os homens natildeo conseguem chegar ao entendimento muacutetuo Somente em Pentecostes em Jerusaleacutem celebra-se plenamente a superaccedilatildeo desta divisatildeo e desta confusatildeo em que as liacutenguas natildeo satildeo mais confusas e em que a linguagem do amor ardente une os homens e propicia-lhes a chance do entendimento muacutetuo e da verdadeira concoacuterdia uma concoacuterdia para o bem em favor de Deus
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Aquele vento purificava os coraccedilotildees da palha carnal aquele fogo consumia o feno da antiga concupiscecircncia aquelas liacutenguas em que falavam os que estavam plenos do Espiacuterito Santo prefiguravam a futura Igreja mediante liacutenguas de todos os povos Pois assim como depois do diluacutevio a soberba impiedade dos homens edificou uma grandiosa torre contra o Senhor ocasiatildeo na qual o gecircnero humano mereceu ser dividido pela diversidade das liacutenguas de modo que cada naccedilatildeo falasse sua proacutepria liacutengua para natildeo ser entendido pelas demais assim a humilde piedade dos fieis reduziu a diversidade de liacutenguas agrave unidade da Igreja de maneira que aquilo que a discoacuterdia tinha dispersado o reunisse a caridade e assim os membros dispersos do gecircnero humano qual membros de um mesmo corpo fossem reintegrados agrave unidade de uma uacutenica cabeccedila que eacute Cristo e fundidos na unidade do corpo santo mediante o fogo do amor57
O maior sinal da comunhatildeo do amor eacute quando os homens conseguem falar uns
com os outros e se entender Embora sejam diferentes e falem liacutenguas diferentes falam
a partir de uma mesma linguagem a do amor-caridade (gratuidade) As liacutenguas se
tornam entatildeo como labaredas do amor As falas satildeo entatildeo falas inflamadas de um fogo
divino brilhantes e ardentes divinamente apaixonadas entusiasmadas O amor eacute o que
possibilita manter esta identidade na diferenccedila Cria-se uma identidade comum mas
sem desfazer antes protegendo as diferenccedilas Eacute o milagre das liacutenguas O contraacuterio de
Babel Recriaccedilatildeo do homem humano e da humanidade universal
Assim os homens podem voltar agrave linguagem comum apesar da diversidade das
liacutenguas unindo suas vontades no empenho de conhecer e realizar a vontade de Deus A
serviccedilo deste intento estatildeo as Sagradas Escrituras Estas satildeo obra do proacuteprio Deus que
usou de hagioacutegrafos inspirados para expressar a sua vontade na linguagem humana
mediante as diversas liacutenguas Os que leem as Sagradas Escrituras natildeo desejam encontrar
nelas mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram e desse modo chegar
a conhecer a vontade de Deus segundo a qual ordem esses homens compuseram
Entretanto o leitor das Sagradas Escrituras vai se deparar continuamente com
ambiguidades e obscuridades Para Agostinho estas fazem parte da proacutepria natureza das
Escrituras Sagradas Haacute um certo quecirc de hermeacutetico de enigmaacutetico de obscuro nelas
57 Sermatildeo 271
25
Mas eacute justamente isto que desafia a compreensatildeo e que a faz crescer na busca da
vontade divina As obscuridades e ambiguidades natildeo satildeo inuacuteteis Elas vencem o orgulho
do homem que se aproxima dos misteacuterios divinos sem reverecircncia e sem devoccedilatildeo Por
outro lado elas premunem o espiacuterito do fastio e do teacutedio que a facilidade sempre trazem
consigo As dificuldades de interpretaccedilatildeo cria-nos o gosto pelo exerciacutecio da
compreensatildeo na sua aventura de conquista do sentido Contudo natildeo se deve ter a
pretensatildeo de que se pode chegar a uma clareza que elimine toda sombra e obscuridade
A clareza do misteacuterio que se desvela sempre traz o veacuteu do pudor em que o misteacuterio
mesmo se encobre e assim se resguarda Os significados hauridos seratildeo sempre acenos
do inefaacutevel na medida em que o misteacuterio santo se deixa captar no horizonte do sentido
Uma vez que as Sagradas Escrituras satildeo linguagem do misteacuterio santo do Deus
absconditus (Deus escondido) que se re-vela (desvela e vela ao mesmo tempo) na
finitude da linguagem humana o leitor vai se deparar com desafios sempre novos
Agostinho recorre entatildeo agrave alegorese seguindo neste ponto a tradiccedilatildeo dos
alexandrinos As alegorias possuem encanto todo especial capaz de falar natildeo somente
ao entendimento mas tambeacutem ao coraccedilatildeo dos homens Com efeito a linguagem
imageacutetica concreta tem maior poder de comunicaccedilatildeo vital do que a linguagem
conceitual abstrata O uso de comparaccedilotildees leva o leitor a aprender mais
espontaneamente (libenter) As dificuldades de interpretaccedilatildeo levam-no a aprender com
maior prazer (gratius) As passagens obscuras das Escrituras aguccedilam a fome de
compreensatildeo do leitor Entretanto Agostinho daacute uma indicaccedilatildeo metodoloacutegica de leitura
importante para ir abrindo a compreensatildeo das Escrituras ganhar familiaridade com as
passagens claras e inequiacutevocas e com isso iluminar as passagens obscuras e
enigmaacuteticas Com efeito diz ele quase nada sobressai nas obscuridades que natildeo esteja
escrito mais claramente em outro lugar
Aquele que lecirc as Sagradas Escrituras procurando nelas a vontade divina eacute algueacutem
que estaacute a caminho numa viagem para a paacutetria da beatitude eterna Este caminhar
comporta determinado itineraacuterio no qual o homem vai se dispondo cada vez mais ao
Espiacuterito de Deus e ao seu modo de operar na alma os seus dons Eacute na medida que se
aproxima da Sabedoria do Espiacuterito que o leitor lecirc com maior proveito e profundidade as
26
Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
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Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
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Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
29
Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
30
(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
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O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
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Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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cridos) Agostinho trata do ldquoethosrdquo do viver cristatildeo seguindo ainda pelo fio condutor
do ldquouti et fruirdquo (usar e fruir) O essencial do ethos cristatildeo eacute o duplo preceito do amor a
Deus e ao proacuteximo O ethos do viver cristatildeo se instaura segundo a ldquoOrdo dilectionisrdquo
(ordem da dileccedilatildeo ou do amor) A identidade do cristatildeo consiste no seu modo de amar23
Igualdade e o ser do Espiacuterito Santo na harmonia da unidade e da igualdade Natildeo obstante natildeo se trata de trecircs seres mas de um uacutenico Ser Agostinho estaacute ciente da limitaccedilatildeo do entendimento no vigor do silecircncio que se recolhe diante do misteacuterio divino do Deus uno e trino arcano fundamental da feacute cristatilde Deus eacute antes de tudo o inefaacutevel Quando a mente humana cogita acerca do misteacuterio divino que se doa ao se retrair ela busca captar uma realidade transcendental a mais proacutexima visto ser a mais iacutentima mais iacutentima a noacutes que noacutes mesmos e ao mesmo tempo a mais distante (inacessiacutevel justamente em virtude desta proximidade) Eacute esta realidade primeira que institui todo o real quer nas suas realizaccedilotildees sensiacuteveis quer nas inteligiacuteveis Percorrendo-se os diversos niacuteveis de constituiccedilatildeo da vida chega-se agravequela Vida que se define como Sabedoria imutaacutevel isto eacute sempre idecircntica consigo mesma O Deus vivo que eacute o Vivente por excelecircncia eacute o anseio mais profundo da alma humana Contemplaacute-lo e fruir da sua bondade e beleza eacute a beatitude do homem Contudo para que o homem possa chegar agrave visatildeo e fruiccedilatildeo de Deus eacute necessaacuteria a purificaccedilatildeo interior ao longo de sua vida que aparece como um caminho uma viagem uma travessia de retorno agrave paacutetria Esta purificaccedilatildeo se daacute mediante o bom empenho os bons desejos e os costumes No entanto natildeo podemos ir agrave Sabedoria se ela natildeo se dispotildee a vir a noacutes adaptando-se agrave fraqueza dede nossa condiccedilatildeo carnal isto eacute finita fraacutegil decadente mortal No entanto esta Sabedoria que se encarna na realidade da vida faacutetica humana foi rejeitada por muitos como fraqueza e loucura Eacute o misteacuterio da keacutenosis (esvaziamento) do rebaixamento do Filho de Deus o Verbo que se fez carne e atendou entre os homens Mas eacute justamente por esta fraqueza e loucura divina manifestada na encarnaccedilatildeo e na paixatildeo do Verbo humanado Jesus Cristo que acontece a redenccedilatildeo isto eacute a libertaccedilatildeo e a salvaccedilatildeo de todos os homens Nele a Sabedoria cura o homem impregnado de fraqueza e mergulhado na loucura O homem usou mal do dom da imortalidade e caiu na morte Cristo usou bem de nossa mortalidade e isso devolveu ao homem o acesso agrave plenitude da vida Atraveacutes dos misteacuterios da vida de Cristo isto eacute dos misteacuterios de sua encarnaccedilatildeo de sua paixatildeo e tambeacutem de sua ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo com o consequente envio do Espiacuterito Santo os homens satildeo fortalecidos na feacute e avivados no conhecimento Nestes misteacuterios os que creem consideram o quatildeo livremente Cristo deu sua vida pelos homens ele que possuiacutea o poder de retomaacute-la Aqueles que favorecidos pela graccedila da redenccedilatildeo creram no Filho de Deus encarnado e crucificado como Senhor (o Ressuscitado) formam um soacute corpo constituindo deste modo a realidade da Igreja Esta eacute a esposa de Cristo Atraveacutes dos sacramentos ela se purifica para vir se unir ao Esposo Cristo Jesus na eternidade apresentando-se diante dele sem manchas nem rugas Eacute no interior desta Igreja que os homens satildeo gerados para a semelhanccedila com Cristo e recebem o perdatildeo dos pecados (batismo) Desta mesma Igreja recebem a feacute na ressurreiccedilatildeo do corpo e na vida eterna Estes misteacuterios e arcanos cristatildeos satildeo acolhidos pelo homem que estaacute a caminho da paacutetria (a vida eterna) Neste caminho o crente sempre de novo morre para o mundo e vive para Deus Verdade e Vida 23 O homem haacute de amar a Deus por causa dele proacuteprio As criaturas em contrapartida satildeo amadas agrave medida que ajudam o homem a crescer no amor de Deus O amor a si mesmo e ao proacuteprio corpo eacute uma lei natural e por isso natildeo requer nenhum preceito (mandamento) Mas o amor ao que estaacute ao seu lado (o proacuteximo) e o amor ao que estaacute acima dele (Deus) requer preceito Haacute no entanto um falso e um verdadeiro amor de si proacuteprio O verdadeiro amor de si consiste em buscar o que eacute uacutetil e salutar para si mesmo crescendo na caridade (o amor gratuito a Deus e ao proacuteximo) O falso amor de si consiste em submeter o proacuteximo e o proacuteprio corpo a fim de fruir deles Quanto ao amor ao proacuteprio corpo Agostinho relembra a citaccedilatildeo do Apoacutestolo (Paulo) que diz ldquoningueacutem jamais quis mal agrave sua proacutepria carnerdquo (Ef 5 29) Mesmo os que reconhecem sadiamente a necessidade da ascese fazem-no para submeter o corpo ao espiacuterito segundo a ordem da natureza buscando assim a paz e a harmonia O preceito da caridade eacute duplo exige o amor a Deus acima de tudo e o amor ao proacuteximo como a si mesmo A partir do duplo amor natural e do duplo preceito da caridade descobre a ldquoOrdo Dilectionisrdquo (ordem da dileccedilatildeo isto eacute do amor) Ordem implica numa estruturaccedilatildeo em niacuteveis neste caso em niacuteveis de dignidade A ordenaccedilatildeo do amor eacute instaurada quando o homem ama o que deve ser amado (o bem) e natildeo ama o que natildeo deve ser amado (o mal o viacutecio o pecado) Depois quando o homem ama menos o que eacute menos digno de amor (o corpo)
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O amor (dilectio caritas) eacute o princiacutepio que rege toda a vida humana na perspectiva da
feacute cristatilde24 O duplo preceito do amor (a Deus e ao proacuteximo) eacute aqui a norma universal e
primordial que rege toda a ordem do viver O amor a Deus acima de tudo e o amor ao
proacuteximo eacute a essecircncia a substacircncia da revelaccedilatildeo divina (ldquoa Lei e os Profetasrdquo) que foi
radicalizada e consumada em Jesus Cristo no seu novo e eterno testamento
(testemunho) Daiacute se segue que a edificaccedilatildeo da caridade eacute a norma reacutegia e suprema de
toda a interpretaccedilatildeo das Sagradas Escrituras25 Para o homem que atingiu a perfeiccedilatildeo
do amor (caridade perfeita) as Sagradas Escrituras deixam de ser necessaacuterias uma vez
que toda a finalidade delas eacute levar o homem agrave perfeiccedilatildeo do amor (caridade perfeita)
Deste modo as Escrituras Sagradas requerem um leitor que entenda que o fim de tudo
o que ali estaacute escrito eacute a caridade perfeita consumada que aparece concreta e
historicamente em Jesus Cristo o Deus encarnado (humanado) e crucificado A feacute e a
esperanccedila satildeo outras duas virtudes que ajudam o homem a crescer e se perfazer na
perfeiccedilatildeo da caridade no seguimento de Jesus Cristo O essencial do ser cristatildeo se
encontra neste seguimento
Depois quando ama igualmente o que eacute igualmente digno de amor (o proacuteximo) Por fim quando ama absolutamente o que eacute absolutamente digno de ser amado (Deus) Ao amor de Deus assim deve se subordinar e convergir todo amor pela criatura O preceito do amor aleacutem disso comporta universalidade isto eacute ningueacutem eacute dele excluiacutedo A boa vontade do amor se estende a todos mesmo ao inimigo O amor de Deus pelo homem eacute gratuito visto que Deus natildeo precisa do homem mas se basta a si mesmo Seu amor eacute pura gratuita absoluta bondade O grau de perfeiccedilatildeo de um homem depende do grau de perfeiccedilatildeo e da universalidade de seu amor O ser do homem se determina pelo seu amor O homem eacute o que ele ama e como ele ama Ele cresce no ser se cresce na perfeiccedilatildeo (e na universalidade) do amor Ele diminui no ser se decresce na capacidade de amar O homem pode encontrar deleite nos outros homens quando estes o ajudam a crescer no amor a Deus Eacute quando se ama e se gosta do outro em Deus Os homens podem e devem constituir uma fraternidade no amor ajudando-se mutuamente a prosseguir seu itineraacuterio para Deus Nenhuma homem pode se considerar fim absoluto do amor do outro Ele natildeo eacute o destinataacuterio uacuteltimo do amor do outro Eacute apenas companheiro na viagem da vida e como tal haacute de ser amado Neste itineraacuterio para Deus Cristo eacute o caminho a verdade e a vida isto eacute ele eacute aquele por quem o homem vai aquele a quem o homem alcanccedila e em quem ele permanece no amor 24 Cf Arendt Hanna O conceito de amor em Santo Agostinho Ensaio de interpretaccedilatildeo filosoacutefica Lisboa Instituto Piaget 1997 25 Para o ldquohomo viatorrdquo (homem a caminho) a feacute nas Escrituras fortalece a feacute a esperanccedila e a caridade Nestas trecircs virtudes teologais se encerram e se subsumem toda a ciecircncia e toda a profecia A caridade permanece para sempre enquanto que a feacute e a esperanccedila se extinguem quando o homem chega a seu destino (a Paacutetria o Reino dos Ceacuteus) A caridade visa um bem eterno Se os bens temporais satildeo amados antes de serem possuiacutedos pois ao serem conquistados natildeo saciam a alma na sua sede do absoluto bem o bem eterno eacute o que eacute amado com tanto mais ardor ao ser possuiacutedo do que fora ao ser desejado pois a ningueacutem que a deseja a beatitude concedida eacute menor do que a desejada
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O livro II eacute um verdadeiro tratado de semiologia26 Todo o pensamento a respeito
da linguagem do ocidente se baseia no triacircngulo semioacutetico signo conceito coisa A base
desta concepccedilatildeo de Aristoacuteteles Ela eacute exposta no ὶ ἑί (perigrave hermeneiacuteas)
ldquoDe interpretationerdquo (16a 3-8)
Satildeo pois aquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz siacutembolos das paixotildees (afecccedilotildees disposiccedilotildees) na alma e as coisas que satildeo escritas satildeo siacutembolos daquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz E assim como as coisas escritas natildeo satildeo as mesmas para todos do mesmo modo tambeacutem os sons da voz natildeo satildeo os mesmos Aquelas coisas de que isso (coisas escritas e sons da voz) satildeo primordialmente signos (coisas que mostram) satildeo para todos (os homens) as mesmas paixotildees da alma e as coisas das quais estas (paixotildees da alma) formam apresentaccedilotildees assemelhadas satildeo igualmente as mesmas27
O texto de Aristoacuteteles se manteacutem numa fala esclarecida e soacutebria que torna
visiacutevel a claacutessica estruturaccedilatildeo que abriga a linguagem como discurso ou fala As letras
do alfabeto28 mostram os fonemas29 Os fonemas mostram as disposiccedilotildees na alma30 As
disposiccedilotildees na alma mostram as coisas que que lhe con-cernem31 O mostrar configura
e sustenta as escoras dessa construccedilatildeo De maneira variada o mostrar conduz algo para
um aparecer deixando assim apreender o que aparece e permitindo que se discuta o
que se apreende
26 A semiologia (ou semioacutetica) eacute a ciecircncia dos signos Como os signos verbais tecircm na vida humana um papel de primeiro plano a semiologia se concentrou em grande parte na linguagem Haacute uma semiologia nas especulaccedilotildees linguiacutestica da antiguidade entre os modistas da Idade Meacutedia etc Mas o nome ldquosemioacuteticardquo surge na modernidade com Locke Torna-se poreacutem uma disciplina independente na obra do filoacutesofo americano Charles Sanders Peirce (1839-1914) 27 A traduccedilatildeo entende os σημεῖα (semeia ndash os signos aquelas coisas que mostram) os σύμβολα (symbola - os siacutembolos ndash o que eacute lanccedilado junto e nessa junccedilatildeo deixa e faz com que um se atenha ao outro) e os ὁμοιώματα (homoioacutemata ndash as apresentaccedilotildees assemelhadas as semelhanccedilas) como um mostrar no sentido de deixar aparecer o que por sua vez encontra-se no acircmbito do desencobrimento (αλήθεια ndash aleacutetheia) 28 τὰ γραφόμενα ndash taacute graphoacutemena 29 τὰ ἐν τῇ φωνῇ - taacute en te phoneacute 30 παθήματα τῆς ψυχῆς ndash patheacutemata tecircs psykhecircs 31 πράγματα - praacutegmata
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Antes de nos apropriarmos da semiologia de Agostinho tentemos aqui uma
consideraccedilatildeo fenomenoloacutegica sobre o sinal e a linguagem
O falar acontece por mor do dizer Dizer eacute mostrar O falar enquanto dizer se
realiza como um discurso mostrador loacutegos apophaacutentikoacutes32 O falar estaacute a serviccedilo do
dizer Dizer eacute mostrar no sentido de deixar e fazer ver a quem se fala aquilo de que se
fala Dizer eacute dar algo a compreender eacute fazer-se compreender sobre algo a quem escuta
O mostrar no falar acontece como um conceder acenos dar indiacutecios oferecer
indicaccedilotildees oferecer sinais33 Mas tudo isso acontece no sentido de um anunciar que se
cumpre como um revelar um divulgar um mencionar (fazer menccedilatildeo de referir relatar
expor narrar) um lembrar um recordar e um comemorar O anunciar eacute entendido pois
pelos gregos como um mostrar deiknymi34 O sinal eacute uma referecircncia uma remissatildeo O
remeter proacuteprio do sinal consiste em mostrar O mostrar do sinal se funda na referecircncia
na remissatildeo Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo No entanto
Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo eacute uma referecircncia Toda lsquoaccedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma referecircncia mas nem toda referecircncia mostra Com isso tambeacutem se diz toda accedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo mostra Assim aparece o caraacuteter formal e geral da relaccedilatildeo Para se investigar os fenocircmenos de referecircncia sinal e significado de nada adianta caracterizaacute-los como relaccedilatildeo Deve-se em uacuteltima instacircncia mostrar que a proacutepria lsquorelaccedilatildeorsquo devido a seu
32 O loacutegos eacute um reunir e um recolher (leacutegein) que potildee expotildee e depotildee abre e manifesta traz ao desencobrimento agrave revelaccedilatildeo Como abrir e manifestar leacutegein estaacute em contraste com krypto cobrir encobrir esconder ocultar no sentido de guardar Conhecemos um fragmento de Heraacuteclito (fr 93) que traz este contraste Ele diz Ho aacutenax hou tograve manteion esti tograve en Delphois oute leacutegei oute kryptei allagrave semainei ndash O Autor de quem eacute o oraacuteculo de Delfos natildeo traz ao desencobrimento nem encobre mas acena 33 Semainein eacute um conceder semata (acenos indiacutecios indicaccedilotildees) A palavra grega no singular eacute ldquosemardquo indiacutecio vestiacutegio marca distintiva senha sinal ldquoSemardquo eacute tambeacutem pressaacutegio auguacuterio auspiacutecio Eacute ainda o astro ou uma constelaccedilatildeo da qual se tiram indicaccedilotildees na orientaccedilatildeo concernente ao ceacuteu Eacute por fim o tuacutemulo a tumba 34 Da mesma raiz de ldquodeiknymirdquo (mostrar) eacute o verbo latino ldquodicererdquo dizer Dizer eacute mostrar isto eacute deixar e fazer ver trazer agrave evidecircncia alguma coisa O sinal pois no falar precisa ser entendido na dinacircmica do dizer isto eacute do mostrar
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caraacuteter formal geral tem sua origem ontoloacutegica numa referecircncia35
Haacute uma multiplicidade de sinais anuacutencios prenuacutencios vestiacutegios marcas
distintivos cuja accedilatildeo de mostrar difere a cada caso Satildeo sinais diferentes o rastro o
resto o monumento o documento o testemunho o siacutembolo a expressatildeo a
manifestaccedilatildeo a significaccedilatildeo O sinal tem a sua serventia no mostrar no sentido de fazer
sobressair de dar na vista salientar fazer reparar estranhar alguma coisa Aquilo que
normalmente natildeo causa surpresa eacute ressaltado pelo sinal O sinal permite a descoberta
de alguma coisa
O mundo eacute o ldquoonderdquo das descobertas O homem se orienta se dirige se
direciona em seus comportamentos com as coisas com os entes agrave matildeo a partir de uma
familiaridade com o mundo A abertura de mundo se daacute como compreensatildeo Trata-se
poreacutem de uma compreensatildeo operativa natildeo teoacuterica Compreender significa aqui reunir
as remissotildees recolher as referecircncias O caraacuteter de remissatildeo das remissotildees das
referecircncias eacute o que se chama de significar Significar (be-deuten) eacute aqui mostrar
(deuten) no sentido de pocircr a caminho um clarear um esclarecer Eacute o processo e o
movimento de estruturaccedilatildeo do mundo Significar eacute aqui oferecer alguma coisa para a
compreensatildeo e para a interpretaccedilatildeo Significacircncia (Bedeutsamkeit) eacute o todo das
remissotildees do acontecimento e do processo do significar que eacute a estruturaccedilatildeo de
mundo Noacutes nos encontramos a noacutes mesmos jaacute sempre no mundo entendendo o mundo
antes de tudo como uma totalidade de significacircncias Eacute um encontrar-se a si mesmo
sempre numa situaccedilatildeo de ocupaccedilatildeo e preocupaccedilatildeo de cuidado com o proacuteprio ser-no-
mundo Tudo aquilo com que podemos nos relacionar e comportar tem este caraacuteter
estaacute aiacute e eacute encontrado no caminho do cuidado eacute experimentado como significativo a
partir de um determinado cuidado Significacircncia indica este modo fundamental como
algo segundo o seu teor proacuteprio eacute encontrado na vida como ele se deteacutem e se reteacutem
no meio do mundo da vida
Soacute acontece linguagem onde noacutes falamos uns com os outros A linguagem
acontece de iniacutecio e na maior parte das vezes na conversa com suas falas e seus
silecircncios Para noacutes isto eacute na ordem da nossa experiecircncia cotidiana a primeira
35 Heidegger M Ser e Tempo sect 17
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dimensatildeo pois da linguagem eacute a fala o discurso O discurso traz agrave fala uma
compreensatildeo Chamamos de sentido o que pode ser articulado O sentido eacute o que torna
compreensiacutevel algo enquanto algo Compreender eacute fundamentalmente apreender algo
enquanto algo Tudo que apreendemos se mostra a si mesmo como isso ou aquilo Isso
quer dizer noacutes aprendemos cada coisa em sua significacircncia A percepccedilatildeo natural em
que noacutes vivemos cotidianamente jaacute eacute sempre uma compreensatildeo uma captaccedilatildeo da coisa
como esta coisa do sapato como sapato do livro como livro do reloacutegio como reloacutegio
Natildeo eacute assim que eu primeiro apreendo uma coisa na sua nua e crua factualidade e
depois lhe atribuo este ou aquele significado Cada vez eu apreendo uma coisa como
tal coisa isto eacute eu apreendo a coisa dentro de uma determinada significacircncia36
A coisa que me vem ao encontro dentro do mundo se mostra como isto ou
aquilo37 Ela instaura um conjunto de referecircncias ela remete a isto ou aquilo ela soa
desta ou daquela maneira em meu mundo ela fala disto ou daquilo em minha vida A
coisa significa a si mesma Mas o seu poder significar a si mesma soacute eacute possiacutevel porque
ela jaacute eacute descoberta como coisa que vem ao encontro dentro do mundo isto eacute dentro de
uma totalidade de sentido Que a coisa se faccedila encontrar e descobrir deste ou daquele
modo e que ela se decirc a compreender como isto ou aquilo ndash isto soacute eacute possiacutevel porque ao
apreendecirc-la numa percepccedilatildeo concreta um mundo jaacute se me abriu Com a coisa se
anuncia o mundo da vida ou melhor os mundos da vida o mundo circunstante o
mundo partilhado da convivecircncia o mundo proacuteprio pessoal A coisa soacute pode ser
apreendida na sua significacircncia a partir da abertura do mundo ou dos mundos
Perceber eacute jaacute compreender as coisas na sua significacircncia Perceber eacute estruturar
e configurar o mundo como estrutura significativa Em toda percepccedilatildeo atua pois um
ato fundamental de significaccedilatildeo Chamamos de significar o ato pelo qual o homem
estrutura a significacircncia das coisas no horizonte do mundo enquanto totalidade
significativa Da compreensatildeo que articula a significaccedilatildeo das coisas numa totalidade
sentido brota a possibilidade da interpretaccedilatildeo Pela compreensatildeo o homem estaacute
sempre se projetando abrindo lances de perspectivas entrevendo de antematildeo
36 Cfr M HEIDEGGER GP 102-110 37 Cfr M HEIDEGGER Ontologie (Hermeneutik der Faktizitaumlt) (OHF) Gesamtausgabe ndash Band 63 Vittorio Klostermann Frankfurt am Main 1995 p 93-104
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aberturas de possibilidades Pela compreensatildeo o homem opera um ver que eacute projetivo
e criativo de possibilidades de ser Esse ver projetivo e criativo configura isto eacute elabora
em formas significativas essas possibilidades de ser Agrave elaboraccedilatildeo e exposiccedilatildeo dessas
formas chamamos de interpretaccedilatildeo Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo se apropria do
que compreende Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo busca chegar a uma maturaccedilatildeo
isto eacute busca maturar as possibilidades de ser que ela jaacute entreviu A interpretaccedilatildeo eacute uma
explicitaccedilatildeo da compreensatildeo O que entra como componente da explicitaccedilatildeo possui o
caraacuteter de significacircncia eacute o mostrar-se de algo como algo Em todo o nosso
comportamento noacutes jaacute estamos sempre compreendendo e interpretando apreendendo
algo como algo e referindo algo a algo articulando significados numa totalidade de
sentido que eacute o mundo O homem sempre interpreta Pois interpretar eacute ser homem
A articulaccedilatildeo dos significados numa totalidade de sentido se daacute atraveacutes do falar
quer do falar de si consigo mesmo quer do falar uns com os outros Na fala noacutes
pronunciamos o que compreendemos e como interpretamos o que estaacute em questatildeo Pro-
nunciar eacute pro-ferir isto eacute trazer agrave luz ao aberto do mundo da convivecircncia aquilo que
compreendemos e interpretamos Pelo discurso vecircm agrave fala os entes e o ser dos entes
tais como se oferecem agrave nossa compreensatildeo e interpretaccedilatildeo Vem agrave fala agrave medida que
se articulam num horizonte de compreensibilidade que noacutes chamamos de sentido O
sentido eacute o que se articula na compreensatildeo e interpretaccedilatildeo como horizonte daquilo que
compreendemos e interpretamos Todo discurso eacute o pronunciar o vir agrave fala daquilo que
compreendemos e interpretamos dos significados das coisas agrave luz do sentido de ser que
noacutes lhes damos
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Os medievais iratildeo precisar e aprofundar a concepccedilatildeo de signo Assim para
Tomaacutes de Aquino o signum eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro
A palavra proferida exteriormente pela voz eacute a fala A fala eacute proferida a modo de uma
voz articulada significativa Nem todo o som eacute voz A voz enquanto haacutelito sopro som
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que sai da boca com efeito soacute chega a ser palavra quando eacute significativa38 Sem a
significaccedilatildeo (significatio) uma voz natildeo eacute palavra A significaccedilatildeo torna a voz uma
expressatildeo do pensamento39 Por isso somente um vivente inteligente (animal rationale)
tem voz enquanto palavra40 Um vivente melhor um animal emite sons para se
comunicar Mas os seus sons natildeo satildeo vozes articuladas significativas Os gritos os
alaridos de animais natildeo satildeo palavras Sua comunicaccedilatildeo natildeo eacute fala O berrar de um
bezerro o mugir de uma vaca o balar de uma ovelha o balir de um cordeiro o arrulhar
de uma pomba o latir de um catildeo o miar de um gato ndash tudo isso natildeo eacute fala Seus sons
natildeo satildeo vozes significativas Indicam alguma coisa Mas o seu indicar natildeo tem o sentido
de significar alguma coisa Significar eacute dar a conhecer algo como algo a algueacutem41 Fumaccedila
indica fogo Bandeira branca indica rendiccedilatildeo Indicar poreacutem natildeo eacute significar Todo
significar eacute um indicar mas nem todo indicar eacute significar Significar eacute dar a conhecer no
sentido de dar a compreender algo como algo A fala daacute a conhecer alguma coisa Ela
faz-se notar e faz notar alguma coisa A fala eacute um fazer notar que daacute a conhecer alguma
coisa42 A fala faz notar daacute a conhecer isto eacute gera uma ldquonotiordquo ou uma ldquonotitiardquo
(conhecimento noccedilatildeo sentido)43 Notar quer dizer aqui dirigir-se a alguma coisa
orientando-se no mundo (intencionalidade) tornando-se atento a ela ao seu ser
Joatildeo Duns Scotus iraacute retomar o triacircngulo semioacutetico do Peri hermeneiacuteas de
Aristoacuteteles Ele questiona sobre a distinccedilatildeo de litteras et voces (letras e vozes) de um
lado passiones (disposiccedilotildees da alma) e res (coisa) de outro lado na quarta das questotildees
sobre o primeiro livro do ldquoPerigrave hermeneiasrdquo e conclui pela sua conveniecircncia As
disposiccedilotildees da alma (significaccedilatildeo e sentido) satildeo as mesmas em todos bem como as
coisas que elas significam enquanto as letras e vozes satildeo diferentes dependendo da
liacutengua Com outras palavras as letras e vozes que satildeo diferentes de liacutengua para liacutengua
38 ldquoVox quae non est significativa verbum dici non potestrdquo (A voz que natildeo eacute significativa natildeo pode ser dita palavra) ndash Tomaacutes de Aquino op Cit (I341) 39 ldquoLocutio est proprium opus rationis (I913 ad 3) falar -diz Tomaacutes- eacute operaccedilatildeo proacutepria da razatildeo 40 Agrave base desta concepccedilatildeo estaacute a concepccedilatildeo grega do homem aacutenthropos como zoon logon echon (vivente que tem linguagem) Nesta traduccedilatildeo o loacutegos eacute tanto ratio (pensamento) quanto oratio (fala no sentido de discurso) 41 Em Tomaacutes no acircmbito da vox situa-se a palavra (verbum) A palavra eacute uma realizaccedilatildeo especial do signo (signum) que por sua vez eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro (III604) 42 Cfr Heidegger M Vom Wesen der Sprache Die Metaphysik der Sprache und die Wesung des Wortes - Zu Herders Abhandlung ldquoUumlber den Ursprung der Spracherdquo Gesammtausgabe Band 85 p 3-4 43 Cfr idem p 20
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satildeo sinais instituiacutedos pelo arbiacutetrio humano que representam as disposiccedilotildees da alma (no
caso significaccedilatildeo e sentido) que por sua vez satildeo sinais naturais representativos das
coisas44
As expressotildees orais ou escritas satildeo formas linguiacutesticas dotadas de significaccedilotildees e
de sentido Sentidos e significaccedilotildees que satildeo pensados vecircm agrave expressatildeo Eles satildeo
exprimiacuteveis atraveacutes de formaccedilotildees linguiacutesticas Uma coisa eacute a forma linguiacutestica da
expressatildeo o complexo graacutefico ou focircnico ou como dizem os medievais as voces (vozes)
Outra coisa eacute o conteuacutedo da expressatildeo a significaccedilatildeo o sentido no juiacutezo e no
entrelaccedilamento de juiacutezos (conclusatildeo silogismo) O conteuacutedo eacute um ldquosignificatumrdquo que
estaacute intencionalmente ldquoin menterdquo45
A voz se torna expressatildeo agrave medida que eacute dotada de significaccedilotildees e de sentido
Assim a proposiccedilatildeo enquanto sequecircncia de palavras eacute singular Mas o conteuacutedo da
proposiccedilatildeo o juiacutezo ora eacute singular se o predicado eacute dito de um soacute ou universal se o
predicado eacute dito de muitos A proposiccedilatildeo como uma sequecircncia de palavras natildeo eacute
verdadeira ou falsa Ela eacute ou natildeo eacute Eacute falada ou escrita Mas natildeo eacute verdadeira ou falsa O
sentido da proposiccedilatildeo o juiacutezo eacute que eacute verdadeiro ou falso natildeo poreacutem enquanto
simples conteuacutedo da proposiccedilatildeo mas soacute agrave medida que ele tem um valor objetivaacutevel um
valor de conhecimento objetivo46 Proposiccedilatildeo e sentido palavra e significaccedilatildeo
pertencem a acircmbitos de realidade diversos Os elementos linguiacutesticos que constituem
proposiccedilatildeo e palavra satildeo sensivelmente perceptiacuteveis (satildeo acuacutesticos visuais motores)
satildeo reais e temporais Jaacute as significaccedilotildees e o sentido se subtraem a uma percepccedilatildeo
sensorial e satildeo atemporais O elemento linguiacutestico de uma expressatildeo eacute um signum ad
44 Cfr Quaestiones in I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 7) ldquoAd quaestionem dicendum quod differentia est conveniens quia passiones inquanto sunt signa et res inquanto sunt significata sunt eandem apud omnes nam eadem passio in anima apud quoscumque concipientes repraesentat eamdem rem quia eadem similitudo in anima semper est eiusdem repraesentativa sicut est similitudo sensibilis in sensu litterae et voces in se eaedem non sunt eaedem apud omnes inquanto sunt signa quia nec eadem littera apud omnes repraesentat eamdem vocem sed vel aliam vel nullam nec eadem vox apud omnes significat eamdem passionem sed vel aliam vel nullamrdquo (SCOTUS 1998 p 918) 45 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 12) ldquoAd quaestionem dici potest quod iste liber non est de decem vocibus ut de primo subiecto ndash nec aliqua pars logicae est de voce quia omnes passiones syllogismi et omnium partium eius possunt sibi inesse secundum esse quod habent in mente etsi non proferantur () sed est de aliquo priore quod respectu voces significativae tantum habet rationem significatirdquo (SCOTUS 1998 p 652) 46 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 22) ldquoSimiliter lsquosignificare verum vel falsumrsquo convenit enuntiationi sed non ut vox est significans conceptum sed ut conceptus significat remrdquo (SCOTUS 1998 p 653)
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placitum um signo instituiacutedo conforme o agrado ou o arbiacutetrio de quem o usa47 As
significaccedilotildees e os sentidos poreacutem se subtraem ao arbiacutetrio daquele que pensa por ter
a sua proacutepria necessidade ideal ou objetiva
A forma linguiacutestica eacute signo da significaccedilatildeo que por sua vez eacute signo de algo de
objetual de alguma objetualidade (objetos estados-de-coisas notas distintivas formas
reais ou categoriais) Trata-se do triacircngulo semioacutetico que constitui a base da
consideraccedilatildeo sobre a linguagem em toda a tradiccedilatildeo ocidental e que vem de Aristoacuteteles
Para Duns Scotus palavra e proposiccedilatildeo enquanto formaccedilotildees linguiacutesticas
dotadas de significaccedilatildeo e de sentido apontam para a esfera objetual A formaccedilatildeo
linguiacutestica eacute sinal da significaccedilatildeo e do sentido que eacute por sua vez sinal do objeto Enfim
palavra e proposiccedilatildeo satildeo sinais das coisas ldquoQuidquid est signum signi est signum
signatirdquo ndash o que quer que seja sinal do sinal eacute sinal do assinalado48 Assim palavra e
proposiccedilatildeo se tornam sinais das objetualidades agraves quais se referem No entendimento
de Duns Scotus o conceito eacute o que eacute designado imediatamente o objeto eacute o que eacute
designado mediatamente pela expressatildeo O doutor sutil esclarece que significare eacute dare
intelligere dar a compreender49 O signo eacute algo de relacional possui um caraacuteter ou uma
funccedilatildeo remissiva O signo graccedilas a sua funccedilatildeo remissiva eacute o fundamento material de
que parte o conhecimento do designado A expressatildeo linguiacutestica poreacutem natildeo eacute somente
um signo que remete ou se refere a algo Ele eacute um signo que significa algo ou seja que
daacute a compreender algo ou algo de algo e que ademais se refere a objetualidades
visando dizer ou seja mostrar o que se mostra e como se mostra50
47 Cfr Quaestiones super I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 14) ldquo et instrumenta naturalia formandi vocem potest homo aliqua imponere quae sunt signa ad placitum et non naturalia sive conceptusrdquo (SCOTUS 1998 p 919) 48 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 28 n 28) ldquo lsquoQuidquid est signum signi est signum signatirsquo ita quod signum intermedium non varietur in comparatione ad primum signum et ultimum signatumrdquo (SCOTUS 1998 p 751) 49 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 8 n 1) ldquoQuia significare est intellectum constituererdquo (SCOTUS 1998 p 679) 50 Assim para Husserl a expressatildeo que funde numa unidade a manifestaccedilatildeo sensiacutevel a significaccedilatildeo e a referecircncia ao objeto estaacute ordenada tanto a um valor de conhecimento quanto a um valor de verdade Agrave expressatildeo corresponde ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo se constitui uma relaccedilatildeo com o objeto Triacuteplice eacute o conteuacutedo de uma expressatildeo a significaccedilatildeo a referecircncia ao objeto e por fim o preenchimento de sentido A expressatildeo pela significaccedilatildeo e pela referecircncia ao objeto daacute a compreender alguma coisa acerca de algo O preenchimento da intenccedilatildeo signitiva vazia no modo da confirmaccedilatildeo da documentaccedilatildeo intuitiva leva por sua vez agrave experiecircncia da verdade Para Husserl expressotildees satildeo signos significativos distintos dos signos indicativos Numa descriccedilatildeo fenomenoloacutegica da expressatildeo dotada de sentido se
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No De dialectica (Da dialeacutetica) Agostinho define a palavra como um sinal de
alguma coisa que proferido por quem fala pode ser compreendido por quem escuta (De
Dialectica 5) 51 Nesta definiccedilatildeo podemos perceber as vaacuterias dimensotildees do exerciacutecio
humano da linguagem a da comunicaccedilatildeo em que homens falam uns com os outros
compartilhando suas vidas e coparticipando de um mesmo mundo a da expressatildeo em
que homens se pronunciam a partir de seu ser num mundo comum o discurso pelo
qual homens falam uns com os outros e escutam uns aos outros a compreensatildeo e
interpretaccedilatildeo em que homens ouvindo uns aos outros recebem a mensagem e se
apropriam de seu sentido Como ponta do ldquoicebergrdquo de toda esta vitalidade do concurso
comunicativo e do discurso temos o sinal que eacute proferido por quem fala o som da boca
a voz que longe de ser um mero ruiacutedo eacute um sinal um signo e se sinal eacute sinal de
alguma coisa ou seja algo vem a ser significado por este signo ou sinal
podem evidenciar trecircs momentos que no entanto formam uma unidade intimamente fundida a apariccedilatildeo fiacutesica da expressatildeo o ato doador de sentido e o ato preenchedor de sentido Assim palavras e proposiccedilotildees satildeo sons articulados animados de sentido Agraves expressotildees satildeo essenciais os atos que conferem a significaccedilatildeo respectivamente as intenccedilotildees de significaccedilatildeo A estes atos se acrescentam de modo extra-essencial os atos que preenchem as significaccedilotildees confirmando reforccedilando ilustrando as intenccedilotildees de significaccedilatildeo Para que o signo se torne expressatildeo eacute preciso que lhe seja imposto uma significaccedilatildeo Husserl fala de emprestar significaccedilatildeo de conferir sentido Expressotildees satildeo unidades de signos e designados (sinais e assinalados) de espeacutecie bem peculiar Expressotildees satildeo sinais significativos A significaccedilatildeo adere ao ato significativo Com a expressatildeo que suscita o ato que confere o sentido nos orientamos ao objeto Agrave expressatildeo compete ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo eacute que se constitui a relaccedilatildeo com o objeto ldquoToda e qualquer expressatildeo natildeo quer apenas dizer qualquer coisa mas tambeacutem diz algo acerca de qualquer coisa ela natildeo tem apenas a sua significaccedilatildeo mas refere-se tambeacutem a quaisquer objetosrdquo (HUSSERL 2012 p 38 ndash grifo de Husserl) Assim significaccedilatildeo e referecircncia objetiva se distinguem Expressotildees podem ter a mesma significaccedilatildeo mas objetos diferentes por um lado e por outro podem ter significaccedilotildees diferentes mas o mesmo objeto Assim considerando dois enunciados ldquoeste sendeiro eacute um cavalordquo e ldquoBuceacutefalo eacute um cavalordquo a expressatildeo um cavalo tem a mesma significaccedilatildeo mas os objetos satildeo diferentes Por sua vez dois nomes podem significar coisas diferentes mas nomear o mesmo como no exemplo ldquoO vencedor de Iena - O vencido de Waterloordquo Significaccedilatildeo e referecircncia objetiva no entanto estatildeo em iacutentima conexatildeo A expressatildeo se refere ao objeto por meio da significaccedilatildeo Uma expressatildeo adquire um referimento ao objeto pelo simples fato de que esta significa algo Por isso eacute que dizemos que uma expressatildeo designa ou denomina algo por meio do seu significado ou seja o ato de significar eacute o modo determinado de intencionar o objeto em questatildeo soacute que justamente este modo de intencionar e portanto o significado mesmo pode variar enquanto permanece idecircntica a direccedilatildeo para o objeto Se considerarmos pois os trecircs momentos que se fundem numa unidade na expressatildeo temos aquilo que de modo equiacutevoco se chama o expressado da expressatildeo ldquoOs termos em relaccedilatildeo ndash manifestaccedilatildeo significaccedilatildeo e objeto ndash pertencem essencialmente a toda e qualquer expressatildeo Em cada uma qualquer coisa eacute manifestada qualquer coisa eacute significada e qualquer coisa eacute nomeada ou de algum modo designada E no discurso equiacutevoco tudo isto se diz lsquoexpressorsquordquo 51 Idem p 14
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No escrito sobre a dialeacutetica Agostinho trata de quatro elementos desta arte o
verbum o dicibile52 a dictio53 e a res Vejamos como Agostinho expotildee o nexo entre estes
quatro elementos
Ora porque as palavras (verba) satildeo sinais das coisas (signa rerum) quando se ocupam com as coisas enquanto satildeo sinais das palavras (signa verborum) quando se discute sobre palavras ndash pois sobre palavras natildeo podemos falar a natildeo ser com palavras e quando falamos natildeo falamos a natildeo ser de coisas ndash ocorre agrave mente que as palavras satildeo sinais das coisas sem deixar de ser coisas
Quando pois a palavra sai da boca se sai por causa de si mesma isto eacute para que acerca dela se inquira ou se discuta haacute certamente uma coisa que eacute sujeita a discussatildeo e a investigaccedilatildeo mas justamente esta coisa eacute chamada palavra
E o que quer que a partir da palavra natildeo os ouvidos mas a mente (animus) percebe (sentit) e que a mente mesma manteacutem incluiacuteda em si se chama dicibile54 Quando poreacutem a palavra sai natildeo por causa de si mesma mas para significar algo de outro chama-se dictio55 E a coisa mesma que natildeo eacute uma palavra nem ainda uma concepccedilatildeo da palavra na mente seja que tenha uma palavra com a qual possa ser significada seja que natildeo a tenha daqui por diante natildeo eacute chamada com nome apropriado de outro modo do que de coisa
Estes quatro hatildeo de ser mantidos distintamente portanto a palavra (verbum) o dicibile a dictio a coisa Aquilo que defini como palavra eacute uma palavra e significa a palavra Aquilo que defini dicibile eacute uma palavra e todavia natildeo significa a palavra mas aquilo que graccedilas agrave palavra se compreende e estaacute contido na mente Aquilo que eu defini dictio eacute uma palavra mas uma palavra que significa contemporaneamente as outras duas ou seja a palavra mesma e aquilo que se faz na mente atraveacutes da palavra Aquela que eu defini como coisa eacute uma palavra que significa tudo aquilo que fica fora das trecircs que foram ditas
52 Seria o λεκτόν (lektoacuten) dos estoicos 53 Seria a λέξις (leacuteksis) dos estoicos 54 O exprimiacutevel ou melhor o diziacutevel no sentido do mostraacutevel 55 A expressatildeo o dito do dizer
23
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Depois destas digressotildees necessaacuterias para aclararmos o que estaacute em questatildeo
voltemos ao livro II do ldquoDe Doctrina Christianardquo de Agostinho Retomemos a sua
consideraccedilatildeo a respeito do signo
Haacute dois tipos de signos os naturais e os convencionais Os naturais datildeo a
conhecer por si proacuteprios alguma coisa aleacutem do que satildeo em si Assim fumaccedila eacute signo
de fogo Os signos convencionais (data signa) satildeo todos aqueles que os seres vivos em
especial o ser humano mutuamente se trocam para manifestar ndash o quanto lhes eacute
possiacutevel ndash os movimentos de sua alma tais como as sensaccedilotildees e os pensamentos Os
signos podem se dar em referecircncias a todos os sentidos a maioria dos signos poreacutem
se referem agrave audiccedilatildeo ou agrave visatildeo Dentre estes signos mais usuais e importantes satildeo os
signos verbais que satildeo sons significativos que se articulam mediante a voz humana
constituindo a palavra falada Os signos escritos poreacutem mostram os signos verbais de
maneira visiacutevel (e natildeo audiacutevel como fazem os signos falados)
A liacutengua eacute a realizaccedilatildeo concreta da linguagem humana mediante o uso de signos
verbais falados ou escritos As Sagradas Escrituras indicam pela histoacuteria da Torre de
Babel que liacutengua e linguagem sofrem com a decadecircncia do espiacuterito humano causada
pela soberba56 O contraacuterio da histoacuteria de Babel eacute poreacutem a histoacuteria de Pentecostes
narrada no livro dos Atos dos Apoacutestolos que aponta para a comunhatildeo do amor e o
muacutetuo entendimento entre os homens propiciado com o dom do Hagioacutes Pneuma
(Sopro Sagrado Espiacuterito Santo)
56 Na histoacuteria narrada pelo livro do Gecircnesis os homens se unem para erguer uma torre que una a terra ao ceacuteu a partir das proacuteprias forccedilas e da proacutepria engenhosidade Nos povos antigos encontramos monumentos que evocam algo disso O desejo do homem de uniatildeo entre o ceacuteu e a terra se manifesta nos zigurates da mesopotacircmia nas piracircmides das altas culturas das pedras (Egito Peru Meacutexico) nas estupas asiaacuteticas e quiccedilaacute em tempos mais primitivos aos dolmens menires nas cacircmaras funeraacuterias e nos obeliscos Junto com o esforccedilo de o homem erguer-se a si mesmo como homem erguendo pedras haacute o esforccedilo tambeacutem de alcanccedilar a vida dos imortais dos deuses tolhendo a proacutepria finitude Babel que era para ser a ldquoporta dos deusesrdquo (babilani) se torna poreacutem o lugar da confusatildeo (balal = confundir) O mundo se torna assim uma ldquoBabilocircniardquo isto eacute o lugar da confusatildeo em que os homens natildeo conseguem chegar ao entendimento muacutetuo Somente em Pentecostes em Jerusaleacutem celebra-se plenamente a superaccedilatildeo desta divisatildeo e desta confusatildeo em que as liacutenguas natildeo satildeo mais confusas e em que a linguagem do amor ardente une os homens e propicia-lhes a chance do entendimento muacutetuo e da verdadeira concoacuterdia uma concoacuterdia para o bem em favor de Deus
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Aquele vento purificava os coraccedilotildees da palha carnal aquele fogo consumia o feno da antiga concupiscecircncia aquelas liacutenguas em que falavam os que estavam plenos do Espiacuterito Santo prefiguravam a futura Igreja mediante liacutenguas de todos os povos Pois assim como depois do diluacutevio a soberba impiedade dos homens edificou uma grandiosa torre contra o Senhor ocasiatildeo na qual o gecircnero humano mereceu ser dividido pela diversidade das liacutenguas de modo que cada naccedilatildeo falasse sua proacutepria liacutengua para natildeo ser entendido pelas demais assim a humilde piedade dos fieis reduziu a diversidade de liacutenguas agrave unidade da Igreja de maneira que aquilo que a discoacuterdia tinha dispersado o reunisse a caridade e assim os membros dispersos do gecircnero humano qual membros de um mesmo corpo fossem reintegrados agrave unidade de uma uacutenica cabeccedila que eacute Cristo e fundidos na unidade do corpo santo mediante o fogo do amor57
O maior sinal da comunhatildeo do amor eacute quando os homens conseguem falar uns
com os outros e se entender Embora sejam diferentes e falem liacutenguas diferentes falam
a partir de uma mesma linguagem a do amor-caridade (gratuidade) As liacutenguas se
tornam entatildeo como labaredas do amor As falas satildeo entatildeo falas inflamadas de um fogo
divino brilhantes e ardentes divinamente apaixonadas entusiasmadas O amor eacute o que
possibilita manter esta identidade na diferenccedila Cria-se uma identidade comum mas
sem desfazer antes protegendo as diferenccedilas Eacute o milagre das liacutenguas O contraacuterio de
Babel Recriaccedilatildeo do homem humano e da humanidade universal
Assim os homens podem voltar agrave linguagem comum apesar da diversidade das
liacutenguas unindo suas vontades no empenho de conhecer e realizar a vontade de Deus A
serviccedilo deste intento estatildeo as Sagradas Escrituras Estas satildeo obra do proacuteprio Deus que
usou de hagioacutegrafos inspirados para expressar a sua vontade na linguagem humana
mediante as diversas liacutenguas Os que leem as Sagradas Escrituras natildeo desejam encontrar
nelas mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram e desse modo chegar
a conhecer a vontade de Deus segundo a qual ordem esses homens compuseram
Entretanto o leitor das Sagradas Escrituras vai se deparar continuamente com
ambiguidades e obscuridades Para Agostinho estas fazem parte da proacutepria natureza das
Escrituras Sagradas Haacute um certo quecirc de hermeacutetico de enigmaacutetico de obscuro nelas
57 Sermatildeo 271
25
Mas eacute justamente isto que desafia a compreensatildeo e que a faz crescer na busca da
vontade divina As obscuridades e ambiguidades natildeo satildeo inuacuteteis Elas vencem o orgulho
do homem que se aproxima dos misteacuterios divinos sem reverecircncia e sem devoccedilatildeo Por
outro lado elas premunem o espiacuterito do fastio e do teacutedio que a facilidade sempre trazem
consigo As dificuldades de interpretaccedilatildeo cria-nos o gosto pelo exerciacutecio da
compreensatildeo na sua aventura de conquista do sentido Contudo natildeo se deve ter a
pretensatildeo de que se pode chegar a uma clareza que elimine toda sombra e obscuridade
A clareza do misteacuterio que se desvela sempre traz o veacuteu do pudor em que o misteacuterio
mesmo se encobre e assim se resguarda Os significados hauridos seratildeo sempre acenos
do inefaacutevel na medida em que o misteacuterio santo se deixa captar no horizonte do sentido
Uma vez que as Sagradas Escrituras satildeo linguagem do misteacuterio santo do Deus
absconditus (Deus escondido) que se re-vela (desvela e vela ao mesmo tempo) na
finitude da linguagem humana o leitor vai se deparar com desafios sempre novos
Agostinho recorre entatildeo agrave alegorese seguindo neste ponto a tradiccedilatildeo dos
alexandrinos As alegorias possuem encanto todo especial capaz de falar natildeo somente
ao entendimento mas tambeacutem ao coraccedilatildeo dos homens Com efeito a linguagem
imageacutetica concreta tem maior poder de comunicaccedilatildeo vital do que a linguagem
conceitual abstrata O uso de comparaccedilotildees leva o leitor a aprender mais
espontaneamente (libenter) As dificuldades de interpretaccedilatildeo levam-no a aprender com
maior prazer (gratius) As passagens obscuras das Escrituras aguccedilam a fome de
compreensatildeo do leitor Entretanto Agostinho daacute uma indicaccedilatildeo metodoloacutegica de leitura
importante para ir abrindo a compreensatildeo das Escrituras ganhar familiaridade com as
passagens claras e inequiacutevocas e com isso iluminar as passagens obscuras e
enigmaacuteticas Com efeito diz ele quase nada sobressai nas obscuridades que natildeo esteja
escrito mais claramente em outro lugar
Aquele que lecirc as Sagradas Escrituras procurando nelas a vontade divina eacute algueacutem
que estaacute a caminho numa viagem para a paacutetria da beatitude eterna Este caminhar
comporta determinado itineraacuterio no qual o homem vai se dispondo cada vez mais ao
Espiacuterito de Deus e ao seu modo de operar na alma os seus dons Eacute na medida que se
aproxima da Sabedoria do Espiacuterito que o leitor lecirc com maior proveito e profundidade as
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Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
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Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
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Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
29
Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
30
(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
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Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
12
O amor (dilectio caritas) eacute o princiacutepio que rege toda a vida humana na perspectiva da
feacute cristatilde24 O duplo preceito do amor (a Deus e ao proacuteximo) eacute aqui a norma universal e
primordial que rege toda a ordem do viver O amor a Deus acima de tudo e o amor ao
proacuteximo eacute a essecircncia a substacircncia da revelaccedilatildeo divina (ldquoa Lei e os Profetasrdquo) que foi
radicalizada e consumada em Jesus Cristo no seu novo e eterno testamento
(testemunho) Daiacute se segue que a edificaccedilatildeo da caridade eacute a norma reacutegia e suprema de
toda a interpretaccedilatildeo das Sagradas Escrituras25 Para o homem que atingiu a perfeiccedilatildeo
do amor (caridade perfeita) as Sagradas Escrituras deixam de ser necessaacuterias uma vez
que toda a finalidade delas eacute levar o homem agrave perfeiccedilatildeo do amor (caridade perfeita)
Deste modo as Escrituras Sagradas requerem um leitor que entenda que o fim de tudo
o que ali estaacute escrito eacute a caridade perfeita consumada que aparece concreta e
historicamente em Jesus Cristo o Deus encarnado (humanado) e crucificado A feacute e a
esperanccedila satildeo outras duas virtudes que ajudam o homem a crescer e se perfazer na
perfeiccedilatildeo da caridade no seguimento de Jesus Cristo O essencial do ser cristatildeo se
encontra neste seguimento
Depois quando ama igualmente o que eacute igualmente digno de amor (o proacuteximo) Por fim quando ama absolutamente o que eacute absolutamente digno de ser amado (Deus) Ao amor de Deus assim deve se subordinar e convergir todo amor pela criatura O preceito do amor aleacutem disso comporta universalidade isto eacute ningueacutem eacute dele excluiacutedo A boa vontade do amor se estende a todos mesmo ao inimigo O amor de Deus pelo homem eacute gratuito visto que Deus natildeo precisa do homem mas se basta a si mesmo Seu amor eacute pura gratuita absoluta bondade O grau de perfeiccedilatildeo de um homem depende do grau de perfeiccedilatildeo e da universalidade de seu amor O ser do homem se determina pelo seu amor O homem eacute o que ele ama e como ele ama Ele cresce no ser se cresce na perfeiccedilatildeo (e na universalidade) do amor Ele diminui no ser se decresce na capacidade de amar O homem pode encontrar deleite nos outros homens quando estes o ajudam a crescer no amor a Deus Eacute quando se ama e se gosta do outro em Deus Os homens podem e devem constituir uma fraternidade no amor ajudando-se mutuamente a prosseguir seu itineraacuterio para Deus Nenhuma homem pode se considerar fim absoluto do amor do outro Ele natildeo eacute o destinataacuterio uacuteltimo do amor do outro Eacute apenas companheiro na viagem da vida e como tal haacute de ser amado Neste itineraacuterio para Deus Cristo eacute o caminho a verdade e a vida isto eacute ele eacute aquele por quem o homem vai aquele a quem o homem alcanccedila e em quem ele permanece no amor 24 Cf Arendt Hanna O conceito de amor em Santo Agostinho Ensaio de interpretaccedilatildeo filosoacutefica Lisboa Instituto Piaget 1997 25 Para o ldquohomo viatorrdquo (homem a caminho) a feacute nas Escrituras fortalece a feacute a esperanccedila e a caridade Nestas trecircs virtudes teologais se encerram e se subsumem toda a ciecircncia e toda a profecia A caridade permanece para sempre enquanto que a feacute e a esperanccedila se extinguem quando o homem chega a seu destino (a Paacutetria o Reino dos Ceacuteus) A caridade visa um bem eterno Se os bens temporais satildeo amados antes de serem possuiacutedos pois ao serem conquistados natildeo saciam a alma na sua sede do absoluto bem o bem eterno eacute o que eacute amado com tanto mais ardor ao ser possuiacutedo do que fora ao ser desejado pois a ningueacutem que a deseja a beatitude concedida eacute menor do que a desejada
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O livro II eacute um verdadeiro tratado de semiologia26 Todo o pensamento a respeito
da linguagem do ocidente se baseia no triacircngulo semioacutetico signo conceito coisa A base
desta concepccedilatildeo de Aristoacuteteles Ela eacute exposta no ὶ ἑί (perigrave hermeneiacuteas)
ldquoDe interpretationerdquo (16a 3-8)
Satildeo pois aquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz siacutembolos das paixotildees (afecccedilotildees disposiccedilotildees) na alma e as coisas que satildeo escritas satildeo siacutembolos daquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz E assim como as coisas escritas natildeo satildeo as mesmas para todos do mesmo modo tambeacutem os sons da voz natildeo satildeo os mesmos Aquelas coisas de que isso (coisas escritas e sons da voz) satildeo primordialmente signos (coisas que mostram) satildeo para todos (os homens) as mesmas paixotildees da alma e as coisas das quais estas (paixotildees da alma) formam apresentaccedilotildees assemelhadas satildeo igualmente as mesmas27
O texto de Aristoacuteteles se manteacutem numa fala esclarecida e soacutebria que torna
visiacutevel a claacutessica estruturaccedilatildeo que abriga a linguagem como discurso ou fala As letras
do alfabeto28 mostram os fonemas29 Os fonemas mostram as disposiccedilotildees na alma30 As
disposiccedilotildees na alma mostram as coisas que que lhe con-cernem31 O mostrar configura
e sustenta as escoras dessa construccedilatildeo De maneira variada o mostrar conduz algo para
um aparecer deixando assim apreender o que aparece e permitindo que se discuta o
que se apreende
26 A semiologia (ou semioacutetica) eacute a ciecircncia dos signos Como os signos verbais tecircm na vida humana um papel de primeiro plano a semiologia se concentrou em grande parte na linguagem Haacute uma semiologia nas especulaccedilotildees linguiacutestica da antiguidade entre os modistas da Idade Meacutedia etc Mas o nome ldquosemioacuteticardquo surge na modernidade com Locke Torna-se poreacutem uma disciplina independente na obra do filoacutesofo americano Charles Sanders Peirce (1839-1914) 27 A traduccedilatildeo entende os σημεῖα (semeia ndash os signos aquelas coisas que mostram) os σύμβολα (symbola - os siacutembolos ndash o que eacute lanccedilado junto e nessa junccedilatildeo deixa e faz com que um se atenha ao outro) e os ὁμοιώματα (homoioacutemata ndash as apresentaccedilotildees assemelhadas as semelhanccedilas) como um mostrar no sentido de deixar aparecer o que por sua vez encontra-se no acircmbito do desencobrimento (αλήθεια ndash aleacutetheia) 28 τὰ γραφόμενα ndash taacute graphoacutemena 29 τὰ ἐν τῇ φωνῇ - taacute en te phoneacute 30 παθήματα τῆς ψυχῆς ndash patheacutemata tecircs psykhecircs 31 πράγματα - praacutegmata
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Antes de nos apropriarmos da semiologia de Agostinho tentemos aqui uma
consideraccedilatildeo fenomenoloacutegica sobre o sinal e a linguagem
O falar acontece por mor do dizer Dizer eacute mostrar O falar enquanto dizer se
realiza como um discurso mostrador loacutegos apophaacutentikoacutes32 O falar estaacute a serviccedilo do
dizer Dizer eacute mostrar no sentido de deixar e fazer ver a quem se fala aquilo de que se
fala Dizer eacute dar algo a compreender eacute fazer-se compreender sobre algo a quem escuta
O mostrar no falar acontece como um conceder acenos dar indiacutecios oferecer
indicaccedilotildees oferecer sinais33 Mas tudo isso acontece no sentido de um anunciar que se
cumpre como um revelar um divulgar um mencionar (fazer menccedilatildeo de referir relatar
expor narrar) um lembrar um recordar e um comemorar O anunciar eacute entendido pois
pelos gregos como um mostrar deiknymi34 O sinal eacute uma referecircncia uma remissatildeo O
remeter proacuteprio do sinal consiste em mostrar O mostrar do sinal se funda na referecircncia
na remissatildeo Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo No entanto
Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo eacute uma referecircncia Toda lsquoaccedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma referecircncia mas nem toda referecircncia mostra Com isso tambeacutem se diz toda accedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo mostra Assim aparece o caraacuteter formal e geral da relaccedilatildeo Para se investigar os fenocircmenos de referecircncia sinal e significado de nada adianta caracterizaacute-los como relaccedilatildeo Deve-se em uacuteltima instacircncia mostrar que a proacutepria lsquorelaccedilatildeorsquo devido a seu
32 O loacutegos eacute um reunir e um recolher (leacutegein) que potildee expotildee e depotildee abre e manifesta traz ao desencobrimento agrave revelaccedilatildeo Como abrir e manifestar leacutegein estaacute em contraste com krypto cobrir encobrir esconder ocultar no sentido de guardar Conhecemos um fragmento de Heraacuteclito (fr 93) que traz este contraste Ele diz Ho aacutenax hou tograve manteion esti tograve en Delphois oute leacutegei oute kryptei allagrave semainei ndash O Autor de quem eacute o oraacuteculo de Delfos natildeo traz ao desencobrimento nem encobre mas acena 33 Semainein eacute um conceder semata (acenos indiacutecios indicaccedilotildees) A palavra grega no singular eacute ldquosemardquo indiacutecio vestiacutegio marca distintiva senha sinal ldquoSemardquo eacute tambeacutem pressaacutegio auguacuterio auspiacutecio Eacute ainda o astro ou uma constelaccedilatildeo da qual se tiram indicaccedilotildees na orientaccedilatildeo concernente ao ceacuteu Eacute por fim o tuacutemulo a tumba 34 Da mesma raiz de ldquodeiknymirdquo (mostrar) eacute o verbo latino ldquodicererdquo dizer Dizer eacute mostrar isto eacute deixar e fazer ver trazer agrave evidecircncia alguma coisa O sinal pois no falar precisa ser entendido na dinacircmica do dizer isto eacute do mostrar
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caraacuteter formal geral tem sua origem ontoloacutegica numa referecircncia35
Haacute uma multiplicidade de sinais anuacutencios prenuacutencios vestiacutegios marcas
distintivos cuja accedilatildeo de mostrar difere a cada caso Satildeo sinais diferentes o rastro o
resto o monumento o documento o testemunho o siacutembolo a expressatildeo a
manifestaccedilatildeo a significaccedilatildeo O sinal tem a sua serventia no mostrar no sentido de fazer
sobressair de dar na vista salientar fazer reparar estranhar alguma coisa Aquilo que
normalmente natildeo causa surpresa eacute ressaltado pelo sinal O sinal permite a descoberta
de alguma coisa
O mundo eacute o ldquoonderdquo das descobertas O homem se orienta se dirige se
direciona em seus comportamentos com as coisas com os entes agrave matildeo a partir de uma
familiaridade com o mundo A abertura de mundo se daacute como compreensatildeo Trata-se
poreacutem de uma compreensatildeo operativa natildeo teoacuterica Compreender significa aqui reunir
as remissotildees recolher as referecircncias O caraacuteter de remissatildeo das remissotildees das
referecircncias eacute o que se chama de significar Significar (be-deuten) eacute aqui mostrar
(deuten) no sentido de pocircr a caminho um clarear um esclarecer Eacute o processo e o
movimento de estruturaccedilatildeo do mundo Significar eacute aqui oferecer alguma coisa para a
compreensatildeo e para a interpretaccedilatildeo Significacircncia (Bedeutsamkeit) eacute o todo das
remissotildees do acontecimento e do processo do significar que eacute a estruturaccedilatildeo de
mundo Noacutes nos encontramos a noacutes mesmos jaacute sempre no mundo entendendo o mundo
antes de tudo como uma totalidade de significacircncias Eacute um encontrar-se a si mesmo
sempre numa situaccedilatildeo de ocupaccedilatildeo e preocupaccedilatildeo de cuidado com o proacuteprio ser-no-
mundo Tudo aquilo com que podemos nos relacionar e comportar tem este caraacuteter
estaacute aiacute e eacute encontrado no caminho do cuidado eacute experimentado como significativo a
partir de um determinado cuidado Significacircncia indica este modo fundamental como
algo segundo o seu teor proacuteprio eacute encontrado na vida como ele se deteacutem e se reteacutem
no meio do mundo da vida
Soacute acontece linguagem onde noacutes falamos uns com os outros A linguagem
acontece de iniacutecio e na maior parte das vezes na conversa com suas falas e seus
silecircncios Para noacutes isto eacute na ordem da nossa experiecircncia cotidiana a primeira
35 Heidegger M Ser e Tempo sect 17
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dimensatildeo pois da linguagem eacute a fala o discurso O discurso traz agrave fala uma
compreensatildeo Chamamos de sentido o que pode ser articulado O sentido eacute o que torna
compreensiacutevel algo enquanto algo Compreender eacute fundamentalmente apreender algo
enquanto algo Tudo que apreendemos se mostra a si mesmo como isso ou aquilo Isso
quer dizer noacutes aprendemos cada coisa em sua significacircncia A percepccedilatildeo natural em
que noacutes vivemos cotidianamente jaacute eacute sempre uma compreensatildeo uma captaccedilatildeo da coisa
como esta coisa do sapato como sapato do livro como livro do reloacutegio como reloacutegio
Natildeo eacute assim que eu primeiro apreendo uma coisa na sua nua e crua factualidade e
depois lhe atribuo este ou aquele significado Cada vez eu apreendo uma coisa como
tal coisa isto eacute eu apreendo a coisa dentro de uma determinada significacircncia36
A coisa que me vem ao encontro dentro do mundo se mostra como isto ou
aquilo37 Ela instaura um conjunto de referecircncias ela remete a isto ou aquilo ela soa
desta ou daquela maneira em meu mundo ela fala disto ou daquilo em minha vida A
coisa significa a si mesma Mas o seu poder significar a si mesma soacute eacute possiacutevel porque
ela jaacute eacute descoberta como coisa que vem ao encontro dentro do mundo isto eacute dentro de
uma totalidade de sentido Que a coisa se faccedila encontrar e descobrir deste ou daquele
modo e que ela se decirc a compreender como isto ou aquilo ndash isto soacute eacute possiacutevel porque ao
apreendecirc-la numa percepccedilatildeo concreta um mundo jaacute se me abriu Com a coisa se
anuncia o mundo da vida ou melhor os mundos da vida o mundo circunstante o
mundo partilhado da convivecircncia o mundo proacuteprio pessoal A coisa soacute pode ser
apreendida na sua significacircncia a partir da abertura do mundo ou dos mundos
Perceber eacute jaacute compreender as coisas na sua significacircncia Perceber eacute estruturar
e configurar o mundo como estrutura significativa Em toda percepccedilatildeo atua pois um
ato fundamental de significaccedilatildeo Chamamos de significar o ato pelo qual o homem
estrutura a significacircncia das coisas no horizonte do mundo enquanto totalidade
significativa Da compreensatildeo que articula a significaccedilatildeo das coisas numa totalidade
sentido brota a possibilidade da interpretaccedilatildeo Pela compreensatildeo o homem estaacute
sempre se projetando abrindo lances de perspectivas entrevendo de antematildeo
36 Cfr M HEIDEGGER GP 102-110 37 Cfr M HEIDEGGER Ontologie (Hermeneutik der Faktizitaumlt) (OHF) Gesamtausgabe ndash Band 63 Vittorio Klostermann Frankfurt am Main 1995 p 93-104
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aberturas de possibilidades Pela compreensatildeo o homem opera um ver que eacute projetivo
e criativo de possibilidades de ser Esse ver projetivo e criativo configura isto eacute elabora
em formas significativas essas possibilidades de ser Agrave elaboraccedilatildeo e exposiccedilatildeo dessas
formas chamamos de interpretaccedilatildeo Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo se apropria do
que compreende Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo busca chegar a uma maturaccedilatildeo
isto eacute busca maturar as possibilidades de ser que ela jaacute entreviu A interpretaccedilatildeo eacute uma
explicitaccedilatildeo da compreensatildeo O que entra como componente da explicitaccedilatildeo possui o
caraacuteter de significacircncia eacute o mostrar-se de algo como algo Em todo o nosso
comportamento noacutes jaacute estamos sempre compreendendo e interpretando apreendendo
algo como algo e referindo algo a algo articulando significados numa totalidade de
sentido que eacute o mundo O homem sempre interpreta Pois interpretar eacute ser homem
A articulaccedilatildeo dos significados numa totalidade de sentido se daacute atraveacutes do falar
quer do falar de si consigo mesmo quer do falar uns com os outros Na fala noacutes
pronunciamos o que compreendemos e como interpretamos o que estaacute em questatildeo Pro-
nunciar eacute pro-ferir isto eacute trazer agrave luz ao aberto do mundo da convivecircncia aquilo que
compreendemos e interpretamos Pelo discurso vecircm agrave fala os entes e o ser dos entes
tais como se oferecem agrave nossa compreensatildeo e interpretaccedilatildeo Vem agrave fala agrave medida que
se articulam num horizonte de compreensibilidade que noacutes chamamos de sentido O
sentido eacute o que se articula na compreensatildeo e interpretaccedilatildeo como horizonte daquilo que
compreendemos e interpretamos Todo discurso eacute o pronunciar o vir agrave fala daquilo que
compreendemos e interpretamos dos significados das coisas agrave luz do sentido de ser que
noacutes lhes damos
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Os medievais iratildeo precisar e aprofundar a concepccedilatildeo de signo Assim para
Tomaacutes de Aquino o signum eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro
A palavra proferida exteriormente pela voz eacute a fala A fala eacute proferida a modo de uma
voz articulada significativa Nem todo o som eacute voz A voz enquanto haacutelito sopro som
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que sai da boca com efeito soacute chega a ser palavra quando eacute significativa38 Sem a
significaccedilatildeo (significatio) uma voz natildeo eacute palavra A significaccedilatildeo torna a voz uma
expressatildeo do pensamento39 Por isso somente um vivente inteligente (animal rationale)
tem voz enquanto palavra40 Um vivente melhor um animal emite sons para se
comunicar Mas os seus sons natildeo satildeo vozes articuladas significativas Os gritos os
alaridos de animais natildeo satildeo palavras Sua comunicaccedilatildeo natildeo eacute fala O berrar de um
bezerro o mugir de uma vaca o balar de uma ovelha o balir de um cordeiro o arrulhar
de uma pomba o latir de um catildeo o miar de um gato ndash tudo isso natildeo eacute fala Seus sons
natildeo satildeo vozes significativas Indicam alguma coisa Mas o seu indicar natildeo tem o sentido
de significar alguma coisa Significar eacute dar a conhecer algo como algo a algueacutem41 Fumaccedila
indica fogo Bandeira branca indica rendiccedilatildeo Indicar poreacutem natildeo eacute significar Todo
significar eacute um indicar mas nem todo indicar eacute significar Significar eacute dar a conhecer no
sentido de dar a compreender algo como algo A fala daacute a conhecer alguma coisa Ela
faz-se notar e faz notar alguma coisa A fala eacute um fazer notar que daacute a conhecer alguma
coisa42 A fala faz notar daacute a conhecer isto eacute gera uma ldquonotiordquo ou uma ldquonotitiardquo
(conhecimento noccedilatildeo sentido)43 Notar quer dizer aqui dirigir-se a alguma coisa
orientando-se no mundo (intencionalidade) tornando-se atento a ela ao seu ser
Joatildeo Duns Scotus iraacute retomar o triacircngulo semioacutetico do Peri hermeneiacuteas de
Aristoacuteteles Ele questiona sobre a distinccedilatildeo de litteras et voces (letras e vozes) de um
lado passiones (disposiccedilotildees da alma) e res (coisa) de outro lado na quarta das questotildees
sobre o primeiro livro do ldquoPerigrave hermeneiasrdquo e conclui pela sua conveniecircncia As
disposiccedilotildees da alma (significaccedilatildeo e sentido) satildeo as mesmas em todos bem como as
coisas que elas significam enquanto as letras e vozes satildeo diferentes dependendo da
liacutengua Com outras palavras as letras e vozes que satildeo diferentes de liacutengua para liacutengua
38 ldquoVox quae non est significativa verbum dici non potestrdquo (A voz que natildeo eacute significativa natildeo pode ser dita palavra) ndash Tomaacutes de Aquino op Cit (I341) 39 ldquoLocutio est proprium opus rationis (I913 ad 3) falar -diz Tomaacutes- eacute operaccedilatildeo proacutepria da razatildeo 40 Agrave base desta concepccedilatildeo estaacute a concepccedilatildeo grega do homem aacutenthropos como zoon logon echon (vivente que tem linguagem) Nesta traduccedilatildeo o loacutegos eacute tanto ratio (pensamento) quanto oratio (fala no sentido de discurso) 41 Em Tomaacutes no acircmbito da vox situa-se a palavra (verbum) A palavra eacute uma realizaccedilatildeo especial do signo (signum) que por sua vez eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro (III604) 42 Cfr Heidegger M Vom Wesen der Sprache Die Metaphysik der Sprache und die Wesung des Wortes - Zu Herders Abhandlung ldquoUumlber den Ursprung der Spracherdquo Gesammtausgabe Band 85 p 3-4 43 Cfr idem p 20
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satildeo sinais instituiacutedos pelo arbiacutetrio humano que representam as disposiccedilotildees da alma (no
caso significaccedilatildeo e sentido) que por sua vez satildeo sinais naturais representativos das
coisas44
As expressotildees orais ou escritas satildeo formas linguiacutesticas dotadas de significaccedilotildees e
de sentido Sentidos e significaccedilotildees que satildeo pensados vecircm agrave expressatildeo Eles satildeo
exprimiacuteveis atraveacutes de formaccedilotildees linguiacutesticas Uma coisa eacute a forma linguiacutestica da
expressatildeo o complexo graacutefico ou focircnico ou como dizem os medievais as voces (vozes)
Outra coisa eacute o conteuacutedo da expressatildeo a significaccedilatildeo o sentido no juiacutezo e no
entrelaccedilamento de juiacutezos (conclusatildeo silogismo) O conteuacutedo eacute um ldquosignificatumrdquo que
estaacute intencionalmente ldquoin menterdquo45
A voz se torna expressatildeo agrave medida que eacute dotada de significaccedilotildees e de sentido
Assim a proposiccedilatildeo enquanto sequecircncia de palavras eacute singular Mas o conteuacutedo da
proposiccedilatildeo o juiacutezo ora eacute singular se o predicado eacute dito de um soacute ou universal se o
predicado eacute dito de muitos A proposiccedilatildeo como uma sequecircncia de palavras natildeo eacute
verdadeira ou falsa Ela eacute ou natildeo eacute Eacute falada ou escrita Mas natildeo eacute verdadeira ou falsa O
sentido da proposiccedilatildeo o juiacutezo eacute que eacute verdadeiro ou falso natildeo poreacutem enquanto
simples conteuacutedo da proposiccedilatildeo mas soacute agrave medida que ele tem um valor objetivaacutevel um
valor de conhecimento objetivo46 Proposiccedilatildeo e sentido palavra e significaccedilatildeo
pertencem a acircmbitos de realidade diversos Os elementos linguiacutesticos que constituem
proposiccedilatildeo e palavra satildeo sensivelmente perceptiacuteveis (satildeo acuacutesticos visuais motores)
satildeo reais e temporais Jaacute as significaccedilotildees e o sentido se subtraem a uma percepccedilatildeo
sensorial e satildeo atemporais O elemento linguiacutestico de uma expressatildeo eacute um signum ad
44 Cfr Quaestiones in I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 7) ldquoAd quaestionem dicendum quod differentia est conveniens quia passiones inquanto sunt signa et res inquanto sunt significata sunt eandem apud omnes nam eadem passio in anima apud quoscumque concipientes repraesentat eamdem rem quia eadem similitudo in anima semper est eiusdem repraesentativa sicut est similitudo sensibilis in sensu litterae et voces in se eaedem non sunt eaedem apud omnes inquanto sunt signa quia nec eadem littera apud omnes repraesentat eamdem vocem sed vel aliam vel nullam nec eadem vox apud omnes significat eamdem passionem sed vel aliam vel nullamrdquo (SCOTUS 1998 p 918) 45 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 12) ldquoAd quaestionem dici potest quod iste liber non est de decem vocibus ut de primo subiecto ndash nec aliqua pars logicae est de voce quia omnes passiones syllogismi et omnium partium eius possunt sibi inesse secundum esse quod habent in mente etsi non proferantur () sed est de aliquo priore quod respectu voces significativae tantum habet rationem significatirdquo (SCOTUS 1998 p 652) 46 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 22) ldquoSimiliter lsquosignificare verum vel falsumrsquo convenit enuntiationi sed non ut vox est significans conceptum sed ut conceptus significat remrdquo (SCOTUS 1998 p 653)
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placitum um signo instituiacutedo conforme o agrado ou o arbiacutetrio de quem o usa47 As
significaccedilotildees e os sentidos poreacutem se subtraem ao arbiacutetrio daquele que pensa por ter
a sua proacutepria necessidade ideal ou objetiva
A forma linguiacutestica eacute signo da significaccedilatildeo que por sua vez eacute signo de algo de
objetual de alguma objetualidade (objetos estados-de-coisas notas distintivas formas
reais ou categoriais) Trata-se do triacircngulo semioacutetico que constitui a base da
consideraccedilatildeo sobre a linguagem em toda a tradiccedilatildeo ocidental e que vem de Aristoacuteteles
Para Duns Scotus palavra e proposiccedilatildeo enquanto formaccedilotildees linguiacutesticas
dotadas de significaccedilatildeo e de sentido apontam para a esfera objetual A formaccedilatildeo
linguiacutestica eacute sinal da significaccedilatildeo e do sentido que eacute por sua vez sinal do objeto Enfim
palavra e proposiccedilatildeo satildeo sinais das coisas ldquoQuidquid est signum signi est signum
signatirdquo ndash o que quer que seja sinal do sinal eacute sinal do assinalado48 Assim palavra e
proposiccedilatildeo se tornam sinais das objetualidades agraves quais se referem No entendimento
de Duns Scotus o conceito eacute o que eacute designado imediatamente o objeto eacute o que eacute
designado mediatamente pela expressatildeo O doutor sutil esclarece que significare eacute dare
intelligere dar a compreender49 O signo eacute algo de relacional possui um caraacuteter ou uma
funccedilatildeo remissiva O signo graccedilas a sua funccedilatildeo remissiva eacute o fundamento material de
que parte o conhecimento do designado A expressatildeo linguiacutestica poreacutem natildeo eacute somente
um signo que remete ou se refere a algo Ele eacute um signo que significa algo ou seja que
daacute a compreender algo ou algo de algo e que ademais se refere a objetualidades
visando dizer ou seja mostrar o que se mostra e como se mostra50
47 Cfr Quaestiones super I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 14) ldquo et instrumenta naturalia formandi vocem potest homo aliqua imponere quae sunt signa ad placitum et non naturalia sive conceptusrdquo (SCOTUS 1998 p 919) 48 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 28 n 28) ldquo lsquoQuidquid est signum signi est signum signatirsquo ita quod signum intermedium non varietur in comparatione ad primum signum et ultimum signatumrdquo (SCOTUS 1998 p 751) 49 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 8 n 1) ldquoQuia significare est intellectum constituererdquo (SCOTUS 1998 p 679) 50 Assim para Husserl a expressatildeo que funde numa unidade a manifestaccedilatildeo sensiacutevel a significaccedilatildeo e a referecircncia ao objeto estaacute ordenada tanto a um valor de conhecimento quanto a um valor de verdade Agrave expressatildeo corresponde ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo se constitui uma relaccedilatildeo com o objeto Triacuteplice eacute o conteuacutedo de uma expressatildeo a significaccedilatildeo a referecircncia ao objeto e por fim o preenchimento de sentido A expressatildeo pela significaccedilatildeo e pela referecircncia ao objeto daacute a compreender alguma coisa acerca de algo O preenchimento da intenccedilatildeo signitiva vazia no modo da confirmaccedilatildeo da documentaccedilatildeo intuitiva leva por sua vez agrave experiecircncia da verdade Para Husserl expressotildees satildeo signos significativos distintos dos signos indicativos Numa descriccedilatildeo fenomenoloacutegica da expressatildeo dotada de sentido se
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No De dialectica (Da dialeacutetica) Agostinho define a palavra como um sinal de
alguma coisa que proferido por quem fala pode ser compreendido por quem escuta (De
Dialectica 5) 51 Nesta definiccedilatildeo podemos perceber as vaacuterias dimensotildees do exerciacutecio
humano da linguagem a da comunicaccedilatildeo em que homens falam uns com os outros
compartilhando suas vidas e coparticipando de um mesmo mundo a da expressatildeo em
que homens se pronunciam a partir de seu ser num mundo comum o discurso pelo
qual homens falam uns com os outros e escutam uns aos outros a compreensatildeo e
interpretaccedilatildeo em que homens ouvindo uns aos outros recebem a mensagem e se
apropriam de seu sentido Como ponta do ldquoicebergrdquo de toda esta vitalidade do concurso
comunicativo e do discurso temos o sinal que eacute proferido por quem fala o som da boca
a voz que longe de ser um mero ruiacutedo eacute um sinal um signo e se sinal eacute sinal de
alguma coisa ou seja algo vem a ser significado por este signo ou sinal
podem evidenciar trecircs momentos que no entanto formam uma unidade intimamente fundida a apariccedilatildeo fiacutesica da expressatildeo o ato doador de sentido e o ato preenchedor de sentido Assim palavras e proposiccedilotildees satildeo sons articulados animados de sentido Agraves expressotildees satildeo essenciais os atos que conferem a significaccedilatildeo respectivamente as intenccedilotildees de significaccedilatildeo A estes atos se acrescentam de modo extra-essencial os atos que preenchem as significaccedilotildees confirmando reforccedilando ilustrando as intenccedilotildees de significaccedilatildeo Para que o signo se torne expressatildeo eacute preciso que lhe seja imposto uma significaccedilatildeo Husserl fala de emprestar significaccedilatildeo de conferir sentido Expressotildees satildeo unidades de signos e designados (sinais e assinalados) de espeacutecie bem peculiar Expressotildees satildeo sinais significativos A significaccedilatildeo adere ao ato significativo Com a expressatildeo que suscita o ato que confere o sentido nos orientamos ao objeto Agrave expressatildeo compete ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo eacute que se constitui a relaccedilatildeo com o objeto ldquoToda e qualquer expressatildeo natildeo quer apenas dizer qualquer coisa mas tambeacutem diz algo acerca de qualquer coisa ela natildeo tem apenas a sua significaccedilatildeo mas refere-se tambeacutem a quaisquer objetosrdquo (HUSSERL 2012 p 38 ndash grifo de Husserl) Assim significaccedilatildeo e referecircncia objetiva se distinguem Expressotildees podem ter a mesma significaccedilatildeo mas objetos diferentes por um lado e por outro podem ter significaccedilotildees diferentes mas o mesmo objeto Assim considerando dois enunciados ldquoeste sendeiro eacute um cavalordquo e ldquoBuceacutefalo eacute um cavalordquo a expressatildeo um cavalo tem a mesma significaccedilatildeo mas os objetos satildeo diferentes Por sua vez dois nomes podem significar coisas diferentes mas nomear o mesmo como no exemplo ldquoO vencedor de Iena - O vencido de Waterloordquo Significaccedilatildeo e referecircncia objetiva no entanto estatildeo em iacutentima conexatildeo A expressatildeo se refere ao objeto por meio da significaccedilatildeo Uma expressatildeo adquire um referimento ao objeto pelo simples fato de que esta significa algo Por isso eacute que dizemos que uma expressatildeo designa ou denomina algo por meio do seu significado ou seja o ato de significar eacute o modo determinado de intencionar o objeto em questatildeo soacute que justamente este modo de intencionar e portanto o significado mesmo pode variar enquanto permanece idecircntica a direccedilatildeo para o objeto Se considerarmos pois os trecircs momentos que se fundem numa unidade na expressatildeo temos aquilo que de modo equiacutevoco se chama o expressado da expressatildeo ldquoOs termos em relaccedilatildeo ndash manifestaccedilatildeo significaccedilatildeo e objeto ndash pertencem essencialmente a toda e qualquer expressatildeo Em cada uma qualquer coisa eacute manifestada qualquer coisa eacute significada e qualquer coisa eacute nomeada ou de algum modo designada E no discurso equiacutevoco tudo isto se diz lsquoexpressorsquordquo 51 Idem p 14
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No escrito sobre a dialeacutetica Agostinho trata de quatro elementos desta arte o
verbum o dicibile52 a dictio53 e a res Vejamos como Agostinho expotildee o nexo entre estes
quatro elementos
Ora porque as palavras (verba) satildeo sinais das coisas (signa rerum) quando se ocupam com as coisas enquanto satildeo sinais das palavras (signa verborum) quando se discute sobre palavras ndash pois sobre palavras natildeo podemos falar a natildeo ser com palavras e quando falamos natildeo falamos a natildeo ser de coisas ndash ocorre agrave mente que as palavras satildeo sinais das coisas sem deixar de ser coisas
Quando pois a palavra sai da boca se sai por causa de si mesma isto eacute para que acerca dela se inquira ou se discuta haacute certamente uma coisa que eacute sujeita a discussatildeo e a investigaccedilatildeo mas justamente esta coisa eacute chamada palavra
E o que quer que a partir da palavra natildeo os ouvidos mas a mente (animus) percebe (sentit) e que a mente mesma manteacutem incluiacuteda em si se chama dicibile54 Quando poreacutem a palavra sai natildeo por causa de si mesma mas para significar algo de outro chama-se dictio55 E a coisa mesma que natildeo eacute uma palavra nem ainda uma concepccedilatildeo da palavra na mente seja que tenha uma palavra com a qual possa ser significada seja que natildeo a tenha daqui por diante natildeo eacute chamada com nome apropriado de outro modo do que de coisa
Estes quatro hatildeo de ser mantidos distintamente portanto a palavra (verbum) o dicibile a dictio a coisa Aquilo que defini como palavra eacute uma palavra e significa a palavra Aquilo que defini dicibile eacute uma palavra e todavia natildeo significa a palavra mas aquilo que graccedilas agrave palavra se compreende e estaacute contido na mente Aquilo que eu defini dictio eacute uma palavra mas uma palavra que significa contemporaneamente as outras duas ou seja a palavra mesma e aquilo que se faz na mente atraveacutes da palavra Aquela que eu defini como coisa eacute uma palavra que significa tudo aquilo que fica fora das trecircs que foram ditas
52 Seria o λεκτόν (lektoacuten) dos estoicos 53 Seria a λέξις (leacuteksis) dos estoicos 54 O exprimiacutevel ou melhor o diziacutevel no sentido do mostraacutevel 55 A expressatildeo o dito do dizer
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Depois destas digressotildees necessaacuterias para aclararmos o que estaacute em questatildeo
voltemos ao livro II do ldquoDe Doctrina Christianardquo de Agostinho Retomemos a sua
consideraccedilatildeo a respeito do signo
Haacute dois tipos de signos os naturais e os convencionais Os naturais datildeo a
conhecer por si proacuteprios alguma coisa aleacutem do que satildeo em si Assim fumaccedila eacute signo
de fogo Os signos convencionais (data signa) satildeo todos aqueles que os seres vivos em
especial o ser humano mutuamente se trocam para manifestar ndash o quanto lhes eacute
possiacutevel ndash os movimentos de sua alma tais como as sensaccedilotildees e os pensamentos Os
signos podem se dar em referecircncias a todos os sentidos a maioria dos signos poreacutem
se referem agrave audiccedilatildeo ou agrave visatildeo Dentre estes signos mais usuais e importantes satildeo os
signos verbais que satildeo sons significativos que se articulam mediante a voz humana
constituindo a palavra falada Os signos escritos poreacutem mostram os signos verbais de
maneira visiacutevel (e natildeo audiacutevel como fazem os signos falados)
A liacutengua eacute a realizaccedilatildeo concreta da linguagem humana mediante o uso de signos
verbais falados ou escritos As Sagradas Escrituras indicam pela histoacuteria da Torre de
Babel que liacutengua e linguagem sofrem com a decadecircncia do espiacuterito humano causada
pela soberba56 O contraacuterio da histoacuteria de Babel eacute poreacutem a histoacuteria de Pentecostes
narrada no livro dos Atos dos Apoacutestolos que aponta para a comunhatildeo do amor e o
muacutetuo entendimento entre os homens propiciado com o dom do Hagioacutes Pneuma
(Sopro Sagrado Espiacuterito Santo)
56 Na histoacuteria narrada pelo livro do Gecircnesis os homens se unem para erguer uma torre que una a terra ao ceacuteu a partir das proacuteprias forccedilas e da proacutepria engenhosidade Nos povos antigos encontramos monumentos que evocam algo disso O desejo do homem de uniatildeo entre o ceacuteu e a terra se manifesta nos zigurates da mesopotacircmia nas piracircmides das altas culturas das pedras (Egito Peru Meacutexico) nas estupas asiaacuteticas e quiccedilaacute em tempos mais primitivos aos dolmens menires nas cacircmaras funeraacuterias e nos obeliscos Junto com o esforccedilo de o homem erguer-se a si mesmo como homem erguendo pedras haacute o esforccedilo tambeacutem de alcanccedilar a vida dos imortais dos deuses tolhendo a proacutepria finitude Babel que era para ser a ldquoporta dos deusesrdquo (babilani) se torna poreacutem o lugar da confusatildeo (balal = confundir) O mundo se torna assim uma ldquoBabilocircniardquo isto eacute o lugar da confusatildeo em que os homens natildeo conseguem chegar ao entendimento muacutetuo Somente em Pentecostes em Jerusaleacutem celebra-se plenamente a superaccedilatildeo desta divisatildeo e desta confusatildeo em que as liacutenguas natildeo satildeo mais confusas e em que a linguagem do amor ardente une os homens e propicia-lhes a chance do entendimento muacutetuo e da verdadeira concoacuterdia uma concoacuterdia para o bem em favor de Deus
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Aquele vento purificava os coraccedilotildees da palha carnal aquele fogo consumia o feno da antiga concupiscecircncia aquelas liacutenguas em que falavam os que estavam plenos do Espiacuterito Santo prefiguravam a futura Igreja mediante liacutenguas de todos os povos Pois assim como depois do diluacutevio a soberba impiedade dos homens edificou uma grandiosa torre contra o Senhor ocasiatildeo na qual o gecircnero humano mereceu ser dividido pela diversidade das liacutenguas de modo que cada naccedilatildeo falasse sua proacutepria liacutengua para natildeo ser entendido pelas demais assim a humilde piedade dos fieis reduziu a diversidade de liacutenguas agrave unidade da Igreja de maneira que aquilo que a discoacuterdia tinha dispersado o reunisse a caridade e assim os membros dispersos do gecircnero humano qual membros de um mesmo corpo fossem reintegrados agrave unidade de uma uacutenica cabeccedila que eacute Cristo e fundidos na unidade do corpo santo mediante o fogo do amor57
O maior sinal da comunhatildeo do amor eacute quando os homens conseguem falar uns
com os outros e se entender Embora sejam diferentes e falem liacutenguas diferentes falam
a partir de uma mesma linguagem a do amor-caridade (gratuidade) As liacutenguas se
tornam entatildeo como labaredas do amor As falas satildeo entatildeo falas inflamadas de um fogo
divino brilhantes e ardentes divinamente apaixonadas entusiasmadas O amor eacute o que
possibilita manter esta identidade na diferenccedila Cria-se uma identidade comum mas
sem desfazer antes protegendo as diferenccedilas Eacute o milagre das liacutenguas O contraacuterio de
Babel Recriaccedilatildeo do homem humano e da humanidade universal
Assim os homens podem voltar agrave linguagem comum apesar da diversidade das
liacutenguas unindo suas vontades no empenho de conhecer e realizar a vontade de Deus A
serviccedilo deste intento estatildeo as Sagradas Escrituras Estas satildeo obra do proacuteprio Deus que
usou de hagioacutegrafos inspirados para expressar a sua vontade na linguagem humana
mediante as diversas liacutenguas Os que leem as Sagradas Escrituras natildeo desejam encontrar
nelas mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram e desse modo chegar
a conhecer a vontade de Deus segundo a qual ordem esses homens compuseram
Entretanto o leitor das Sagradas Escrituras vai se deparar continuamente com
ambiguidades e obscuridades Para Agostinho estas fazem parte da proacutepria natureza das
Escrituras Sagradas Haacute um certo quecirc de hermeacutetico de enigmaacutetico de obscuro nelas
57 Sermatildeo 271
25
Mas eacute justamente isto que desafia a compreensatildeo e que a faz crescer na busca da
vontade divina As obscuridades e ambiguidades natildeo satildeo inuacuteteis Elas vencem o orgulho
do homem que se aproxima dos misteacuterios divinos sem reverecircncia e sem devoccedilatildeo Por
outro lado elas premunem o espiacuterito do fastio e do teacutedio que a facilidade sempre trazem
consigo As dificuldades de interpretaccedilatildeo cria-nos o gosto pelo exerciacutecio da
compreensatildeo na sua aventura de conquista do sentido Contudo natildeo se deve ter a
pretensatildeo de que se pode chegar a uma clareza que elimine toda sombra e obscuridade
A clareza do misteacuterio que se desvela sempre traz o veacuteu do pudor em que o misteacuterio
mesmo se encobre e assim se resguarda Os significados hauridos seratildeo sempre acenos
do inefaacutevel na medida em que o misteacuterio santo se deixa captar no horizonte do sentido
Uma vez que as Sagradas Escrituras satildeo linguagem do misteacuterio santo do Deus
absconditus (Deus escondido) que se re-vela (desvela e vela ao mesmo tempo) na
finitude da linguagem humana o leitor vai se deparar com desafios sempre novos
Agostinho recorre entatildeo agrave alegorese seguindo neste ponto a tradiccedilatildeo dos
alexandrinos As alegorias possuem encanto todo especial capaz de falar natildeo somente
ao entendimento mas tambeacutem ao coraccedilatildeo dos homens Com efeito a linguagem
imageacutetica concreta tem maior poder de comunicaccedilatildeo vital do que a linguagem
conceitual abstrata O uso de comparaccedilotildees leva o leitor a aprender mais
espontaneamente (libenter) As dificuldades de interpretaccedilatildeo levam-no a aprender com
maior prazer (gratius) As passagens obscuras das Escrituras aguccedilam a fome de
compreensatildeo do leitor Entretanto Agostinho daacute uma indicaccedilatildeo metodoloacutegica de leitura
importante para ir abrindo a compreensatildeo das Escrituras ganhar familiaridade com as
passagens claras e inequiacutevocas e com isso iluminar as passagens obscuras e
enigmaacuteticas Com efeito diz ele quase nada sobressai nas obscuridades que natildeo esteja
escrito mais claramente em outro lugar
Aquele que lecirc as Sagradas Escrituras procurando nelas a vontade divina eacute algueacutem
que estaacute a caminho numa viagem para a paacutetria da beatitude eterna Este caminhar
comporta determinado itineraacuterio no qual o homem vai se dispondo cada vez mais ao
Espiacuterito de Deus e ao seu modo de operar na alma os seus dons Eacute na medida que se
aproxima da Sabedoria do Espiacuterito que o leitor lecirc com maior proveito e profundidade as
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Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
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Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
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Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
29
Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
30
(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
34
como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
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O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
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Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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O livro II eacute um verdadeiro tratado de semiologia26 Todo o pensamento a respeito
da linguagem do ocidente se baseia no triacircngulo semioacutetico signo conceito coisa A base
desta concepccedilatildeo de Aristoacuteteles Ela eacute exposta no ὶ ἑί (perigrave hermeneiacuteas)
ldquoDe interpretationerdquo (16a 3-8)
Satildeo pois aquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz siacutembolos das paixotildees (afecccedilotildees disposiccedilotildees) na alma e as coisas que satildeo escritas satildeo siacutembolos daquelas coisas que se datildeo na ressonacircncia da voz E assim como as coisas escritas natildeo satildeo as mesmas para todos do mesmo modo tambeacutem os sons da voz natildeo satildeo os mesmos Aquelas coisas de que isso (coisas escritas e sons da voz) satildeo primordialmente signos (coisas que mostram) satildeo para todos (os homens) as mesmas paixotildees da alma e as coisas das quais estas (paixotildees da alma) formam apresentaccedilotildees assemelhadas satildeo igualmente as mesmas27
O texto de Aristoacuteteles se manteacutem numa fala esclarecida e soacutebria que torna
visiacutevel a claacutessica estruturaccedilatildeo que abriga a linguagem como discurso ou fala As letras
do alfabeto28 mostram os fonemas29 Os fonemas mostram as disposiccedilotildees na alma30 As
disposiccedilotildees na alma mostram as coisas que que lhe con-cernem31 O mostrar configura
e sustenta as escoras dessa construccedilatildeo De maneira variada o mostrar conduz algo para
um aparecer deixando assim apreender o que aparece e permitindo que se discuta o
que se apreende
26 A semiologia (ou semioacutetica) eacute a ciecircncia dos signos Como os signos verbais tecircm na vida humana um papel de primeiro plano a semiologia se concentrou em grande parte na linguagem Haacute uma semiologia nas especulaccedilotildees linguiacutestica da antiguidade entre os modistas da Idade Meacutedia etc Mas o nome ldquosemioacuteticardquo surge na modernidade com Locke Torna-se poreacutem uma disciplina independente na obra do filoacutesofo americano Charles Sanders Peirce (1839-1914) 27 A traduccedilatildeo entende os σημεῖα (semeia ndash os signos aquelas coisas que mostram) os σύμβολα (symbola - os siacutembolos ndash o que eacute lanccedilado junto e nessa junccedilatildeo deixa e faz com que um se atenha ao outro) e os ὁμοιώματα (homoioacutemata ndash as apresentaccedilotildees assemelhadas as semelhanccedilas) como um mostrar no sentido de deixar aparecer o que por sua vez encontra-se no acircmbito do desencobrimento (αλήθεια ndash aleacutetheia) 28 τὰ γραφόμενα ndash taacute graphoacutemena 29 τὰ ἐν τῇ φωνῇ - taacute en te phoneacute 30 παθήματα τῆς ψυχῆς ndash patheacutemata tecircs psykhecircs 31 πράγματα - praacutegmata
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Antes de nos apropriarmos da semiologia de Agostinho tentemos aqui uma
consideraccedilatildeo fenomenoloacutegica sobre o sinal e a linguagem
O falar acontece por mor do dizer Dizer eacute mostrar O falar enquanto dizer se
realiza como um discurso mostrador loacutegos apophaacutentikoacutes32 O falar estaacute a serviccedilo do
dizer Dizer eacute mostrar no sentido de deixar e fazer ver a quem se fala aquilo de que se
fala Dizer eacute dar algo a compreender eacute fazer-se compreender sobre algo a quem escuta
O mostrar no falar acontece como um conceder acenos dar indiacutecios oferecer
indicaccedilotildees oferecer sinais33 Mas tudo isso acontece no sentido de um anunciar que se
cumpre como um revelar um divulgar um mencionar (fazer menccedilatildeo de referir relatar
expor narrar) um lembrar um recordar e um comemorar O anunciar eacute entendido pois
pelos gregos como um mostrar deiknymi34 O sinal eacute uma referecircncia uma remissatildeo O
remeter proacuteprio do sinal consiste em mostrar O mostrar do sinal se funda na referecircncia
na remissatildeo Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo No entanto
Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo eacute uma referecircncia Toda lsquoaccedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma referecircncia mas nem toda referecircncia mostra Com isso tambeacutem se diz toda accedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo mostra Assim aparece o caraacuteter formal e geral da relaccedilatildeo Para se investigar os fenocircmenos de referecircncia sinal e significado de nada adianta caracterizaacute-los como relaccedilatildeo Deve-se em uacuteltima instacircncia mostrar que a proacutepria lsquorelaccedilatildeorsquo devido a seu
32 O loacutegos eacute um reunir e um recolher (leacutegein) que potildee expotildee e depotildee abre e manifesta traz ao desencobrimento agrave revelaccedilatildeo Como abrir e manifestar leacutegein estaacute em contraste com krypto cobrir encobrir esconder ocultar no sentido de guardar Conhecemos um fragmento de Heraacuteclito (fr 93) que traz este contraste Ele diz Ho aacutenax hou tograve manteion esti tograve en Delphois oute leacutegei oute kryptei allagrave semainei ndash O Autor de quem eacute o oraacuteculo de Delfos natildeo traz ao desencobrimento nem encobre mas acena 33 Semainein eacute um conceder semata (acenos indiacutecios indicaccedilotildees) A palavra grega no singular eacute ldquosemardquo indiacutecio vestiacutegio marca distintiva senha sinal ldquoSemardquo eacute tambeacutem pressaacutegio auguacuterio auspiacutecio Eacute ainda o astro ou uma constelaccedilatildeo da qual se tiram indicaccedilotildees na orientaccedilatildeo concernente ao ceacuteu Eacute por fim o tuacutemulo a tumba 34 Da mesma raiz de ldquodeiknymirdquo (mostrar) eacute o verbo latino ldquodicererdquo dizer Dizer eacute mostrar isto eacute deixar e fazer ver trazer agrave evidecircncia alguma coisa O sinal pois no falar precisa ser entendido na dinacircmica do dizer isto eacute do mostrar
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caraacuteter formal geral tem sua origem ontoloacutegica numa referecircncia35
Haacute uma multiplicidade de sinais anuacutencios prenuacutencios vestiacutegios marcas
distintivos cuja accedilatildeo de mostrar difere a cada caso Satildeo sinais diferentes o rastro o
resto o monumento o documento o testemunho o siacutembolo a expressatildeo a
manifestaccedilatildeo a significaccedilatildeo O sinal tem a sua serventia no mostrar no sentido de fazer
sobressair de dar na vista salientar fazer reparar estranhar alguma coisa Aquilo que
normalmente natildeo causa surpresa eacute ressaltado pelo sinal O sinal permite a descoberta
de alguma coisa
O mundo eacute o ldquoonderdquo das descobertas O homem se orienta se dirige se
direciona em seus comportamentos com as coisas com os entes agrave matildeo a partir de uma
familiaridade com o mundo A abertura de mundo se daacute como compreensatildeo Trata-se
poreacutem de uma compreensatildeo operativa natildeo teoacuterica Compreender significa aqui reunir
as remissotildees recolher as referecircncias O caraacuteter de remissatildeo das remissotildees das
referecircncias eacute o que se chama de significar Significar (be-deuten) eacute aqui mostrar
(deuten) no sentido de pocircr a caminho um clarear um esclarecer Eacute o processo e o
movimento de estruturaccedilatildeo do mundo Significar eacute aqui oferecer alguma coisa para a
compreensatildeo e para a interpretaccedilatildeo Significacircncia (Bedeutsamkeit) eacute o todo das
remissotildees do acontecimento e do processo do significar que eacute a estruturaccedilatildeo de
mundo Noacutes nos encontramos a noacutes mesmos jaacute sempre no mundo entendendo o mundo
antes de tudo como uma totalidade de significacircncias Eacute um encontrar-se a si mesmo
sempre numa situaccedilatildeo de ocupaccedilatildeo e preocupaccedilatildeo de cuidado com o proacuteprio ser-no-
mundo Tudo aquilo com que podemos nos relacionar e comportar tem este caraacuteter
estaacute aiacute e eacute encontrado no caminho do cuidado eacute experimentado como significativo a
partir de um determinado cuidado Significacircncia indica este modo fundamental como
algo segundo o seu teor proacuteprio eacute encontrado na vida como ele se deteacutem e se reteacutem
no meio do mundo da vida
Soacute acontece linguagem onde noacutes falamos uns com os outros A linguagem
acontece de iniacutecio e na maior parte das vezes na conversa com suas falas e seus
silecircncios Para noacutes isto eacute na ordem da nossa experiecircncia cotidiana a primeira
35 Heidegger M Ser e Tempo sect 17
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dimensatildeo pois da linguagem eacute a fala o discurso O discurso traz agrave fala uma
compreensatildeo Chamamos de sentido o que pode ser articulado O sentido eacute o que torna
compreensiacutevel algo enquanto algo Compreender eacute fundamentalmente apreender algo
enquanto algo Tudo que apreendemos se mostra a si mesmo como isso ou aquilo Isso
quer dizer noacutes aprendemos cada coisa em sua significacircncia A percepccedilatildeo natural em
que noacutes vivemos cotidianamente jaacute eacute sempre uma compreensatildeo uma captaccedilatildeo da coisa
como esta coisa do sapato como sapato do livro como livro do reloacutegio como reloacutegio
Natildeo eacute assim que eu primeiro apreendo uma coisa na sua nua e crua factualidade e
depois lhe atribuo este ou aquele significado Cada vez eu apreendo uma coisa como
tal coisa isto eacute eu apreendo a coisa dentro de uma determinada significacircncia36
A coisa que me vem ao encontro dentro do mundo se mostra como isto ou
aquilo37 Ela instaura um conjunto de referecircncias ela remete a isto ou aquilo ela soa
desta ou daquela maneira em meu mundo ela fala disto ou daquilo em minha vida A
coisa significa a si mesma Mas o seu poder significar a si mesma soacute eacute possiacutevel porque
ela jaacute eacute descoberta como coisa que vem ao encontro dentro do mundo isto eacute dentro de
uma totalidade de sentido Que a coisa se faccedila encontrar e descobrir deste ou daquele
modo e que ela se decirc a compreender como isto ou aquilo ndash isto soacute eacute possiacutevel porque ao
apreendecirc-la numa percepccedilatildeo concreta um mundo jaacute se me abriu Com a coisa se
anuncia o mundo da vida ou melhor os mundos da vida o mundo circunstante o
mundo partilhado da convivecircncia o mundo proacuteprio pessoal A coisa soacute pode ser
apreendida na sua significacircncia a partir da abertura do mundo ou dos mundos
Perceber eacute jaacute compreender as coisas na sua significacircncia Perceber eacute estruturar
e configurar o mundo como estrutura significativa Em toda percepccedilatildeo atua pois um
ato fundamental de significaccedilatildeo Chamamos de significar o ato pelo qual o homem
estrutura a significacircncia das coisas no horizonte do mundo enquanto totalidade
significativa Da compreensatildeo que articula a significaccedilatildeo das coisas numa totalidade
sentido brota a possibilidade da interpretaccedilatildeo Pela compreensatildeo o homem estaacute
sempre se projetando abrindo lances de perspectivas entrevendo de antematildeo
36 Cfr M HEIDEGGER GP 102-110 37 Cfr M HEIDEGGER Ontologie (Hermeneutik der Faktizitaumlt) (OHF) Gesamtausgabe ndash Band 63 Vittorio Klostermann Frankfurt am Main 1995 p 93-104
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aberturas de possibilidades Pela compreensatildeo o homem opera um ver que eacute projetivo
e criativo de possibilidades de ser Esse ver projetivo e criativo configura isto eacute elabora
em formas significativas essas possibilidades de ser Agrave elaboraccedilatildeo e exposiccedilatildeo dessas
formas chamamos de interpretaccedilatildeo Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo se apropria do
que compreende Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo busca chegar a uma maturaccedilatildeo
isto eacute busca maturar as possibilidades de ser que ela jaacute entreviu A interpretaccedilatildeo eacute uma
explicitaccedilatildeo da compreensatildeo O que entra como componente da explicitaccedilatildeo possui o
caraacuteter de significacircncia eacute o mostrar-se de algo como algo Em todo o nosso
comportamento noacutes jaacute estamos sempre compreendendo e interpretando apreendendo
algo como algo e referindo algo a algo articulando significados numa totalidade de
sentido que eacute o mundo O homem sempre interpreta Pois interpretar eacute ser homem
A articulaccedilatildeo dos significados numa totalidade de sentido se daacute atraveacutes do falar
quer do falar de si consigo mesmo quer do falar uns com os outros Na fala noacutes
pronunciamos o que compreendemos e como interpretamos o que estaacute em questatildeo Pro-
nunciar eacute pro-ferir isto eacute trazer agrave luz ao aberto do mundo da convivecircncia aquilo que
compreendemos e interpretamos Pelo discurso vecircm agrave fala os entes e o ser dos entes
tais como se oferecem agrave nossa compreensatildeo e interpretaccedilatildeo Vem agrave fala agrave medida que
se articulam num horizonte de compreensibilidade que noacutes chamamos de sentido O
sentido eacute o que se articula na compreensatildeo e interpretaccedilatildeo como horizonte daquilo que
compreendemos e interpretamos Todo discurso eacute o pronunciar o vir agrave fala daquilo que
compreendemos e interpretamos dos significados das coisas agrave luz do sentido de ser que
noacutes lhes damos
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Os medievais iratildeo precisar e aprofundar a concepccedilatildeo de signo Assim para
Tomaacutes de Aquino o signum eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro
A palavra proferida exteriormente pela voz eacute a fala A fala eacute proferida a modo de uma
voz articulada significativa Nem todo o som eacute voz A voz enquanto haacutelito sopro som
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que sai da boca com efeito soacute chega a ser palavra quando eacute significativa38 Sem a
significaccedilatildeo (significatio) uma voz natildeo eacute palavra A significaccedilatildeo torna a voz uma
expressatildeo do pensamento39 Por isso somente um vivente inteligente (animal rationale)
tem voz enquanto palavra40 Um vivente melhor um animal emite sons para se
comunicar Mas os seus sons natildeo satildeo vozes articuladas significativas Os gritos os
alaridos de animais natildeo satildeo palavras Sua comunicaccedilatildeo natildeo eacute fala O berrar de um
bezerro o mugir de uma vaca o balar de uma ovelha o balir de um cordeiro o arrulhar
de uma pomba o latir de um catildeo o miar de um gato ndash tudo isso natildeo eacute fala Seus sons
natildeo satildeo vozes significativas Indicam alguma coisa Mas o seu indicar natildeo tem o sentido
de significar alguma coisa Significar eacute dar a conhecer algo como algo a algueacutem41 Fumaccedila
indica fogo Bandeira branca indica rendiccedilatildeo Indicar poreacutem natildeo eacute significar Todo
significar eacute um indicar mas nem todo indicar eacute significar Significar eacute dar a conhecer no
sentido de dar a compreender algo como algo A fala daacute a conhecer alguma coisa Ela
faz-se notar e faz notar alguma coisa A fala eacute um fazer notar que daacute a conhecer alguma
coisa42 A fala faz notar daacute a conhecer isto eacute gera uma ldquonotiordquo ou uma ldquonotitiardquo
(conhecimento noccedilatildeo sentido)43 Notar quer dizer aqui dirigir-se a alguma coisa
orientando-se no mundo (intencionalidade) tornando-se atento a ela ao seu ser
Joatildeo Duns Scotus iraacute retomar o triacircngulo semioacutetico do Peri hermeneiacuteas de
Aristoacuteteles Ele questiona sobre a distinccedilatildeo de litteras et voces (letras e vozes) de um
lado passiones (disposiccedilotildees da alma) e res (coisa) de outro lado na quarta das questotildees
sobre o primeiro livro do ldquoPerigrave hermeneiasrdquo e conclui pela sua conveniecircncia As
disposiccedilotildees da alma (significaccedilatildeo e sentido) satildeo as mesmas em todos bem como as
coisas que elas significam enquanto as letras e vozes satildeo diferentes dependendo da
liacutengua Com outras palavras as letras e vozes que satildeo diferentes de liacutengua para liacutengua
38 ldquoVox quae non est significativa verbum dici non potestrdquo (A voz que natildeo eacute significativa natildeo pode ser dita palavra) ndash Tomaacutes de Aquino op Cit (I341) 39 ldquoLocutio est proprium opus rationis (I913 ad 3) falar -diz Tomaacutes- eacute operaccedilatildeo proacutepria da razatildeo 40 Agrave base desta concepccedilatildeo estaacute a concepccedilatildeo grega do homem aacutenthropos como zoon logon echon (vivente que tem linguagem) Nesta traduccedilatildeo o loacutegos eacute tanto ratio (pensamento) quanto oratio (fala no sentido de discurso) 41 Em Tomaacutes no acircmbito da vox situa-se a palavra (verbum) A palavra eacute uma realizaccedilatildeo especial do signo (signum) que por sua vez eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro (III604) 42 Cfr Heidegger M Vom Wesen der Sprache Die Metaphysik der Sprache und die Wesung des Wortes - Zu Herders Abhandlung ldquoUumlber den Ursprung der Spracherdquo Gesammtausgabe Band 85 p 3-4 43 Cfr idem p 20
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satildeo sinais instituiacutedos pelo arbiacutetrio humano que representam as disposiccedilotildees da alma (no
caso significaccedilatildeo e sentido) que por sua vez satildeo sinais naturais representativos das
coisas44
As expressotildees orais ou escritas satildeo formas linguiacutesticas dotadas de significaccedilotildees e
de sentido Sentidos e significaccedilotildees que satildeo pensados vecircm agrave expressatildeo Eles satildeo
exprimiacuteveis atraveacutes de formaccedilotildees linguiacutesticas Uma coisa eacute a forma linguiacutestica da
expressatildeo o complexo graacutefico ou focircnico ou como dizem os medievais as voces (vozes)
Outra coisa eacute o conteuacutedo da expressatildeo a significaccedilatildeo o sentido no juiacutezo e no
entrelaccedilamento de juiacutezos (conclusatildeo silogismo) O conteuacutedo eacute um ldquosignificatumrdquo que
estaacute intencionalmente ldquoin menterdquo45
A voz se torna expressatildeo agrave medida que eacute dotada de significaccedilotildees e de sentido
Assim a proposiccedilatildeo enquanto sequecircncia de palavras eacute singular Mas o conteuacutedo da
proposiccedilatildeo o juiacutezo ora eacute singular se o predicado eacute dito de um soacute ou universal se o
predicado eacute dito de muitos A proposiccedilatildeo como uma sequecircncia de palavras natildeo eacute
verdadeira ou falsa Ela eacute ou natildeo eacute Eacute falada ou escrita Mas natildeo eacute verdadeira ou falsa O
sentido da proposiccedilatildeo o juiacutezo eacute que eacute verdadeiro ou falso natildeo poreacutem enquanto
simples conteuacutedo da proposiccedilatildeo mas soacute agrave medida que ele tem um valor objetivaacutevel um
valor de conhecimento objetivo46 Proposiccedilatildeo e sentido palavra e significaccedilatildeo
pertencem a acircmbitos de realidade diversos Os elementos linguiacutesticos que constituem
proposiccedilatildeo e palavra satildeo sensivelmente perceptiacuteveis (satildeo acuacutesticos visuais motores)
satildeo reais e temporais Jaacute as significaccedilotildees e o sentido se subtraem a uma percepccedilatildeo
sensorial e satildeo atemporais O elemento linguiacutestico de uma expressatildeo eacute um signum ad
44 Cfr Quaestiones in I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 7) ldquoAd quaestionem dicendum quod differentia est conveniens quia passiones inquanto sunt signa et res inquanto sunt significata sunt eandem apud omnes nam eadem passio in anima apud quoscumque concipientes repraesentat eamdem rem quia eadem similitudo in anima semper est eiusdem repraesentativa sicut est similitudo sensibilis in sensu litterae et voces in se eaedem non sunt eaedem apud omnes inquanto sunt signa quia nec eadem littera apud omnes repraesentat eamdem vocem sed vel aliam vel nullam nec eadem vox apud omnes significat eamdem passionem sed vel aliam vel nullamrdquo (SCOTUS 1998 p 918) 45 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 12) ldquoAd quaestionem dici potest quod iste liber non est de decem vocibus ut de primo subiecto ndash nec aliqua pars logicae est de voce quia omnes passiones syllogismi et omnium partium eius possunt sibi inesse secundum esse quod habent in mente etsi non proferantur () sed est de aliquo priore quod respectu voces significativae tantum habet rationem significatirdquo (SCOTUS 1998 p 652) 46 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 22) ldquoSimiliter lsquosignificare verum vel falsumrsquo convenit enuntiationi sed non ut vox est significans conceptum sed ut conceptus significat remrdquo (SCOTUS 1998 p 653)
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placitum um signo instituiacutedo conforme o agrado ou o arbiacutetrio de quem o usa47 As
significaccedilotildees e os sentidos poreacutem se subtraem ao arbiacutetrio daquele que pensa por ter
a sua proacutepria necessidade ideal ou objetiva
A forma linguiacutestica eacute signo da significaccedilatildeo que por sua vez eacute signo de algo de
objetual de alguma objetualidade (objetos estados-de-coisas notas distintivas formas
reais ou categoriais) Trata-se do triacircngulo semioacutetico que constitui a base da
consideraccedilatildeo sobre a linguagem em toda a tradiccedilatildeo ocidental e que vem de Aristoacuteteles
Para Duns Scotus palavra e proposiccedilatildeo enquanto formaccedilotildees linguiacutesticas
dotadas de significaccedilatildeo e de sentido apontam para a esfera objetual A formaccedilatildeo
linguiacutestica eacute sinal da significaccedilatildeo e do sentido que eacute por sua vez sinal do objeto Enfim
palavra e proposiccedilatildeo satildeo sinais das coisas ldquoQuidquid est signum signi est signum
signatirdquo ndash o que quer que seja sinal do sinal eacute sinal do assinalado48 Assim palavra e
proposiccedilatildeo se tornam sinais das objetualidades agraves quais se referem No entendimento
de Duns Scotus o conceito eacute o que eacute designado imediatamente o objeto eacute o que eacute
designado mediatamente pela expressatildeo O doutor sutil esclarece que significare eacute dare
intelligere dar a compreender49 O signo eacute algo de relacional possui um caraacuteter ou uma
funccedilatildeo remissiva O signo graccedilas a sua funccedilatildeo remissiva eacute o fundamento material de
que parte o conhecimento do designado A expressatildeo linguiacutestica poreacutem natildeo eacute somente
um signo que remete ou se refere a algo Ele eacute um signo que significa algo ou seja que
daacute a compreender algo ou algo de algo e que ademais se refere a objetualidades
visando dizer ou seja mostrar o que se mostra e como se mostra50
47 Cfr Quaestiones super I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 14) ldquo et instrumenta naturalia formandi vocem potest homo aliqua imponere quae sunt signa ad placitum et non naturalia sive conceptusrdquo (SCOTUS 1998 p 919) 48 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 28 n 28) ldquo lsquoQuidquid est signum signi est signum signatirsquo ita quod signum intermedium non varietur in comparatione ad primum signum et ultimum signatumrdquo (SCOTUS 1998 p 751) 49 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 8 n 1) ldquoQuia significare est intellectum constituererdquo (SCOTUS 1998 p 679) 50 Assim para Husserl a expressatildeo que funde numa unidade a manifestaccedilatildeo sensiacutevel a significaccedilatildeo e a referecircncia ao objeto estaacute ordenada tanto a um valor de conhecimento quanto a um valor de verdade Agrave expressatildeo corresponde ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo se constitui uma relaccedilatildeo com o objeto Triacuteplice eacute o conteuacutedo de uma expressatildeo a significaccedilatildeo a referecircncia ao objeto e por fim o preenchimento de sentido A expressatildeo pela significaccedilatildeo e pela referecircncia ao objeto daacute a compreender alguma coisa acerca de algo O preenchimento da intenccedilatildeo signitiva vazia no modo da confirmaccedilatildeo da documentaccedilatildeo intuitiva leva por sua vez agrave experiecircncia da verdade Para Husserl expressotildees satildeo signos significativos distintos dos signos indicativos Numa descriccedilatildeo fenomenoloacutegica da expressatildeo dotada de sentido se
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No De dialectica (Da dialeacutetica) Agostinho define a palavra como um sinal de
alguma coisa que proferido por quem fala pode ser compreendido por quem escuta (De
Dialectica 5) 51 Nesta definiccedilatildeo podemos perceber as vaacuterias dimensotildees do exerciacutecio
humano da linguagem a da comunicaccedilatildeo em que homens falam uns com os outros
compartilhando suas vidas e coparticipando de um mesmo mundo a da expressatildeo em
que homens se pronunciam a partir de seu ser num mundo comum o discurso pelo
qual homens falam uns com os outros e escutam uns aos outros a compreensatildeo e
interpretaccedilatildeo em que homens ouvindo uns aos outros recebem a mensagem e se
apropriam de seu sentido Como ponta do ldquoicebergrdquo de toda esta vitalidade do concurso
comunicativo e do discurso temos o sinal que eacute proferido por quem fala o som da boca
a voz que longe de ser um mero ruiacutedo eacute um sinal um signo e se sinal eacute sinal de
alguma coisa ou seja algo vem a ser significado por este signo ou sinal
podem evidenciar trecircs momentos que no entanto formam uma unidade intimamente fundida a apariccedilatildeo fiacutesica da expressatildeo o ato doador de sentido e o ato preenchedor de sentido Assim palavras e proposiccedilotildees satildeo sons articulados animados de sentido Agraves expressotildees satildeo essenciais os atos que conferem a significaccedilatildeo respectivamente as intenccedilotildees de significaccedilatildeo A estes atos se acrescentam de modo extra-essencial os atos que preenchem as significaccedilotildees confirmando reforccedilando ilustrando as intenccedilotildees de significaccedilatildeo Para que o signo se torne expressatildeo eacute preciso que lhe seja imposto uma significaccedilatildeo Husserl fala de emprestar significaccedilatildeo de conferir sentido Expressotildees satildeo unidades de signos e designados (sinais e assinalados) de espeacutecie bem peculiar Expressotildees satildeo sinais significativos A significaccedilatildeo adere ao ato significativo Com a expressatildeo que suscita o ato que confere o sentido nos orientamos ao objeto Agrave expressatildeo compete ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo eacute que se constitui a relaccedilatildeo com o objeto ldquoToda e qualquer expressatildeo natildeo quer apenas dizer qualquer coisa mas tambeacutem diz algo acerca de qualquer coisa ela natildeo tem apenas a sua significaccedilatildeo mas refere-se tambeacutem a quaisquer objetosrdquo (HUSSERL 2012 p 38 ndash grifo de Husserl) Assim significaccedilatildeo e referecircncia objetiva se distinguem Expressotildees podem ter a mesma significaccedilatildeo mas objetos diferentes por um lado e por outro podem ter significaccedilotildees diferentes mas o mesmo objeto Assim considerando dois enunciados ldquoeste sendeiro eacute um cavalordquo e ldquoBuceacutefalo eacute um cavalordquo a expressatildeo um cavalo tem a mesma significaccedilatildeo mas os objetos satildeo diferentes Por sua vez dois nomes podem significar coisas diferentes mas nomear o mesmo como no exemplo ldquoO vencedor de Iena - O vencido de Waterloordquo Significaccedilatildeo e referecircncia objetiva no entanto estatildeo em iacutentima conexatildeo A expressatildeo se refere ao objeto por meio da significaccedilatildeo Uma expressatildeo adquire um referimento ao objeto pelo simples fato de que esta significa algo Por isso eacute que dizemos que uma expressatildeo designa ou denomina algo por meio do seu significado ou seja o ato de significar eacute o modo determinado de intencionar o objeto em questatildeo soacute que justamente este modo de intencionar e portanto o significado mesmo pode variar enquanto permanece idecircntica a direccedilatildeo para o objeto Se considerarmos pois os trecircs momentos que se fundem numa unidade na expressatildeo temos aquilo que de modo equiacutevoco se chama o expressado da expressatildeo ldquoOs termos em relaccedilatildeo ndash manifestaccedilatildeo significaccedilatildeo e objeto ndash pertencem essencialmente a toda e qualquer expressatildeo Em cada uma qualquer coisa eacute manifestada qualquer coisa eacute significada e qualquer coisa eacute nomeada ou de algum modo designada E no discurso equiacutevoco tudo isto se diz lsquoexpressorsquordquo 51 Idem p 14
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No escrito sobre a dialeacutetica Agostinho trata de quatro elementos desta arte o
verbum o dicibile52 a dictio53 e a res Vejamos como Agostinho expotildee o nexo entre estes
quatro elementos
Ora porque as palavras (verba) satildeo sinais das coisas (signa rerum) quando se ocupam com as coisas enquanto satildeo sinais das palavras (signa verborum) quando se discute sobre palavras ndash pois sobre palavras natildeo podemos falar a natildeo ser com palavras e quando falamos natildeo falamos a natildeo ser de coisas ndash ocorre agrave mente que as palavras satildeo sinais das coisas sem deixar de ser coisas
Quando pois a palavra sai da boca se sai por causa de si mesma isto eacute para que acerca dela se inquira ou se discuta haacute certamente uma coisa que eacute sujeita a discussatildeo e a investigaccedilatildeo mas justamente esta coisa eacute chamada palavra
E o que quer que a partir da palavra natildeo os ouvidos mas a mente (animus) percebe (sentit) e que a mente mesma manteacutem incluiacuteda em si se chama dicibile54 Quando poreacutem a palavra sai natildeo por causa de si mesma mas para significar algo de outro chama-se dictio55 E a coisa mesma que natildeo eacute uma palavra nem ainda uma concepccedilatildeo da palavra na mente seja que tenha uma palavra com a qual possa ser significada seja que natildeo a tenha daqui por diante natildeo eacute chamada com nome apropriado de outro modo do que de coisa
Estes quatro hatildeo de ser mantidos distintamente portanto a palavra (verbum) o dicibile a dictio a coisa Aquilo que defini como palavra eacute uma palavra e significa a palavra Aquilo que defini dicibile eacute uma palavra e todavia natildeo significa a palavra mas aquilo que graccedilas agrave palavra se compreende e estaacute contido na mente Aquilo que eu defini dictio eacute uma palavra mas uma palavra que significa contemporaneamente as outras duas ou seja a palavra mesma e aquilo que se faz na mente atraveacutes da palavra Aquela que eu defini como coisa eacute uma palavra que significa tudo aquilo que fica fora das trecircs que foram ditas
52 Seria o λεκτόν (lektoacuten) dos estoicos 53 Seria a λέξις (leacuteksis) dos estoicos 54 O exprimiacutevel ou melhor o diziacutevel no sentido do mostraacutevel 55 A expressatildeo o dito do dizer
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Depois destas digressotildees necessaacuterias para aclararmos o que estaacute em questatildeo
voltemos ao livro II do ldquoDe Doctrina Christianardquo de Agostinho Retomemos a sua
consideraccedilatildeo a respeito do signo
Haacute dois tipos de signos os naturais e os convencionais Os naturais datildeo a
conhecer por si proacuteprios alguma coisa aleacutem do que satildeo em si Assim fumaccedila eacute signo
de fogo Os signos convencionais (data signa) satildeo todos aqueles que os seres vivos em
especial o ser humano mutuamente se trocam para manifestar ndash o quanto lhes eacute
possiacutevel ndash os movimentos de sua alma tais como as sensaccedilotildees e os pensamentos Os
signos podem se dar em referecircncias a todos os sentidos a maioria dos signos poreacutem
se referem agrave audiccedilatildeo ou agrave visatildeo Dentre estes signos mais usuais e importantes satildeo os
signos verbais que satildeo sons significativos que se articulam mediante a voz humana
constituindo a palavra falada Os signos escritos poreacutem mostram os signos verbais de
maneira visiacutevel (e natildeo audiacutevel como fazem os signos falados)
A liacutengua eacute a realizaccedilatildeo concreta da linguagem humana mediante o uso de signos
verbais falados ou escritos As Sagradas Escrituras indicam pela histoacuteria da Torre de
Babel que liacutengua e linguagem sofrem com a decadecircncia do espiacuterito humano causada
pela soberba56 O contraacuterio da histoacuteria de Babel eacute poreacutem a histoacuteria de Pentecostes
narrada no livro dos Atos dos Apoacutestolos que aponta para a comunhatildeo do amor e o
muacutetuo entendimento entre os homens propiciado com o dom do Hagioacutes Pneuma
(Sopro Sagrado Espiacuterito Santo)
56 Na histoacuteria narrada pelo livro do Gecircnesis os homens se unem para erguer uma torre que una a terra ao ceacuteu a partir das proacuteprias forccedilas e da proacutepria engenhosidade Nos povos antigos encontramos monumentos que evocam algo disso O desejo do homem de uniatildeo entre o ceacuteu e a terra se manifesta nos zigurates da mesopotacircmia nas piracircmides das altas culturas das pedras (Egito Peru Meacutexico) nas estupas asiaacuteticas e quiccedilaacute em tempos mais primitivos aos dolmens menires nas cacircmaras funeraacuterias e nos obeliscos Junto com o esforccedilo de o homem erguer-se a si mesmo como homem erguendo pedras haacute o esforccedilo tambeacutem de alcanccedilar a vida dos imortais dos deuses tolhendo a proacutepria finitude Babel que era para ser a ldquoporta dos deusesrdquo (babilani) se torna poreacutem o lugar da confusatildeo (balal = confundir) O mundo se torna assim uma ldquoBabilocircniardquo isto eacute o lugar da confusatildeo em que os homens natildeo conseguem chegar ao entendimento muacutetuo Somente em Pentecostes em Jerusaleacutem celebra-se plenamente a superaccedilatildeo desta divisatildeo e desta confusatildeo em que as liacutenguas natildeo satildeo mais confusas e em que a linguagem do amor ardente une os homens e propicia-lhes a chance do entendimento muacutetuo e da verdadeira concoacuterdia uma concoacuterdia para o bem em favor de Deus
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Aquele vento purificava os coraccedilotildees da palha carnal aquele fogo consumia o feno da antiga concupiscecircncia aquelas liacutenguas em que falavam os que estavam plenos do Espiacuterito Santo prefiguravam a futura Igreja mediante liacutenguas de todos os povos Pois assim como depois do diluacutevio a soberba impiedade dos homens edificou uma grandiosa torre contra o Senhor ocasiatildeo na qual o gecircnero humano mereceu ser dividido pela diversidade das liacutenguas de modo que cada naccedilatildeo falasse sua proacutepria liacutengua para natildeo ser entendido pelas demais assim a humilde piedade dos fieis reduziu a diversidade de liacutenguas agrave unidade da Igreja de maneira que aquilo que a discoacuterdia tinha dispersado o reunisse a caridade e assim os membros dispersos do gecircnero humano qual membros de um mesmo corpo fossem reintegrados agrave unidade de uma uacutenica cabeccedila que eacute Cristo e fundidos na unidade do corpo santo mediante o fogo do amor57
O maior sinal da comunhatildeo do amor eacute quando os homens conseguem falar uns
com os outros e se entender Embora sejam diferentes e falem liacutenguas diferentes falam
a partir de uma mesma linguagem a do amor-caridade (gratuidade) As liacutenguas se
tornam entatildeo como labaredas do amor As falas satildeo entatildeo falas inflamadas de um fogo
divino brilhantes e ardentes divinamente apaixonadas entusiasmadas O amor eacute o que
possibilita manter esta identidade na diferenccedila Cria-se uma identidade comum mas
sem desfazer antes protegendo as diferenccedilas Eacute o milagre das liacutenguas O contraacuterio de
Babel Recriaccedilatildeo do homem humano e da humanidade universal
Assim os homens podem voltar agrave linguagem comum apesar da diversidade das
liacutenguas unindo suas vontades no empenho de conhecer e realizar a vontade de Deus A
serviccedilo deste intento estatildeo as Sagradas Escrituras Estas satildeo obra do proacuteprio Deus que
usou de hagioacutegrafos inspirados para expressar a sua vontade na linguagem humana
mediante as diversas liacutenguas Os que leem as Sagradas Escrituras natildeo desejam encontrar
nelas mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram e desse modo chegar
a conhecer a vontade de Deus segundo a qual ordem esses homens compuseram
Entretanto o leitor das Sagradas Escrituras vai se deparar continuamente com
ambiguidades e obscuridades Para Agostinho estas fazem parte da proacutepria natureza das
Escrituras Sagradas Haacute um certo quecirc de hermeacutetico de enigmaacutetico de obscuro nelas
57 Sermatildeo 271
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Mas eacute justamente isto que desafia a compreensatildeo e que a faz crescer na busca da
vontade divina As obscuridades e ambiguidades natildeo satildeo inuacuteteis Elas vencem o orgulho
do homem que se aproxima dos misteacuterios divinos sem reverecircncia e sem devoccedilatildeo Por
outro lado elas premunem o espiacuterito do fastio e do teacutedio que a facilidade sempre trazem
consigo As dificuldades de interpretaccedilatildeo cria-nos o gosto pelo exerciacutecio da
compreensatildeo na sua aventura de conquista do sentido Contudo natildeo se deve ter a
pretensatildeo de que se pode chegar a uma clareza que elimine toda sombra e obscuridade
A clareza do misteacuterio que se desvela sempre traz o veacuteu do pudor em que o misteacuterio
mesmo se encobre e assim se resguarda Os significados hauridos seratildeo sempre acenos
do inefaacutevel na medida em que o misteacuterio santo se deixa captar no horizonte do sentido
Uma vez que as Sagradas Escrituras satildeo linguagem do misteacuterio santo do Deus
absconditus (Deus escondido) que se re-vela (desvela e vela ao mesmo tempo) na
finitude da linguagem humana o leitor vai se deparar com desafios sempre novos
Agostinho recorre entatildeo agrave alegorese seguindo neste ponto a tradiccedilatildeo dos
alexandrinos As alegorias possuem encanto todo especial capaz de falar natildeo somente
ao entendimento mas tambeacutem ao coraccedilatildeo dos homens Com efeito a linguagem
imageacutetica concreta tem maior poder de comunicaccedilatildeo vital do que a linguagem
conceitual abstrata O uso de comparaccedilotildees leva o leitor a aprender mais
espontaneamente (libenter) As dificuldades de interpretaccedilatildeo levam-no a aprender com
maior prazer (gratius) As passagens obscuras das Escrituras aguccedilam a fome de
compreensatildeo do leitor Entretanto Agostinho daacute uma indicaccedilatildeo metodoloacutegica de leitura
importante para ir abrindo a compreensatildeo das Escrituras ganhar familiaridade com as
passagens claras e inequiacutevocas e com isso iluminar as passagens obscuras e
enigmaacuteticas Com efeito diz ele quase nada sobressai nas obscuridades que natildeo esteja
escrito mais claramente em outro lugar
Aquele que lecirc as Sagradas Escrituras procurando nelas a vontade divina eacute algueacutem
que estaacute a caminho numa viagem para a paacutetria da beatitude eterna Este caminhar
comporta determinado itineraacuterio no qual o homem vai se dispondo cada vez mais ao
Espiacuterito de Deus e ao seu modo de operar na alma os seus dons Eacute na medida que se
aproxima da Sabedoria do Espiacuterito que o leitor lecirc com maior proveito e profundidade as
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Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
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Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
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Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
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Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
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(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
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Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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Antes de nos apropriarmos da semiologia de Agostinho tentemos aqui uma
consideraccedilatildeo fenomenoloacutegica sobre o sinal e a linguagem
O falar acontece por mor do dizer Dizer eacute mostrar O falar enquanto dizer se
realiza como um discurso mostrador loacutegos apophaacutentikoacutes32 O falar estaacute a serviccedilo do
dizer Dizer eacute mostrar no sentido de deixar e fazer ver a quem se fala aquilo de que se
fala Dizer eacute dar algo a compreender eacute fazer-se compreender sobre algo a quem escuta
O mostrar no falar acontece como um conceder acenos dar indiacutecios oferecer
indicaccedilotildees oferecer sinais33 Mas tudo isso acontece no sentido de um anunciar que se
cumpre como um revelar um divulgar um mencionar (fazer menccedilatildeo de referir relatar
expor narrar) um lembrar um recordar e um comemorar O anunciar eacute entendido pois
pelos gregos como um mostrar deiknymi34 O sinal eacute uma referecircncia uma remissatildeo O
remeter proacuteprio do sinal consiste em mostrar O mostrar do sinal se funda na referecircncia
na remissatildeo Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo No entanto
Toda referecircncia eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo eacute uma referecircncia Toda lsquoaccedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma referecircncia mas nem toda referecircncia mostra Com isso tambeacutem se diz toda accedilatildeo de mostrarrsquo eacute uma relaccedilatildeo mas nem toda relaccedilatildeo mostra Assim aparece o caraacuteter formal e geral da relaccedilatildeo Para se investigar os fenocircmenos de referecircncia sinal e significado de nada adianta caracterizaacute-los como relaccedilatildeo Deve-se em uacuteltima instacircncia mostrar que a proacutepria lsquorelaccedilatildeorsquo devido a seu
32 O loacutegos eacute um reunir e um recolher (leacutegein) que potildee expotildee e depotildee abre e manifesta traz ao desencobrimento agrave revelaccedilatildeo Como abrir e manifestar leacutegein estaacute em contraste com krypto cobrir encobrir esconder ocultar no sentido de guardar Conhecemos um fragmento de Heraacuteclito (fr 93) que traz este contraste Ele diz Ho aacutenax hou tograve manteion esti tograve en Delphois oute leacutegei oute kryptei allagrave semainei ndash O Autor de quem eacute o oraacuteculo de Delfos natildeo traz ao desencobrimento nem encobre mas acena 33 Semainein eacute um conceder semata (acenos indiacutecios indicaccedilotildees) A palavra grega no singular eacute ldquosemardquo indiacutecio vestiacutegio marca distintiva senha sinal ldquoSemardquo eacute tambeacutem pressaacutegio auguacuterio auspiacutecio Eacute ainda o astro ou uma constelaccedilatildeo da qual se tiram indicaccedilotildees na orientaccedilatildeo concernente ao ceacuteu Eacute por fim o tuacutemulo a tumba 34 Da mesma raiz de ldquodeiknymirdquo (mostrar) eacute o verbo latino ldquodicererdquo dizer Dizer eacute mostrar isto eacute deixar e fazer ver trazer agrave evidecircncia alguma coisa O sinal pois no falar precisa ser entendido na dinacircmica do dizer isto eacute do mostrar
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caraacuteter formal geral tem sua origem ontoloacutegica numa referecircncia35
Haacute uma multiplicidade de sinais anuacutencios prenuacutencios vestiacutegios marcas
distintivos cuja accedilatildeo de mostrar difere a cada caso Satildeo sinais diferentes o rastro o
resto o monumento o documento o testemunho o siacutembolo a expressatildeo a
manifestaccedilatildeo a significaccedilatildeo O sinal tem a sua serventia no mostrar no sentido de fazer
sobressair de dar na vista salientar fazer reparar estranhar alguma coisa Aquilo que
normalmente natildeo causa surpresa eacute ressaltado pelo sinal O sinal permite a descoberta
de alguma coisa
O mundo eacute o ldquoonderdquo das descobertas O homem se orienta se dirige se
direciona em seus comportamentos com as coisas com os entes agrave matildeo a partir de uma
familiaridade com o mundo A abertura de mundo se daacute como compreensatildeo Trata-se
poreacutem de uma compreensatildeo operativa natildeo teoacuterica Compreender significa aqui reunir
as remissotildees recolher as referecircncias O caraacuteter de remissatildeo das remissotildees das
referecircncias eacute o que se chama de significar Significar (be-deuten) eacute aqui mostrar
(deuten) no sentido de pocircr a caminho um clarear um esclarecer Eacute o processo e o
movimento de estruturaccedilatildeo do mundo Significar eacute aqui oferecer alguma coisa para a
compreensatildeo e para a interpretaccedilatildeo Significacircncia (Bedeutsamkeit) eacute o todo das
remissotildees do acontecimento e do processo do significar que eacute a estruturaccedilatildeo de
mundo Noacutes nos encontramos a noacutes mesmos jaacute sempre no mundo entendendo o mundo
antes de tudo como uma totalidade de significacircncias Eacute um encontrar-se a si mesmo
sempre numa situaccedilatildeo de ocupaccedilatildeo e preocupaccedilatildeo de cuidado com o proacuteprio ser-no-
mundo Tudo aquilo com que podemos nos relacionar e comportar tem este caraacuteter
estaacute aiacute e eacute encontrado no caminho do cuidado eacute experimentado como significativo a
partir de um determinado cuidado Significacircncia indica este modo fundamental como
algo segundo o seu teor proacuteprio eacute encontrado na vida como ele se deteacutem e se reteacutem
no meio do mundo da vida
Soacute acontece linguagem onde noacutes falamos uns com os outros A linguagem
acontece de iniacutecio e na maior parte das vezes na conversa com suas falas e seus
silecircncios Para noacutes isto eacute na ordem da nossa experiecircncia cotidiana a primeira
35 Heidegger M Ser e Tempo sect 17
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dimensatildeo pois da linguagem eacute a fala o discurso O discurso traz agrave fala uma
compreensatildeo Chamamos de sentido o que pode ser articulado O sentido eacute o que torna
compreensiacutevel algo enquanto algo Compreender eacute fundamentalmente apreender algo
enquanto algo Tudo que apreendemos se mostra a si mesmo como isso ou aquilo Isso
quer dizer noacutes aprendemos cada coisa em sua significacircncia A percepccedilatildeo natural em
que noacutes vivemos cotidianamente jaacute eacute sempre uma compreensatildeo uma captaccedilatildeo da coisa
como esta coisa do sapato como sapato do livro como livro do reloacutegio como reloacutegio
Natildeo eacute assim que eu primeiro apreendo uma coisa na sua nua e crua factualidade e
depois lhe atribuo este ou aquele significado Cada vez eu apreendo uma coisa como
tal coisa isto eacute eu apreendo a coisa dentro de uma determinada significacircncia36
A coisa que me vem ao encontro dentro do mundo se mostra como isto ou
aquilo37 Ela instaura um conjunto de referecircncias ela remete a isto ou aquilo ela soa
desta ou daquela maneira em meu mundo ela fala disto ou daquilo em minha vida A
coisa significa a si mesma Mas o seu poder significar a si mesma soacute eacute possiacutevel porque
ela jaacute eacute descoberta como coisa que vem ao encontro dentro do mundo isto eacute dentro de
uma totalidade de sentido Que a coisa se faccedila encontrar e descobrir deste ou daquele
modo e que ela se decirc a compreender como isto ou aquilo ndash isto soacute eacute possiacutevel porque ao
apreendecirc-la numa percepccedilatildeo concreta um mundo jaacute se me abriu Com a coisa se
anuncia o mundo da vida ou melhor os mundos da vida o mundo circunstante o
mundo partilhado da convivecircncia o mundo proacuteprio pessoal A coisa soacute pode ser
apreendida na sua significacircncia a partir da abertura do mundo ou dos mundos
Perceber eacute jaacute compreender as coisas na sua significacircncia Perceber eacute estruturar
e configurar o mundo como estrutura significativa Em toda percepccedilatildeo atua pois um
ato fundamental de significaccedilatildeo Chamamos de significar o ato pelo qual o homem
estrutura a significacircncia das coisas no horizonte do mundo enquanto totalidade
significativa Da compreensatildeo que articula a significaccedilatildeo das coisas numa totalidade
sentido brota a possibilidade da interpretaccedilatildeo Pela compreensatildeo o homem estaacute
sempre se projetando abrindo lances de perspectivas entrevendo de antematildeo
36 Cfr M HEIDEGGER GP 102-110 37 Cfr M HEIDEGGER Ontologie (Hermeneutik der Faktizitaumlt) (OHF) Gesamtausgabe ndash Band 63 Vittorio Klostermann Frankfurt am Main 1995 p 93-104
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aberturas de possibilidades Pela compreensatildeo o homem opera um ver que eacute projetivo
e criativo de possibilidades de ser Esse ver projetivo e criativo configura isto eacute elabora
em formas significativas essas possibilidades de ser Agrave elaboraccedilatildeo e exposiccedilatildeo dessas
formas chamamos de interpretaccedilatildeo Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo se apropria do
que compreende Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo busca chegar a uma maturaccedilatildeo
isto eacute busca maturar as possibilidades de ser que ela jaacute entreviu A interpretaccedilatildeo eacute uma
explicitaccedilatildeo da compreensatildeo O que entra como componente da explicitaccedilatildeo possui o
caraacuteter de significacircncia eacute o mostrar-se de algo como algo Em todo o nosso
comportamento noacutes jaacute estamos sempre compreendendo e interpretando apreendendo
algo como algo e referindo algo a algo articulando significados numa totalidade de
sentido que eacute o mundo O homem sempre interpreta Pois interpretar eacute ser homem
A articulaccedilatildeo dos significados numa totalidade de sentido se daacute atraveacutes do falar
quer do falar de si consigo mesmo quer do falar uns com os outros Na fala noacutes
pronunciamos o que compreendemos e como interpretamos o que estaacute em questatildeo Pro-
nunciar eacute pro-ferir isto eacute trazer agrave luz ao aberto do mundo da convivecircncia aquilo que
compreendemos e interpretamos Pelo discurso vecircm agrave fala os entes e o ser dos entes
tais como se oferecem agrave nossa compreensatildeo e interpretaccedilatildeo Vem agrave fala agrave medida que
se articulam num horizonte de compreensibilidade que noacutes chamamos de sentido O
sentido eacute o que se articula na compreensatildeo e interpretaccedilatildeo como horizonte daquilo que
compreendemos e interpretamos Todo discurso eacute o pronunciar o vir agrave fala daquilo que
compreendemos e interpretamos dos significados das coisas agrave luz do sentido de ser que
noacutes lhes damos
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Os medievais iratildeo precisar e aprofundar a concepccedilatildeo de signo Assim para
Tomaacutes de Aquino o signum eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro
A palavra proferida exteriormente pela voz eacute a fala A fala eacute proferida a modo de uma
voz articulada significativa Nem todo o som eacute voz A voz enquanto haacutelito sopro som
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que sai da boca com efeito soacute chega a ser palavra quando eacute significativa38 Sem a
significaccedilatildeo (significatio) uma voz natildeo eacute palavra A significaccedilatildeo torna a voz uma
expressatildeo do pensamento39 Por isso somente um vivente inteligente (animal rationale)
tem voz enquanto palavra40 Um vivente melhor um animal emite sons para se
comunicar Mas os seus sons natildeo satildeo vozes articuladas significativas Os gritos os
alaridos de animais natildeo satildeo palavras Sua comunicaccedilatildeo natildeo eacute fala O berrar de um
bezerro o mugir de uma vaca o balar de uma ovelha o balir de um cordeiro o arrulhar
de uma pomba o latir de um catildeo o miar de um gato ndash tudo isso natildeo eacute fala Seus sons
natildeo satildeo vozes significativas Indicam alguma coisa Mas o seu indicar natildeo tem o sentido
de significar alguma coisa Significar eacute dar a conhecer algo como algo a algueacutem41 Fumaccedila
indica fogo Bandeira branca indica rendiccedilatildeo Indicar poreacutem natildeo eacute significar Todo
significar eacute um indicar mas nem todo indicar eacute significar Significar eacute dar a conhecer no
sentido de dar a compreender algo como algo A fala daacute a conhecer alguma coisa Ela
faz-se notar e faz notar alguma coisa A fala eacute um fazer notar que daacute a conhecer alguma
coisa42 A fala faz notar daacute a conhecer isto eacute gera uma ldquonotiordquo ou uma ldquonotitiardquo
(conhecimento noccedilatildeo sentido)43 Notar quer dizer aqui dirigir-se a alguma coisa
orientando-se no mundo (intencionalidade) tornando-se atento a ela ao seu ser
Joatildeo Duns Scotus iraacute retomar o triacircngulo semioacutetico do Peri hermeneiacuteas de
Aristoacuteteles Ele questiona sobre a distinccedilatildeo de litteras et voces (letras e vozes) de um
lado passiones (disposiccedilotildees da alma) e res (coisa) de outro lado na quarta das questotildees
sobre o primeiro livro do ldquoPerigrave hermeneiasrdquo e conclui pela sua conveniecircncia As
disposiccedilotildees da alma (significaccedilatildeo e sentido) satildeo as mesmas em todos bem como as
coisas que elas significam enquanto as letras e vozes satildeo diferentes dependendo da
liacutengua Com outras palavras as letras e vozes que satildeo diferentes de liacutengua para liacutengua
38 ldquoVox quae non est significativa verbum dici non potestrdquo (A voz que natildeo eacute significativa natildeo pode ser dita palavra) ndash Tomaacutes de Aquino op Cit (I341) 39 ldquoLocutio est proprium opus rationis (I913 ad 3) falar -diz Tomaacutes- eacute operaccedilatildeo proacutepria da razatildeo 40 Agrave base desta concepccedilatildeo estaacute a concepccedilatildeo grega do homem aacutenthropos como zoon logon echon (vivente que tem linguagem) Nesta traduccedilatildeo o loacutegos eacute tanto ratio (pensamento) quanto oratio (fala no sentido de discurso) 41 Em Tomaacutes no acircmbito da vox situa-se a palavra (verbum) A palavra eacute uma realizaccedilatildeo especial do signo (signum) que por sua vez eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro (III604) 42 Cfr Heidegger M Vom Wesen der Sprache Die Metaphysik der Sprache und die Wesung des Wortes - Zu Herders Abhandlung ldquoUumlber den Ursprung der Spracherdquo Gesammtausgabe Band 85 p 3-4 43 Cfr idem p 20
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satildeo sinais instituiacutedos pelo arbiacutetrio humano que representam as disposiccedilotildees da alma (no
caso significaccedilatildeo e sentido) que por sua vez satildeo sinais naturais representativos das
coisas44
As expressotildees orais ou escritas satildeo formas linguiacutesticas dotadas de significaccedilotildees e
de sentido Sentidos e significaccedilotildees que satildeo pensados vecircm agrave expressatildeo Eles satildeo
exprimiacuteveis atraveacutes de formaccedilotildees linguiacutesticas Uma coisa eacute a forma linguiacutestica da
expressatildeo o complexo graacutefico ou focircnico ou como dizem os medievais as voces (vozes)
Outra coisa eacute o conteuacutedo da expressatildeo a significaccedilatildeo o sentido no juiacutezo e no
entrelaccedilamento de juiacutezos (conclusatildeo silogismo) O conteuacutedo eacute um ldquosignificatumrdquo que
estaacute intencionalmente ldquoin menterdquo45
A voz se torna expressatildeo agrave medida que eacute dotada de significaccedilotildees e de sentido
Assim a proposiccedilatildeo enquanto sequecircncia de palavras eacute singular Mas o conteuacutedo da
proposiccedilatildeo o juiacutezo ora eacute singular se o predicado eacute dito de um soacute ou universal se o
predicado eacute dito de muitos A proposiccedilatildeo como uma sequecircncia de palavras natildeo eacute
verdadeira ou falsa Ela eacute ou natildeo eacute Eacute falada ou escrita Mas natildeo eacute verdadeira ou falsa O
sentido da proposiccedilatildeo o juiacutezo eacute que eacute verdadeiro ou falso natildeo poreacutem enquanto
simples conteuacutedo da proposiccedilatildeo mas soacute agrave medida que ele tem um valor objetivaacutevel um
valor de conhecimento objetivo46 Proposiccedilatildeo e sentido palavra e significaccedilatildeo
pertencem a acircmbitos de realidade diversos Os elementos linguiacutesticos que constituem
proposiccedilatildeo e palavra satildeo sensivelmente perceptiacuteveis (satildeo acuacutesticos visuais motores)
satildeo reais e temporais Jaacute as significaccedilotildees e o sentido se subtraem a uma percepccedilatildeo
sensorial e satildeo atemporais O elemento linguiacutestico de uma expressatildeo eacute um signum ad
44 Cfr Quaestiones in I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 7) ldquoAd quaestionem dicendum quod differentia est conveniens quia passiones inquanto sunt signa et res inquanto sunt significata sunt eandem apud omnes nam eadem passio in anima apud quoscumque concipientes repraesentat eamdem rem quia eadem similitudo in anima semper est eiusdem repraesentativa sicut est similitudo sensibilis in sensu litterae et voces in se eaedem non sunt eaedem apud omnes inquanto sunt signa quia nec eadem littera apud omnes repraesentat eamdem vocem sed vel aliam vel nullam nec eadem vox apud omnes significat eamdem passionem sed vel aliam vel nullamrdquo (SCOTUS 1998 p 918) 45 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 12) ldquoAd quaestionem dici potest quod iste liber non est de decem vocibus ut de primo subiecto ndash nec aliqua pars logicae est de voce quia omnes passiones syllogismi et omnium partium eius possunt sibi inesse secundum esse quod habent in mente etsi non proferantur () sed est de aliquo priore quod respectu voces significativae tantum habet rationem significatirdquo (SCOTUS 1998 p 652) 46 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 22) ldquoSimiliter lsquosignificare verum vel falsumrsquo convenit enuntiationi sed non ut vox est significans conceptum sed ut conceptus significat remrdquo (SCOTUS 1998 p 653)
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placitum um signo instituiacutedo conforme o agrado ou o arbiacutetrio de quem o usa47 As
significaccedilotildees e os sentidos poreacutem se subtraem ao arbiacutetrio daquele que pensa por ter
a sua proacutepria necessidade ideal ou objetiva
A forma linguiacutestica eacute signo da significaccedilatildeo que por sua vez eacute signo de algo de
objetual de alguma objetualidade (objetos estados-de-coisas notas distintivas formas
reais ou categoriais) Trata-se do triacircngulo semioacutetico que constitui a base da
consideraccedilatildeo sobre a linguagem em toda a tradiccedilatildeo ocidental e que vem de Aristoacuteteles
Para Duns Scotus palavra e proposiccedilatildeo enquanto formaccedilotildees linguiacutesticas
dotadas de significaccedilatildeo e de sentido apontam para a esfera objetual A formaccedilatildeo
linguiacutestica eacute sinal da significaccedilatildeo e do sentido que eacute por sua vez sinal do objeto Enfim
palavra e proposiccedilatildeo satildeo sinais das coisas ldquoQuidquid est signum signi est signum
signatirdquo ndash o que quer que seja sinal do sinal eacute sinal do assinalado48 Assim palavra e
proposiccedilatildeo se tornam sinais das objetualidades agraves quais se referem No entendimento
de Duns Scotus o conceito eacute o que eacute designado imediatamente o objeto eacute o que eacute
designado mediatamente pela expressatildeo O doutor sutil esclarece que significare eacute dare
intelligere dar a compreender49 O signo eacute algo de relacional possui um caraacuteter ou uma
funccedilatildeo remissiva O signo graccedilas a sua funccedilatildeo remissiva eacute o fundamento material de
que parte o conhecimento do designado A expressatildeo linguiacutestica poreacutem natildeo eacute somente
um signo que remete ou se refere a algo Ele eacute um signo que significa algo ou seja que
daacute a compreender algo ou algo de algo e que ademais se refere a objetualidades
visando dizer ou seja mostrar o que se mostra e como se mostra50
47 Cfr Quaestiones super I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 14) ldquo et instrumenta naturalia formandi vocem potest homo aliqua imponere quae sunt signa ad placitum et non naturalia sive conceptusrdquo (SCOTUS 1998 p 919) 48 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 28 n 28) ldquo lsquoQuidquid est signum signi est signum signatirsquo ita quod signum intermedium non varietur in comparatione ad primum signum et ultimum signatumrdquo (SCOTUS 1998 p 751) 49 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 8 n 1) ldquoQuia significare est intellectum constituererdquo (SCOTUS 1998 p 679) 50 Assim para Husserl a expressatildeo que funde numa unidade a manifestaccedilatildeo sensiacutevel a significaccedilatildeo e a referecircncia ao objeto estaacute ordenada tanto a um valor de conhecimento quanto a um valor de verdade Agrave expressatildeo corresponde ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo se constitui uma relaccedilatildeo com o objeto Triacuteplice eacute o conteuacutedo de uma expressatildeo a significaccedilatildeo a referecircncia ao objeto e por fim o preenchimento de sentido A expressatildeo pela significaccedilatildeo e pela referecircncia ao objeto daacute a compreender alguma coisa acerca de algo O preenchimento da intenccedilatildeo signitiva vazia no modo da confirmaccedilatildeo da documentaccedilatildeo intuitiva leva por sua vez agrave experiecircncia da verdade Para Husserl expressotildees satildeo signos significativos distintos dos signos indicativos Numa descriccedilatildeo fenomenoloacutegica da expressatildeo dotada de sentido se
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No De dialectica (Da dialeacutetica) Agostinho define a palavra como um sinal de
alguma coisa que proferido por quem fala pode ser compreendido por quem escuta (De
Dialectica 5) 51 Nesta definiccedilatildeo podemos perceber as vaacuterias dimensotildees do exerciacutecio
humano da linguagem a da comunicaccedilatildeo em que homens falam uns com os outros
compartilhando suas vidas e coparticipando de um mesmo mundo a da expressatildeo em
que homens se pronunciam a partir de seu ser num mundo comum o discurso pelo
qual homens falam uns com os outros e escutam uns aos outros a compreensatildeo e
interpretaccedilatildeo em que homens ouvindo uns aos outros recebem a mensagem e se
apropriam de seu sentido Como ponta do ldquoicebergrdquo de toda esta vitalidade do concurso
comunicativo e do discurso temos o sinal que eacute proferido por quem fala o som da boca
a voz que longe de ser um mero ruiacutedo eacute um sinal um signo e se sinal eacute sinal de
alguma coisa ou seja algo vem a ser significado por este signo ou sinal
podem evidenciar trecircs momentos que no entanto formam uma unidade intimamente fundida a apariccedilatildeo fiacutesica da expressatildeo o ato doador de sentido e o ato preenchedor de sentido Assim palavras e proposiccedilotildees satildeo sons articulados animados de sentido Agraves expressotildees satildeo essenciais os atos que conferem a significaccedilatildeo respectivamente as intenccedilotildees de significaccedilatildeo A estes atos se acrescentam de modo extra-essencial os atos que preenchem as significaccedilotildees confirmando reforccedilando ilustrando as intenccedilotildees de significaccedilatildeo Para que o signo se torne expressatildeo eacute preciso que lhe seja imposto uma significaccedilatildeo Husserl fala de emprestar significaccedilatildeo de conferir sentido Expressotildees satildeo unidades de signos e designados (sinais e assinalados) de espeacutecie bem peculiar Expressotildees satildeo sinais significativos A significaccedilatildeo adere ao ato significativo Com a expressatildeo que suscita o ato que confere o sentido nos orientamos ao objeto Agrave expressatildeo compete ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo eacute que se constitui a relaccedilatildeo com o objeto ldquoToda e qualquer expressatildeo natildeo quer apenas dizer qualquer coisa mas tambeacutem diz algo acerca de qualquer coisa ela natildeo tem apenas a sua significaccedilatildeo mas refere-se tambeacutem a quaisquer objetosrdquo (HUSSERL 2012 p 38 ndash grifo de Husserl) Assim significaccedilatildeo e referecircncia objetiva se distinguem Expressotildees podem ter a mesma significaccedilatildeo mas objetos diferentes por um lado e por outro podem ter significaccedilotildees diferentes mas o mesmo objeto Assim considerando dois enunciados ldquoeste sendeiro eacute um cavalordquo e ldquoBuceacutefalo eacute um cavalordquo a expressatildeo um cavalo tem a mesma significaccedilatildeo mas os objetos satildeo diferentes Por sua vez dois nomes podem significar coisas diferentes mas nomear o mesmo como no exemplo ldquoO vencedor de Iena - O vencido de Waterloordquo Significaccedilatildeo e referecircncia objetiva no entanto estatildeo em iacutentima conexatildeo A expressatildeo se refere ao objeto por meio da significaccedilatildeo Uma expressatildeo adquire um referimento ao objeto pelo simples fato de que esta significa algo Por isso eacute que dizemos que uma expressatildeo designa ou denomina algo por meio do seu significado ou seja o ato de significar eacute o modo determinado de intencionar o objeto em questatildeo soacute que justamente este modo de intencionar e portanto o significado mesmo pode variar enquanto permanece idecircntica a direccedilatildeo para o objeto Se considerarmos pois os trecircs momentos que se fundem numa unidade na expressatildeo temos aquilo que de modo equiacutevoco se chama o expressado da expressatildeo ldquoOs termos em relaccedilatildeo ndash manifestaccedilatildeo significaccedilatildeo e objeto ndash pertencem essencialmente a toda e qualquer expressatildeo Em cada uma qualquer coisa eacute manifestada qualquer coisa eacute significada e qualquer coisa eacute nomeada ou de algum modo designada E no discurso equiacutevoco tudo isto se diz lsquoexpressorsquordquo 51 Idem p 14
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No escrito sobre a dialeacutetica Agostinho trata de quatro elementos desta arte o
verbum o dicibile52 a dictio53 e a res Vejamos como Agostinho expotildee o nexo entre estes
quatro elementos
Ora porque as palavras (verba) satildeo sinais das coisas (signa rerum) quando se ocupam com as coisas enquanto satildeo sinais das palavras (signa verborum) quando se discute sobre palavras ndash pois sobre palavras natildeo podemos falar a natildeo ser com palavras e quando falamos natildeo falamos a natildeo ser de coisas ndash ocorre agrave mente que as palavras satildeo sinais das coisas sem deixar de ser coisas
Quando pois a palavra sai da boca se sai por causa de si mesma isto eacute para que acerca dela se inquira ou se discuta haacute certamente uma coisa que eacute sujeita a discussatildeo e a investigaccedilatildeo mas justamente esta coisa eacute chamada palavra
E o que quer que a partir da palavra natildeo os ouvidos mas a mente (animus) percebe (sentit) e que a mente mesma manteacutem incluiacuteda em si se chama dicibile54 Quando poreacutem a palavra sai natildeo por causa de si mesma mas para significar algo de outro chama-se dictio55 E a coisa mesma que natildeo eacute uma palavra nem ainda uma concepccedilatildeo da palavra na mente seja que tenha uma palavra com a qual possa ser significada seja que natildeo a tenha daqui por diante natildeo eacute chamada com nome apropriado de outro modo do que de coisa
Estes quatro hatildeo de ser mantidos distintamente portanto a palavra (verbum) o dicibile a dictio a coisa Aquilo que defini como palavra eacute uma palavra e significa a palavra Aquilo que defini dicibile eacute uma palavra e todavia natildeo significa a palavra mas aquilo que graccedilas agrave palavra se compreende e estaacute contido na mente Aquilo que eu defini dictio eacute uma palavra mas uma palavra que significa contemporaneamente as outras duas ou seja a palavra mesma e aquilo que se faz na mente atraveacutes da palavra Aquela que eu defini como coisa eacute uma palavra que significa tudo aquilo que fica fora das trecircs que foram ditas
52 Seria o λεκτόν (lektoacuten) dos estoicos 53 Seria a λέξις (leacuteksis) dos estoicos 54 O exprimiacutevel ou melhor o diziacutevel no sentido do mostraacutevel 55 A expressatildeo o dito do dizer
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Depois destas digressotildees necessaacuterias para aclararmos o que estaacute em questatildeo
voltemos ao livro II do ldquoDe Doctrina Christianardquo de Agostinho Retomemos a sua
consideraccedilatildeo a respeito do signo
Haacute dois tipos de signos os naturais e os convencionais Os naturais datildeo a
conhecer por si proacuteprios alguma coisa aleacutem do que satildeo em si Assim fumaccedila eacute signo
de fogo Os signos convencionais (data signa) satildeo todos aqueles que os seres vivos em
especial o ser humano mutuamente se trocam para manifestar ndash o quanto lhes eacute
possiacutevel ndash os movimentos de sua alma tais como as sensaccedilotildees e os pensamentos Os
signos podem se dar em referecircncias a todos os sentidos a maioria dos signos poreacutem
se referem agrave audiccedilatildeo ou agrave visatildeo Dentre estes signos mais usuais e importantes satildeo os
signos verbais que satildeo sons significativos que se articulam mediante a voz humana
constituindo a palavra falada Os signos escritos poreacutem mostram os signos verbais de
maneira visiacutevel (e natildeo audiacutevel como fazem os signos falados)
A liacutengua eacute a realizaccedilatildeo concreta da linguagem humana mediante o uso de signos
verbais falados ou escritos As Sagradas Escrituras indicam pela histoacuteria da Torre de
Babel que liacutengua e linguagem sofrem com a decadecircncia do espiacuterito humano causada
pela soberba56 O contraacuterio da histoacuteria de Babel eacute poreacutem a histoacuteria de Pentecostes
narrada no livro dos Atos dos Apoacutestolos que aponta para a comunhatildeo do amor e o
muacutetuo entendimento entre os homens propiciado com o dom do Hagioacutes Pneuma
(Sopro Sagrado Espiacuterito Santo)
56 Na histoacuteria narrada pelo livro do Gecircnesis os homens se unem para erguer uma torre que una a terra ao ceacuteu a partir das proacuteprias forccedilas e da proacutepria engenhosidade Nos povos antigos encontramos monumentos que evocam algo disso O desejo do homem de uniatildeo entre o ceacuteu e a terra se manifesta nos zigurates da mesopotacircmia nas piracircmides das altas culturas das pedras (Egito Peru Meacutexico) nas estupas asiaacuteticas e quiccedilaacute em tempos mais primitivos aos dolmens menires nas cacircmaras funeraacuterias e nos obeliscos Junto com o esforccedilo de o homem erguer-se a si mesmo como homem erguendo pedras haacute o esforccedilo tambeacutem de alcanccedilar a vida dos imortais dos deuses tolhendo a proacutepria finitude Babel que era para ser a ldquoporta dos deusesrdquo (babilani) se torna poreacutem o lugar da confusatildeo (balal = confundir) O mundo se torna assim uma ldquoBabilocircniardquo isto eacute o lugar da confusatildeo em que os homens natildeo conseguem chegar ao entendimento muacutetuo Somente em Pentecostes em Jerusaleacutem celebra-se plenamente a superaccedilatildeo desta divisatildeo e desta confusatildeo em que as liacutenguas natildeo satildeo mais confusas e em que a linguagem do amor ardente une os homens e propicia-lhes a chance do entendimento muacutetuo e da verdadeira concoacuterdia uma concoacuterdia para o bem em favor de Deus
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Aquele vento purificava os coraccedilotildees da palha carnal aquele fogo consumia o feno da antiga concupiscecircncia aquelas liacutenguas em que falavam os que estavam plenos do Espiacuterito Santo prefiguravam a futura Igreja mediante liacutenguas de todos os povos Pois assim como depois do diluacutevio a soberba impiedade dos homens edificou uma grandiosa torre contra o Senhor ocasiatildeo na qual o gecircnero humano mereceu ser dividido pela diversidade das liacutenguas de modo que cada naccedilatildeo falasse sua proacutepria liacutengua para natildeo ser entendido pelas demais assim a humilde piedade dos fieis reduziu a diversidade de liacutenguas agrave unidade da Igreja de maneira que aquilo que a discoacuterdia tinha dispersado o reunisse a caridade e assim os membros dispersos do gecircnero humano qual membros de um mesmo corpo fossem reintegrados agrave unidade de uma uacutenica cabeccedila que eacute Cristo e fundidos na unidade do corpo santo mediante o fogo do amor57
O maior sinal da comunhatildeo do amor eacute quando os homens conseguem falar uns
com os outros e se entender Embora sejam diferentes e falem liacutenguas diferentes falam
a partir de uma mesma linguagem a do amor-caridade (gratuidade) As liacutenguas se
tornam entatildeo como labaredas do amor As falas satildeo entatildeo falas inflamadas de um fogo
divino brilhantes e ardentes divinamente apaixonadas entusiasmadas O amor eacute o que
possibilita manter esta identidade na diferenccedila Cria-se uma identidade comum mas
sem desfazer antes protegendo as diferenccedilas Eacute o milagre das liacutenguas O contraacuterio de
Babel Recriaccedilatildeo do homem humano e da humanidade universal
Assim os homens podem voltar agrave linguagem comum apesar da diversidade das
liacutenguas unindo suas vontades no empenho de conhecer e realizar a vontade de Deus A
serviccedilo deste intento estatildeo as Sagradas Escrituras Estas satildeo obra do proacuteprio Deus que
usou de hagioacutegrafos inspirados para expressar a sua vontade na linguagem humana
mediante as diversas liacutenguas Os que leem as Sagradas Escrituras natildeo desejam encontrar
nelas mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram e desse modo chegar
a conhecer a vontade de Deus segundo a qual ordem esses homens compuseram
Entretanto o leitor das Sagradas Escrituras vai se deparar continuamente com
ambiguidades e obscuridades Para Agostinho estas fazem parte da proacutepria natureza das
Escrituras Sagradas Haacute um certo quecirc de hermeacutetico de enigmaacutetico de obscuro nelas
57 Sermatildeo 271
25
Mas eacute justamente isto que desafia a compreensatildeo e que a faz crescer na busca da
vontade divina As obscuridades e ambiguidades natildeo satildeo inuacuteteis Elas vencem o orgulho
do homem que se aproxima dos misteacuterios divinos sem reverecircncia e sem devoccedilatildeo Por
outro lado elas premunem o espiacuterito do fastio e do teacutedio que a facilidade sempre trazem
consigo As dificuldades de interpretaccedilatildeo cria-nos o gosto pelo exerciacutecio da
compreensatildeo na sua aventura de conquista do sentido Contudo natildeo se deve ter a
pretensatildeo de que se pode chegar a uma clareza que elimine toda sombra e obscuridade
A clareza do misteacuterio que se desvela sempre traz o veacuteu do pudor em que o misteacuterio
mesmo se encobre e assim se resguarda Os significados hauridos seratildeo sempre acenos
do inefaacutevel na medida em que o misteacuterio santo se deixa captar no horizonte do sentido
Uma vez que as Sagradas Escrituras satildeo linguagem do misteacuterio santo do Deus
absconditus (Deus escondido) que se re-vela (desvela e vela ao mesmo tempo) na
finitude da linguagem humana o leitor vai se deparar com desafios sempre novos
Agostinho recorre entatildeo agrave alegorese seguindo neste ponto a tradiccedilatildeo dos
alexandrinos As alegorias possuem encanto todo especial capaz de falar natildeo somente
ao entendimento mas tambeacutem ao coraccedilatildeo dos homens Com efeito a linguagem
imageacutetica concreta tem maior poder de comunicaccedilatildeo vital do que a linguagem
conceitual abstrata O uso de comparaccedilotildees leva o leitor a aprender mais
espontaneamente (libenter) As dificuldades de interpretaccedilatildeo levam-no a aprender com
maior prazer (gratius) As passagens obscuras das Escrituras aguccedilam a fome de
compreensatildeo do leitor Entretanto Agostinho daacute uma indicaccedilatildeo metodoloacutegica de leitura
importante para ir abrindo a compreensatildeo das Escrituras ganhar familiaridade com as
passagens claras e inequiacutevocas e com isso iluminar as passagens obscuras e
enigmaacuteticas Com efeito diz ele quase nada sobressai nas obscuridades que natildeo esteja
escrito mais claramente em outro lugar
Aquele que lecirc as Sagradas Escrituras procurando nelas a vontade divina eacute algueacutem
que estaacute a caminho numa viagem para a paacutetria da beatitude eterna Este caminhar
comporta determinado itineraacuterio no qual o homem vai se dispondo cada vez mais ao
Espiacuterito de Deus e ao seu modo de operar na alma os seus dons Eacute na medida que se
aproxima da Sabedoria do Espiacuterito que o leitor lecirc com maior proveito e profundidade as
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Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
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Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
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Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
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Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
30
(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
xxxxxxxxxxxx
Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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caraacuteter formal geral tem sua origem ontoloacutegica numa referecircncia35
Haacute uma multiplicidade de sinais anuacutencios prenuacutencios vestiacutegios marcas
distintivos cuja accedilatildeo de mostrar difere a cada caso Satildeo sinais diferentes o rastro o
resto o monumento o documento o testemunho o siacutembolo a expressatildeo a
manifestaccedilatildeo a significaccedilatildeo O sinal tem a sua serventia no mostrar no sentido de fazer
sobressair de dar na vista salientar fazer reparar estranhar alguma coisa Aquilo que
normalmente natildeo causa surpresa eacute ressaltado pelo sinal O sinal permite a descoberta
de alguma coisa
O mundo eacute o ldquoonderdquo das descobertas O homem se orienta se dirige se
direciona em seus comportamentos com as coisas com os entes agrave matildeo a partir de uma
familiaridade com o mundo A abertura de mundo se daacute como compreensatildeo Trata-se
poreacutem de uma compreensatildeo operativa natildeo teoacuterica Compreender significa aqui reunir
as remissotildees recolher as referecircncias O caraacuteter de remissatildeo das remissotildees das
referecircncias eacute o que se chama de significar Significar (be-deuten) eacute aqui mostrar
(deuten) no sentido de pocircr a caminho um clarear um esclarecer Eacute o processo e o
movimento de estruturaccedilatildeo do mundo Significar eacute aqui oferecer alguma coisa para a
compreensatildeo e para a interpretaccedilatildeo Significacircncia (Bedeutsamkeit) eacute o todo das
remissotildees do acontecimento e do processo do significar que eacute a estruturaccedilatildeo de
mundo Noacutes nos encontramos a noacutes mesmos jaacute sempre no mundo entendendo o mundo
antes de tudo como uma totalidade de significacircncias Eacute um encontrar-se a si mesmo
sempre numa situaccedilatildeo de ocupaccedilatildeo e preocupaccedilatildeo de cuidado com o proacuteprio ser-no-
mundo Tudo aquilo com que podemos nos relacionar e comportar tem este caraacuteter
estaacute aiacute e eacute encontrado no caminho do cuidado eacute experimentado como significativo a
partir de um determinado cuidado Significacircncia indica este modo fundamental como
algo segundo o seu teor proacuteprio eacute encontrado na vida como ele se deteacutem e se reteacutem
no meio do mundo da vida
Soacute acontece linguagem onde noacutes falamos uns com os outros A linguagem
acontece de iniacutecio e na maior parte das vezes na conversa com suas falas e seus
silecircncios Para noacutes isto eacute na ordem da nossa experiecircncia cotidiana a primeira
35 Heidegger M Ser e Tempo sect 17
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dimensatildeo pois da linguagem eacute a fala o discurso O discurso traz agrave fala uma
compreensatildeo Chamamos de sentido o que pode ser articulado O sentido eacute o que torna
compreensiacutevel algo enquanto algo Compreender eacute fundamentalmente apreender algo
enquanto algo Tudo que apreendemos se mostra a si mesmo como isso ou aquilo Isso
quer dizer noacutes aprendemos cada coisa em sua significacircncia A percepccedilatildeo natural em
que noacutes vivemos cotidianamente jaacute eacute sempre uma compreensatildeo uma captaccedilatildeo da coisa
como esta coisa do sapato como sapato do livro como livro do reloacutegio como reloacutegio
Natildeo eacute assim que eu primeiro apreendo uma coisa na sua nua e crua factualidade e
depois lhe atribuo este ou aquele significado Cada vez eu apreendo uma coisa como
tal coisa isto eacute eu apreendo a coisa dentro de uma determinada significacircncia36
A coisa que me vem ao encontro dentro do mundo se mostra como isto ou
aquilo37 Ela instaura um conjunto de referecircncias ela remete a isto ou aquilo ela soa
desta ou daquela maneira em meu mundo ela fala disto ou daquilo em minha vida A
coisa significa a si mesma Mas o seu poder significar a si mesma soacute eacute possiacutevel porque
ela jaacute eacute descoberta como coisa que vem ao encontro dentro do mundo isto eacute dentro de
uma totalidade de sentido Que a coisa se faccedila encontrar e descobrir deste ou daquele
modo e que ela se decirc a compreender como isto ou aquilo ndash isto soacute eacute possiacutevel porque ao
apreendecirc-la numa percepccedilatildeo concreta um mundo jaacute se me abriu Com a coisa se
anuncia o mundo da vida ou melhor os mundos da vida o mundo circunstante o
mundo partilhado da convivecircncia o mundo proacuteprio pessoal A coisa soacute pode ser
apreendida na sua significacircncia a partir da abertura do mundo ou dos mundos
Perceber eacute jaacute compreender as coisas na sua significacircncia Perceber eacute estruturar
e configurar o mundo como estrutura significativa Em toda percepccedilatildeo atua pois um
ato fundamental de significaccedilatildeo Chamamos de significar o ato pelo qual o homem
estrutura a significacircncia das coisas no horizonte do mundo enquanto totalidade
significativa Da compreensatildeo que articula a significaccedilatildeo das coisas numa totalidade
sentido brota a possibilidade da interpretaccedilatildeo Pela compreensatildeo o homem estaacute
sempre se projetando abrindo lances de perspectivas entrevendo de antematildeo
36 Cfr M HEIDEGGER GP 102-110 37 Cfr M HEIDEGGER Ontologie (Hermeneutik der Faktizitaumlt) (OHF) Gesamtausgabe ndash Band 63 Vittorio Klostermann Frankfurt am Main 1995 p 93-104
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aberturas de possibilidades Pela compreensatildeo o homem opera um ver que eacute projetivo
e criativo de possibilidades de ser Esse ver projetivo e criativo configura isto eacute elabora
em formas significativas essas possibilidades de ser Agrave elaboraccedilatildeo e exposiccedilatildeo dessas
formas chamamos de interpretaccedilatildeo Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo se apropria do
que compreende Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo busca chegar a uma maturaccedilatildeo
isto eacute busca maturar as possibilidades de ser que ela jaacute entreviu A interpretaccedilatildeo eacute uma
explicitaccedilatildeo da compreensatildeo O que entra como componente da explicitaccedilatildeo possui o
caraacuteter de significacircncia eacute o mostrar-se de algo como algo Em todo o nosso
comportamento noacutes jaacute estamos sempre compreendendo e interpretando apreendendo
algo como algo e referindo algo a algo articulando significados numa totalidade de
sentido que eacute o mundo O homem sempre interpreta Pois interpretar eacute ser homem
A articulaccedilatildeo dos significados numa totalidade de sentido se daacute atraveacutes do falar
quer do falar de si consigo mesmo quer do falar uns com os outros Na fala noacutes
pronunciamos o que compreendemos e como interpretamos o que estaacute em questatildeo Pro-
nunciar eacute pro-ferir isto eacute trazer agrave luz ao aberto do mundo da convivecircncia aquilo que
compreendemos e interpretamos Pelo discurso vecircm agrave fala os entes e o ser dos entes
tais como se oferecem agrave nossa compreensatildeo e interpretaccedilatildeo Vem agrave fala agrave medida que
se articulam num horizonte de compreensibilidade que noacutes chamamos de sentido O
sentido eacute o que se articula na compreensatildeo e interpretaccedilatildeo como horizonte daquilo que
compreendemos e interpretamos Todo discurso eacute o pronunciar o vir agrave fala daquilo que
compreendemos e interpretamos dos significados das coisas agrave luz do sentido de ser que
noacutes lhes damos
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Os medievais iratildeo precisar e aprofundar a concepccedilatildeo de signo Assim para
Tomaacutes de Aquino o signum eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro
A palavra proferida exteriormente pela voz eacute a fala A fala eacute proferida a modo de uma
voz articulada significativa Nem todo o som eacute voz A voz enquanto haacutelito sopro som
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que sai da boca com efeito soacute chega a ser palavra quando eacute significativa38 Sem a
significaccedilatildeo (significatio) uma voz natildeo eacute palavra A significaccedilatildeo torna a voz uma
expressatildeo do pensamento39 Por isso somente um vivente inteligente (animal rationale)
tem voz enquanto palavra40 Um vivente melhor um animal emite sons para se
comunicar Mas os seus sons natildeo satildeo vozes articuladas significativas Os gritos os
alaridos de animais natildeo satildeo palavras Sua comunicaccedilatildeo natildeo eacute fala O berrar de um
bezerro o mugir de uma vaca o balar de uma ovelha o balir de um cordeiro o arrulhar
de uma pomba o latir de um catildeo o miar de um gato ndash tudo isso natildeo eacute fala Seus sons
natildeo satildeo vozes significativas Indicam alguma coisa Mas o seu indicar natildeo tem o sentido
de significar alguma coisa Significar eacute dar a conhecer algo como algo a algueacutem41 Fumaccedila
indica fogo Bandeira branca indica rendiccedilatildeo Indicar poreacutem natildeo eacute significar Todo
significar eacute um indicar mas nem todo indicar eacute significar Significar eacute dar a conhecer no
sentido de dar a compreender algo como algo A fala daacute a conhecer alguma coisa Ela
faz-se notar e faz notar alguma coisa A fala eacute um fazer notar que daacute a conhecer alguma
coisa42 A fala faz notar daacute a conhecer isto eacute gera uma ldquonotiordquo ou uma ldquonotitiardquo
(conhecimento noccedilatildeo sentido)43 Notar quer dizer aqui dirigir-se a alguma coisa
orientando-se no mundo (intencionalidade) tornando-se atento a ela ao seu ser
Joatildeo Duns Scotus iraacute retomar o triacircngulo semioacutetico do Peri hermeneiacuteas de
Aristoacuteteles Ele questiona sobre a distinccedilatildeo de litteras et voces (letras e vozes) de um
lado passiones (disposiccedilotildees da alma) e res (coisa) de outro lado na quarta das questotildees
sobre o primeiro livro do ldquoPerigrave hermeneiasrdquo e conclui pela sua conveniecircncia As
disposiccedilotildees da alma (significaccedilatildeo e sentido) satildeo as mesmas em todos bem como as
coisas que elas significam enquanto as letras e vozes satildeo diferentes dependendo da
liacutengua Com outras palavras as letras e vozes que satildeo diferentes de liacutengua para liacutengua
38 ldquoVox quae non est significativa verbum dici non potestrdquo (A voz que natildeo eacute significativa natildeo pode ser dita palavra) ndash Tomaacutes de Aquino op Cit (I341) 39 ldquoLocutio est proprium opus rationis (I913 ad 3) falar -diz Tomaacutes- eacute operaccedilatildeo proacutepria da razatildeo 40 Agrave base desta concepccedilatildeo estaacute a concepccedilatildeo grega do homem aacutenthropos como zoon logon echon (vivente que tem linguagem) Nesta traduccedilatildeo o loacutegos eacute tanto ratio (pensamento) quanto oratio (fala no sentido de discurso) 41 Em Tomaacutes no acircmbito da vox situa-se a palavra (verbum) A palavra eacute uma realizaccedilatildeo especial do signo (signum) que por sua vez eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro (III604) 42 Cfr Heidegger M Vom Wesen der Sprache Die Metaphysik der Sprache und die Wesung des Wortes - Zu Herders Abhandlung ldquoUumlber den Ursprung der Spracherdquo Gesammtausgabe Band 85 p 3-4 43 Cfr idem p 20
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satildeo sinais instituiacutedos pelo arbiacutetrio humano que representam as disposiccedilotildees da alma (no
caso significaccedilatildeo e sentido) que por sua vez satildeo sinais naturais representativos das
coisas44
As expressotildees orais ou escritas satildeo formas linguiacutesticas dotadas de significaccedilotildees e
de sentido Sentidos e significaccedilotildees que satildeo pensados vecircm agrave expressatildeo Eles satildeo
exprimiacuteveis atraveacutes de formaccedilotildees linguiacutesticas Uma coisa eacute a forma linguiacutestica da
expressatildeo o complexo graacutefico ou focircnico ou como dizem os medievais as voces (vozes)
Outra coisa eacute o conteuacutedo da expressatildeo a significaccedilatildeo o sentido no juiacutezo e no
entrelaccedilamento de juiacutezos (conclusatildeo silogismo) O conteuacutedo eacute um ldquosignificatumrdquo que
estaacute intencionalmente ldquoin menterdquo45
A voz se torna expressatildeo agrave medida que eacute dotada de significaccedilotildees e de sentido
Assim a proposiccedilatildeo enquanto sequecircncia de palavras eacute singular Mas o conteuacutedo da
proposiccedilatildeo o juiacutezo ora eacute singular se o predicado eacute dito de um soacute ou universal se o
predicado eacute dito de muitos A proposiccedilatildeo como uma sequecircncia de palavras natildeo eacute
verdadeira ou falsa Ela eacute ou natildeo eacute Eacute falada ou escrita Mas natildeo eacute verdadeira ou falsa O
sentido da proposiccedilatildeo o juiacutezo eacute que eacute verdadeiro ou falso natildeo poreacutem enquanto
simples conteuacutedo da proposiccedilatildeo mas soacute agrave medida que ele tem um valor objetivaacutevel um
valor de conhecimento objetivo46 Proposiccedilatildeo e sentido palavra e significaccedilatildeo
pertencem a acircmbitos de realidade diversos Os elementos linguiacutesticos que constituem
proposiccedilatildeo e palavra satildeo sensivelmente perceptiacuteveis (satildeo acuacutesticos visuais motores)
satildeo reais e temporais Jaacute as significaccedilotildees e o sentido se subtraem a uma percepccedilatildeo
sensorial e satildeo atemporais O elemento linguiacutestico de uma expressatildeo eacute um signum ad
44 Cfr Quaestiones in I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 7) ldquoAd quaestionem dicendum quod differentia est conveniens quia passiones inquanto sunt signa et res inquanto sunt significata sunt eandem apud omnes nam eadem passio in anima apud quoscumque concipientes repraesentat eamdem rem quia eadem similitudo in anima semper est eiusdem repraesentativa sicut est similitudo sensibilis in sensu litterae et voces in se eaedem non sunt eaedem apud omnes inquanto sunt signa quia nec eadem littera apud omnes repraesentat eamdem vocem sed vel aliam vel nullam nec eadem vox apud omnes significat eamdem passionem sed vel aliam vel nullamrdquo (SCOTUS 1998 p 918) 45 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 12) ldquoAd quaestionem dici potest quod iste liber non est de decem vocibus ut de primo subiecto ndash nec aliqua pars logicae est de voce quia omnes passiones syllogismi et omnium partium eius possunt sibi inesse secundum esse quod habent in mente etsi non proferantur () sed est de aliquo priore quod respectu voces significativae tantum habet rationem significatirdquo (SCOTUS 1998 p 652) 46 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 22) ldquoSimiliter lsquosignificare verum vel falsumrsquo convenit enuntiationi sed non ut vox est significans conceptum sed ut conceptus significat remrdquo (SCOTUS 1998 p 653)
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placitum um signo instituiacutedo conforme o agrado ou o arbiacutetrio de quem o usa47 As
significaccedilotildees e os sentidos poreacutem se subtraem ao arbiacutetrio daquele que pensa por ter
a sua proacutepria necessidade ideal ou objetiva
A forma linguiacutestica eacute signo da significaccedilatildeo que por sua vez eacute signo de algo de
objetual de alguma objetualidade (objetos estados-de-coisas notas distintivas formas
reais ou categoriais) Trata-se do triacircngulo semioacutetico que constitui a base da
consideraccedilatildeo sobre a linguagem em toda a tradiccedilatildeo ocidental e que vem de Aristoacuteteles
Para Duns Scotus palavra e proposiccedilatildeo enquanto formaccedilotildees linguiacutesticas
dotadas de significaccedilatildeo e de sentido apontam para a esfera objetual A formaccedilatildeo
linguiacutestica eacute sinal da significaccedilatildeo e do sentido que eacute por sua vez sinal do objeto Enfim
palavra e proposiccedilatildeo satildeo sinais das coisas ldquoQuidquid est signum signi est signum
signatirdquo ndash o que quer que seja sinal do sinal eacute sinal do assinalado48 Assim palavra e
proposiccedilatildeo se tornam sinais das objetualidades agraves quais se referem No entendimento
de Duns Scotus o conceito eacute o que eacute designado imediatamente o objeto eacute o que eacute
designado mediatamente pela expressatildeo O doutor sutil esclarece que significare eacute dare
intelligere dar a compreender49 O signo eacute algo de relacional possui um caraacuteter ou uma
funccedilatildeo remissiva O signo graccedilas a sua funccedilatildeo remissiva eacute o fundamento material de
que parte o conhecimento do designado A expressatildeo linguiacutestica poreacutem natildeo eacute somente
um signo que remete ou se refere a algo Ele eacute um signo que significa algo ou seja que
daacute a compreender algo ou algo de algo e que ademais se refere a objetualidades
visando dizer ou seja mostrar o que se mostra e como se mostra50
47 Cfr Quaestiones super I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 14) ldquo et instrumenta naturalia formandi vocem potest homo aliqua imponere quae sunt signa ad placitum et non naturalia sive conceptusrdquo (SCOTUS 1998 p 919) 48 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 28 n 28) ldquo lsquoQuidquid est signum signi est signum signatirsquo ita quod signum intermedium non varietur in comparatione ad primum signum et ultimum signatumrdquo (SCOTUS 1998 p 751) 49 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 8 n 1) ldquoQuia significare est intellectum constituererdquo (SCOTUS 1998 p 679) 50 Assim para Husserl a expressatildeo que funde numa unidade a manifestaccedilatildeo sensiacutevel a significaccedilatildeo e a referecircncia ao objeto estaacute ordenada tanto a um valor de conhecimento quanto a um valor de verdade Agrave expressatildeo corresponde ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo se constitui uma relaccedilatildeo com o objeto Triacuteplice eacute o conteuacutedo de uma expressatildeo a significaccedilatildeo a referecircncia ao objeto e por fim o preenchimento de sentido A expressatildeo pela significaccedilatildeo e pela referecircncia ao objeto daacute a compreender alguma coisa acerca de algo O preenchimento da intenccedilatildeo signitiva vazia no modo da confirmaccedilatildeo da documentaccedilatildeo intuitiva leva por sua vez agrave experiecircncia da verdade Para Husserl expressotildees satildeo signos significativos distintos dos signos indicativos Numa descriccedilatildeo fenomenoloacutegica da expressatildeo dotada de sentido se
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No De dialectica (Da dialeacutetica) Agostinho define a palavra como um sinal de
alguma coisa que proferido por quem fala pode ser compreendido por quem escuta (De
Dialectica 5) 51 Nesta definiccedilatildeo podemos perceber as vaacuterias dimensotildees do exerciacutecio
humano da linguagem a da comunicaccedilatildeo em que homens falam uns com os outros
compartilhando suas vidas e coparticipando de um mesmo mundo a da expressatildeo em
que homens se pronunciam a partir de seu ser num mundo comum o discurso pelo
qual homens falam uns com os outros e escutam uns aos outros a compreensatildeo e
interpretaccedilatildeo em que homens ouvindo uns aos outros recebem a mensagem e se
apropriam de seu sentido Como ponta do ldquoicebergrdquo de toda esta vitalidade do concurso
comunicativo e do discurso temos o sinal que eacute proferido por quem fala o som da boca
a voz que longe de ser um mero ruiacutedo eacute um sinal um signo e se sinal eacute sinal de
alguma coisa ou seja algo vem a ser significado por este signo ou sinal
podem evidenciar trecircs momentos que no entanto formam uma unidade intimamente fundida a apariccedilatildeo fiacutesica da expressatildeo o ato doador de sentido e o ato preenchedor de sentido Assim palavras e proposiccedilotildees satildeo sons articulados animados de sentido Agraves expressotildees satildeo essenciais os atos que conferem a significaccedilatildeo respectivamente as intenccedilotildees de significaccedilatildeo A estes atos se acrescentam de modo extra-essencial os atos que preenchem as significaccedilotildees confirmando reforccedilando ilustrando as intenccedilotildees de significaccedilatildeo Para que o signo se torne expressatildeo eacute preciso que lhe seja imposto uma significaccedilatildeo Husserl fala de emprestar significaccedilatildeo de conferir sentido Expressotildees satildeo unidades de signos e designados (sinais e assinalados) de espeacutecie bem peculiar Expressotildees satildeo sinais significativos A significaccedilatildeo adere ao ato significativo Com a expressatildeo que suscita o ato que confere o sentido nos orientamos ao objeto Agrave expressatildeo compete ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo eacute que se constitui a relaccedilatildeo com o objeto ldquoToda e qualquer expressatildeo natildeo quer apenas dizer qualquer coisa mas tambeacutem diz algo acerca de qualquer coisa ela natildeo tem apenas a sua significaccedilatildeo mas refere-se tambeacutem a quaisquer objetosrdquo (HUSSERL 2012 p 38 ndash grifo de Husserl) Assim significaccedilatildeo e referecircncia objetiva se distinguem Expressotildees podem ter a mesma significaccedilatildeo mas objetos diferentes por um lado e por outro podem ter significaccedilotildees diferentes mas o mesmo objeto Assim considerando dois enunciados ldquoeste sendeiro eacute um cavalordquo e ldquoBuceacutefalo eacute um cavalordquo a expressatildeo um cavalo tem a mesma significaccedilatildeo mas os objetos satildeo diferentes Por sua vez dois nomes podem significar coisas diferentes mas nomear o mesmo como no exemplo ldquoO vencedor de Iena - O vencido de Waterloordquo Significaccedilatildeo e referecircncia objetiva no entanto estatildeo em iacutentima conexatildeo A expressatildeo se refere ao objeto por meio da significaccedilatildeo Uma expressatildeo adquire um referimento ao objeto pelo simples fato de que esta significa algo Por isso eacute que dizemos que uma expressatildeo designa ou denomina algo por meio do seu significado ou seja o ato de significar eacute o modo determinado de intencionar o objeto em questatildeo soacute que justamente este modo de intencionar e portanto o significado mesmo pode variar enquanto permanece idecircntica a direccedilatildeo para o objeto Se considerarmos pois os trecircs momentos que se fundem numa unidade na expressatildeo temos aquilo que de modo equiacutevoco se chama o expressado da expressatildeo ldquoOs termos em relaccedilatildeo ndash manifestaccedilatildeo significaccedilatildeo e objeto ndash pertencem essencialmente a toda e qualquer expressatildeo Em cada uma qualquer coisa eacute manifestada qualquer coisa eacute significada e qualquer coisa eacute nomeada ou de algum modo designada E no discurso equiacutevoco tudo isto se diz lsquoexpressorsquordquo 51 Idem p 14
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No escrito sobre a dialeacutetica Agostinho trata de quatro elementos desta arte o
verbum o dicibile52 a dictio53 e a res Vejamos como Agostinho expotildee o nexo entre estes
quatro elementos
Ora porque as palavras (verba) satildeo sinais das coisas (signa rerum) quando se ocupam com as coisas enquanto satildeo sinais das palavras (signa verborum) quando se discute sobre palavras ndash pois sobre palavras natildeo podemos falar a natildeo ser com palavras e quando falamos natildeo falamos a natildeo ser de coisas ndash ocorre agrave mente que as palavras satildeo sinais das coisas sem deixar de ser coisas
Quando pois a palavra sai da boca se sai por causa de si mesma isto eacute para que acerca dela se inquira ou se discuta haacute certamente uma coisa que eacute sujeita a discussatildeo e a investigaccedilatildeo mas justamente esta coisa eacute chamada palavra
E o que quer que a partir da palavra natildeo os ouvidos mas a mente (animus) percebe (sentit) e que a mente mesma manteacutem incluiacuteda em si se chama dicibile54 Quando poreacutem a palavra sai natildeo por causa de si mesma mas para significar algo de outro chama-se dictio55 E a coisa mesma que natildeo eacute uma palavra nem ainda uma concepccedilatildeo da palavra na mente seja que tenha uma palavra com a qual possa ser significada seja que natildeo a tenha daqui por diante natildeo eacute chamada com nome apropriado de outro modo do que de coisa
Estes quatro hatildeo de ser mantidos distintamente portanto a palavra (verbum) o dicibile a dictio a coisa Aquilo que defini como palavra eacute uma palavra e significa a palavra Aquilo que defini dicibile eacute uma palavra e todavia natildeo significa a palavra mas aquilo que graccedilas agrave palavra se compreende e estaacute contido na mente Aquilo que eu defini dictio eacute uma palavra mas uma palavra que significa contemporaneamente as outras duas ou seja a palavra mesma e aquilo que se faz na mente atraveacutes da palavra Aquela que eu defini como coisa eacute uma palavra que significa tudo aquilo que fica fora das trecircs que foram ditas
52 Seria o λεκτόν (lektoacuten) dos estoicos 53 Seria a λέξις (leacuteksis) dos estoicos 54 O exprimiacutevel ou melhor o diziacutevel no sentido do mostraacutevel 55 A expressatildeo o dito do dizer
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Depois destas digressotildees necessaacuterias para aclararmos o que estaacute em questatildeo
voltemos ao livro II do ldquoDe Doctrina Christianardquo de Agostinho Retomemos a sua
consideraccedilatildeo a respeito do signo
Haacute dois tipos de signos os naturais e os convencionais Os naturais datildeo a
conhecer por si proacuteprios alguma coisa aleacutem do que satildeo em si Assim fumaccedila eacute signo
de fogo Os signos convencionais (data signa) satildeo todos aqueles que os seres vivos em
especial o ser humano mutuamente se trocam para manifestar ndash o quanto lhes eacute
possiacutevel ndash os movimentos de sua alma tais como as sensaccedilotildees e os pensamentos Os
signos podem se dar em referecircncias a todos os sentidos a maioria dos signos poreacutem
se referem agrave audiccedilatildeo ou agrave visatildeo Dentre estes signos mais usuais e importantes satildeo os
signos verbais que satildeo sons significativos que se articulam mediante a voz humana
constituindo a palavra falada Os signos escritos poreacutem mostram os signos verbais de
maneira visiacutevel (e natildeo audiacutevel como fazem os signos falados)
A liacutengua eacute a realizaccedilatildeo concreta da linguagem humana mediante o uso de signos
verbais falados ou escritos As Sagradas Escrituras indicam pela histoacuteria da Torre de
Babel que liacutengua e linguagem sofrem com a decadecircncia do espiacuterito humano causada
pela soberba56 O contraacuterio da histoacuteria de Babel eacute poreacutem a histoacuteria de Pentecostes
narrada no livro dos Atos dos Apoacutestolos que aponta para a comunhatildeo do amor e o
muacutetuo entendimento entre os homens propiciado com o dom do Hagioacutes Pneuma
(Sopro Sagrado Espiacuterito Santo)
56 Na histoacuteria narrada pelo livro do Gecircnesis os homens se unem para erguer uma torre que una a terra ao ceacuteu a partir das proacuteprias forccedilas e da proacutepria engenhosidade Nos povos antigos encontramos monumentos que evocam algo disso O desejo do homem de uniatildeo entre o ceacuteu e a terra se manifesta nos zigurates da mesopotacircmia nas piracircmides das altas culturas das pedras (Egito Peru Meacutexico) nas estupas asiaacuteticas e quiccedilaacute em tempos mais primitivos aos dolmens menires nas cacircmaras funeraacuterias e nos obeliscos Junto com o esforccedilo de o homem erguer-se a si mesmo como homem erguendo pedras haacute o esforccedilo tambeacutem de alcanccedilar a vida dos imortais dos deuses tolhendo a proacutepria finitude Babel que era para ser a ldquoporta dos deusesrdquo (babilani) se torna poreacutem o lugar da confusatildeo (balal = confundir) O mundo se torna assim uma ldquoBabilocircniardquo isto eacute o lugar da confusatildeo em que os homens natildeo conseguem chegar ao entendimento muacutetuo Somente em Pentecostes em Jerusaleacutem celebra-se plenamente a superaccedilatildeo desta divisatildeo e desta confusatildeo em que as liacutenguas natildeo satildeo mais confusas e em que a linguagem do amor ardente une os homens e propicia-lhes a chance do entendimento muacutetuo e da verdadeira concoacuterdia uma concoacuterdia para o bem em favor de Deus
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Aquele vento purificava os coraccedilotildees da palha carnal aquele fogo consumia o feno da antiga concupiscecircncia aquelas liacutenguas em que falavam os que estavam plenos do Espiacuterito Santo prefiguravam a futura Igreja mediante liacutenguas de todos os povos Pois assim como depois do diluacutevio a soberba impiedade dos homens edificou uma grandiosa torre contra o Senhor ocasiatildeo na qual o gecircnero humano mereceu ser dividido pela diversidade das liacutenguas de modo que cada naccedilatildeo falasse sua proacutepria liacutengua para natildeo ser entendido pelas demais assim a humilde piedade dos fieis reduziu a diversidade de liacutenguas agrave unidade da Igreja de maneira que aquilo que a discoacuterdia tinha dispersado o reunisse a caridade e assim os membros dispersos do gecircnero humano qual membros de um mesmo corpo fossem reintegrados agrave unidade de uma uacutenica cabeccedila que eacute Cristo e fundidos na unidade do corpo santo mediante o fogo do amor57
O maior sinal da comunhatildeo do amor eacute quando os homens conseguem falar uns
com os outros e se entender Embora sejam diferentes e falem liacutenguas diferentes falam
a partir de uma mesma linguagem a do amor-caridade (gratuidade) As liacutenguas se
tornam entatildeo como labaredas do amor As falas satildeo entatildeo falas inflamadas de um fogo
divino brilhantes e ardentes divinamente apaixonadas entusiasmadas O amor eacute o que
possibilita manter esta identidade na diferenccedila Cria-se uma identidade comum mas
sem desfazer antes protegendo as diferenccedilas Eacute o milagre das liacutenguas O contraacuterio de
Babel Recriaccedilatildeo do homem humano e da humanidade universal
Assim os homens podem voltar agrave linguagem comum apesar da diversidade das
liacutenguas unindo suas vontades no empenho de conhecer e realizar a vontade de Deus A
serviccedilo deste intento estatildeo as Sagradas Escrituras Estas satildeo obra do proacuteprio Deus que
usou de hagioacutegrafos inspirados para expressar a sua vontade na linguagem humana
mediante as diversas liacutenguas Os que leem as Sagradas Escrituras natildeo desejam encontrar
nelas mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram e desse modo chegar
a conhecer a vontade de Deus segundo a qual ordem esses homens compuseram
Entretanto o leitor das Sagradas Escrituras vai se deparar continuamente com
ambiguidades e obscuridades Para Agostinho estas fazem parte da proacutepria natureza das
Escrituras Sagradas Haacute um certo quecirc de hermeacutetico de enigmaacutetico de obscuro nelas
57 Sermatildeo 271
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Mas eacute justamente isto que desafia a compreensatildeo e que a faz crescer na busca da
vontade divina As obscuridades e ambiguidades natildeo satildeo inuacuteteis Elas vencem o orgulho
do homem que se aproxima dos misteacuterios divinos sem reverecircncia e sem devoccedilatildeo Por
outro lado elas premunem o espiacuterito do fastio e do teacutedio que a facilidade sempre trazem
consigo As dificuldades de interpretaccedilatildeo cria-nos o gosto pelo exerciacutecio da
compreensatildeo na sua aventura de conquista do sentido Contudo natildeo se deve ter a
pretensatildeo de que se pode chegar a uma clareza que elimine toda sombra e obscuridade
A clareza do misteacuterio que se desvela sempre traz o veacuteu do pudor em que o misteacuterio
mesmo se encobre e assim se resguarda Os significados hauridos seratildeo sempre acenos
do inefaacutevel na medida em que o misteacuterio santo se deixa captar no horizonte do sentido
Uma vez que as Sagradas Escrituras satildeo linguagem do misteacuterio santo do Deus
absconditus (Deus escondido) que se re-vela (desvela e vela ao mesmo tempo) na
finitude da linguagem humana o leitor vai se deparar com desafios sempre novos
Agostinho recorre entatildeo agrave alegorese seguindo neste ponto a tradiccedilatildeo dos
alexandrinos As alegorias possuem encanto todo especial capaz de falar natildeo somente
ao entendimento mas tambeacutem ao coraccedilatildeo dos homens Com efeito a linguagem
imageacutetica concreta tem maior poder de comunicaccedilatildeo vital do que a linguagem
conceitual abstrata O uso de comparaccedilotildees leva o leitor a aprender mais
espontaneamente (libenter) As dificuldades de interpretaccedilatildeo levam-no a aprender com
maior prazer (gratius) As passagens obscuras das Escrituras aguccedilam a fome de
compreensatildeo do leitor Entretanto Agostinho daacute uma indicaccedilatildeo metodoloacutegica de leitura
importante para ir abrindo a compreensatildeo das Escrituras ganhar familiaridade com as
passagens claras e inequiacutevocas e com isso iluminar as passagens obscuras e
enigmaacuteticas Com efeito diz ele quase nada sobressai nas obscuridades que natildeo esteja
escrito mais claramente em outro lugar
Aquele que lecirc as Sagradas Escrituras procurando nelas a vontade divina eacute algueacutem
que estaacute a caminho numa viagem para a paacutetria da beatitude eterna Este caminhar
comporta determinado itineraacuterio no qual o homem vai se dispondo cada vez mais ao
Espiacuterito de Deus e ao seu modo de operar na alma os seus dons Eacute na medida que se
aproxima da Sabedoria do Espiacuterito que o leitor lecirc com maior proveito e profundidade as
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Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
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Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
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Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
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Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
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(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
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O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
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Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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dimensatildeo pois da linguagem eacute a fala o discurso O discurso traz agrave fala uma
compreensatildeo Chamamos de sentido o que pode ser articulado O sentido eacute o que torna
compreensiacutevel algo enquanto algo Compreender eacute fundamentalmente apreender algo
enquanto algo Tudo que apreendemos se mostra a si mesmo como isso ou aquilo Isso
quer dizer noacutes aprendemos cada coisa em sua significacircncia A percepccedilatildeo natural em
que noacutes vivemos cotidianamente jaacute eacute sempre uma compreensatildeo uma captaccedilatildeo da coisa
como esta coisa do sapato como sapato do livro como livro do reloacutegio como reloacutegio
Natildeo eacute assim que eu primeiro apreendo uma coisa na sua nua e crua factualidade e
depois lhe atribuo este ou aquele significado Cada vez eu apreendo uma coisa como
tal coisa isto eacute eu apreendo a coisa dentro de uma determinada significacircncia36
A coisa que me vem ao encontro dentro do mundo se mostra como isto ou
aquilo37 Ela instaura um conjunto de referecircncias ela remete a isto ou aquilo ela soa
desta ou daquela maneira em meu mundo ela fala disto ou daquilo em minha vida A
coisa significa a si mesma Mas o seu poder significar a si mesma soacute eacute possiacutevel porque
ela jaacute eacute descoberta como coisa que vem ao encontro dentro do mundo isto eacute dentro de
uma totalidade de sentido Que a coisa se faccedila encontrar e descobrir deste ou daquele
modo e que ela se decirc a compreender como isto ou aquilo ndash isto soacute eacute possiacutevel porque ao
apreendecirc-la numa percepccedilatildeo concreta um mundo jaacute se me abriu Com a coisa se
anuncia o mundo da vida ou melhor os mundos da vida o mundo circunstante o
mundo partilhado da convivecircncia o mundo proacuteprio pessoal A coisa soacute pode ser
apreendida na sua significacircncia a partir da abertura do mundo ou dos mundos
Perceber eacute jaacute compreender as coisas na sua significacircncia Perceber eacute estruturar
e configurar o mundo como estrutura significativa Em toda percepccedilatildeo atua pois um
ato fundamental de significaccedilatildeo Chamamos de significar o ato pelo qual o homem
estrutura a significacircncia das coisas no horizonte do mundo enquanto totalidade
significativa Da compreensatildeo que articula a significaccedilatildeo das coisas numa totalidade
sentido brota a possibilidade da interpretaccedilatildeo Pela compreensatildeo o homem estaacute
sempre se projetando abrindo lances de perspectivas entrevendo de antematildeo
36 Cfr M HEIDEGGER GP 102-110 37 Cfr M HEIDEGGER Ontologie (Hermeneutik der Faktizitaumlt) (OHF) Gesamtausgabe ndash Band 63 Vittorio Klostermann Frankfurt am Main 1995 p 93-104
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aberturas de possibilidades Pela compreensatildeo o homem opera um ver que eacute projetivo
e criativo de possibilidades de ser Esse ver projetivo e criativo configura isto eacute elabora
em formas significativas essas possibilidades de ser Agrave elaboraccedilatildeo e exposiccedilatildeo dessas
formas chamamos de interpretaccedilatildeo Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo se apropria do
que compreende Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo busca chegar a uma maturaccedilatildeo
isto eacute busca maturar as possibilidades de ser que ela jaacute entreviu A interpretaccedilatildeo eacute uma
explicitaccedilatildeo da compreensatildeo O que entra como componente da explicitaccedilatildeo possui o
caraacuteter de significacircncia eacute o mostrar-se de algo como algo Em todo o nosso
comportamento noacutes jaacute estamos sempre compreendendo e interpretando apreendendo
algo como algo e referindo algo a algo articulando significados numa totalidade de
sentido que eacute o mundo O homem sempre interpreta Pois interpretar eacute ser homem
A articulaccedilatildeo dos significados numa totalidade de sentido se daacute atraveacutes do falar
quer do falar de si consigo mesmo quer do falar uns com os outros Na fala noacutes
pronunciamos o que compreendemos e como interpretamos o que estaacute em questatildeo Pro-
nunciar eacute pro-ferir isto eacute trazer agrave luz ao aberto do mundo da convivecircncia aquilo que
compreendemos e interpretamos Pelo discurso vecircm agrave fala os entes e o ser dos entes
tais como se oferecem agrave nossa compreensatildeo e interpretaccedilatildeo Vem agrave fala agrave medida que
se articulam num horizonte de compreensibilidade que noacutes chamamos de sentido O
sentido eacute o que se articula na compreensatildeo e interpretaccedilatildeo como horizonte daquilo que
compreendemos e interpretamos Todo discurso eacute o pronunciar o vir agrave fala daquilo que
compreendemos e interpretamos dos significados das coisas agrave luz do sentido de ser que
noacutes lhes damos
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Os medievais iratildeo precisar e aprofundar a concepccedilatildeo de signo Assim para
Tomaacutes de Aquino o signum eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro
A palavra proferida exteriormente pela voz eacute a fala A fala eacute proferida a modo de uma
voz articulada significativa Nem todo o som eacute voz A voz enquanto haacutelito sopro som
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que sai da boca com efeito soacute chega a ser palavra quando eacute significativa38 Sem a
significaccedilatildeo (significatio) uma voz natildeo eacute palavra A significaccedilatildeo torna a voz uma
expressatildeo do pensamento39 Por isso somente um vivente inteligente (animal rationale)
tem voz enquanto palavra40 Um vivente melhor um animal emite sons para se
comunicar Mas os seus sons natildeo satildeo vozes articuladas significativas Os gritos os
alaridos de animais natildeo satildeo palavras Sua comunicaccedilatildeo natildeo eacute fala O berrar de um
bezerro o mugir de uma vaca o balar de uma ovelha o balir de um cordeiro o arrulhar
de uma pomba o latir de um catildeo o miar de um gato ndash tudo isso natildeo eacute fala Seus sons
natildeo satildeo vozes significativas Indicam alguma coisa Mas o seu indicar natildeo tem o sentido
de significar alguma coisa Significar eacute dar a conhecer algo como algo a algueacutem41 Fumaccedila
indica fogo Bandeira branca indica rendiccedilatildeo Indicar poreacutem natildeo eacute significar Todo
significar eacute um indicar mas nem todo indicar eacute significar Significar eacute dar a conhecer no
sentido de dar a compreender algo como algo A fala daacute a conhecer alguma coisa Ela
faz-se notar e faz notar alguma coisa A fala eacute um fazer notar que daacute a conhecer alguma
coisa42 A fala faz notar daacute a conhecer isto eacute gera uma ldquonotiordquo ou uma ldquonotitiardquo
(conhecimento noccedilatildeo sentido)43 Notar quer dizer aqui dirigir-se a alguma coisa
orientando-se no mundo (intencionalidade) tornando-se atento a ela ao seu ser
Joatildeo Duns Scotus iraacute retomar o triacircngulo semioacutetico do Peri hermeneiacuteas de
Aristoacuteteles Ele questiona sobre a distinccedilatildeo de litteras et voces (letras e vozes) de um
lado passiones (disposiccedilotildees da alma) e res (coisa) de outro lado na quarta das questotildees
sobre o primeiro livro do ldquoPerigrave hermeneiasrdquo e conclui pela sua conveniecircncia As
disposiccedilotildees da alma (significaccedilatildeo e sentido) satildeo as mesmas em todos bem como as
coisas que elas significam enquanto as letras e vozes satildeo diferentes dependendo da
liacutengua Com outras palavras as letras e vozes que satildeo diferentes de liacutengua para liacutengua
38 ldquoVox quae non est significativa verbum dici non potestrdquo (A voz que natildeo eacute significativa natildeo pode ser dita palavra) ndash Tomaacutes de Aquino op Cit (I341) 39 ldquoLocutio est proprium opus rationis (I913 ad 3) falar -diz Tomaacutes- eacute operaccedilatildeo proacutepria da razatildeo 40 Agrave base desta concepccedilatildeo estaacute a concepccedilatildeo grega do homem aacutenthropos como zoon logon echon (vivente que tem linguagem) Nesta traduccedilatildeo o loacutegos eacute tanto ratio (pensamento) quanto oratio (fala no sentido de discurso) 41 Em Tomaacutes no acircmbito da vox situa-se a palavra (verbum) A palavra eacute uma realizaccedilatildeo especial do signo (signum) que por sua vez eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro (III604) 42 Cfr Heidegger M Vom Wesen der Sprache Die Metaphysik der Sprache und die Wesung des Wortes - Zu Herders Abhandlung ldquoUumlber den Ursprung der Spracherdquo Gesammtausgabe Band 85 p 3-4 43 Cfr idem p 20
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satildeo sinais instituiacutedos pelo arbiacutetrio humano que representam as disposiccedilotildees da alma (no
caso significaccedilatildeo e sentido) que por sua vez satildeo sinais naturais representativos das
coisas44
As expressotildees orais ou escritas satildeo formas linguiacutesticas dotadas de significaccedilotildees e
de sentido Sentidos e significaccedilotildees que satildeo pensados vecircm agrave expressatildeo Eles satildeo
exprimiacuteveis atraveacutes de formaccedilotildees linguiacutesticas Uma coisa eacute a forma linguiacutestica da
expressatildeo o complexo graacutefico ou focircnico ou como dizem os medievais as voces (vozes)
Outra coisa eacute o conteuacutedo da expressatildeo a significaccedilatildeo o sentido no juiacutezo e no
entrelaccedilamento de juiacutezos (conclusatildeo silogismo) O conteuacutedo eacute um ldquosignificatumrdquo que
estaacute intencionalmente ldquoin menterdquo45
A voz se torna expressatildeo agrave medida que eacute dotada de significaccedilotildees e de sentido
Assim a proposiccedilatildeo enquanto sequecircncia de palavras eacute singular Mas o conteuacutedo da
proposiccedilatildeo o juiacutezo ora eacute singular se o predicado eacute dito de um soacute ou universal se o
predicado eacute dito de muitos A proposiccedilatildeo como uma sequecircncia de palavras natildeo eacute
verdadeira ou falsa Ela eacute ou natildeo eacute Eacute falada ou escrita Mas natildeo eacute verdadeira ou falsa O
sentido da proposiccedilatildeo o juiacutezo eacute que eacute verdadeiro ou falso natildeo poreacutem enquanto
simples conteuacutedo da proposiccedilatildeo mas soacute agrave medida que ele tem um valor objetivaacutevel um
valor de conhecimento objetivo46 Proposiccedilatildeo e sentido palavra e significaccedilatildeo
pertencem a acircmbitos de realidade diversos Os elementos linguiacutesticos que constituem
proposiccedilatildeo e palavra satildeo sensivelmente perceptiacuteveis (satildeo acuacutesticos visuais motores)
satildeo reais e temporais Jaacute as significaccedilotildees e o sentido se subtraem a uma percepccedilatildeo
sensorial e satildeo atemporais O elemento linguiacutestico de uma expressatildeo eacute um signum ad
44 Cfr Quaestiones in I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 7) ldquoAd quaestionem dicendum quod differentia est conveniens quia passiones inquanto sunt signa et res inquanto sunt significata sunt eandem apud omnes nam eadem passio in anima apud quoscumque concipientes repraesentat eamdem rem quia eadem similitudo in anima semper est eiusdem repraesentativa sicut est similitudo sensibilis in sensu litterae et voces in se eaedem non sunt eaedem apud omnes inquanto sunt signa quia nec eadem littera apud omnes repraesentat eamdem vocem sed vel aliam vel nullam nec eadem vox apud omnes significat eamdem passionem sed vel aliam vel nullamrdquo (SCOTUS 1998 p 918) 45 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 12) ldquoAd quaestionem dici potest quod iste liber non est de decem vocibus ut de primo subiecto ndash nec aliqua pars logicae est de voce quia omnes passiones syllogismi et omnium partium eius possunt sibi inesse secundum esse quod habent in mente etsi non proferantur () sed est de aliquo priore quod respectu voces significativae tantum habet rationem significatirdquo (SCOTUS 1998 p 652) 46 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 22) ldquoSimiliter lsquosignificare verum vel falsumrsquo convenit enuntiationi sed non ut vox est significans conceptum sed ut conceptus significat remrdquo (SCOTUS 1998 p 653)
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placitum um signo instituiacutedo conforme o agrado ou o arbiacutetrio de quem o usa47 As
significaccedilotildees e os sentidos poreacutem se subtraem ao arbiacutetrio daquele que pensa por ter
a sua proacutepria necessidade ideal ou objetiva
A forma linguiacutestica eacute signo da significaccedilatildeo que por sua vez eacute signo de algo de
objetual de alguma objetualidade (objetos estados-de-coisas notas distintivas formas
reais ou categoriais) Trata-se do triacircngulo semioacutetico que constitui a base da
consideraccedilatildeo sobre a linguagem em toda a tradiccedilatildeo ocidental e que vem de Aristoacuteteles
Para Duns Scotus palavra e proposiccedilatildeo enquanto formaccedilotildees linguiacutesticas
dotadas de significaccedilatildeo e de sentido apontam para a esfera objetual A formaccedilatildeo
linguiacutestica eacute sinal da significaccedilatildeo e do sentido que eacute por sua vez sinal do objeto Enfim
palavra e proposiccedilatildeo satildeo sinais das coisas ldquoQuidquid est signum signi est signum
signatirdquo ndash o que quer que seja sinal do sinal eacute sinal do assinalado48 Assim palavra e
proposiccedilatildeo se tornam sinais das objetualidades agraves quais se referem No entendimento
de Duns Scotus o conceito eacute o que eacute designado imediatamente o objeto eacute o que eacute
designado mediatamente pela expressatildeo O doutor sutil esclarece que significare eacute dare
intelligere dar a compreender49 O signo eacute algo de relacional possui um caraacuteter ou uma
funccedilatildeo remissiva O signo graccedilas a sua funccedilatildeo remissiva eacute o fundamento material de
que parte o conhecimento do designado A expressatildeo linguiacutestica poreacutem natildeo eacute somente
um signo que remete ou se refere a algo Ele eacute um signo que significa algo ou seja que
daacute a compreender algo ou algo de algo e que ademais se refere a objetualidades
visando dizer ou seja mostrar o que se mostra e como se mostra50
47 Cfr Quaestiones super I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 14) ldquo et instrumenta naturalia formandi vocem potest homo aliqua imponere quae sunt signa ad placitum et non naturalia sive conceptusrdquo (SCOTUS 1998 p 919) 48 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 28 n 28) ldquo lsquoQuidquid est signum signi est signum signatirsquo ita quod signum intermedium non varietur in comparatione ad primum signum et ultimum signatumrdquo (SCOTUS 1998 p 751) 49 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 8 n 1) ldquoQuia significare est intellectum constituererdquo (SCOTUS 1998 p 679) 50 Assim para Husserl a expressatildeo que funde numa unidade a manifestaccedilatildeo sensiacutevel a significaccedilatildeo e a referecircncia ao objeto estaacute ordenada tanto a um valor de conhecimento quanto a um valor de verdade Agrave expressatildeo corresponde ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo se constitui uma relaccedilatildeo com o objeto Triacuteplice eacute o conteuacutedo de uma expressatildeo a significaccedilatildeo a referecircncia ao objeto e por fim o preenchimento de sentido A expressatildeo pela significaccedilatildeo e pela referecircncia ao objeto daacute a compreender alguma coisa acerca de algo O preenchimento da intenccedilatildeo signitiva vazia no modo da confirmaccedilatildeo da documentaccedilatildeo intuitiva leva por sua vez agrave experiecircncia da verdade Para Husserl expressotildees satildeo signos significativos distintos dos signos indicativos Numa descriccedilatildeo fenomenoloacutegica da expressatildeo dotada de sentido se
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No De dialectica (Da dialeacutetica) Agostinho define a palavra como um sinal de
alguma coisa que proferido por quem fala pode ser compreendido por quem escuta (De
Dialectica 5) 51 Nesta definiccedilatildeo podemos perceber as vaacuterias dimensotildees do exerciacutecio
humano da linguagem a da comunicaccedilatildeo em que homens falam uns com os outros
compartilhando suas vidas e coparticipando de um mesmo mundo a da expressatildeo em
que homens se pronunciam a partir de seu ser num mundo comum o discurso pelo
qual homens falam uns com os outros e escutam uns aos outros a compreensatildeo e
interpretaccedilatildeo em que homens ouvindo uns aos outros recebem a mensagem e se
apropriam de seu sentido Como ponta do ldquoicebergrdquo de toda esta vitalidade do concurso
comunicativo e do discurso temos o sinal que eacute proferido por quem fala o som da boca
a voz que longe de ser um mero ruiacutedo eacute um sinal um signo e se sinal eacute sinal de
alguma coisa ou seja algo vem a ser significado por este signo ou sinal
podem evidenciar trecircs momentos que no entanto formam uma unidade intimamente fundida a apariccedilatildeo fiacutesica da expressatildeo o ato doador de sentido e o ato preenchedor de sentido Assim palavras e proposiccedilotildees satildeo sons articulados animados de sentido Agraves expressotildees satildeo essenciais os atos que conferem a significaccedilatildeo respectivamente as intenccedilotildees de significaccedilatildeo A estes atos se acrescentam de modo extra-essencial os atos que preenchem as significaccedilotildees confirmando reforccedilando ilustrando as intenccedilotildees de significaccedilatildeo Para que o signo se torne expressatildeo eacute preciso que lhe seja imposto uma significaccedilatildeo Husserl fala de emprestar significaccedilatildeo de conferir sentido Expressotildees satildeo unidades de signos e designados (sinais e assinalados) de espeacutecie bem peculiar Expressotildees satildeo sinais significativos A significaccedilatildeo adere ao ato significativo Com a expressatildeo que suscita o ato que confere o sentido nos orientamos ao objeto Agrave expressatildeo compete ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo eacute que se constitui a relaccedilatildeo com o objeto ldquoToda e qualquer expressatildeo natildeo quer apenas dizer qualquer coisa mas tambeacutem diz algo acerca de qualquer coisa ela natildeo tem apenas a sua significaccedilatildeo mas refere-se tambeacutem a quaisquer objetosrdquo (HUSSERL 2012 p 38 ndash grifo de Husserl) Assim significaccedilatildeo e referecircncia objetiva se distinguem Expressotildees podem ter a mesma significaccedilatildeo mas objetos diferentes por um lado e por outro podem ter significaccedilotildees diferentes mas o mesmo objeto Assim considerando dois enunciados ldquoeste sendeiro eacute um cavalordquo e ldquoBuceacutefalo eacute um cavalordquo a expressatildeo um cavalo tem a mesma significaccedilatildeo mas os objetos satildeo diferentes Por sua vez dois nomes podem significar coisas diferentes mas nomear o mesmo como no exemplo ldquoO vencedor de Iena - O vencido de Waterloordquo Significaccedilatildeo e referecircncia objetiva no entanto estatildeo em iacutentima conexatildeo A expressatildeo se refere ao objeto por meio da significaccedilatildeo Uma expressatildeo adquire um referimento ao objeto pelo simples fato de que esta significa algo Por isso eacute que dizemos que uma expressatildeo designa ou denomina algo por meio do seu significado ou seja o ato de significar eacute o modo determinado de intencionar o objeto em questatildeo soacute que justamente este modo de intencionar e portanto o significado mesmo pode variar enquanto permanece idecircntica a direccedilatildeo para o objeto Se considerarmos pois os trecircs momentos que se fundem numa unidade na expressatildeo temos aquilo que de modo equiacutevoco se chama o expressado da expressatildeo ldquoOs termos em relaccedilatildeo ndash manifestaccedilatildeo significaccedilatildeo e objeto ndash pertencem essencialmente a toda e qualquer expressatildeo Em cada uma qualquer coisa eacute manifestada qualquer coisa eacute significada e qualquer coisa eacute nomeada ou de algum modo designada E no discurso equiacutevoco tudo isto se diz lsquoexpressorsquordquo 51 Idem p 14
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No escrito sobre a dialeacutetica Agostinho trata de quatro elementos desta arte o
verbum o dicibile52 a dictio53 e a res Vejamos como Agostinho expotildee o nexo entre estes
quatro elementos
Ora porque as palavras (verba) satildeo sinais das coisas (signa rerum) quando se ocupam com as coisas enquanto satildeo sinais das palavras (signa verborum) quando se discute sobre palavras ndash pois sobre palavras natildeo podemos falar a natildeo ser com palavras e quando falamos natildeo falamos a natildeo ser de coisas ndash ocorre agrave mente que as palavras satildeo sinais das coisas sem deixar de ser coisas
Quando pois a palavra sai da boca se sai por causa de si mesma isto eacute para que acerca dela se inquira ou se discuta haacute certamente uma coisa que eacute sujeita a discussatildeo e a investigaccedilatildeo mas justamente esta coisa eacute chamada palavra
E o que quer que a partir da palavra natildeo os ouvidos mas a mente (animus) percebe (sentit) e que a mente mesma manteacutem incluiacuteda em si se chama dicibile54 Quando poreacutem a palavra sai natildeo por causa de si mesma mas para significar algo de outro chama-se dictio55 E a coisa mesma que natildeo eacute uma palavra nem ainda uma concepccedilatildeo da palavra na mente seja que tenha uma palavra com a qual possa ser significada seja que natildeo a tenha daqui por diante natildeo eacute chamada com nome apropriado de outro modo do que de coisa
Estes quatro hatildeo de ser mantidos distintamente portanto a palavra (verbum) o dicibile a dictio a coisa Aquilo que defini como palavra eacute uma palavra e significa a palavra Aquilo que defini dicibile eacute uma palavra e todavia natildeo significa a palavra mas aquilo que graccedilas agrave palavra se compreende e estaacute contido na mente Aquilo que eu defini dictio eacute uma palavra mas uma palavra que significa contemporaneamente as outras duas ou seja a palavra mesma e aquilo que se faz na mente atraveacutes da palavra Aquela que eu defini como coisa eacute uma palavra que significa tudo aquilo que fica fora das trecircs que foram ditas
52 Seria o λεκτόν (lektoacuten) dos estoicos 53 Seria a λέξις (leacuteksis) dos estoicos 54 O exprimiacutevel ou melhor o diziacutevel no sentido do mostraacutevel 55 A expressatildeo o dito do dizer
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Depois destas digressotildees necessaacuterias para aclararmos o que estaacute em questatildeo
voltemos ao livro II do ldquoDe Doctrina Christianardquo de Agostinho Retomemos a sua
consideraccedilatildeo a respeito do signo
Haacute dois tipos de signos os naturais e os convencionais Os naturais datildeo a
conhecer por si proacuteprios alguma coisa aleacutem do que satildeo em si Assim fumaccedila eacute signo
de fogo Os signos convencionais (data signa) satildeo todos aqueles que os seres vivos em
especial o ser humano mutuamente se trocam para manifestar ndash o quanto lhes eacute
possiacutevel ndash os movimentos de sua alma tais como as sensaccedilotildees e os pensamentos Os
signos podem se dar em referecircncias a todos os sentidos a maioria dos signos poreacutem
se referem agrave audiccedilatildeo ou agrave visatildeo Dentre estes signos mais usuais e importantes satildeo os
signos verbais que satildeo sons significativos que se articulam mediante a voz humana
constituindo a palavra falada Os signos escritos poreacutem mostram os signos verbais de
maneira visiacutevel (e natildeo audiacutevel como fazem os signos falados)
A liacutengua eacute a realizaccedilatildeo concreta da linguagem humana mediante o uso de signos
verbais falados ou escritos As Sagradas Escrituras indicam pela histoacuteria da Torre de
Babel que liacutengua e linguagem sofrem com a decadecircncia do espiacuterito humano causada
pela soberba56 O contraacuterio da histoacuteria de Babel eacute poreacutem a histoacuteria de Pentecostes
narrada no livro dos Atos dos Apoacutestolos que aponta para a comunhatildeo do amor e o
muacutetuo entendimento entre os homens propiciado com o dom do Hagioacutes Pneuma
(Sopro Sagrado Espiacuterito Santo)
56 Na histoacuteria narrada pelo livro do Gecircnesis os homens se unem para erguer uma torre que una a terra ao ceacuteu a partir das proacuteprias forccedilas e da proacutepria engenhosidade Nos povos antigos encontramos monumentos que evocam algo disso O desejo do homem de uniatildeo entre o ceacuteu e a terra se manifesta nos zigurates da mesopotacircmia nas piracircmides das altas culturas das pedras (Egito Peru Meacutexico) nas estupas asiaacuteticas e quiccedilaacute em tempos mais primitivos aos dolmens menires nas cacircmaras funeraacuterias e nos obeliscos Junto com o esforccedilo de o homem erguer-se a si mesmo como homem erguendo pedras haacute o esforccedilo tambeacutem de alcanccedilar a vida dos imortais dos deuses tolhendo a proacutepria finitude Babel que era para ser a ldquoporta dos deusesrdquo (babilani) se torna poreacutem o lugar da confusatildeo (balal = confundir) O mundo se torna assim uma ldquoBabilocircniardquo isto eacute o lugar da confusatildeo em que os homens natildeo conseguem chegar ao entendimento muacutetuo Somente em Pentecostes em Jerusaleacutem celebra-se plenamente a superaccedilatildeo desta divisatildeo e desta confusatildeo em que as liacutenguas natildeo satildeo mais confusas e em que a linguagem do amor ardente une os homens e propicia-lhes a chance do entendimento muacutetuo e da verdadeira concoacuterdia uma concoacuterdia para o bem em favor de Deus
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Aquele vento purificava os coraccedilotildees da palha carnal aquele fogo consumia o feno da antiga concupiscecircncia aquelas liacutenguas em que falavam os que estavam plenos do Espiacuterito Santo prefiguravam a futura Igreja mediante liacutenguas de todos os povos Pois assim como depois do diluacutevio a soberba impiedade dos homens edificou uma grandiosa torre contra o Senhor ocasiatildeo na qual o gecircnero humano mereceu ser dividido pela diversidade das liacutenguas de modo que cada naccedilatildeo falasse sua proacutepria liacutengua para natildeo ser entendido pelas demais assim a humilde piedade dos fieis reduziu a diversidade de liacutenguas agrave unidade da Igreja de maneira que aquilo que a discoacuterdia tinha dispersado o reunisse a caridade e assim os membros dispersos do gecircnero humano qual membros de um mesmo corpo fossem reintegrados agrave unidade de uma uacutenica cabeccedila que eacute Cristo e fundidos na unidade do corpo santo mediante o fogo do amor57
O maior sinal da comunhatildeo do amor eacute quando os homens conseguem falar uns
com os outros e se entender Embora sejam diferentes e falem liacutenguas diferentes falam
a partir de uma mesma linguagem a do amor-caridade (gratuidade) As liacutenguas se
tornam entatildeo como labaredas do amor As falas satildeo entatildeo falas inflamadas de um fogo
divino brilhantes e ardentes divinamente apaixonadas entusiasmadas O amor eacute o que
possibilita manter esta identidade na diferenccedila Cria-se uma identidade comum mas
sem desfazer antes protegendo as diferenccedilas Eacute o milagre das liacutenguas O contraacuterio de
Babel Recriaccedilatildeo do homem humano e da humanidade universal
Assim os homens podem voltar agrave linguagem comum apesar da diversidade das
liacutenguas unindo suas vontades no empenho de conhecer e realizar a vontade de Deus A
serviccedilo deste intento estatildeo as Sagradas Escrituras Estas satildeo obra do proacuteprio Deus que
usou de hagioacutegrafos inspirados para expressar a sua vontade na linguagem humana
mediante as diversas liacutenguas Os que leem as Sagradas Escrituras natildeo desejam encontrar
nelas mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram e desse modo chegar
a conhecer a vontade de Deus segundo a qual ordem esses homens compuseram
Entretanto o leitor das Sagradas Escrituras vai se deparar continuamente com
ambiguidades e obscuridades Para Agostinho estas fazem parte da proacutepria natureza das
Escrituras Sagradas Haacute um certo quecirc de hermeacutetico de enigmaacutetico de obscuro nelas
57 Sermatildeo 271
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Mas eacute justamente isto que desafia a compreensatildeo e que a faz crescer na busca da
vontade divina As obscuridades e ambiguidades natildeo satildeo inuacuteteis Elas vencem o orgulho
do homem que se aproxima dos misteacuterios divinos sem reverecircncia e sem devoccedilatildeo Por
outro lado elas premunem o espiacuterito do fastio e do teacutedio que a facilidade sempre trazem
consigo As dificuldades de interpretaccedilatildeo cria-nos o gosto pelo exerciacutecio da
compreensatildeo na sua aventura de conquista do sentido Contudo natildeo se deve ter a
pretensatildeo de que se pode chegar a uma clareza que elimine toda sombra e obscuridade
A clareza do misteacuterio que se desvela sempre traz o veacuteu do pudor em que o misteacuterio
mesmo se encobre e assim se resguarda Os significados hauridos seratildeo sempre acenos
do inefaacutevel na medida em que o misteacuterio santo se deixa captar no horizonte do sentido
Uma vez que as Sagradas Escrituras satildeo linguagem do misteacuterio santo do Deus
absconditus (Deus escondido) que se re-vela (desvela e vela ao mesmo tempo) na
finitude da linguagem humana o leitor vai se deparar com desafios sempre novos
Agostinho recorre entatildeo agrave alegorese seguindo neste ponto a tradiccedilatildeo dos
alexandrinos As alegorias possuem encanto todo especial capaz de falar natildeo somente
ao entendimento mas tambeacutem ao coraccedilatildeo dos homens Com efeito a linguagem
imageacutetica concreta tem maior poder de comunicaccedilatildeo vital do que a linguagem
conceitual abstrata O uso de comparaccedilotildees leva o leitor a aprender mais
espontaneamente (libenter) As dificuldades de interpretaccedilatildeo levam-no a aprender com
maior prazer (gratius) As passagens obscuras das Escrituras aguccedilam a fome de
compreensatildeo do leitor Entretanto Agostinho daacute uma indicaccedilatildeo metodoloacutegica de leitura
importante para ir abrindo a compreensatildeo das Escrituras ganhar familiaridade com as
passagens claras e inequiacutevocas e com isso iluminar as passagens obscuras e
enigmaacuteticas Com efeito diz ele quase nada sobressai nas obscuridades que natildeo esteja
escrito mais claramente em outro lugar
Aquele que lecirc as Sagradas Escrituras procurando nelas a vontade divina eacute algueacutem
que estaacute a caminho numa viagem para a paacutetria da beatitude eterna Este caminhar
comporta determinado itineraacuterio no qual o homem vai se dispondo cada vez mais ao
Espiacuterito de Deus e ao seu modo de operar na alma os seus dons Eacute na medida que se
aproxima da Sabedoria do Espiacuterito que o leitor lecirc com maior proveito e profundidade as
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Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
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Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
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Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
29
Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
30
(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
35
derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
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Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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aberturas de possibilidades Pela compreensatildeo o homem opera um ver que eacute projetivo
e criativo de possibilidades de ser Esse ver projetivo e criativo configura isto eacute elabora
em formas significativas essas possibilidades de ser Agrave elaboraccedilatildeo e exposiccedilatildeo dessas
formas chamamos de interpretaccedilatildeo Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo se apropria do
que compreende Pela interpretaccedilatildeo a compreensatildeo busca chegar a uma maturaccedilatildeo
isto eacute busca maturar as possibilidades de ser que ela jaacute entreviu A interpretaccedilatildeo eacute uma
explicitaccedilatildeo da compreensatildeo O que entra como componente da explicitaccedilatildeo possui o
caraacuteter de significacircncia eacute o mostrar-se de algo como algo Em todo o nosso
comportamento noacutes jaacute estamos sempre compreendendo e interpretando apreendendo
algo como algo e referindo algo a algo articulando significados numa totalidade de
sentido que eacute o mundo O homem sempre interpreta Pois interpretar eacute ser homem
A articulaccedilatildeo dos significados numa totalidade de sentido se daacute atraveacutes do falar
quer do falar de si consigo mesmo quer do falar uns com os outros Na fala noacutes
pronunciamos o que compreendemos e como interpretamos o que estaacute em questatildeo Pro-
nunciar eacute pro-ferir isto eacute trazer agrave luz ao aberto do mundo da convivecircncia aquilo que
compreendemos e interpretamos Pelo discurso vecircm agrave fala os entes e o ser dos entes
tais como se oferecem agrave nossa compreensatildeo e interpretaccedilatildeo Vem agrave fala agrave medida que
se articulam num horizonte de compreensibilidade que noacutes chamamos de sentido O
sentido eacute o que se articula na compreensatildeo e interpretaccedilatildeo como horizonte daquilo que
compreendemos e interpretamos Todo discurso eacute o pronunciar o vir agrave fala daquilo que
compreendemos e interpretamos dos significados das coisas agrave luz do sentido de ser que
noacutes lhes damos
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Os medievais iratildeo precisar e aprofundar a concepccedilatildeo de signo Assim para
Tomaacutes de Aquino o signum eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro
A palavra proferida exteriormente pela voz eacute a fala A fala eacute proferida a modo de uma
voz articulada significativa Nem todo o som eacute voz A voz enquanto haacutelito sopro som
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que sai da boca com efeito soacute chega a ser palavra quando eacute significativa38 Sem a
significaccedilatildeo (significatio) uma voz natildeo eacute palavra A significaccedilatildeo torna a voz uma
expressatildeo do pensamento39 Por isso somente um vivente inteligente (animal rationale)
tem voz enquanto palavra40 Um vivente melhor um animal emite sons para se
comunicar Mas os seus sons natildeo satildeo vozes articuladas significativas Os gritos os
alaridos de animais natildeo satildeo palavras Sua comunicaccedilatildeo natildeo eacute fala O berrar de um
bezerro o mugir de uma vaca o balar de uma ovelha o balir de um cordeiro o arrulhar
de uma pomba o latir de um catildeo o miar de um gato ndash tudo isso natildeo eacute fala Seus sons
natildeo satildeo vozes significativas Indicam alguma coisa Mas o seu indicar natildeo tem o sentido
de significar alguma coisa Significar eacute dar a conhecer algo como algo a algueacutem41 Fumaccedila
indica fogo Bandeira branca indica rendiccedilatildeo Indicar poreacutem natildeo eacute significar Todo
significar eacute um indicar mas nem todo indicar eacute significar Significar eacute dar a conhecer no
sentido de dar a compreender algo como algo A fala daacute a conhecer alguma coisa Ela
faz-se notar e faz notar alguma coisa A fala eacute um fazer notar que daacute a conhecer alguma
coisa42 A fala faz notar daacute a conhecer isto eacute gera uma ldquonotiordquo ou uma ldquonotitiardquo
(conhecimento noccedilatildeo sentido)43 Notar quer dizer aqui dirigir-se a alguma coisa
orientando-se no mundo (intencionalidade) tornando-se atento a ela ao seu ser
Joatildeo Duns Scotus iraacute retomar o triacircngulo semioacutetico do Peri hermeneiacuteas de
Aristoacuteteles Ele questiona sobre a distinccedilatildeo de litteras et voces (letras e vozes) de um
lado passiones (disposiccedilotildees da alma) e res (coisa) de outro lado na quarta das questotildees
sobre o primeiro livro do ldquoPerigrave hermeneiasrdquo e conclui pela sua conveniecircncia As
disposiccedilotildees da alma (significaccedilatildeo e sentido) satildeo as mesmas em todos bem como as
coisas que elas significam enquanto as letras e vozes satildeo diferentes dependendo da
liacutengua Com outras palavras as letras e vozes que satildeo diferentes de liacutengua para liacutengua
38 ldquoVox quae non est significativa verbum dici non potestrdquo (A voz que natildeo eacute significativa natildeo pode ser dita palavra) ndash Tomaacutes de Aquino op Cit (I341) 39 ldquoLocutio est proprium opus rationis (I913 ad 3) falar -diz Tomaacutes- eacute operaccedilatildeo proacutepria da razatildeo 40 Agrave base desta concepccedilatildeo estaacute a concepccedilatildeo grega do homem aacutenthropos como zoon logon echon (vivente que tem linguagem) Nesta traduccedilatildeo o loacutegos eacute tanto ratio (pensamento) quanto oratio (fala no sentido de discurso) 41 Em Tomaacutes no acircmbito da vox situa-se a palavra (verbum) A palavra eacute uma realizaccedilatildeo especial do signo (signum) que por sua vez eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro (III604) 42 Cfr Heidegger M Vom Wesen der Sprache Die Metaphysik der Sprache und die Wesung des Wortes - Zu Herders Abhandlung ldquoUumlber den Ursprung der Spracherdquo Gesammtausgabe Band 85 p 3-4 43 Cfr idem p 20
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satildeo sinais instituiacutedos pelo arbiacutetrio humano que representam as disposiccedilotildees da alma (no
caso significaccedilatildeo e sentido) que por sua vez satildeo sinais naturais representativos das
coisas44
As expressotildees orais ou escritas satildeo formas linguiacutesticas dotadas de significaccedilotildees e
de sentido Sentidos e significaccedilotildees que satildeo pensados vecircm agrave expressatildeo Eles satildeo
exprimiacuteveis atraveacutes de formaccedilotildees linguiacutesticas Uma coisa eacute a forma linguiacutestica da
expressatildeo o complexo graacutefico ou focircnico ou como dizem os medievais as voces (vozes)
Outra coisa eacute o conteuacutedo da expressatildeo a significaccedilatildeo o sentido no juiacutezo e no
entrelaccedilamento de juiacutezos (conclusatildeo silogismo) O conteuacutedo eacute um ldquosignificatumrdquo que
estaacute intencionalmente ldquoin menterdquo45
A voz se torna expressatildeo agrave medida que eacute dotada de significaccedilotildees e de sentido
Assim a proposiccedilatildeo enquanto sequecircncia de palavras eacute singular Mas o conteuacutedo da
proposiccedilatildeo o juiacutezo ora eacute singular se o predicado eacute dito de um soacute ou universal se o
predicado eacute dito de muitos A proposiccedilatildeo como uma sequecircncia de palavras natildeo eacute
verdadeira ou falsa Ela eacute ou natildeo eacute Eacute falada ou escrita Mas natildeo eacute verdadeira ou falsa O
sentido da proposiccedilatildeo o juiacutezo eacute que eacute verdadeiro ou falso natildeo poreacutem enquanto
simples conteuacutedo da proposiccedilatildeo mas soacute agrave medida que ele tem um valor objetivaacutevel um
valor de conhecimento objetivo46 Proposiccedilatildeo e sentido palavra e significaccedilatildeo
pertencem a acircmbitos de realidade diversos Os elementos linguiacutesticos que constituem
proposiccedilatildeo e palavra satildeo sensivelmente perceptiacuteveis (satildeo acuacutesticos visuais motores)
satildeo reais e temporais Jaacute as significaccedilotildees e o sentido se subtraem a uma percepccedilatildeo
sensorial e satildeo atemporais O elemento linguiacutestico de uma expressatildeo eacute um signum ad
44 Cfr Quaestiones in I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 7) ldquoAd quaestionem dicendum quod differentia est conveniens quia passiones inquanto sunt signa et res inquanto sunt significata sunt eandem apud omnes nam eadem passio in anima apud quoscumque concipientes repraesentat eamdem rem quia eadem similitudo in anima semper est eiusdem repraesentativa sicut est similitudo sensibilis in sensu litterae et voces in se eaedem non sunt eaedem apud omnes inquanto sunt signa quia nec eadem littera apud omnes repraesentat eamdem vocem sed vel aliam vel nullam nec eadem vox apud omnes significat eamdem passionem sed vel aliam vel nullamrdquo (SCOTUS 1998 p 918) 45 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 12) ldquoAd quaestionem dici potest quod iste liber non est de decem vocibus ut de primo subiecto ndash nec aliqua pars logicae est de voce quia omnes passiones syllogismi et omnium partium eius possunt sibi inesse secundum esse quod habent in mente etsi non proferantur () sed est de aliquo priore quod respectu voces significativae tantum habet rationem significatirdquo (SCOTUS 1998 p 652) 46 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 22) ldquoSimiliter lsquosignificare verum vel falsumrsquo convenit enuntiationi sed non ut vox est significans conceptum sed ut conceptus significat remrdquo (SCOTUS 1998 p 653)
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placitum um signo instituiacutedo conforme o agrado ou o arbiacutetrio de quem o usa47 As
significaccedilotildees e os sentidos poreacutem se subtraem ao arbiacutetrio daquele que pensa por ter
a sua proacutepria necessidade ideal ou objetiva
A forma linguiacutestica eacute signo da significaccedilatildeo que por sua vez eacute signo de algo de
objetual de alguma objetualidade (objetos estados-de-coisas notas distintivas formas
reais ou categoriais) Trata-se do triacircngulo semioacutetico que constitui a base da
consideraccedilatildeo sobre a linguagem em toda a tradiccedilatildeo ocidental e que vem de Aristoacuteteles
Para Duns Scotus palavra e proposiccedilatildeo enquanto formaccedilotildees linguiacutesticas
dotadas de significaccedilatildeo e de sentido apontam para a esfera objetual A formaccedilatildeo
linguiacutestica eacute sinal da significaccedilatildeo e do sentido que eacute por sua vez sinal do objeto Enfim
palavra e proposiccedilatildeo satildeo sinais das coisas ldquoQuidquid est signum signi est signum
signatirdquo ndash o que quer que seja sinal do sinal eacute sinal do assinalado48 Assim palavra e
proposiccedilatildeo se tornam sinais das objetualidades agraves quais se referem No entendimento
de Duns Scotus o conceito eacute o que eacute designado imediatamente o objeto eacute o que eacute
designado mediatamente pela expressatildeo O doutor sutil esclarece que significare eacute dare
intelligere dar a compreender49 O signo eacute algo de relacional possui um caraacuteter ou uma
funccedilatildeo remissiva O signo graccedilas a sua funccedilatildeo remissiva eacute o fundamento material de
que parte o conhecimento do designado A expressatildeo linguiacutestica poreacutem natildeo eacute somente
um signo que remete ou se refere a algo Ele eacute um signo que significa algo ou seja que
daacute a compreender algo ou algo de algo e que ademais se refere a objetualidades
visando dizer ou seja mostrar o que se mostra e como se mostra50
47 Cfr Quaestiones super I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 14) ldquo et instrumenta naturalia formandi vocem potest homo aliqua imponere quae sunt signa ad placitum et non naturalia sive conceptusrdquo (SCOTUS 1998 p 919) 48 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 28 n 28) ldquo lsquoQuidquid est signum signi est signum signatirsquo ita quod signum intermedium non varietur in comparatione ad primum signum et ultimum signatumrdquo (SCOTUS 1998 p 751) 49 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 8 n 1) ldquoQuia significare est intellectum constituererdquo (SCOTUS 1998 p 679) 50 Assim para Husserl a expressatildeo que funde numa unidade a manifestaccedilatildeo sensiacutevel a significaccedilatildeo e a referecircncia ao objeto estaacute ordenada tanto a um valor de conhecimento quanto a um valor de verdade Agrave expressatildeo corresponde ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo se constitui uma relaccedilatildeo com o objeto Triacuteplice eacute o conteuacutedo de uma expressatildeo a significaccedilatildeo a referecircncia ao objeto e por fim o preenchimento de sentido A expressatildeo pela significaccedilatildeo e pela referecircncia ao objeto daacute a compreender alguma coisa acerca de algo O preenchimento da intenccedilatildeo signitiva vazia no modo da confirmaccedilatildeo da documentaccedilatildeo intuitiva leva por sua vez agrave experiecircncia da verdade Para Husserl expressotildees satildeo signos significativos distintos dos signos indicativos Numa descriccedilatildeo fenomenoloacutegica da expressatildeo dotada de sentido se
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No De dialectica (Da dialeacutetica) Agostinho define a palavra como um sinal de
alguma coisa que proferido por quem fala pode ser compreendido por quem escuta (De
Dialectica 5) 51 Nesta definiccedilatildeo podemos perceber as vaacuterias dimensotildees do exerciacutecio
humano da linguagem a da comunicaccedilatildeo em que homens falam uns com os outros
compartilhando suas vidas e coparticipando de um mesmo mundo a da expressatildeo em
que homens se pronunciam a partir de seu ser num mundo comum o discurso pelo
qual homens falam uns com os outros e escutam uns aos outros a compreensatildeo e
interpretaccedilatildeo em que homens ouvindo uns aos outros recebem a mensagem e se
apropriam de seu sentido Como ponta do ldquoicebergrdquo de toda esta vitalidade do concurso
comunicativo e do discurso temos o sinal que eacute proferido por quem fala o som da boca
a voz que longe de ser um mero ruiacutedo eacute um sinal um signo e se sinal eacute sinal de
alguma coisa ou seja algo vem a ser significado por este signo ou sinal
podem evidenciar trecircs momentos que no entanto formam uma unidade intimamente fundida a apariccedilatildeo fiacutesica da expressatildeo o ato doador de sentido e o ato preenchedor de sentido Assim palavras e proposiccedilotildees satildeo sons articulados animados de sentido Agraves expressotildees satildeo essenciais os atos que conferem a significaccedilatildeo respectivamente as intenccedilotildees de significaccedilatildeo A estes atos se acrescentam de modo extra-essencial os atos que preenchem as significaccedilotildees confirmando reforccedilando ilustrando as intenccedilotildees de significaccedilatildeo Para que o signo se torne expressatildeo eacute preciso que lhe seja imposto uma significaccedilatildeo Husserl fala de emprestar significaccedilatildeo de conferir sentido Expressotildees satildeo unidades de signos e designados (sinais e assinalados) de espeacutecie bem peculiar Expressotildees satildeo sinais significativos A significaccedilatildeo adere ao ato significativo Com a expressatildeo que suscita o ato que confere o sentido nos orientamos ao objeto Agrave expressatildeo compete ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo eacute que se constitui a relaccedilatildeo com o objeto ldquoToda e qualquer expressatildeo natildeo quer apenas dizer qualquer coisa mas tambeacutem diz algo acerca de qualquer coisa ela natildeo tem apenas a sua significaccedilatildeo mas refere-se tambeacutem a quaisquer objetosrdquo (HUSSERL 2012 p 38 ndash grifo de Husserl) Assim significaccedilatildeo e referecircncia objetiva se distinguem Expressotildees podem ter a mesma significaccedilatildeo mas objetos diferentes por um lado e por outro podem ter significaccedilotildees diferentes mas o mesmo objeto Assim considerando dois enunciados ldquoeste sendeiro eacute um cavalordquo e ldquoBuceacutefalo eacute um cavalordquo a expressatildeo um cavalo tem a mesma significaccedilatildeo mas os objetos satildeo diferentes Por sua vez dois nomes podem significar coisas diferentes mas nomear o mesmo como no exemplo ldquoO vencedor de Iena - O vencido de Waterloordquo Significaccedilatildeo e referecircncia objetiva no entanto estatildeo em iacutentima conexatildeo A expressatildeo se refere ao objeto por meio da significaccedilatildeo Uma expressatildeo adquire um referimento ao objeto pelo simples fato de que esta significa algo Por isso eacute que dizemos que uma expressatildeo designa ou denomina algo por meio do seu significado ou seja o ato de significar eacute o modo determinado de intencionar o objeto em questatildeo soacute que justamente este modo de intencionar e portanto o significado mesmo pode variar enquanto permanece idecircntica a direccedilatildeo para o objeto Se considerarmos pois os trecircs momentos que se fundem numa unidade na expressatildeo temos aquilo que de modo equiacutevoco se chama o expressado da expressatildeo ldquoOs termos em relaccedilatildeo ndash manifestaccedilatildeo significaccedilatildeo e objeto ndash pertencem essencialmente a toda e qualquer expressatildeo Em cada uma qualquer coisa eacute manifestada qualquer coisa eacute significada e qualquer coisa eacute nomeada ou de algum modo designada E no discurso equiacutevoco tudo isto se diz lsquoexpressorsquordquo 51 Idem p 14
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No escrito sobre a dialeacutetica Agostinho trata de quatro elementos desta arte o
verbum o dicibile52 a dictio53 e a res Vejamos como Agostinho expotildee o nexo entre estes
quatro elementos
Ora porque as palavras (verba) satildeo sinais das coisas (signa rerum) quando se ocupam com as coisas enquanto satildeo sinais das palavras (signa verborum) quando se discute sobre palavras ndash pois sobre palavras natildeo podemos falar a natildeo ser com palavras e quando falamos natildeo falamos a natildeo ser de coisas ndash ocorre agrave mente que as palavras satildeo sinais das coisas sem deixar de ser coisas
Quando pois a palavra sai da boca se sai por causa de si mesma isto eacute para que acerca dela se inquira ou se discuta haacute certamente uma coisa que eacute sujeita a discussatildeo e a investigaccedilatildeo mas justamente esta coisa eacute chamada palavra
E o que quer que a partir da palavra natildeo os ouvidos mas a mente (animus) percebe (sentit) e que a mente mesma manteacutem incluiacuteda em si se chama dicibile54 Quando poreacutem a palavra sai natildeo por causa de si mesma mas para significar algo de outro chama-se dictio55 E a coisa mesma que natildeo eacute uma palavra nem ainda uma concepccedilatildeo da palavra na mente seja que tenha uma palavra com a qual possa ser significada seja que natildeo a tenha daqui por diante natildeo eacute chamada com nome apropriado de outro modo do que de coisa
Estes quatro hatildeo de ser mantidos distintamente portanto a palavra (verbum) o dicibile a dictio a coisa Aquilo que defini como palavra eacute uma palavra e significa a palavra Aquilo que defini dicibile eacute uma palavra e todavia natildeo significa a palavra mas aquilo que graccedilas agrave palavra se compreende e estaacute contido na mente Aquilo que eu defini dictio eacute uma palavra mas uma palavra que significa contemporaneamente as outras duas ou seja a palavra mesma e aquilo que se faz na mente atraveacutes da palavra Aquela que eu defini como coisa eacute uma palavra que significa tudo aquilo que fica fora das trecircs que foram ditas
52 Seria o λεκτόν (lektoacuten) dos estoicos 53 Seria a λέξις (leacuteksis) dos estoicos 54 O exprimiacutevel ou melhor o diziacutevel no sentido do mostraacutevel 55 A expressatildeo o dito do dizer
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Depois destas digressotildees necessaacuterias para aclararmos o que estaacute em questatildeo
voltemos ao livro II do ldquoDe Doctrina Christianardquo de Agostinho Retomemos a sua
consideraccedilatildeo a respeito do signo
Haacute dois tipos de signos os naturais e os convencionais Os naturais datildeo a
conhecer por si proacuteprios alguma coisa aleacutem do que satildeo em si Assim fumaccedila eacute signo
de fogo Os signos convencionais (data signa) satildeo todos aqueles que os seres vivos em
especial o ser humano mutuamente se trocam para manifestar ndash o quanto lhes eacute
possiacutevel ndash os movimentos de sua alma tais como as sensaccedilotildees e os pensamentos Os
signos podem se dar em referecircncias a todos os sentidos a maioria dos signos poreacutem
se referem agrave audiccedilatildeo ou agrave visatildeo Dentre estes signos mais usuais e importantes satildeo os
signos verbais que satildeo sons significativos que se articulam mediante a voz humana
constituindo a palavra falada Os signos escritos poreacutem mostram os signos verbais de
maneira visiacutevel (e natildeo audiacutevel como fazem os signos falados)
A liacutengua eacute a realizaccedilatildeo concreta da linguagem humana mediante o uso de signos
verbais falados ou escritos As Sagradas Escrituras indicam pela histoacuteria da Torre de
Babel que liacutengua e linguagem sofrem com a decadecircncia do espiacuterito humano causada
pela soberba56 O contraacuterio da histoacuteria de Babel eacute poreacutem a histoacuteria de Pentecostes
narrada no livro dos Atos dos Apoacutestolos que aponta para a comunhatildeo do amor e o
muacutetuo entendimento entre os homens propiciado com o dom do Hagioacutes Pneuma
(Sopro Sagrado Espiacuterito Santo)
56 Na histoacuteria narrada pelo livro do Gecircnesis os homens se unem para erguer uma torre que una a terra ao ceacuteu a partir das proacuteprias forccedilas e da proacutepria engenhosidade Nos povos antigos encontramos monumentos que evocam algo disso O desejo do homem de uniatildeo entre o ceacuteu e a terra se manifesta nos zigurates da mesopotacircmia nas piracircmides das altas culturas das pedras (Egito Peru Meacutexico) nas estupas asiaacuteticas e quiccedilaacute em tempos mais primitivos aos dolmens menires nas cacircmaras funeraacuterias e nos obeliscos Junto com o esforccedilo de o homem erguer-se a si mesmo como homem erguendo pedras haacute o esforccedilo tambeacutem de alcanccedilar a vida dos imortais dos deuses tolhendo a proacutepria finitude Babel que era para ser a ldquoporta dos deusesrdquo (babilani) se torna poreacutem o lugar da confusatildeo (balal = confundir) O mundo se torna assim uma ldquoBabilocircniardquo isto eacute o lugar da confusatildeo em que os homens natildeo conseguem chegar ao entendimento muacutetuo Somente em Pentecostes em Jerusaleacutem celebra-se plenamente a superaccedilatildeo desta divisatildeo e desta confusatildeo em que as liacutenguas natildeo satildeo mais confusas e em que a linguagem do amor ardente une os homens e propicia-lhes a chance do entendimento muacutetuo e da verdadeira concoacuterdia uma concoacuterdia para o bem em favor de Deus
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Aquele vento purificava os coraccedilotildees da palha carnal aquele fogo consumia o feno da antiga concupiscecircncia aquelas liacutenguas em que falavam os que estavam plenos do Espiacuterito Santo prefiguravam a futura Igreja mediante liacutenguas de todos os povos Pois assim como depois do diluacutevio a soberba impiedade dos homens edificou uma grandiosa torre contra o Senhor ocasiatildeo na qual o gecircnero humano mereceu ser dividido pela diversidade das liacutenguas de modo que cada naccedilatildeo falasse sua proacutepria liacutengua para natildeo ser entendido pelas demais assim a humilde piedade dos fieis reduziu a diversidade de liacutenguas agrave unidade da Igreja de maneira que aquilo que a discoacuterdia tinha dispersado o reunisse a caridade e assim os membros dispersos do gecircnero humano qual membros de um mesmo corpo fossem reintegrados agrave unidade de uma uacutenica cabeccedila que eacute Cristo e fundidos na unidade do corpo santo mediante o fogo do amor57
O maior sinal da comunhatildeo do amor eacute quando os homens conseguem falar uns
com os outros e se entender Embora sejam diferentes e falem liacutenguas diferentes falam
a partir de uma mesma linguagem a do amor-caridade (gratuidade) As liacutenguas se
tornam entatildeo como labaredas do amor As falas satildeo entatildeo falas inflamadas de um fogo
divino brilhantes e ardentes divinamente apaixonadas entusiasmadas O amor eacute o que
possibilita manter esta identidade na diferenccedila Cria-se uma identidade comum mas
sem desfazer antes protegendo as diferenccedilas Eacute o milagre das liacutenguas O contraacuterio de
Babel Recriaccedilatildeo do homem humano e da humanidade universal
Assim os homens podem voltar agrave linguagem comum apesar da diversidade das
liacutenguas unindo suas vontades no empenho de conhecer e realizar a vontade de Deus A
serviccedilo deste intento estatildeo as Sagradas Escrituras Estas satildeo obra do proacuteprio Deus que
usou de hagioacutegrafos inspirados para expressar a sua vontade na linguagem humana
mediante as diversas liacutenguas Os que leem as Sagradas Escrituras natildeo desejam encontrar
nelas mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram e desse modo chegar
a conhecer a vontade de Deus segundo a qual ordem esses homens compuseram
Entretanto o leitor das Sagradas Escrituras vai se deparar continuamente com
ambiguidades e obscuridades Para Agostinho estas fazem parte da proacutepria natureza das
Escrituras Sagradas Haacute um certo quecirc de hermeacutetico de enigmaacutetico de obscuro nelas
57 Sermatildeo 271
25
Mas eacute justamente isto que desafia a compreensatildeo e que a faz crescer na busca da
vontade divina As obscuridades e ambiguidades natildeo satildeo inuacuteteis Elas vencem o orgulho
do homem que se aproxima dos misteacuterios divinos sem reverecircncia e sem devoccedilatildeo Por
outro lado elas premunem o espiacuterito do fastio e do teacutedio que a facilidade sempre trazem
consigo As dificuldades de interpretaccedilatildeo cria-nos o gosto pelo exerciacutecio da
compreensatildeo na sua aventura de conquista do sentido Contudo natildeo se deve ter a
pretensatildeo de que se pode chegar a uma clareza que elimine toda sombra e obscuridade
A clareza do misteacuterio que se desvela sempre traz o veacuteu do pudor em que o misteacuterio
mesmo se encobre e assim se resguarda Os significados hauridos seratildeo sempre acenos
do inefaacutevel na medida em que o misteacuterio santo se deixa captar no horizonte do sentido
Uma vez que as Sagradas Escrituras satildeo linguagem do misteacuterio santo do Deus
absconditus (Deus escondido) que se re-vela (desvela e vela ao mesmo tempo) na
finitude da linguagem humana o leitor vai se deparar com desafios sempre novos
Agostinho recorre entatildeo agrave alegorese seguindo neste ponto a tradiccedilatildeo dos
alexandrinos As alegorias possuem encanto todo especial capaz de falar natildeo somente
ao entendimento mas tambeacutem ao coraccedilatildeo dos homens Com efeito a linguagem
imageacutetica concreta tem maior poder de comunicaccedilatildeo vital do que a linguagem
conceitual abstrata O uso de comparaccedilotildees leva o leitor a aprender mais
espontaneamente (libenter) As dificuldades de interpretaccedilatildeo levam-no a aprender com
maior prazer (gratius) As passagens obscuras das Escrituras aguccedilam a fome de
compreensatildeo do leitor Entretanto Agostinho daacute uma indicaccedilatildeo metodoloacutegica de leitura
importante para ir abrindo a compreensatildeo das Escrituras ganhar familiaridade com as
passagens claras e inequiacutevocas e com isso iluminar as passagens obscuras e
enigmaacuteticas Com efeito diz ele quase nada sobressai nas obscuridades que natildeo esteja
escrito mais claramente em outro lugar
Aquele que lecirc as Sagradas Escrituras procurando nelas a vontade divina eacute algueacutem
que estaacute a caminho numa viagem para a paacutetria da beatitude eterna Este caminhar
comporta determinado itineraacuterio no qual o homem vai se dispondo cada vez mais ao
Espiacuterito de Deus e ao seu modo de operar na alma os seus dons Eacute na medida que se
aproxima da Sabedoria do Espiacuterito que o leitor lecirc com maior proveito e profundidade as
26
Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
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Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
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Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
29
Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
30
(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
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O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
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Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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que sai da boca com efeito soacute chega a ser palavra quando eacute significativa38 Sem a
significaccedilatildeo (significatio) uma voz natildeo eacute palavra A significaccedilatildeo torna a voz uma
expressatildeo do pensamento39 Por isso somente um vivente inteligente (animal rationale)
tem voz enquanto palavra40 Um vivente melhor um animal emite sons para se
comunicar Mas os seus sons natildeo satildeo vozes articuladas significativas Os gritos os
alaridos de animais natildeo satildeo palavras Sua comunicaccedilatildeo natildeo eacute fala O berrar de um
bezerro o mugir de uma vaca o balar de uma ovelha o balir de um cordeiro o arrulhar
de uma pomba o latir de um catildeo o miar de um gato ndash tudo isso natildeo eacute fala Seus sons
natildeo satildeo vozes significativas Indicam alguma coisa Mas o seu indicar natildeo tem o sentido
de significar alguma coisa Significar eacute dar a conhecer algo como algo a algueacutem41 Fumaccedila
indica fogo Bandeira branca indica rendiccedilatildeo Indicar poreacutem natildeo eacute significar Todo
significar eacute um indicar mas nem todo indicar eacute significar Significar eacute dar a conhecer no
sentido de dar a compreender algo como algo A fala daacute a conhecer alguma coisa Ela
faz-se notar e faz notar alguma coisa A fala eacute um fazer notar que daacute a conhecer alguma
coisa42 A fala faz notar daacute a conhecer isto eacute gera uma ldquonotiordquo ou uma ldquonotitiardquo
(conhecimento noccedilatildeo sentido)43 Notar quer dizer aqui dirigir-se a alguma coisa
orientando-se no mundo (intencionalidade) tornando-se atento a ela ao seu ser
Joatildeo Duns Scotus iraacute retomar o triacircngulo semioacutetico do Peri hermeneiacuteas de
Aristoacuteteles Ele questiona sobre a distinccedilatildeo de litteras et voces (letras e vozes) de um
lado passiones (disposiccedilotildees da alma) e res (coisa) de outro lado na quarta das questotildees
sobre o primeiro livro do ldquoPerigrave hermeneiasrdquo e conclui pela sua conveniecircncia As
disposiccedilotildees da alma (significaccedilatildeo e sentido) satildeo as mesmas em todos bem como as
coisas que elas significam enquanto as letras e vozes satildeo diferentes dependendo da
liacutengua Com outras palavras as letras e vozes que satildeo diferentes de liacutengua para liacutengua
38 ldquoVox quae non est significativa verbum dici non potestrdquo (A voz que natildeo eacute significativa natildeo pode ser dita palavra) ndash Tomaacutes de Aquino op Cit (I341) 39 ldquoLocutio est proprium opus rationis (I913 ad 3) falar -diz Tomaacutes- eacute operaccedilatildeo proacutepria da razatildeo 40 Agrave base desta concepccedilatildeo estaacute a concepccedilatildeo grega do homem aacutenthropos como zoon logon echon (vivente que tem linguagem) Nesta traduccedilatildeo o loacutegos eacute tanto ratio (pensamento) quanto oratio (fala no sentido de discurso) 41 Em Tomaacutes no acircmbito da vox situa-se a palavra (verbum) A palavra eacute uma realizaccedilatildeo especial do signo (signum) que por sua vez eacute aquilo pelo que algueacutem chega a conhecer algo de outro (III604) 42 Cfr Heidegger M Vom Wesen der Sprache Die Metaphysik der Sprache und die Wesung des Wortes - Zu Herders Abhandlung ldquoUumlber den Ursprung der Spracherdquo Gesammtausgabe Band 85 p 3-4 43 Cfr idem p 20
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satildeo sinais instituiacutedos pelo arbiacutetrio humano que representam as disposiccedilotildees da alma (no
caso significaccedilatildeo e sentido) que por sua vez satildeo sinais naturais representativos das
coisas44
As expressotildees orais ou escritas satildeo formas linguiacutesticas dotadas de significaccedilotildees e
de sentido Sentidos e significaccedilotildees que satildeo pensados vecircm agrave expressatildeo Eles satildeo
exprimiacuteveis atraveacutes de formaccedilotildees linguiacutesticas Uma coisa eacute a forma linguiacutestica da
expressatildeo o complexo graacutefico ou focircnico ou como dizem os medievais as voces (vozes)
Outra coisa eacute o conteuacutedo da expressatildeo a significaccedilatildeo o sentido no juiacutezo e no
entrelaccedilamento de juiacutezos (conclusatildeo silogismo) O conteuacutedo eacute um ldquosignificatumrdquo que
estaacute intencionalmente ldquoin menterdquo45
A voz se torna expressatildeo agrave medida que eacute dotada de significaccedilotildees e de sentido
Assim a proposiccedilatildeo enquanto sequecircncia de palavras eacute singular Mas o conteuacutedo da
proposiccedilatildeo o juiacutezo ora eacute singular se o predicado eacute dito de um soacute ou universal se o
predicado eacute dito de muitos A proposiccedilatildeo como uma sequecircncia de palavras natildeo eacute
verdadeira ou falsa Ela eacute ou natildeo eacute Eacute falada ou escrita Mas natildeo eacute verdadeira ou falsa O
sentido da proposiccedilatildeo o juiacutezo eacute que eacute verdadeiro ou falso natildeo poreacutem enquanto
simples conteuacutedo da proposiccedilatildeo mas soacute agrave medida que ele tem um valor objetivaacutevel um
valor de conhecimento objetivo46 Proposiccedilatildeo e sentido palavra e significaccedilatildeo
pertencem a acircmbitos de realidade diversos Os elementos linguiacutesticos que constituem
proposiccedilatildeo e palavra satildeo sensivelmente perceptiacuteveis (satildeo acuacutesticos visuais motores)
satildeo reais e temporais Jaacute as significaccedilotildees e o sentido se subtraem a uma percepccedilatildeo
sensorial e satildeo atemporais O elemento linguiacutestico de uma expressatildeo eacute um signum ad
44 Cfr Quaestiones in I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 7) ldquoAd quaestionem dicendum quod differentia est conveniens quia passiones inquanto sunt signa et res inquanto sunt significata sunt eandem apud omnes nam eadem passio in anima apud quoscumque concipientes repraesentat eamdem rem quia eadem similitudo in anima semper est eiusdem repraesentativa sicut est similitudo sensibilis in sensu litterae et voces in se eaedem non sunt eaedem apud omnes inquanto sunt signa quia nec eadem littera apud omnes repraesentat eamdem vocem sed vel aliam vel nullam nec eadem vox apud omnes significat eamdem passionem sed vel aliam vel nullamrdquo (SCOTUS 1998 p 918) 45 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 12) ldquoAd quaestionem dici potest quod iste liber non est de decem vocibus ut de primo subiecto ndash nec aliqua pars logicae est de voce quia omnes passiones syllogismi et omnium partium eius possunt sibi inesse secundum esse quod habent in mente etsi non proferantur () sed est de aliquo priore quod respectu voces significativae tantum habet rationem significatirdquo (SCOTUS 1998 p 652) 46 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 22) ldquoSimiliter lsquosignificare verum vel falsumrsquo convenit enuntiationi sed non ut vox est significans conceptum sed ut conceptus significat remrdquo (SCOTUS 1998 p 653)
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placitum um signo instituiacutedo conforme o agrado ou o arbiacutetrio de quem o usa47 As
significaccedilotildees e os sentidos poreacutem se subtraem ao arbiacutetrio daquele que pensa por ter
a sua proacutepria necessidade ideal ou objetiva
A forma linguiacutestica eacute signo da significaccedilatildeo que por sua vez eacute signo de algo de
objetual de alguma objetualidade (objetos estados-de-coisas notas distintivas formas
reais ou categoriais) Trata-se do triacircngulo semioacutetico que constitui a base da
consideraccedilatildeo sobre a linguagem em toda a tradiccedilatildeo ocidental e que vem de Aristoacuteteles
Para Duns Scotus palavra e proposiccedilatildeo enquanto formaccedilotildees linguiacutesticas
dotadas de significaccedilatildeo e de sentido apontam para a esfera objetual A formaccedilatildeo
linguiacutestica eacute sinal da significaccedilatildeo e do sentido que eacute por sua vez sinal do objeto Enfim
palavra e proposiccedilatildeo satildeo sinais das coisas ldquoQuidquid est signum signi est signum
signatirdquo ndash o que quer que seja sinal do sinal eacute sinal do assinalado48 Assim palavra e
proposiccedilatildeo se tornam sinais das objetualidades agraves quais se referem No entendimento
de Duns Scotus o conceito eacute o que eacute designado imediatamente o objeto eacute o que eacute
designado mediatamente pela expressatildeo O doutor sutil esclarece que significare eacute dare
intelligere dar a compreender49 O signo eacute algo de relacional possui um caraacuteter ou uma
funccedilatildeo remissiva O signo graccedilas a sua funccedilatildeo remissiva eacute o fundamento material de
que parte o conhecimento do designado A expressatildeo linguiacutestica poreacutem natildeo eacute somente
um signo que remete ou se refere a algo Ele eacute um signo que significa algo ou seja que
daacute a compreender algo ou algo de algo e que ademais se refere a objetualidades
visando dizer ou seja mostrar o que se mostra e como se mostra50
47 Cfr Quaestiones super I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 14) ldquo et instrumenta naturalia formandi vocem potest homo aliqua imponere quae sunt signa ad placitum et non naturalia sive conceptusrdquo (SCOTUS 1998 p 919) 48 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 28 n 28) ldquo lsquoQuidquid est signum signi est signum signatirsquo ita quod signum intermedium non varietur in comparatione ad primum signum et ultimum signatumrdquo (SCOTUS 1998 p 751) 49 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 8 n 1) ldquoQuia significare est intellectum constituererdquo (SCOTUS 1998 p 679) 50 Assim para Husserl a expressatildeo que funde numa unidade a manifestaccedilatildeo sensiacutevel a significaccedilatildeo e a referecircncia ao objeto estaacute ordenada tanto a um valor de conhecimento quanto a um valor de verdade Agrave expressatildeo corresponde ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo se constitui uma relaccedilatildeo com o objeto Triacuteplice eacute o conteuacutedo de uma expressatildeo a significaccedilatildeo a referecircncia ao objeto e por fim o preenchimento de sentido A expressatildeo pela significaccedilatildeo e pela referecircncia ao objeto daacute a compreender alguma coisa acerca de algo O preenchimento da intenccedilatildeo signitiva vazia no modo da confirmaccedilatildeo da documentaccedilatildeo intuitiva leva por sua vez agrave experiecircncia da verdade Para Husserl expressotildees satildeo signos significativos distintos dos signos indicativos Numa descriccedilatildeo fenomenoloacutegica da expressatildeo dotada de sentido se
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No De dialectica (Da dialeacutetica) Agostinho define a palavra como um sinal de
alguma coisa que proferido por quem fala pode ser compreendido por quem escuta (De
Dialectica 5) 51 Nesta definiccedilatildeo podemos perceber as vaacuterias dimensotildees do exerciacutecio
humano da linguagem a da comunicaccedilatildeo em que homens falam uns com os outros
compartilhando suas vidas e coparticipando de um mesmo mundo a da expressatildeo em
que homens se pronunciam a partir de seu ser num mundo comum o discurso pelo
qual homens falam uns com os outros e escutam uns aos outros a compreensatildeo e
interpretaccedilatildeo em que homens ouvindo uns aos outros recebem a mensagem e se
apropriam de seu sentido Como ponta do ldquoicebergrdquo de toda esta vitalidade do concurso
comunicativo e do discurso temos o sinal que eacute proferido por quem fala o som da boca
a voz que longe de ser um mero ruiacutedo eacute um sinal um signo e se sinal eacute sinal de
alguma coisa ou seja algo vem a ser significado por este signo ou sinal
podem evidenciar trecircs momentos que no entanto formam uma unidade intimamente fundida a apariccedilatildeo fiacutesica da expressatildeo o ato doador de sentido e o ato preenchedor de sentido Assim palavras e proposiccedilotildees satildeo sons articulados animados de sentido Agraves expressotildees satildeo essenciais os atos que conferem a significaccedilatildeo respectivamente as intenccedilotildees de significaccedilatildeo A estes atos se acrescentam de modo extra-essencial os atos que preenchem as significaccedilotildees confirmando reforccedilando ilustrando as intenccedilotildees de significaccedilatildeo Para que o signo se torne expressatildeo eacute preciso que lhe seja imposto uma significaccedilatildeo Husserl fala de emprestar significaccedilatildeo de conferir sentido Expressotildees satildeo unidades de signos e designados (sinais e assinalados) de espeacutecie bem peculiar Expressotildees satildeo sinais significativos A significaccedilatildeo adere ao ato significativo Com a expressatildeo que suscita o ato que confere o sentido nos orientamos ao objeto Agrave expressatildeo compete ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo eacute que se constitui a relaccedilatildeo com o objeto ldquoToda e qualquer expressatildeo natildeo quer apenas dizer qualquer coisa mas tambeacutem diz algo acerca de qualquer coisa ela natildeo tem apenas a sua significaccedilatildeo mas refere-se tambeacutem a quaisquer objetosrdquo (HUSSERL 2012 p 38 ndash grifo de Husserl) Assim significaccedilatildeo e referecircncia objetiva se distinguem Expressotildees podem ter a mesma significaccedilatildeo mas objetos diferentes por um lado e por outro podem ter significaccedilotildees diferentes mas o mesmo objeto Assim considerando dois enunciados ldquoeste sendeiro eacute um cavalordquo e ldquoBuceacutefalo eacute um cavalordquo a expressatildeo um cavalo tem a mesma significaccedilatildeo mas os objetos satildeo diferentes Por sua vez dois nomes podem significar coisas diferentes mas nomear o mesmo como no exemplo ldquoO vencedor de Iena - O vencido de Waterloordquo Significaccedilatildeo e referecircncia objetiva no entanto estatildeo em iacutentima conexatildeo A expressatildeo se refere ao objeto por meio da significaccedilatildeo Uma expressatildeo adquire um referimento ao objeto pelo simples fato de que esta significa algo Por isso eacute que dizemos que uma expressatildeo designa ou denomina algo por meio do seu significado ou seja o ato de significar eacute o modo determinado de intencionar o objeto em questatildeo soacute que justamente este modo de intencionar e portanto o significado mesmo pode variar enquanto permanece idecircntica a direccedilatildeo para o objeto Se considerarmos pois os trecircs momentos que se fundem numa unidade na expressatildeo temos aquilo que de modo equiacutevoco se chama o expressado da expressatildeo ldquoOs termos em relaccedilatildeo ndash manifestaccedilatildeo significaccedilatildeo e objeto ndash pertencem essencialmente a toda e qualquer expressatildeo Em cada uma qualquer coisa eacute manifestada qualquer coisa eacute significada e qualquer coisa eacute nomeada ou de algum modo designada E no discurso equiacutevoco tudo isto se diz lsquoexpressorsquordquo 51 Idem p 14
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No escrito sobre a dialeacutetica Agostinho trata de quatro elementos desta arte o
verbum o dicibile52 a dictio53 e a res Vejamos como Agostinho expotildee o nexo entre estes
quatro elementos
Ora porque as palavras (verba) satildeo sinais das coisas (signa rerum) quando se ocupam com as coisas enquanto satildeo sinais das palavras (signa verborum) quando se discute sobre palavras ndash pois sobre palavras natildeo podemos falar a natildeo ser com palavras e quando falamos natildeo falamos a natildeo ser de coisas ndash ocorre agrave mente que as palavras satildeo sinais das coisas sem deixar de ser coisas
Quando pois a palavra sai da boca se sai por causa de si mesma isto eacute para que acerca dela se inquira ou se discuta haacute certamente uma coisa que eacute sujeita a discussatildeo e a investigaccedilatildeo mas justamente esta coisa eacute chamada palavra
E o que quer que a partir da palavra natildeo os ouvidos mas a mente (animus) percebe (sentit) e que a mente mesma manteacutem incluiacuteda em si se chama dicibile54 Quando poreacutem a palavra sai natildeo por causa de si mesma mas para significar algo de outro chama-se dictio55 E a coisa mesma que natildeo eacute uma palavra nem ainda uma concepccedilatildeo da palavra na mente seja que tenha uma palavra com a qual possa ser significada seja que natildeo a tenha daqui por diante natildeo eacute chamada com nome apropriado de outro modo do que de coisa
Estes quatro hatildeo de ser mantidos distintamente portanto a palavra (verbum) o dicibile a dictio a coisa Aquilo que defini como palavra eacute uma palavra e significa a palavra Aquilo que defini dicibile eacute uma palavra e todavia natildeo significa a palavra mas aquilo que graccedilas agrave palavra se compreende e estaacute contido na mente Aquilo que eu defini dictio eacute uma palavra mas uma palavra que significa contemporaneamente as outras duas ou seja a palavra mesma e aquilo que se faz na mente atraveacutes da palavra Aquela que eu defini como coisa eacute uma palavra que significa tudo aquilo que fica fora das trecircs que foram ditas
52 Seria o λεκτόν (lektoacuten) dos estoicos 53 Seria a λέξις (leacuteksis) dos estoicos 54 O exprimiacutevel ou melhor o diziacutevel no sentido do mostraacutevel 55 A expressatildeo o dito do dizer
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Depois destas digressotildees necessaacuterias para aclararmos o que estaacute em questatildeo
voltemos ao livro II do ldquoDe Doctrina Christianardquo de Agostinho Retomemos a sua
consideraccedilatildeo a respeito do signo
Haacute dois tipos de signos os naturais e os convencionais Os naturais datildeo a
conhecer por si proacuteprios alguma coisa aleacutem do que satildeo em si Assim fumaccedila eacute signo
de fogo Os signos convencionais (data signa) satildeo todos aqueles que os seres vivos em
especial o ser humano mutuamente se trocam para manifestar ndash o quanto lhes eacute
possiacutevel ndash os movimentos de sua alma tais como as sensaccedilotildees e os pensamentos Os
signos podem se dar em referecircncias a todos os sentidos a maioria dos signos poreacutem
se referem agrave audiccedilatildeo ou agrave visatildeo Dentre estes signos mais usuais e importantes satildeo os
signos verbais que satildeo sons significativos que se articulam mediante a voz humana
constituindo a palavra falada Os signos escritos poreacutem mostram os signos verbais de
maneira visiacutevel (e natildeo audiacutevel como fazem os signos falados)
A liacutengua eacute a realizaccedilatildeo concreta da linguagem humana mediante o uso de signos
verbais falados ou escritos As Sagradas Escrituras indicam pela histoacuteria da Torre de
Babel que liacutengua e linguagem sofrem com a decadecircncia do espiacuterito humano causada
pela soberba56 O contraacuterio da histoacuteria de Babel eacute poreacutem a histoacuteria de Pentecostes
narrada no livro dos Atos dos Apoacutestolos que aponta para a comunhatildeo do amor e o
muacutetuo entendimento entre os homens propiciado com o dom do Hagioacutes Pneuma
(Sopro Sagrado Espiacuterito Santo)
56 Na histoacuteria narrada pelo livro do Gecircnesis os homens se unem para erguer uma torre que una a terra ao ceacuteu a partir das proacuteprias forccedilas e da proacutepria engenhosidade Nos povos antigos encontramos monumentos que evocam algo disso O desejo do homem de uniatildeo entre o ceacuteu e a terra se manifesta nos zigurates da mesopotacircmia nas piracircmides das altas culturas das pedras (Egito Peru Meacutexico) nas estupas asiaacuteticas e quiccedilaacute em tempos mais primitivos aos dolmens menires nas cacircmaras funeraacuterias e nos obeliscos Junto com o esforccedilo de o homem erguer-se a si mesmo como homem erguendo pedras haacute o esforccedilo tambeacutem de alcanccedilar a vida dos imortais dos deuses tolhendo a proacutepria finitude Babel que era para ser a ldquoporta dos deusesrdquo (babilani) se torna poreacutem o lugar da confusatildeo (balal = confundir) O mundo se torna assim uma ldquoBabilocircniardquo isto eacute o lugar da confusatildeo em que os homens natildeo conseguem chegar ao entendimento muacutetuo Somente em Pentecostes em Jerusaleacutem celebra-se plenamente a superaccedilatildeo desta divisatildeo e desta confusatildeo em que as liacutenguas natildeo satildeo mais confusas e em que a linguagem do amor ardente une os homens e propicia-lhes a chance do entendimento muacutetuo e da verdadeira concoacuterdia uma concoacuterdia para o bem em favor de Deus
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Aquele vento purificava os coraccedilotildees da palha carnal aquele fogo consumia o feno da antiga concupiscecircncia aquelas liacutenguas em que falavam os que estavam plenos do Espiacuterito Santo prefiguravam a futura Igreja mediante liacutenguas de todos os povos Pois assim como depois do diluacutevio a soberba impiedade dos homens edificou uma grandiosa torre contra o Senhor ocasiatildeo na qual o gecircnero humano mereceu ser dividido pela diversidade das liacutenguas de modo que cada naccedilatildeo falasse sua proacutepria liacutengua para natildeo ser entendido pelas demais assim a humilde piedade dos fieis reduziu a diversidade de liacutenguas agrave unidade da Igreja de maneira que aquilo que a discoacuterdia tinha dispersado o reunisse a caridade e assim os membros dispersos do gecircnero humano qual membros de um mesmo corpo fossem reintegrados agrave unidade de uma uacutenica cabeccedila que eacute Cristo e fundidos na unidade do corpo santo mediante o fogo do amor57
O maior sinal da comunhatildeo do amor eacute quando os homens conseguem falar uns
com os outros e se entender Embora sejam diferentes e falem liacutenguas diferentes falam
a partir de uma mesma linguagem a do amor-caridade (gratuidade) As liacutenguas se
tornam entatildeo como labaredas do amor As falas satildeo entatildeo falas inflamadas de um fogo
divino brilhantes e ardentes divinamente apaixonadas entusiasmadas O amor eacute o que
possibilita manter esta identidade na diferenccedila Cria-se uma identidade comum mas
sem desfazer antes protegendo as diferenccedilas Eacute o milagre das liacutenguas O contraacuterio de
Babel Recriaccedilatildeo do homem humano e da humanidade universal
Assim os homens podem voltar agrave linguagem comum apesar da diversidade das
liacutenguas unindo suas vontades no empenho de conhecer e realizar a vontade de Deus A
serviccedilo deste intento estatildeo as Sagradas Escrituras Estas satildeo obra do proacuteprio Deus que
usou de hagioacutegrafos inspirados para expressar a sua vontade na linguagem humana
mediante as diversas liacutenguas Os que leem as Sagradas Escrituras natildeo desejam encontrar
nelas mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram e desse modo chegar
a conhecer a vontade de Deus segundo a qual ordem esses homens compuseram
Entretanto o leitor das Sagradas Escrituras vai se deparar continuamente com
ambiguidades e obscuridades Para Agostinho estas fazem parte da proacutepria natureza das
Escrituras Sagradas Haacute um certo quecirc de hermeacutetico de enigmaacutetico de obscuro nelas
57 Sermatildeo 271
25
Mas eacute justamente isto que desafia a compreensatildeo e que a faz crescer na busca da
vontade divina As obscuridades e ambiguidades natildeo satildeo inuacuteteis Elas vencem o orgulho
do homem que se aproxima dos misteacuterios divinos sem reverecircncia e sem devoccedilatildeo Por
outro lado elas premunem o espiacuterito do fastio e do teacutedio que a facilidade sempre trazem
consigo As dificuldades de interpretaccedilatildeo cria-nos o gosto pelo exerciacutecio da
compreensatildeo na sua aventura de conquista do sentido Contudo natildeo se deve ter a
pretensatildeo de que se pode chegar a uma clareza que elimine toda sombra e obscuridade
A clareza do misteacuterio que se desvela sempre traz o veacuteu do pudor em que o misteacuterio
mesmo se encobre e assim se resguarda Os significados hauridos seratildeo sempre acenos
do inefaacutevel na medida em que o misteacuterio santo se deixa captar no horizonte do sentido
Uma vez que as Sagradas Escrituras satildeo linguagem do misteacuterio santo do Deus
absconditus (Deus escondido) que se re-vela (desvela e vela ao mesmo tempo) na
finitude da linguagem humana o leitor vai se deparar com desafios sempre novos
Agostinho recorre entatildeo agrave alegorese seguindo neste ponto a tradiccedilatildeo dos
alexandrinos As alegorias possuem encanto todo especial capaz de falar natildeo somente
ao entendimento mas tambeacutem ao coraccedilatildeo dos homens Com efeito a linguagem
imageacutetica concreta tem maior poder de comunicaccedilatildeo vital do que a linguagem
conceitual abstrata O uso de comparaccedilotildees leva o leitor a aprender mais
espontaneamente (libenter) As dificuldades de interpretaccedilatildeo levam-no a aprender com
maior prazer (gratius) As passagens obscuras das Escrituras aguccedilam a fome de
compreensatildeo do leitor Entretanto Agostinho daacute uma indicaccedilatildeo metodoloacutegica de leitura
importante para ir abrindo a compreensatildeo das Escrituras ganhar familiaridade com as
passagens claras e inequiacutevocas e com isso iluminar as passagens obscuras e
enigmaacuteticas Com efeito diz ele quase nada sobressai nas obscuridades que natildeo esteja
escrito mais claramente em outro lugar
Aquele que lecirc as Sagradas Escrituras procurando nelas a vontade divina eacute algueacutem
que estaacute a caminho numa viagem para a paacutetria da beatitude eterna Este caminhar
comporta determinado itineraacuterio no qual o homem vai se dispondo cada vez mais ao
Espiacuterito de Deus e ao seu modo de operar na alma os seus dons Eacute na medida que se
aproxima da Sabedoria do Espiacuterito que o leitor lecirc com maior proveito e profundidade as
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Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
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Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
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Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
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Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
30
(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
35
derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
37
O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
xxxxxxxxxxxx
Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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satildeo sinais instituiacutedos pelo arbiacutetrio humano que representam as disposiccedilotildees da alma (no
caso significaccedilatildeo e sentido) que por sua vez satildeo sinais naturais representativos das
coisas44
As expressotildees orais ou escritas satildeo formas linguiacutesticas dotadas de significaccedilotildees e
de sentido Sentidos e significaccedilotildees que satildeo pensados vecircm agrave expressatildeo Eles satildeo
exprimiacuteveis atraveacutes de formaccedilotildees linguiacutesticas Uma coisa eacute a forma linguiacutestica da
expressatildeo o complexo graacutefico ou focircnico ou como dizem os medievais as voces (vozes)
Outra coisa eacute o conteuacutedo da expressatildeo a significaccedilatildeo o sentido no juiacutezo e no
entrelaccedilamento de juiacutezos (conclusatildeo silogismo) O conteuacutedo eacute um ldquosignificatumrdquo que
estaacute intencionalmente ldquoin menterdquo45
A voz se torna expressatildeo agrave medida que eacute dotada de significaccedilotildees e de sentido
Assim a proposiccedilatildeo enquanto sequecircncia de palavras eacute singular Mas o conteuacutedo da
proposiccedilatildeo o juiacutezo ora eacute singular se o predicado eacute dito de um soacute ou universal se o
predicado eacute dito de muitos A proposiccedilatildeo como uma sequecircncia de palavras natildeo eacute
verdadeira ou falsa Ela eacute ou natildeo eacute Eacute falada ou escrita Mas natildeo eacute verdadeira ou falsa O
sentido da proposiccedilatildeo o juiacutezo eacute que eacute verdadeiro ou falso natildeo poreacutem enquanto
simples conteuacutedo da proposiccedilatildeo mas soacute agrave medida que ele tem um valor objetivaacutevel um
valor de conhecimento objetivo46 Proposiccedilatildeo e sentido palavra e significaccedilatildeo
pertencem a acircmbitos de realidade diversos Os elementos linguiacutesticos que constituem
proposiccedilatildeo e palavra satildeo sensivelmente perceptiacuteveis (satildeo acuacutesticos visuais motores)
satildeo reais e temporais Jaacute as significaccedilotildees e o sentido se subtraem a uma percepccedilatildeo
sensorial e satildeo atemporais O elemento linguiacutestico de uma expressatildeo eacute um signum ad
44 Cfr Quaestiones in I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 7) ldquoAd quaestionem dicendum quod differentia est conveniens quia passiones inquanto sunt signa et res inquanto sunt significata sunt eandem apud omnes nam eadem passio in anima apud quoscumque concipientes repraesentat eamdem rem quia eadem similitudo in anima semper est eiusdem repraesentativa sicut est similitudo sensibilis in sensu litterae et voces in se eaedem non sunt eaedem apud omnes inquanto sunt signa quia nec eadem littera apud omnes repraesentat eamdem vocem sed vel aliam vel nullam nec eadem vox apud omnes significat eamdem passionem sed vel aliam vel nullamrdquo (SCOTUS 1998 p 918) 45 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 12) ldquoAd quaestionem dici potest quod iste liber non est de decem vocibus ut de primo subiecto ndash nec aliqua pars logicae est de voce quia omnes passiones syllogismi et omnium partium eius possunt sibi inesse secundum esse quod habent in mente etsi non proferantur () sed est de aliquo priore quod respectu voces significativae tantum habet rationem significatirdquo (SCOTUS 1998 p 652) 46 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 1 n 22) ldquoSimiliter lsquosignificare verum vel falsumrsquo convenit enuntiationi sed non ut vox est significans conceptum sed ut conceptus significat remrdquo (SCOTUS 1998 p 653)
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placitum um signo instituiacutedo conforme o agrado ou o arbiacutetrio de quem o usa47 As
significaccedilotildees e os sentidos poreacutem se subtraem ao arbiacutetrio daquele que pensa por ter
a sua proacutepria necessidade ideal ou objetiva
A forma linguiacutestica eacute signo da significaccedilatildeo que por sua vez eacute signo de algo de
objetual de alguma objetualidade (objetos estados-de-coisas notas distintivas formas
reais ou categoriais) Trata-se do triacircngulo semioacutetico que constitui a base da
consideraccedilatildeo sobre a linguagem em toda a tradiccedilatildeo ocidental e que vem de Aristoacuteteles
Para Duns Scotus palavra e proposiccedilatildeo enquanto formaccedilotildees linguiacutesticas
dotadas de significaccedilatildeo e de sentido apontam para a esfera objetual A formaccedilatildeo
linguiacutestica eacute sinal da significaccedilatildeo e do sentido que eacute por sua vez sinal do objeto Enfim
palavra e proposiccedilatildeo satildeo sinais das coisas ldquoQuidquid est signum signi est signum
signatirdquo ndash o que quer que seja sinal do sinal eacute sinal do assinalado48 Assim palavra e
proposiccedilatildeo se tornam sinais das objetualidades agraves quais se referem No entendimento
de Duns Scotus o conceito eacute o que eacute designado imediatamente o objeto eacute o que eacute
designado mediatamente pela expressatildeo O doutor sutil esclarece que significare eacute dare
intelligere dar a compreender49 O signo eacute algo de relacional possui um caraacuteter ou uma
funccedilatildeo remissiva O signo graccedilas a sua funccedilatildeo remissiva eacute o fundamento material de
que parte o conhecimento do designado A expressatildeo linguiacutestica poreacutem natildeo eacute somente
um signo que remete ou se refere a algo Ele eacute um signo que significa algo ou seja que
daacute a compreender algo ou algo de algo e que ademais se refere a objetualidades
visando dizer ou seja mostrar o que se mostra e como se mostra50
47 Cfr Quaestiones super I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 14) ldquo et instrumenta naturalia formandi vocem potest homo aliqua imponere quae sunt signa ad placitum et non naturalia sive conceptusrdquo (SCOTUS 1998 p 919) 48 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 28 n 28) ldquo lsquoQuidquid est signum signi est signum signatirsquo ita quod signum intermedium non varietur in comparatione ad primum signum et ultimum signatumrdquo (SCOTUS 1998 p 751) 49 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 8 n 1) ldquoQuia significare est intellectum constituererdquo (SCOTUS 1998 p 679) 50 Assim para Husserl a expressatildeo que funde numa unidade a manifestaccedilatildeo sensiacutevel a significaccedilatildeo e a referecircncia ao objeto estaacute ordenada tanto a um valor de conhecimento quanto a um valor de verdade Agrave expressatildeo corresponde ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo se constitui uma relaccedilatildeo com o objeto Triacuteplice eacute o conteuacutedo de uma expressatildeo a significaccedilatildeo a referecircncia ao objeto e por fim o preenchimento de sentido A expressatildeo pela significaccedilatildeo e pela referecircncia ao objeto daacute a compreender alguma coisa acerca de algo O preenchimento da intenccedilatildeo signitiva vazia no modo da confirmaccedilatildeo da documentaccedilatildeo intuitiva leva por sua vez agrave experiecircncia da verdade Para Husserl expressotildees satildeo signos significativos distintos dos signos indicativos Numa descriccedilatildeo fenomenoloacutegica da expressatildeo dotada de sentido se
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No De dialectica (Da dialeacutetica) Agostinho define a palavra como um sinal de
alguma coisa que proferido por quem fala pode ser compreendido por quem escuta (De
Dialectica 5) 51 Nesta definiccedilatildeo podemos perceber as vaacuterias dimensotildees do exerciacutecio
humano da linguagem a da comunicaccedilatildeo em que homens falam uns com os outros
compartilhando suas vidas e coparticipando de um mesmo mundo a da expressatildeo em
que homens se pronunciam a partir de seu ser num mundo comum o discurso pelo
qual homens falam uns com os outros e escutam uns aos outros a compreensatildeo e
interpretaccedilatildeo em que homens ouvindo uns aos outros recebem a mensagem e se
apropriam de seu sentido Como ponta do ldquoicebergrdquo de toda esta vitalidade do concurso
comunicativo e do discurso temos o sinal que eacute proferido por quem fala o som da boca
a voz que longe de ser um mero ruiacutedo eacute um sinal um signo e se sinal eacute sinal de
alguma coisa ou seja algo vem a ser significado por este signo ou sinal
podem evidenciar trecircs momentos que no entanto formam uma unidade intimamente fundida a apariccedilatildeo fiacutesica da expressatildeo o ato doador de sentido e o ato preenchedor de sentido Assim palavras e proposiccedilotildees satildeo sons articulados animados de sentido Agraves expressotildees satildeo essenciais os atos que conferem a significaccedilatildeo respectivamente as intenccedilotildees de significaccedilatildeo A estes atos se acrescentam de modo extra-essencial os atos que preenchem as significaccedilotildees confirmando reforccedilando ilustrando as intenccedilotildees de significaccedilatildeo Para que o signo se torne expressatildeo eacute preciso que lhe seja imposto uma significaccedilatildeo Husserl fala de emprestar significaccedilatildeo de conferir sentido Expressotildees satildeo unidades de signos e designados (sinais e assinalados) de espeacutecie bem peculiar Expressotildees satildeo sinais significativos A significaccedilatildeo adere ao ato significativo Com a expressatildeo que suscita o ato que confere o sentido nos orientamos ao objeto Agrave expressatildeo compete ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo eacute que se constitui a relaccedilatildeo com o objeto ldquoToda e qualquer expressatildeo natildeo quer apenas dizer qualquer coisa mas tambeacutem diz algo acerca de qualquer coisa ela natildeo tem apenas a sua significaccedilatildeo mas refere-se tambeacutem a quaisquer objetosrdquo (HUSSERL 2012 p 38 ndash grifo de Husserl) Assim significaccedilatildeo e referecircncia objetiva se distinguem Expressotildees podem ter a mesma significaccedilatildeo mas objetos diferentes por um lado e por outro podem ter significaccedilotildees diferentes mas o mesmo objeto Assim considerando dois enunciados ldquoeste sendeiro eacute um cavalordquo e ldquoBuceacutefalo eacute um cavalordquo a expressatildeo um cavalo tem a mesma significaccedilatildeo mas os objetos satildeo diferentes Por sua vez dois nomes podem significar coisas diferentes mas nomear o mesmo como no exemplo ldquoO vencedor de Iena - O vencido de Waterloordquo Significaccedilatildeo e referecircncia objetiva no entanto estatildeo em iacutentima conexatildeo A expressatildeo se refere ao objeto por meio da significaccedilatildeo Uma expressatildeo adquire um referimento ao objeto pelo simples fato de que esta significa algo Por isso eacute que dizemos que uma expressatildeo designa ou denomina algo por meio do seu significado ou seja o ato de significar eacute o modo determinado de intencionar o objeto em questatildeo soacute que justamente este modo de intencionar e portanto o significado mesmo pode variar enquanto permanece idecircntica a direccedilatildeo para o objeto Se considerarmos pois os trecircs momentos que se fundem numa unidade na expressatildeo temos aquilo que de modo equiacutevoco se chama o expressado da expressatildeo ldquoOs termos em relaccedilatildeo ndash manifestaccedilatildeo significaccedilatildeo e objeto ndash pertencem essencialmente a toda e qualquer expressatildeo Em cada uma qualquer coisa eacute manifestada qualquer coisa eacute significada e qualquer coisa eacute nomeada ou de algum modo designada E no discurso equiacutevoco tudo isto se diz lsquoexpressorsquordquo 51 Idem p 14
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No escrito sobre a dialeacutetica Agostinho trata de quatro elementos desta arte o
verbum o dicibile52 a dictio53 e a res Vejamos como Agostinho expotildee o nexo entre estes
quatro elementos
Ora porque as palavras (verba) satildeo sinais das coisas (signa rerum) quando se ocupam com as coisas enquanto satildeo sinais das palavras (signa verborum) quando se discute sobre palavras ndash pois sobre palavras natildeo podemos falar a natildeo ser com palavras e quando falamos natildeo falamos a natildeo ser de coisas ndash ocorre agrave mente que as palavras satildeo sinais das coisas sem deixar de ser coisas
Quando pois a palavra sai da boca se sai por causa de si mesma isto eacute para que acerca dela se inquira ou se discuta haacute certamente uma coisa que eacute sujeita a discussatildeo e a investigaccedilatildeo mas justamente esta coisa eacute chamada palavra
E o que quer que a partir da palavra natildeo os ouvidos mas a mente (animus) percebe (sentit) e que a mente mesma manteacutem incluiacuteda em si se chama dicibile54 Quando poreacutem a palavra sai natildeo por causa de si mesma mas para significar algo de outro chama-se dictio55 E a coisa mesma que natildeo eacute uma palavra nem ainda uma concepccedilatildeo da palavra na mente seja que tenha uma palavra com a qual possa ser significada seja que natildeo a tenha daqui por diante natildeo eacute chamada com nome apropriado de outro modo do que de coisa
Estes quatro hatildeo de ser mantidos distintamente portanto a palavra (verbum) o dicibile a dictio a coisa Aquilo que defini como palavra eacute uma palavra e significa a palavra Aquilo que defini dicibile eacute uma palavra e todavia natildeo significa a palavra mas aquilo que graccedilas agrave palavra se compreende e estaacute contido na mente Aquilo que eu defini dictio eacute uma palavra mas uma palavra que significa contemporaneamente as outras duas ou seja a palavra mesma e aquilo que se faz na mente atraveacutes da palavra Aquela que eu defini como coisa eacute uma palavra que significa tudo aquilo que fica fora das trecircs que foram ditas
52 Seria o λεκτόν (lektoacuten) dos estoicos 53 Seria a λέξις (leacuteksis) dos estoicos 54 O exprimiacutevel ou melhor o diziacutevel no sentido do mostraacutevel 55 A expressatildeo o dito do dizer
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Depois destas digressotildees necessaacuterias para aclararmos o que estaacute em questatildeo
voltemos ao livro II do ldquoDe Doctrina Christianardquo de Agostinho Retomemos a sua
consideraccedilatildeo a respeito do signo
Haacute dois tipos de signos os naturais e os convencionais Os naturais datildeo a
conhecer por si proacuteprios alguma coisa aleacutem do que satildeo em si Assim fumaccedila eacute signo
de fogo Os signos convencionais (data signa) satildeo todos aqueles que os seres vivos em
especial o ser humano mutuamente se trocam para manifestar ndash o quanto lhes eacute
possiacutevel ndash os movimentos de sua alma tais como as sensaccedilotildees e os pensamentos Os
signos podem se dar em referecircncias a todos os sentidos a maioria dos signos poreacutem
se referem agrave audiccedilatildeo ou agrave visatildeo Dentre estes signos mais usuais e importantes satildeo os
signos verbais que satildeo sons significativos que se articulam mediante a voz humana
constituindo a palavra falada Os signos escritos poreacutem mostram os signos verbais de
maneira visiacutevel (e natildeo audiacutevel como fazem os signos falados)
A liacutengua eacute a realizaccedilatildeo concreta da linguagem humana mediante o uso de signos
verbais falados ou escritos As Sagradas Escrituras indicam pela histoacuteria da Torre de
Babel que liacutengua e linguagem sofrem com a decadecircncia do espiacuterito humano causada
pela soberba56 O contraacuterio da histoacuteria de Babel eacute poreacutem a histoacuteria de Pentecostes
narrada no livro dos Atos dos Apoacutestolos que aponta para a comunhatildeo do amor e o
muacutetuo entendimento entre os homens propiciado com o dom do Hagioacutes Pneuma
(Sopro Sagrado Espiacuterito Santo)
56 Na histoacuteria narrada pelo livro do Gecircnesis os homens se unem para erguer uma torre que una a terra ao ceacuteu a partir das proacuteprias forccedilas e da proacutepria engenhosidade Nos povos antigos encontramos monumentos que evocam algo disso O desejo do homem de uniatildeo entre o ceacuteu e a terra se manifesta nos zigurates da mesopotacircmia nas piracircmides das altas culturas das pedras (Egito Peru Meacutexico) nas estupas asiaacuteticas e quiccedilaacute em tempos mais primitivos aos dolmens menires nas cacircmaras funeraacuterias e nos obeliscos Junto com o esforccedilo de o homem erguer-se a si mesmo como homem erguendo pedras haacute o esforccedilo tambeacutem de alcanccedilar a vida dos imortais dos deuses tolhendo a proacutepria finitude Babel que era para ser a ldquoporta dos deusesrdquo (babilani) se torna poreacutem o lugar da confusatildeo (balal = confundir) O mundo se torna assim uma ldquoBabilocircniardquo isto eacute o lugar da confusatildeo em que os homens natildeo conseguem chegar ao entendimento muacutetuo Somente em Pentecostes em Jerusaleacutem celebra-se plenamente a superaccedilatildeo desta divisatildeo e desta confusatildeo em que as liacutenguas natildeo satildeo mais confusas e em que a linguagem do amor ardente une os homens e propicia-lhes a chance do entendimento muacutetuo e da verdadeira concoacuterdia uma concoacuterdia para o bem em favor de Deus
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Aquele vento purificava os coraccedilotildees da palha carnal aquele fogo consumia o feno da antiga concupiscecircncia aquelas liacutenguas em que falavam os que estavam plenos do Espiacuterito Santo prefiguravam a futura Igreja mediante liacutenguas de todos os povos Pois assim como depois do diluacutevio a soberba impiedade dos homens edificou uma grandiosa torre contra o Senhor ocasiatildeo na qual o gecircnero humano mereceu ser dividido pela diversidade das liacutenguas de modo que cada naccedilatildeo falasse sua proacutepria liacutengua para natildeo ser entendido pelas demais assim a humilde piedade dos fieis reduziu a diversidade de liacutenguas agrave unidade da Igreja de maneira que aquilo que a discoacuterdia tinha dispersado o reunisse a caridade e assim os membros dispersos do gecircnero humano qual membros de um mesmo corpo fossem reintegrados agrave unidade de uma uacutenica cabeccedila que eacute Cristo e fundidos na unidade do corpo santo mediante o fogo do amor57
O maior sinal da comunhatildeo do amor eacute quando os homens conseguem falar uns
com os outros e se entender Embora sejam diferentes e falem liacutenguas diferentes falam
a partir de uma mesma linguagem a do amor-caridade (gratuidade) As liacutenguas se
tornam entatildeo como labaredas do amor As falas satildeo entatildeo falas inflamadas de um fogo
divino brilhantes e ardentes divinamente apaixonadas entusiasmadas O amor eacute o que
possibilita manter esta identidade na diferenccedila Cria-se uma identidade comum mas
sem desfazer antes protegendo as diferenccedilas Eacute o milagre das liacutenguas O contraacuterio de
Babel Recriaccedilatildeo do homem humano e da humanidade universal
Assim os homens podem voltar agrave linguagem comum apesar da diversidade das
liacutenguas unindo suas vontades no empenho de conhecer e realizar a vontade de Deus A
serviccedilo deste intento estatildeo as Sagradas Escrituras Estas satildeo obra do proacuteprio Deus que
usou de hagioacutegrafos inspirados para expressar a sua vontade na linguagem humana
mediante as diversas liacutenguas Os que leem as Sagradas Escrituras natildeo desejam encontrar
nelas mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram e desse modo chegar
a conhecer a vontade de Deus segundo a qual ordem esses homens compuseram
Entretanto o leitor das Sagradas Escrituras vai se deparar continuamente com
ambiguidades e obscuridades Para Agostinho estas fazem parte da proacutepria natureza das
Escrituras Sagradas Haacute um certo quecirc de hermeacutetico de enigmaacutetico de obscuro nelas
57 Sermatildeo 271
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Mas eacute justamente isto que desafia a compreensatildeo e que a faz crescer na busca da
vontade divina As obscuridades e ambiguidades natildeo satildeo inuacuteteis Elas vencem o orgulho
do homem que se aproxima dos misteacuterios divinos sem reverecircncia e sem devoccedilatildeo Por
outro lado elas premunem o espiacuterito do fastio e do teacutedio que a facilidade sempre trazem
consigo As dificuldades de interpretaccedilatildeo cria-nos o gosto pelo exerciacutecio da
compreensatildeo na sua aventura de conquista do sentido Contudo natildeo se deve ter a
pretensatildeo de que se pode chegar a uma clareza que elimine toda sombra e obscuridade
A clareza do misteacuterio que se desvela sempre traz o veacuteu do pudor em que o misteacuterio
mesmo se encobre e assim se resguarda Os significados hauridos seratildeo sempre acenos
do inefaacutevel na medida em que o misteacuterio santo se deixa captar no horizonte do sentido
Uma vez que as Sagradas Escrituras satildeo linguagem do misteacuterio santo do Deus
absconditus (Deus escondido) que se re-vela (desvela e vela ao mesmo tempo) na
finitude da linguagem humana o leitor vai se deparar com desafios sempre novos
Agostinho recorre entatildeo agrave alegorese seguindo neste ponto a tradiccedilatildeo dos
alexandrinos As alegorias possuem encanto todo especial capaz de falar natildeo somente
ao entendimento mas tambeacutem ao coraccedilatildeo dos homens Com efeito a linguagem
imageacutetica concreta tem maior poder de comunicaccedilatildeo vital do que a linguagem
conceitual abstrata O uso de comparaccedilotildees leva o leitor a aprender mais
espontaneamente (libenter) As dificuldades de interpretaccedilatildeo levam-no a aprender com
maior prazer (gratius) As passagens obscuras das Escrituras aguccedilam a fome de
compreensatildeo do leitor Entretanto Agostinho daacute uma indicaccedilatildeo metodoloacutegica de leitura
importante para ir abrindo a compreensatildeo das Escrituras ganhar familiaridade com as
passagens claras e inequiacutevocas e com isso iluminar as passagens obscuras e
enigmaacuteticas Com efeito diz ele quase nada sobressai nas obscuridades que natildeo esteja
escrito mais claramente em outro lugar
Aquele que lecirc as Sagradas Escrituras procurando nelas a vontade divina eacute algueacutem
que estaacute a caminho numa viagem para a paacutetria da beatitude eterna Este caminhar
comporta determinado itineraacuterio no qual o homem vai se dispondo cada vez mais ao
Espiacuterito de Deus e ao seu modo de operar na alma os seus dons Eacute na medida que se
aproxima da Sabedoria do Espiacuterito que o leitor lecirc com maior proveito e profundidade as
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Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
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Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
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Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
29
Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
30
(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
35
derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
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Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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placitum um signo instituiacutedo conforme o agrado ou o arbiacutetrio de quem o usa47 As
significaccedilotildees e os sentidos poreacutem se subtraem ao arbiacutetrio daquele que pensa por ter
a sua proacutepria necessidade ideal ou objetiva
A forma linguiacutestica eacute signo da significaccedilatildeo que por sua vez eacute signo de algo de
objetual de alguma objetualidade (objetos estados-de-coisas notas distintivas formas
reais ou categoriais) Trata-se do triacircngulo semioacutetico que constitui a base da
consideraccedilatildeo sobre a linguagem em toda a tradiccedilatildeo ocidental e que vem de Aristoacuteteles
Para Duns Scotus palavra e proposiccedilatildeo enquanto formaccedilotildees linguiacutesticas
dotadas de significaccedilatildeo e de sentido apontam para a esfera objetual A formaccedilatildeo
linguiacutestica eacute sinal da significaccedilatildeo e do sentido que eacute por sua vez sinal do objeto Enfim
palavra e proposiccedilatildeo satildeo sinais das coisas ldquoQuidquid est signum signi est signum
signatirdquo ndash o que quer que seja sinal do sinal eacute sinal do assinalado48 Assim palavra e
proposiccedilatildeo se tornam sinais das objetualidades agraves quais se referem No entendimento
de Duns Scotus o conceito eacute o que eacute designado imediatamente o objeto eacute o que eacute
designado mediatamente pela expressatildeo O doutor sutil esclarece que significare eacute dare
intelligere dar a compreender49 O signo eacute algo de relacional possui um caraacuteter ou uma
funccedilatildeo remissiva O signo graccedilas a sua funccedilatildeo remissiva eacute o fundamento material de
que parte o conhecimento do designado A expressatildeo linguiacutestica poreacutem natildeo eacute somente
um signo que remete ou se refere a algo Ele eacute um signo que significa algo ou seja que
daacute a compreender algo ou algo de algo e que ademais se refere a objetualidades
visando dizer ou seja mostrar o que se mostra e como se mostra50
47 Cfr Quaestiones super I et II Perihermeneias (Q s I 4 n 14) ldquo et instrumenta naturalia formandi vocem potest homo aliqua imponere quae sunt signa ad placitum et non naturalia sive conceptusrdquo (SCOTUS 1998 p 919) 48 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 28 n 28) ldquo lsquoQuidquid est signum signi est signum signatirsquo ita quod signum intermedium non varietur in comparatione ad primum signum et ultimum signatumrdquo (SCOTUS 1998 p 751) 49 Cfr Quaestiones super Praedicamenta (Q 8 n 1) ldquoQuia significare est intellectum constituererdquo (SCOTUS 1998 p 679) 50 Assim para Husserl a expressatildeo que funde numa unidade a manifestaccedilatildeo sensiacutevel a significaccedilatildeo e a referecircncia ao objeto estaacute ordenada tanto a um valor de conhecimento quanto a um valor de verdade Agrave expressatildeo corresponde ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo se constitui uma relaccedilatildeo com o objeto Triacuteplice eacute o conteuacutedo de uma expressatildeo a significaccedilatildeo a referecircncia ao objeto e por fim o preenchimento de sentido A expressatildeo pela significaccedilatildeo e pela referecircncia ao objeto daacute a compreender alguma coisa acerca de algo O preenchimento da intenccedilatildeo signitiva vazia no modo da confirmaccedilatildeo da documentaccedilatildeo intuitiva leva por sua vez agrave experiecircncia da verdade Para Husserl expressotildees satildeo signos significativos distintos dos signos indicativos Numa descriccedilatildeo fenomenoloacutegica da expressatildeo dotada de sentido se
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No De dialectica (Da dialeacutetica) Agostinho define a palavra como um sinal de
alguma coisa que proferido por quem fala pode ser compreendido por quem escuta (De
Dialectica 5) 51 Nesta definiccedilatildeo podemos perceber as vaacuterias dimensotildees do exerciacutecio
humano da linguagem a da comunicaccedilatildeo em que homens falam uns com os outros
compartilhando suas vidas e coparticipando de um mesmo mundo a da expressatildeo em
que homens se pronunciam a partir de seu ser num mundo comum o discurso pelo
qual homens falam uns com os outros e escutam uns aos outros a compreensatildeo e
interpretaccedilatildeo em que homens ouvindo uns aos outros recebem a mensagem e se
apropriam de seu sentido Como ponta do ldquoicebergrdquo de toda esta vitalidade do concurso
comunicativo e do discurso temos o sinal que eacute proferido por quem fala o som da boca
a voz que longe de ser um mero ruiacutedo eacute um sinal um signo e se sinal eacute sinal de
alguma coisa ou seja algo vem a ser significado por este signo ou sinal
podem evidenciar trecircs momentos que no entanto formam uma unidade intimamente fundida a apariccedilatildeo fiacutesica da expressatildeo o ato doador de sentido e o ato preenchedor de sentido Assim palavras e proposiccedilotildees satildeo sons articulados animados de sentido Agraves expressotildees satildeo essenciais os atos que conferem a significaccedilatildeo respectivamente as intenccedilotildees de significaccedilatildeo A estes atos se acrescentam de modo extra-essencial os atos que preenchem as significaccedilotildees confirmando reforccedilando ilustrando as intenccedilotildees de significaccedilatildeo Para que o signo se torne expressatildeo eacute preciso que lhe seja imposto uma significaccedilatildeo Husserl fala de emprestar significaccedilatildeo de conferir sentido Expressotildees satildeo unidades de signos e designados (sinais e assinalados) de espeacutecie bem peculiar Expressotildees satildeo sinais significativos A significaccedilatildeo adere ao ato significativo Com a expressatildeo que suscita o ato que confere o sentido nos orientamos ao objeto Agrave expressatildeo compete ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo eacute que se constitui a relaccedilatildeo com o objeto ldquoToda e qualquer expressatildeo natildeo quer apenas dizer qualquer coisa mas tambeacutem diz algo acerca de qualquer coisa ela natildeo tem apenas a sua significaccedilatildeo mas refere-se tambeacutem a quaisquer objetosrdquo (HUSSERL 2012 p 38 ndash grifo de Husserl) Assim significaccedilatildeo e referecircncia objetiva se distinguem Expressotildees podem ter a mesma significaccedilatildeo mas objetos diferentes por um lado e por outro podem ter significaccedilotildees diferentes mas o mesmo objeto Assim considerando dois enunciados ldquoeste sendeiro eacute um cavalordquo e ldquoBuceacutefalo eacute um cavalordquo a expressatildeo um cavalo tem a mesma significaccedilatildeo mas os objetos satildeo diferentes Por sua vez dois nomes podem significar coisas diferentes mas nomear o mesmo como no exemplo ldquoO vencedor de Iena - O vencido de Waterloordquo Significaccedilatildeo e referecircncia objetiva no entanto estatildeo em iacutentima conexatildeo A expressatildeo se refere ao objeto por meio da significaccedilatildeo Uma expressatildeo adquire um referimento ao objeto pelo simples fato de que esta significa algo Por isso eacute que dizemos que uma expressatildeo designa ou denomina algo por meio do seu significado ou seja o ato de significar eacute o modo determinado de intencionar o objeto em questatildeo soacute que justamente este modo de intencionar e portanto o significado mesmo pode variar enquanto permanece idecircntica a direccedilatildeo para o objeto Se considerarmos pois os trecircs momentos que se fundem numa unidade na expressatildeo temos aquilo que de modo equiacutevoco se chama o expressado da expressatildeo ldquoOs termos em relaccedilatildeo ndash manifestaccedilatildeo significaccedilatildeo e objeto ndash pertencem essencialmente a toda e qualquer expressatildeo Em cada uma qualquer coisa eacute manifestada qualquer coisa eacute significada e qualquer coisa eacute nomeada ou de algum modo designada E no discurso equiacutevoco tudo isto se diz lsquoexpressorsquordquo 51 Idem p 14
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No escrito sobre a dialeacutetica Agostinho trata de quatro elementos desta arte o
verbum o dicibile52 a dictio53 e a res Vejamos como Agostinho expotildee o nexo entre estes
quatro elementos
Ora porque as palavras (verba) satildeo sinais das coisas (signa rerum) quando se ocupam com as coisas enquanto satildeo sinais das palavras (signa verborum) quando se discute sobre palavras ndash pois sobre palavras natildeo podemos falar a natildeo ser com palavras e quando falamos natildeo falamos a natildeo ser de coisas ndash ocorre agrave mente que as palavras satildeo sinais das coisas sem deixar de ser coisas
Quando pois a palavra sai da boca se sai por causa de si mesma isto eacute para que acerca dela se inquira ou se discuta haacute certamente uma coisa que eacute sujeita a discussatildeo e a investigaccedilatildeo mas justamente esta coisa eacute chamada palavra
E o que quer que a partir da palavra natildeo os ouvidos mas a mente (animus) percebe (sentit) e que a mente mesma manteacutem incluiacuteda em si se chama dicibile54 Quando poreacutem a palavra sai natildeo por causa de si mesma mas para significar algo de outro chama-se dictio55 E a coisa mesma que natildeo eacute uma palavra nem ainda uma concepccedilatildeo da palavra na mente seja que tenha uma palavra com a qual possa ser significada seja que natildeo a tenha daqui por diante natildeo eacute chamada com nome apropriado de outro modo do que de coisa
Estes quatro hatildeo de ser mantidos distintamente portanto a palavra (verbum) o dicibile a dictio a coisa Aquilo que defini como palavra eacute uma palavra e significa a palavra Aquilo que defini dicibile eacute uma palavra e todavia natildeo significa a palavra mas aquilo que graccedilas agrave palavra se compreende e estaacute contido na mente Aquilo que eu defini dictio eacute uma palavra mas uma palavra que significa contemporaneamente as outras duas ou seja a palavra mesma e aquilo que se faz na mente atraveacutes da palavra Aquela que eu defini como coisa eacute uma palavra que significa tudo aquilo que fica fora das trecircs que foram ditas
52 Seria o λεκτόν (lektoacuten) dos estoicos 53 Seria a λέξις (leacuteksis) dos estoicos 54 O exprimiacutevel ou melhor o diziacutevel no sentido do mostraacutevel 55 A expressatildeo o dito do dizer
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Depois destas digressotildees necessaacuterias para aclararmos o que estaacute em questatildeo
voltemos ao livro II do ldquoDe Doctrina Christianardquo de Agostinho Retomemos a sua
consideraccedilatildeo a respeito do signo
Haacute dois tipos de signos os naturais e os convencionais Os naturais datildeo a
conhecer por si proacuteprios alguma coisa aleacutem do que satildeo em si Assim fumaccedila eacute signo
de fogo Os signos convencionais (data signa) satildeo todos aqueles que os seres vivos em
especial o ser humano mutuamente se trocam para manifestar ndash o quanto lhes eacute
possiacutevel ndash os movimentos de sua alma tais como as sensaccedilotildees e os pensamentos Os
signos podem se dar em referecircncias a todos os sentidos a maioria dos signos poreacutem
se referem agrave audiccedilatildeo ou agrave visatildeo Dentre estes signos mais usuais e importantes satildeo os
signos verbais que satildeo sons significativos que se articulam mediante a voz humana
constituindo a palavra falada Os signos escritos poreacutem mostram os signos verbais de
maneira visiacutevel (e natildeo audiacutevel como fazem os signos falados)
A liacutengua eacute a realizaccedilatildeo concreta da linguagem humana mediante o uso de signos
verbais falados ou escritos As Sagradas Escrituras indicam pela histoacuteria da Torre de
Babel que liacutengua e linguagem sofrem com a decadecircncia do espiacuterito humano causada
pela soberba56 O contraacuterio da histoacuteria de Babel eacute poreacutem a histoacuteria de Pentecostes
narrada no livro dos Atos dos Apoacutestolos que aponta para a comunhatildeo do amor e o
muacutetuo entendimento entre os homens propiciado com o dom do Hagioacutes Pneuma
(Sopro Sagrado Espiacuterito Santo)
56 Na histoacuteria narrada pelo livro do Gecircnesis os homens se unem para erguer uma torre que una a terra ao ceacuteu a partir das proacuteprias forccedilas e da proacutepria engenhosidade Nos povos antigos encontramos monumentos que evocam algo disso O desejo do homem de uniatildeo entre o ceacuteu e a terra se manifesta nos zigurates da mesopotacircmia nas piracircmides das altas culturas das pedras (Egito Peru Meacutexico) nas estupas asiaacuteticas e quiccedilaacute em tempos mais primitivos aos dolmens menires nas cacircmaras funeraacuterias e nos obeliscos Junto com o esforccedilo de o homem erguer-se a si mesmo como homem erguendo pedras haacute o esforccedilo tambeacutem de alcanccedilar a vida dos imortais dos deuses tolhendo a proacutepria finitude Babel que era para ser a ldquoporta dos deusesrdquo (babilani) se torna poreacutem o lugar da confusatildeo (balal = confundir) O mundo se torna assim uma ldquoBabilocircniardquo isto eacute o lugar da confusatildeo em que os homens natildeo conseguem chegar ao entendimento muacutetuo Somente em Pentecostes em Jerusaleacutem celebra-se plenamente a superaccedilatildeo desta divisatildeo e desta confusatildeo em que as liacutenguas natildeo satildeo mais confusas e em que a linguagem do amor ardente une os homens e propicia-lhes a chance do entendimento muacutetuo e da verdadeira concoacuterdia uma concoacuterdia para o bem em favor de Deus
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Aquele vento purificava os coraccedilotildees da palha carnal aquele fogo consumia o feno da antiga concupiscecircncia aquelas liacutenguas em que falavam os que estavam plenos do Espiacuterito Santo prefiguravam a futura Igreja mediante liacutenguas de todos os povos Pois assim como depois do diluacutevio a soberba impiedade dos homens edificou uma grandiosa torre contra o Senhor ocasiatildeo na qual o gecircnero humano mereceu ser dividido pela diversidade das liacutenguas de modo que cada naccedilatildeo falasse sua proacutepria liacutengua para natildeo ser entendido pelas demais assim a humilde piedade dos fieis reduziu a diversidade de liacutenguas agrave unidade da Igreja de maneira que aquilo que a discoacuterdia tinha dispersado o reunisse a caridade e assim os membros dispersos do gecircnero humano qual membros de um mesmo corpo fossem reintegrados agrave unidade de uma uacutenica cabeccedila que eacute Cristo e fundidos na unidade do corpo santo mediante o fogo do amor57
O maior sinal da comunhatildeo do amor eacute quando os homens conseguem falar uns
com os outros e se entender Embora sejam diferentes e falem liacutenguas diferentes falam
a partir de uma mesma linguagem a do amor-caridade (gratuidade) As liacutenguas se
tornam entatildeo como labaredas do amor As falas satildeo entatildeo falas inflamadas de um fogo
divino brilhantes e ardentes divinamente apaixonadas entusiasmadas O amor eacute o que
possibilita manter esta identidade na diferenccedila Cria-se uma identidade comum mas
sem desfazer antes protegendo as diferenccedilas Eacute o milagre das liacutenguas O contraacuterio de
Babel Recriaccedilatildeo do homem humano e da humanidade universal
Assim os homens podem voltar agrave linguagem comum apesar da diversidade das
liacutenguas unindo suas vontades no empenho de conhecer e realizar a vontade de Deus A
serviccedilo deste intento estatildeo as Sagradas Escrituras Estas satildeo obra do proacuteprio Deus que
usou de hagioacutegrafos inspirados para expressar a sua vontade na linguagem humana
mediante as diversas liacutenguas Os que leem as Sagradas Escrituras natildeo desejam encontrar
nelas mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram e desse modo chegar
a conhecer a vontade de Deus segundo a qual ordem esses homens compuseram
Entretanto o leitor das Sagradas Escrituras vai se deparar continuamente com
ambiguidades e obscuridades Para Agostinho estas fazem parte da proacutepria natureza das
Escrituras Sagradas Haacute um certo quecirc de hermeacutetico de enigmaacutetico de obscuro nelas
57 Sermatildeo 271
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Mas eacute justamente isto que desafia a compreensatildeo e que a faz crescer na busca da
vontade divina As obscuridades e ambiguidades natildeo satildeo inuacuteteis Elas vencem o orgulho
do homem que se aproxima dos misteacuterios divinos sem reverecircncia e sem devoccedilatildeo Por
outro lado elas premunem o espiacuterito do fastio e do teacutedio que a facilidade sempre trazem
consigo As dificuldades de interpretaccedilatildeo cria-nos o gosto pelo exerciacutecio da
compreensatildeo na sua aventura de conquista do sentido Contudo natildeo se deve ter a
pretensatildeo de que se pode chegar a uma clareza que elimine toda sombra e obscuridade
A clareza do misteacuterio que se desvela sempre traz o veacuteu do pudor em que o misteacuterio
mesmo se encobre e assim se resguarda Os significados hauridos seratildeo sempre acenos
do inefaacutevel na medida em que o misteacuterio santo se deixa captar no horizonte do sentido
Uma vez que as Sagradas Escrituras satildeo linguagem do misteacuterio santo do Deus
absconditus (Deus escondido) que se re-vela (desvela e vela ao mesmo tempo) na
finitude da linguagem humana o leitor vai se deparar com desafios sempre novos
Agostinho recorre entatildeo agrave alegorese seguindo neste ponto a tradiccedilatildeo dos
alexandrinos As alegorias possuem encanto todo especial capaz de falar natildeo somente
ao entendimento mas tambeacutem ao coraccedilatildeo dos homens Com efeito a linguagem
imageacutetica concreta tem maior poder de comunicaccedilatildeo vital do que a linguagem
conceitual abstrata O uso de comparaccedilotildees leva o leitor a aprender mais
espontaneamente (libenter) As dificuldades de interpretaccedilatildeo levam-no a aprender com
maior prazer (gratius) As passagens obscuras das Escrituras aguccedilam a fome de
compreensatildeo do leitor Entretanto Agostinho daacute uma indicaccedilatildeo metodoloacutegica de leitura
importante para ir abrindo a compreensatildeo das Escrituras ganhar familiaridade com as
passagens claras e inequiacutevocas e com isso iluminar as passagens obscuras e
enigmaacuteticas Com efeito diz ele quase nada sobressai nas obscuridades que natildeo esteja
escrito mais claramente em outro lugar
Aquele que lecirc as Sagradas Escrituras procurando nelas a vontade divina eacute algueacutem
que estaacute a caminho numa viagem para a paacutetria da beatitude eterna Este caminhar
comporta determinado itineraacuterio no qual o homem vai se dispondo cada vez mais ao
Espiacuterito de Deus e ao seu modo de operar na alma os seus dons Eacute na medida que se
aproxima da Sabedoria do Espiacuterito que o leitor lecirc com maior proveito e profundidade as
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Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
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Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
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Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
29
Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
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(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
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Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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No De dialectica (Da dialeacutetica) Agostinho define a palavra como um sinal de
alguma coisa que proferido por quem fala pode ser compreendido por quem escuta (De
Dialectica 5) 51 Nesta definiccedilatildeo podemos perceber as vaacuterias dimensotildees do exerciacutecio
humano da linguagem a da comunicaccedilatildeo em que homens falam uns com os outros
compartilhando suas vidas e coparticipando de um mesmo mundo a da expressatildeo em
que homens se pronunciam a partir de seu ser num mundo comum o discurso pelo
qual homens falam uns com os outros e escutam uns aos outros a compreensatildeo e
interpretaccedilatildeo em que homens ouvindo uns aos outros recebem a mensagem e se
apropriam de seu sentido Como ponta do ldquoicebergrdquo de toda esta vitalidade do concurso
comunicativo e do discurso temos o sinal que eacute proferido por quem fala o som da boca
a voz que longe de ser um mero ruiacutedo eacute um sinal um signo e se sinal eacute sinal de
alguma coisa ou seja algo vem a ser significado por este signo ou sinal
podem evidenciar trecircs momentos que no entanto formam uma unidade intimamente fundida a apariccedilatildeo fiacutesica da expressatildeo o ato doador de sentido e o ato preenchedor de sentido Assim palavras e proposiccedilotildees satildeo sons articulados animados de sentido Agraves expressotildees satildeo essenciais os atos que conferem a significaccedilatildeo respectivamente as intenccedilotildees de significaccedilatildeo A estes atos se acrescentam de modo extra-essencial os atos que preenchem as significaccedilotildees confirmando reforccedilando ilustrando as intenccedilotildees de significaccedilatildeo Para que o signo se torne expressatildeo eacute preciso que lhe seja imposto uma significaccedilatildeo Husserl fala de emprestar significaccedilatildeo de conferir sentido Expressotildees satildeo unidades de signos e designados (sinais e assinalados) de espeacutecie bem peculiar Expressotildees satildeo sinais significativos A significaccedilatildeo adere ao ato significativo Com a expressatildeo que suscita o ato que confere o sentido nos orientamos ao objeto Agrave expressatildeo compete ter uma significaccedilatildeo na significaccedilatildeo eacute que se constitui a relaccedilatildeo com o objeto ldquoToda e qualquer expressatildeo natildeo quer apenas dizer qualquer coisa mas tambeacutem diz algo acerca de qualquer coisa ela natildeo tem apenas a sua significaccedilatildeo mas refere-se tambeacutem a quaisquer objetosrdquo (HUSSERL 2012 p 38 ndash grifo de Husserl) Assim significaccedilatildeo e referecircncia objetiva se distinguem Expressotildees podem ter a mesma significaccedilatildeo mas objetos diferentes por um lado e por outro podem ter significaccedilotildees diferentes mas o mesmo objeto Assim considerando dois enunciados ldquoeste sendeiro eacute um cavalordquo e ldquoBuceacutefalo eacute um cavalordquo a expressatildeo um cavalo tem a mesma significaccedilatildeo mas os objetos satildeo diferentes Por sua vez dois nomes podem significar coisas diferentes mas nomear o mesmo como no exemplo ldquoO vencedor de Iena - O vencido de Waterloordquo Significaccedilatildeo e referecircncia objetiva no entanto estatildeo em iacutentima conexatildeo A expressatildeo se refere ao objeto por meio da significaccedilatildeo Uma expressatildeo adquire um referimento ao objeto pelo simples fato de que esta significa algo Por isso eacute que dizemos que uma expressatildeo designa ou denomina algo por meio do seu significado ou seja o ato de significar eacute o modo determinado de intencionar o objeto em questatildeo soacute que justamente este modo de intencionar e portanto o significado mesmo pode variar enquanto permanece idecircntica a direccedilatildeo para o objeto Se considerarmos pois os trecircs momentos que se fundem numa unidade na expressatildeo temos aquilo que de modo equiacutevoco se chama o expressado da expressatildeo ldquoOs termos em relaccedilatildeo ndash manifestaccedilatildeo significaccedilatildeo e objeto ndash pertencem essencialmente a toda e qualquer expressatildeo Em cada uma qualquer coisa eacute manifestada qualquer coisa eacute significada e qualquer coisa eacute nomeada ou de algum modo designada E no discurso equiacutevoco tudo isto se diz lsquoexpressorsquordquo 51 Idem p 14
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No escrito sobre a dialeacutetica Agostinho trata de quatro elementos desta arte o
verbum o dicibile52 a dictio53 e a res Vejamos como Agostinho expotildee o nexo entre estes
quatro elementos
Ora porque as palavras (verba) satildeo sinais das coisas (signa rerum) quando se ocupam com as coisas enquanto satildeo sinais das palavras (signa verborum) quando se discute sobre palavras ndash pois sobre palavras natildeo podemos falar a natildeo ser com palavras e quando falamos natildeo falamos a natildeo ser de coisas ndash ocorre agrave mente que as palavras satildeo sinais das coisas sem deixar de ser coisas
Quando pois a palavra sai da boca se sai por causa de si mesma isto eacute para que acerca dela se inquira ou se discuta haacute certamente uma coisa que eacute sujeita a discussatildeo e a investigaccedilatildeo mas justamente esta coisa eacute chamada palavra
E o que quer que a partir da palavra natildeo os ouvidos mas a mente (animus) percebe (sentit) e que a mente mesma manteacutem incluiacuteda em si se chama dicibile54 Quando poreacutem a palavra sai natildeo por causa de si mesma mas para significar algo de outro chama-se dictio55 E a coisa mesma que natildeo eacute uma palavra nem ainda uma concepccedilatildeo da palavra na mente seja que tenha uma palavra com a qual possa ser significada seja que natildeo a tenha daqui por diante natildeo eacute chamada com nome apropriado de outro modo do que de coisa
Estes quatro hatildeo de ser mantidos distintamente portanto a palavra (verbum) o dicibile a dictio a coisa Aquilo que defini como palavra eacute uma palavra e significa a palavra Aquilo que defini dicibile eacute uma palavra e todavia natildeo significa a palavra mas aquilo que graccedilas agrave palavra se compreende e estaacute contido na mente Aquilo que eu defini dictio eacute uma palavra mas uma palavra que significa contemporaneamente as outras duas ou seja a palavra mesma e aquilo que se faz na mente atraveacutes da palavra Aquela que eu defini como coisa eacute uma palavra que significa tudo aquilo que fica fora das trecircs que foram ditas
52 Seria o λεκτόν (lektoacuten) dos estoicos 53 Seria a λέξις (leacuteksis) dos estoicos 54 O exprimiacutevel ou melhor o diziacutevel no sentido do mostraacutevel 55 A expressatildeo o dito do dizer
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Depois destas digressotildees necessaacuterias para aclararmos o que estaacute em questatildeo
voltemos ao livro II do ldquoDe Doctrina Christianardquo de Agostinho Retomemos a sua
consideraccedilatildeo a respeito do signo
Haacute dois tipos de signos os naturais e os convencionais Os naturais datildeo a
conhecer por si proacuteprios alguma coisa aleacutem do que satildeo em si Assim fumaccedila eacute signo
de fogo Os signos convencionais (data signa) satildeo todos aqueles que os seres vivos em
especial o ser humano mutuamente se trocam para manifestar ndash o quanto lhes eacute
possiacutevel ndash os movimentos de sua alma tais como as sensaccedilotildees e os pensamentos Os
signos podem se dar em referecircncias a todos os sentidos a maioria dos signos poreacutem
se referem agrave audiccedilatildeo ou agrave visatildeo Dentre estes signos mais usuais e importantes satildeo os
signos verbais que satildeo sons significativos que se articulam mediante a voz humana
constituindo a palavra falada Os signos escritos poreacutem mostram os signos verbais de
maneira visiacutevel (e natildeo audiacutevel como fazem os signos falados)
A liacutengua eacute a realizaccedilatildeo concreta da linguagem humana mediante o uso de signos
verbais falados ou escritos As Sagradas Escrituras indicam pela histoacuteria da Torre de
Babel que liacutengua e linguagem sofrem com a decadecircncia do espiacuterito humano causada
pela soberba56 O contraacuterio da histoacuteria de Babel eacute poreacutem a histoacuteria de Pentecostes
narrada no livro dos Atos dos Apoacutestolos que aponta para a comunhatildeo do amor e o
muacutetuo entendimento entre os homens propiciado com o dom do Hagioacutes Pneuma
(Sopro Sagrado Espiacuterito Santo)
56 Na histoacuteria narrada pelo livro do Gecircnesis os homens se unem para erguer uma torre que una a terra ao ceacuteu a partir das proacuteprias forccedilas e da proacutepria engenhosidade Nos povos antigos encontramos monumentos que evocam algo disso O desejo do homem de uniatildeo entre o ceacuteu e a terra se manifesta nos zigurates da mesopotacircmia nas piracircmides das altas culturas das pedras (Egito Peru Meacutexico) nas estupas asiaacuteticas e quiccedilaacute em tempos mais primitivos aos dolmens menires nas cacircmaras funeraacuterias e nos obeliscos Junto com o esforccedilo de o homem erguer-se a si mesmo como homem erguendo pedras haacute o esforccedilo tambeacutem de alcanccedilar a vida dos imortais dos deuses tolhendo a proacutepria finitude Babel que era para ser a ldquoporta dos deusesrdquo (babilani) se torna poreacutem o lugar da confusatildeo (balal = confundir) O mundo se torna assim uma ldquoBabilocircniardquo isto eacute o lugar da confusatildeo em que os homens natildeo conseguem chegar ao entendimento muacutetuo Somente em Pentecostes em Jerusaleacutem celebra-se plenamente a superaccedilatildeo desta divisatildeo e desta confusatildeo em que as liacutenguas natildeo satildeo mais confusas e em que a linguagem do amor ardente une os homens e propicia-lhes a chance do entendimento muacutetuo e da verdadeira concoacuterdia uma concoacuterdia para o bem em favor de Deus
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Aquele vento purificava os coraccedilotildees da palha carnal aquele fogo consumia o feno da antiga concupiscecircncia aquelas liacutenguas em que falavam os que estavam plenos do Espiacuterito Santo prefiguravam a futura Igreja mediante liacutenguas de todos os povos Pois assim como depois do diluacutevio a soberba impiedade dos homens edificou uma grandiosa torre contra o Senhor ocasiatildeo na qual o gecircnero humano mereceu ser dividido pela diversidade das liacutenguas de modo que cada naccedilatildeo falasse sua proacutepria liacutengua para natildeo ser entendido pelas demais assim a humilde piedade dos fieis reduziu a diversidade de liacutenguas agrave unidade da Igreja de maneira que aquilo que a discoacuterdia tinha dispersado o reunisse a caridade e assim os membros dispersos do gecircnero humano qual membros de um mesmo corpo fossem reintegrados agrave unidade de uma uacutenica cabeccedila que eacute Cristo e fundidos na unidade do corpo santo mediante o fogo do amor57
O maior sinal da comunhatildeo do amor eacute quando os homens conseguem falar uns
com os outros e se entender Embora sejam diferentes e falem liacutenguas diferentes falam
a partir de uma mesma linguagem a do amor-caridade (gratuidade) As liacutenguas se
tornam entatildeo como labaredas do amor As falas satildeo entatildeo falas inflamadas de um fogo
divino brilhantes e ardentes divinamente apaixonadas entusiasmadas O amor eacute o que
possibilita manter esta identidade na diferenccedila Cria-se uma identidade comum mas
sem desfazer antes protegendo as diferenccedilas Eacute o milagre das liacutenguas O contraacuterio de
Babel Recriaccedilatildeo do homem humano e da humanidade universal
Assim os homens podem voltar agrave linguagem comum apesar da diversidade das
liacutenguas unindo suas vontades no empenho de conhecer e realizar a vontade de Deus A
serviccedilo deste intento estatildeo as Sagradas Escrituras Estas satildeo obra do proacuteprio Deus que
usou de hagioacutegrafos inspirados para expressar a sua vontade na linguagem humana
mediante as diversas liacutenguas Os que leem as Sagradas Escrituras natildeo desejam encontrar
nelas mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram e desse modo chegar
a conhecer a vontade de Deus segundo a qual ordem esses homens compuseram
Entretanto o leitor das Sagradas Escrituras vai se deparar continuamente com
ambiguidades e obscuridades Para Agostinho estas fazem parte da proacutepria natureza das
Escrituras Sagradas Haacute um certo quecirc de hermeacutetico de enigmaacutetico de obscuro nelas
57 Sermatildeo 271
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Mas eacute justamente isto que desafia a compreensatildeo e que a faz crescer na busca da
vontade divina As obscuridades e ambiguidades natildeo satildeo inuacuteteis Elas vencem o orgulho
do homem que se aproxima dos misteacuterios divinos sem reverecircncia e sem devoccedilatildeo Por
outro lado elas premunem o espiacuterito do fastio e do teacutedio que a facilidade sempre trazem
consigo As dificuldades de interpretaccedilatildeo cria-nos o gosto pelo exerciacutecio da
compreensatildeo na sua aventura de conquista do sentido Contudo natildeo se deve ter a
pretensatildeo de que se pode chegar a uma clareza que elimine toda sombra e obscuridade
A clareza do misteacuterio que se desvela sempre traz o veacuteu do pudor em que o misteacuterio
mesmo se encobre e assim se resguarda Os significados hauridos seratildeo sempre acenos
do inefaacutevel na medida em que o misteacuterio santo se deixa captar no horizonte do sentido
Uma vez que as Sagradas Escrituras satildeo linguagem do misteacuterio santo do Deus
absconditus (Deus escondido) que se re-vela (desvela e vela ao mesmo tempo) na
finitude da linguagem humana o leitor vai se deparar com desafios sempre novos
Agostinho recorre entatildeo agrave alegorese seguindo neste ponto a tradiccedilatildeo dos
alexandrinos As alegorias possuem encanto todo especial capaz de falar natildeo somente
ao entendimento mas tambeacutem ao coraccedilatildeo dos homens Com efeito a linguagem
imageacutetica concreta tem maior poder de comunicaccedilatildeo vital do que a linguagem
conceitual abstrata O uso de comparaccedilotildees leva o leitor a aprender mais
espontaneamente (libenter) As dificuldades de interpretaccedilatildeo levam-no a aprender com
maior prazer (gratius) As passagens obscuras das Escrituras aguccedilam a fome de
compreensatildeo do leitor Entretanto Agostinho daacute uma indicaccedilatildeo metodoloacutegica de leitura
importante para ir abrindo a compreensatildeo das Escrituras ganhar familiaridade com as
passagens claras e inequiacutevocas e com isso iluminar as passagens obscuras e
enigmaacuteticas Com efeito diz ele quase nada sobressai nas obscuridades que natildeo esteja
escrito mais claramente em outro lugar
Aquele que lecirc as Sagradas Escrituras procurando nelas a vontade divina eacute algueacutem
que estaacute a caminho numa viagem para a paacutetria da beatitude eterna Este caminhar
comporta determinado itineraacuterio no qual o homem vai se dispondo cada vez mais ao
Espiacuterito de Deus e ao seu modo de operar na alma os seus dons Eacute na medida que se
aproxima da Sabedoria do Espiacuterito que o leitor lecirc com maior proveito e profundidade as
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Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
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Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
28
Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
29
Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
30
(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
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Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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No escrito sobre a dialeacutetica Agostinho trata de quatro elementos desta arte o
verbum o dicibile52 a dictio53 e a res Vejamos como Agostinho expotildee o nexo entre estes
quatro elementos
Ora porque as palavras (verba) satildeo sinais das coisas (signa rerum) quando se ocupam com as coisas enquanto satildeo sinais das palavras (signa verborum) quando se discute sobre palavras ndash pois sobre palavras natildeo podemos falar a natildeo ser com palavras e quando falamos natildeo falamos a natildeo ser de coisas ndash ocorre agrave mente que as palavras satildeo sinais das coisas sem deixar de ser coisas
Quando pois a palavra sai da boca se sai por causa de si mesma isto eacute para que acerca dela se inquira ou se discuta haacute certamente uma coisa que eacute sujeita a discussatildeo e a investigaccedilatildeo mas justamente esta coisa eacute chamada palavra
E o que quer que a partir da palavra natildeo os ouvidos mas a mente (animus) percebe (sentit) e que a mente mesma manteacutem incluiacuteda em si se chama dicibile54 Quando poreacutem a palavra sai natildeo por causa de si mesma mas para significar algo de outro chama-se dictio55 E a coisa mesma que natildeo eacute uma palavra nem ainda uma concepccedilatildeo da palavra na mente seja que tenha uma palavra com a qual possa ser significada seja que natildeo a tenha daqui por diante natildeo eacute chamada com nome apropriado de outro modo do que de coisa
Estes quatro hatildeo de ser mantidos distintamente portanto a palavra (verbum) o dicibile a dictio a coisa Aquilo que defini como palavra eacute uma palavra e significa a palavra Aquilo que defini dicibile eacute uma palavra e todavia natildeo significa a palavra mas aquilo que graccedilas agrave palavra se compreende e estaacute contido na mente Aquilo que eu defini dictio eacute uma palavra mas uma palavra que significa contemporaneamente as outras duas ou seja a palavra mesma e aquilo que se faz na mente atraveacutes da palavra Aquela que eu defini como coisa eacute uma palavra que significa tudo aquilo que fica fora das trecircs que foram ditas
52 Seria o λεκτόν (lektoacuten) dos estoicos 53 Seria a λέξις (leacuteksis) dos estoicos 54 O exprimiacutevel ou melhor o diziacutevel no sentido do mostraacutevel 55 A expressatildeo o dito do dizer
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Depois destas digressotildees necessaacuterias para aclararmos o que estaacute em questatildeo
voltemos ao livro II do ldquoDe Doctrina Christianardquo de Agostinho Retomemos a sua
consideraccedilatildeo a respeito do signo
Haacute dois tipos de signos os naturais e os convencionais Os naturais datildeo a
conhecer por si proacuteprios alguma coisa aleacutem do que satildeo em si Assim fumaccedila eacute signo
de fogo Os signos convencionais (data signa) satildeo todos aqueles que os seres vivos em
especial o ser humano mutuamente se trocam para manifestar ndash o quanto lhes eacute
possiacutevel ndash os movimentos de sua alma tais como as sensaccedilotildees e os pensamentos Os
signos podem se dar em referecircncias a todos os sentidos a maioria dos signos poreacutem
se referem agrave audiccedilatildeo ou agrave visatildeo Dentre estes signos mais usuais e importantes satildeo os
signos verbais que satildeo sons significativos que se articulam mediante a voz humana
constituindo a palavra falada Os signos escritos poreacutem mostram os signos verbais de
maneira visiacutevel (e natildeo audiacutevel como fazem os signos falados)
A liacutengua eacute a realizaccedilatildeo concreta da linguagem humana mediante o uso de signos
verbais falados ou escritos As Sagradas Escrituras indicam pela histoacuteria da Torre de
Babel que liacutengua e linguagem sofrem com a decadecircncia do espiacuterito humano causada
pela soberba56 O contraacuterio da histoacuteria de Babel eacute poreacutem a histoacuteria de Pentecostes
narrada no livro dos Atos dos Apoacutestolos que aponta para a comunhatildeo do amor e o
muacutetuo entendimento entre os homens propiciado com o dom do Hagioacutes Pneuma
(Sopro Sagrado Espiacuterito Santo)
56 Na histoacuteria narrada pelo livro do Gecircnesis os homens se unem para erguer uma torre que una a terra ao ceacuteu a partir das proacuteprias forccedilas e da proacutepria engenhosidade Nos povos antigos encontramos monumentos que evocam algo disso O desejo do homem de uniatildeo entre o ceacuteu e a terra se manifesta nos zigurates da mesopotacircmia nas piracircmides das altas culturas das pedras (Egito Peru Meacutexico) nas estupas asiaacuteticas e quiccedilaacute em tempos mais primitivos aos dolmens menires nas cacircmaras funeraacuterias e nos obeliscos Junto com o esforccedilo de o homem erguer-se a si mesmo como homem erguendo pedras haacute o esforccedilo tambeacutem de alcanccedilar a vida dos imortais dos deuses tolhendo a proacutepria finitude Babel que era para ser a ldquoporta dos deusesrdquo (babilani) se torna poreacutem o lugar da confusatildeo (balal = confundir) O mundo se torna assim uma ldquoBabilocircniardquo isto eacute o lugar da confusatildeo em que os homens natildeo conseguem chegar ao entendimento muacutetuo Somente em Pentecostes em Jerusaleacutem celebra-se plenamente a superaccedilatildeo desta divisatildeo e desta confusatildeo em que as liacutenguas natildeo satildeo mais confusas e em que a linguagem do amor ardente une os homens e propicia-lhes a chance do entendimento muacutetuo e da verdadeira concoacuterdia uma concoacuterdia para o bem em favor de Deus
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Aquele vento purificava os coraccedilotildees da palha carnal aquele fogo consumia o feno da antiga concupiscecircncia aquelas liacutenguas em que falavam os que estavam plenos do Espiacuterito Santo prefiguravam a futura Igreja mediante liacutenguas de todos os povos Pois assim como depois do diluacutevio a soberba impiedade dos homens edificou uma grandiosa torre contra o Senhor ocasiatildeo na qual o gecircnero humano mereceu ser dividido pela diversidade das liacutenguas de modo que cada naccedilatildeo falasse sua proacutepria liacutengua para natildeo ser entendido pelas demais assim a humilde piedade dos fieis reduziu a diversidade de liacutenguas agrave unidade da Igreja de maneira que aquilo que a discoacuterdia tinha dispersado o reunisse a caridade e assim os membros dispersos do gecircnero humano qual membros de um mesmo corpo fossem reintegrados agrave unidade de uma uacutenica cabeccedila que eacute Cristo e fundidos na unidade do corpo santo mediante o fogo do amor57
O maior sinal da comunhatildeo do amor eacute quando os homens conseguem falar uns
com os outros e se entender Embora sejam diferentes e falem liacutenguas diferentes falam
a partir de uma mesma linguagem a do amor-caridade (gratuidade) As liacutenguas se
tornam entatildeo como labaredas do amor As falas satildeo entatildeo falas inflamadas de um fogo
divino brilhantes e ardentes divinamente apaixonadas entusiasmadas O amor eacute o que
possibilita manter esta identidade na diferenccedila Cria-se uma identidade comum mas
sem desfazer antes protegendo as diferenccedilas Eacute o milagre das liacutenguas O contraacuterio de
Babel Recriaccedilatildeo do homem humano e da humanidade universal
Assim os homens podem voltar agrave linguagem comum apesar da diversidade das
liacutenguas unindo suas vontades no empenho de conhecer e realizar a vontade de Deus A
serviccedilo deste intento estatildeo as Sagradas Escrituras Estas satildeo obra do proacuteprio Deus que
usou de hagioacutegrafos inspirados para expressar a sua vontade na linguagem humana
mediante as diversas liacutenguas Os que leem as Sagradas Escrituras natildeo desejam encontrar
nelas mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram e desse modo chegar
a conhecer a vontade de Deus segundo a qual ordem esses homens compuseram
Entretanto o leitor das Sagradas Escrituras vai se deparar continuamente com
ambiguidades e obscuridades Para Agostinho estas fazem parte da proacutepria natureza das
Escrituras Sagradas Haacute um certo quecirc de hermeacutetico de enigmaacutetico de obscuro nelas
57 Sermatildeo 271
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Mas eacute justamente isto que desafia a compreensatildeo e que a faz crescer na busca da
vontade divina As obscuridades e ambiguidades natildeo satildeo inuacuteteis Elas vencem o orgulho
do homem que se aproxima dos misteacuterios divinos sem reverecircncia e sem devoccedilatildeo Por
outro lado elas premunem o espiacuterito do fastio e do teacutedio que a facilidade sempre trazem
consigo As dificuldades de interpretaccedilatildeo cria-nos o gosto pelo exerciacutecio da
compreensatildeo na sua aventura de conquista do sentido Contudo natildeo se deve ter a
pretensatildeo de que se pode chegar a uma clareza que elimine toda sombra e obscuridade
A clareza do misteacuterio que se desvela sempre traz o veacuteu do pudor em que o misteacuterio
mesmo se encobre e assim se resguarda Os significados hauridos seratildeo sempre acenos
do inefaacutevel na medida em que o misteacuterio santo se deixa captar no horizonte do sentido
Uma vez que as Sagradas Escrituras satildeo linguagem do misteacuterio santo do Deus
absconditus (Deus escondido) que se re-vela (desvela e vela ao mesmo tempo) na
finitude da linguagem humana o leitor vai se deparar com desafios sempre novos
Agostinho recorre entatildeo agrave alegorese seguindo neste ponto a tradiccedilatildeo dos
alexandrinos As alegorias possuem encanto todo especial capaz de falar natildeo somente
ao entendimento mas tambeacutem ao coraccedilatildeo dos homens Com efeito a linguagem
imageacutetica concreta tem maior poder de comunicaccedilatildeo vital do que a linguagem
conceitual abstrata O uso de comparaccedilotildees leva o leitor a aprender mais
espontaneamente (libenter) As dificuldades de interpretaccedilatildeo levam-no a aprender com
maior prazer (gratius) As passagens obscuras das Escrituras aguccedilam a fome de
compreensatildeo do leitor Entretanto Agostinho daacute uma indicaccedilatildeo metodoloacutegica de leitura
importante para ir abrindo a compreensatildeo das Escrituras ganhar familiaridade com as
passagens claras e inequiacutevocas e com isso iluminar as passagens obscuras e
enigmaacuteticas Com efeito diz ele quase nada sobressai nas obscuridades que natildeo esteja
escrito mais claramente em outro lugar
Aquele que lecirc as Sagradas Escrituras procurando nelas a vontade divina eacute algueacutem
que estaacute a caminho numa viagem para a paacutetria da beatitude eterna Este caminhar
comporta determinado itineraacuterio no qual o homem vai se dispondo cada vez mais ao
Espiacuterito de Deus e ao seu modo de operar na alma os seus dons Eacute na medida que se
aproxima da Sabedoria do Espiacuterito que o leitor lecirc com maior proveito e profundidade as
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Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
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Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
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Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
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Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
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(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
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Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
41
provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
23
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Depois destas digressotildees necessaacuterias para aclararmos o que estaacute em questatildeo
voltemos ao livro II do ldquoDe Doctrina Christianardquo de Agostinho Retomemos a sua
consideraccedilatildeo a respeito do signo
Haacute dois tipos de signos os naturais e os convencionais Os naturais datildeo a
conhecer por si proacuteprios alguma coisa aleacutem do que satildeo em si Assim fumaccedila eacute signo
de fogo Os signos convencionais (data signa) satildeo todos aqueles que os seres vivos em
especial o ser humano mutuamente se trocam para manifestar ndash o quanto lhes eacute
possiacutevel ndash os movimentos de sua alma tais como as sensaccedilotildees e os pensamentos Os
signos podem se dar em referecircncias a todos os sentidos a maioria dos signos poreacutem
se referem agrave audiccedilatildeo ou agrave visatildeo Dentre estes signos mais usuais e importantes satildeo os
signos verbais que satildeo sons significativos que se articulam mediante a voz humana
constituindo a palavra falada Os signos escritos poreacutem mostram os signos verbais de
maneira visiacutevel (e natildeo audiacutevel como fazem os signos falados)
A liacutengua eacute a realizaccedilatildeo concreta da linguagem humana mediante o uso de signos
verbais falados ou escritos As Sagradas Escrituras indicam pela histoacuteria da Torre de
Babel que liacutengua e linguagem sofrem com a decadecircncia do espiacuterito humano causada
pela soberba56 O contraacuterio da histoacuteria de Babel eacute poreacutem a histoacuteria de Pentecostes
narrada no livro dos Atos dos Apoacutestolos que aponta para a comunhatildeo do amor e o
muacutetuo entendimento entre os homens propiciado com o dom do Hagioacutes Pneuma
(Sopro Sagrado Espiacuterito Santo)
56 Na histoacuteria narrada pelo livro do Gecircnesis os homens se unem para erguer uma torre que una a terra ao ceacuteu a partir das proacuteprias forccedilas e da proacutepria engenhosidade Nos povos antigos encontramos monumentos que evocam algo disso O desejo do homem de uniatildeo entre o ceacuteu e a terra se manifesta nos zigurates da mesopotacircmia nas piracircmides das altas culturas das pedras (Egito Peru Meacutexico) nas estupas asiaacuteticas e quiccedilaacute em tempos mais primitivos aos dolmens menires nas cacircmaras funeraacuterias e nos obeliscos Junto com o esforccedilo de o homem erguer-se a si mesmo como homem erguendo pedras haacute o esforccedilo tambeacutem de alcanccedilar a vida dos imortais dos deuses tolhendo a proacutepria finitude Babel que era para ser a ldquoporta dos deusesrdquo (babilani) se torna poreacutem o lugar da confusatildeo (balal = confundir) O mundo se torna assim uma ldquoBabilocircniardquo isto eacute o lugar da confusatildeo em que os homens natildeo conseguem chegar ao entendimento muacutetuo Somente em Pentecostes em Jerusaleacutem celebra-se plenamente a superaccedilatildeo desta divisatildeo e desta confusatildeo em que as liacutenguas natildeo satildeo mais confusas e em que a linguagem do amor ardente une os homens e propicia-lhes a chance do entendimento muacutetuo e da verdadeira concoacuterdia uma concoacuterdia para o bem em favor de Deus
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Aquele vento purificava os coraccedilotildees da palha carnal aquele fogo consumia o feno da antiga concupiscecircncia aquelas liacutenguas em que falavam os que estavam plenos do Espiacuterito Santo prefiguravam a futura Igreja mediante liacutenguas de todos os povos Pois assim como depois do diluacutevio a soberba impiedade dos homens edificou uma grandiosa torre contra o Senhor ocasiatildeo na qual o gecircnero humano mereceu ser dividido pela diversidade das liacutenguas de modo que cada naccedilatildeo falasse sua proacutepria liacutengua para natildeo ser entendido pelas demais assim a humilde piedade dos fieis reduziu a diversidade de liacutenguas agrave unidade da Igreja de maneira que aquilo que a discoacuterdia tinha dispersado o reunisse a caridade e assim os membros dispersos do gecircnero humano qual membros de um mesmo corpo fossem reintegrados agrave unidade de uma uacutenica cabeccedila que eacute Cristo e fundidos na unidade do corpo santo mediante o fogo do amor57
O maior sinal da comunhatildeo do amor eacute quando os homens conseguem falar uns
com os outros e se entender Embora sejam diferentes e falem liacutenguas diferentes falam
a partir de uma mesma linguagem a do amor-caridade (gratuidade) As liacutenguas se
tornam entatildeo como labaredas do amor As falas satildeo entatildeo falas inflamadas de um fogo
divino brilhantes e ardentes divinamente apaixonadas entusiasmadas O amor eacute o que
possibilita manter esta identidade na diferenccedila Cria-se uma identidade comum mas
sem desfazer antes protegendo as diferenccedilas Eacute o milagre das liacutenguas O contraacuterio de
Babel Recriaccedilatildeo do homem humano e da humanidade universal
Assim os homens podem voltar agrave linguagem comum apesar da diversidade das
liacutenguas unindo suas vontades no empenho de conhecer e realizar a vontade de Deus A
serviccedilo deste intento estatildeo as Sagradas Escrituras Estas satildeo obra do proacuteprio Deus que
usou de hagioacutegrafos inspirados para expressar a sua vontade na linguagem humana
mediante as diversas liacutenguas Os que leem as Sagradas Escrituras natildeo desejam encontrar
nelas mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram e desse modo chegar
a conhecer a vontade de Deus segundo a qual ordem esses homens compuseram
Entretanto o leitor das Sagradas Escrituras vai se deparar continuamente com
ambiguidades e obscuridades Para Agostinho estas fazem parte da proacutepria natureza das
Escrituras Sagradas Haacute um certo quecirc de hermeacutetico de enigmaacutetico de obscuro nelas
57 Sermatildeo 271
25
Mas eacute justamente isto que desafia a compreensatildeo e que a faz crescer na busca da
vontade divina As obscuridades e ambiguidades natildeo satildeo inuacuteteis Elas vencem o orgulho
do homem que se aproxima dos misteacuterios divinos sem reverecircncia e sem devoccedilatildeo Por
outro lado elas premunem o espiacuterito do fastio e do teacutedio que a facilidade sempre trazem
consigo As dificuldades de interpretaccedilatildeo cria-nos o gosto pelo exerciacutecio da
compreensatildeo na sua aventura de conquista do sentido Contudo natildeo se deve ter a
pretensatildeo de que se pode chegar a uma clareza que elimine toda sombra e obscuridade
A clareza do misteacuterio que se desvela sempre traz o veacuteu do pudor em que o misteacuterio
mesmo se encobre e assim se resguarda Os significados hauridos seratildeo sempre acenos
do inefaacutevel na medida em que o misteacuterio santo se deixa captar no horizonte do sentido
Uma vez que as Sagradas Escrituras satildeo linguagem do misteacuterio santo do Deus
absconditus (Deus escondido) que se re-vela (desvela e vela ao mesmo tempo) na
finitude da linguagem humana o leitor vai se deparar com desafios sempre novos
Agostinho recorre entatildeo agrave alegorese seguindo neste ponto a tradiccedilatildeo dos
alexandrinos As alegorias possuem encanto todo especial capaz de falar natildeo somente
ao entendimento mas tambeacutem ao coraccedilatildeo dos homens Com efeito a linguagem
imageacutetica concreta tem maior poder de comunicaccedilatildeo vital do que a linguagem
conceitual abstrata O uso de comparaccedilotildees leva o leitor a aprender mais
espontaneamente (libenter) As dificuldades de interpretaccedilatildeo levam-no a aprender com
maior prazer (gratius) As passagens obscuras das Escrituras aguccedilam a fome de
compreensatildeo do leitor Entretanto Agostinho daacute uma indicaccedilatildeo metodoloacutegica de leitura
importante para ir abrindo a compreensatildeo das Escrituras ganhar familiaridade com as
passagens claras e inequiacutevocas e com isso iluminar as passagens obscuras e
enigmaacuteticas Com efeito diz ele quase nada sobressai nas obscuridades que natildeo esteja
escrito mais claramente em outro lugar
Aquele que lecirc as Sagradas Escrituras procurando nelas a vontade divina eacute algueacutem
que estaacute a caminho numa viagem para a paacutetria da beatitude eterna Este caminhar
comporta determinado itineraacuterio no qual o homem vai se dispondo cada vez mais ao
Espiacuterito de Deus e ao seu modo de operar na alma os seus dons Eacute na medida que se
aproxima da Sabedoria do Espiacuterito que o leitor lecirc com maior proveito e profundidade as
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Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
27
Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
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Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
29
Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
30
(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
31
O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
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Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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Aquele vento purificava os coraccedilotildees da palha carnal aquele fogo consumia o feno da antiga concupiscecircncia aquelas liacutenguas em que falavam os que estavam plenos do Espiacuterito Santo prefiguravam a futura Igreja mediante liacutenguas de todos os povos Pois assim como depois do diluacutevio a soberba impiedade dos homens edificou uma grandiosa torre contra o Senhor ocasiatildeo na qual o gecircnero humano mereceu ser dividido pela diversidade das liacutenguas de modo que cada naccedilatildeo falasse sua proacutepria liacutengua para natildeo ser entendido pelas demais assim a humilde piedade dos fieis reduziu a diversidade de liacutenguas agrave unidade da Igreja de maneira que aquilo que a discoacuterdia tinha dispersado o reunisse a caridade e assim os membros dispersos do gecircnero humano qual membros de um mesmo corpo fossem reintegrados agrave unidade de uma uacutenica cabeccedila que eacute Cristo e fundidos na unidade do corpo santo mediante o fogo do amor57
O maior sinal da comunhatildeo do amor eacute quando os homens conseguem falar uns
com os outros e se entender Embora sejam diferentes e falem liacutenguas diferentes falam
a partir de uma mesma linguagem a do amor-caridade (gratuidade) As liacutenguas se
tornam entatildeo como labaredas do amor As falas satildeo entatildeo falas inflamadas de um fogo
divino brilhantes e ardentes divinamente apaixonadas entusiasmadas O amor eacute o que
possibilita manter esta identidade na diferenccedila Cria-se uma identidade comum mas
sem desfazer antes protegendo as diferenccedilas Eacute o milagre das liacutenguas O contraacuterio de
Babel Recriaccedilatildeo do homem humano e da humanidade universal
Assim os homens podem voltar agrave linguagem comum apesar da diversidade das
liacutenguas unindo suas vontades no empenho de conhecer e realizar a vontade de Deus A
serviccedilo deste intento estatildeo as Sagradas Escrituras Estas satildeo obra do proacuteprio Deus que
usou de hagioacutegrafos inspirados para expressar a sua vontade na linguagem humana
mediante as diversas liacutenguas Os que leem as Sagradas Escrituras natildeo desejam encontrar
nelas mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram e desse modo chegar
a conhecer a vontade de Deus segundo a qual ordem esses homens compuseram
Entretanto o leitor das Sagradas Escrituras vai se deparar continuamente com
ambiguidades e obscuridades Para Agostinho estas fazem parte da proacutepria natureza das
Escrituras Sagradas Haacute um certo quecirc de hermeacutetico de enigmaacutetico de obscuro nelas
57 Sermatildeo 271
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Mas eacute justamente isto que desafia a compreensatildeo e que a faz crescer na busca da
vontade divina As obscuridades e ambiguidades natildeo satildeo inuacuteteis Elas vencem o orgulho
do homem que se aproxima dos misteacuterios divinos sem reverecircncia e sem devoccedilatildeo Por
outro lado elas premunem o espiacuterito do fastio e do teacutedio que a facilidade sempre trazem
consigo As dificuldades de interpretaccedilatildeo cria-nos o gosto pelo exerciacutecio da
compreensatildeo na sua aventura de conquista do sentido Contudo natildeo se deve ter a
pretensatildeo de que se pode chegar a uma clareza que elimine toda sombra e obscuridade
A clareza do misteacuterio que se desvela sempre traz o veacuteu do pudor em que o misteacuterio
mesmo se encobre e assim se resguarda Os significados hauridos seratildeo sempre acenos
do inefaacutevel na medida em que o misteacuterio santo se deixa captar no horizonte do sentido
Uma vez que as Sagradas Escrituras satildeo linguagem do misteacuterio santo do Deus
absconditus (Deus escondido) que se re-vela (desvela e vela ao mesmo tempo) na
finitude da linguagem humana o leitor vai se deparar com desafios sempre novos
Agostinho recorre entatildeo agrave alegorese seguindo neste ponto a tradiccedilatildeo dos
alexandrinos As alegorias possuem encanto todo especial capaz de falar natildeo somente
ao entendimento mas tambeacutem ao coraccedilatildeo dos homens Com efeito a linguagem
imageacutetica concreta tem maior poder de comunicaccedilatildeo vital do que a linguagem
conceitual abstrata O uso de comparaccedilotildees leva o leitor a aprender mais
espontaneamente (libenter) As dificuldades de interpretaccedilatildeo levam-no a aprender com
maior prazer (gratius) As passagens obscuras das Escrituras aguccedilam a fome de
compreensatildeo do leitor Entretanto Agostinho daacute uma indicaccedilatildeo metodoloacutegica de leitura
importante para ir abrindo a compreensatildeo das Escrituras ganhar familiaridade com as
passagens claras e inequiacutevocas e com isso iluminar as passagens obscuras e
enigmaacuteticas Com efeito diz ele quase nada sobressai nas obscuridades que natildeo esteja
escrito mais claramente em outro lugar
Aquele que lecirc as Sagradas Escrituras procurando nelas a vontade divina eacute algueacutem
que estaacute a caminho numa viagem para a paacutetria da beatitude eterna Este caminhar
comporta determinado itineraacuterio no qual o homem vai se dispondo cada vez mais ao
Espiacuterito de Deus e ao seu modo de operar na alma os seus dons Eacute na medida que se
aproxima da Sabedoria do Espiacuterito que o leitor lecirc com maior proveito e profundidade as
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Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
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Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
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Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
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Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
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(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
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O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
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Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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Mas eacute justamente isto que desafia a compreensatildeo e que a faz crescer na busca da
vontade divina As obscuridades e ambiguidades natildeo satildeo inuacuteteis Elas vencem o orgulho
do homem que se aproxima dos misteacuterios divinos sem reverecircncia e sem devoccedilatildeo Por
outro lado elas premunem o espiacuterito do fastio e do teacutedio que a facilidade sempre trazem
consigo As dificuldades de interpretaccedilatildeo cria-nos o gosto pelo exerciacutecio da
compreensatildeo na sua aventura de conquista do sentido Contudo natildeo se deve ter a
pretensatildeo de que se pode chegar a uma clareza que elimine toda sombra e obscuridade
A clareza do misteacuterio que se desvela sempre traz o veacuteu do pudor em que o misteacuterio
mesmo se encobre e assim se resguarda Os significados hauridos seratildeo sempre acenos
do inefaacutevel na medida em que o misteacuterio santo se deixa captar no horizonte do sentido
Uma vez que as Sagradas Escrituras satildeo linguagem do misteacuterio santo do Deus
absconditus (Deus escondido) que se re-vela (desvela e vela ao mesmo tempo) na
finitude da linguagem humana o leitor vai se deparar com desafios sempre novos
Agostinho recorre entatildeo agrave alegorese seguindo neste ponto a tradiccedilatildeo dos
alexandrinos As alegorias possuem encanto todo especial capaz de falar natildeo somente
ao entendimento mas tambeacutem ao coraccedilatildeo dos homens Com efeito a linguagem
imageacutetica concreta tem maior poder de comunicaccedilatildeo vital do que a linguagem
conceitual abstrata O uso de comparaccedilotildees leva o leitor a aprender mais
espontaneamente (libenter) As dificuldades de interpretaccedilatildeo levam-no a aprender com
maior prazer (gratius) As passagens obscuras das Escrituras aguccedilam a fome de
compreensatildeo do leitor Entretanto Agostinho daacute uma indicaccedilatildeo metodoloacutegica de leitura
importante para ir abrindo a compreensatildeo das Escrituras ganhar familiaridade com as
passagens claras e inequiacutevocas e com isso iluminar as passagens obscuras e
enigmaacuteticas Com efeito diz ele quase nada sobressai nas obscuridades que natildeo esteja
escrito mais claramente em outro lugar
Aquele que lecirc as Sagradas Escrituras procurando nelas a vontade divina eacute algueacutem
que estaacute a caminho numa viagem para a paacutetria da beatitude eterna Este caminhar
comporta determinado itineraacuterio no qual o homem vai se dispondo cada vez mais ao
Espiacuterito de Deus e ao seu modo de operar na alma os seus dons Eacute na medida que se
aproxima da Sabedoria do Espiacuterito que o leitor lecirc com maior proveito e profundidade as
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Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
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Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
28
Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
29
Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
30
(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
35
derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
xxxxxxxxxxxx
Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
xxxxxxxxxxxxxx
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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Escrituras A meta da leitura eacute a posse desta Sabedoria Os dons do Espiacuterito satildeo degraus
que elevam a ela58
O estudioso das Escrituras Sagradas deve ser um investigador diligente O leitor
deveraacute adotar alguns procedimentos elementares Antes de tudo deve ler e tomar
conhecimento integral dos livros canocircnicos59 Depois confiar agrave memoacuteria o que leu
mesmo quando natildeo eacute capaz de alcanccedilar todo o sentido Em terceiro lugar verificar os
preceitos morais e as regras de feacute que as Escrituras propotildeem com clareza Quarto
conquistar uma familiaridade com a linguagem proacutepria das Escrituras Quinto aprender
a esclarecer as passagens obscuras recorrendo a textos mais claros Sexto dissipar a
ignoracircncia dos signos desconhecidos que apareccedilam no original ou na traduccedilatildeo Para isso
ele deve conhecer bem as liacutenguas biacuteblicas (o grego e o hebraico) e aprender a confrontar
as diversas traduccedilotildees Agostinho tem preferecircncia pela Septuaginta e pela versatildeo iacutetala
por sua exatidatildeo e clareza Por uacuteltimo o conhecimento da onomaacutestica biacuteblica tambeacutem
eacute importante para a interpretaccedilatildeo
58 A cada dom do Espiacuterito Santo corresponde uma bem-aventuranccedila Primeiro degrau eacute o temor de Deus que faz o homem andar na busca da vontade de Deus mortificando o seu orgulho Segundo a piedade que torna o homem manso e humilde para encontrar nas Escrituras a vontade divina preferindo o que aiacute estaacute dito do que todo o saber que ele pode conquistar por si proacuteprio Terceiro a ciecircncia que faz o homem compreender que no amor a Deus e ao proacuteximo estaacute a plenitude das Escrituras Esta ciecircncia natildeo ensoberbece o homem antes o faz tomar consciecircncia do quanto ele estaacute distante da perfeiccedilatildeo da caridade fazendo-o chorar e tornando-o suplicante Quarto a fortaleza pela qual o homem rompe com as alegrias temporais e dirige-se agraves eternas com fome e sede de justiccedila Atraveacutes destes quatro degraus o homem jaacute pode vislumbrar ao longe o fulgor da Trindade e a beatitude da Terra prometida (o Reino dos Ceacuteus) Resta-lhe aproximar-se mais desta beatitude percorrendo ainda os degraus do conselho e da inteligecircncia No quinto degrau vem pois o dom do conselho pelo qual o homem se exercita especialmente no amor ao proacuteximo e se aperfeiccediloa nele fundando-se sobre a misericoacuterdia Neste degrau o homem purifica a sua alma tumultuada e desassossegada pelo clamor da consciecircncia Em seguida na plenitude da esperanccedila e na integridade de suas forccedilas chega ele ao amor aos inimigos e sobe ao sexto degrau Laacute ele purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto ndash o quanto eacute possiacutevel ndash pelos que morrem para este mundo Eacute na pureza do coraccedilatildeo que o homem se dispotildee ao dom da Inteligecircncia atraveacutes do qual ele se coloca com simplicidade em face da verdade Tendo percorrido os seis degraus da iluminaccedilatildeo interior dispondo-se aos dons do Espiacuterito Santo e conquistando as atitudes fundamentais que tornam o homem bem-aventurado no seu caminho espiritual o homem chega ao descanso no seacutetimo degrau fruindo de Deus por amor dele proacuteprio na tranquilidade e na paz que a Sabedoria proporciona Deste modo o peregrino do Absoluto que lecirc as Sagradas Escrituras estando a caminho da Paacutetria entra na posse da heranccedila dos filhos de Deus 59 Primeiramente leraacute aqueles que satildeo reconhecidos com unanimidade pelas igrejas cristatildes e sedes apostoacutelicas como canocircnicos Em seguida leraacute aqueles que gozam de autoridade em antigas e doutas comunidades embora natildeo sejam reconhecidos com unanimidade por todas as igrejas cristatildes (distinccedilatildeo entre proto-canocircnicos e deutero-canocircnicos) Natildeo se trata poreacutem de admitir graus de inspiraccedilatildeo nos livros das Sagradas Escrituras O cacircnon de Agostinho coincide com vaacuterios relatos de cacircnones de seu tempo Estaacute de acordo com o que viria a ser definido no conciacutelio de Trento
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Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
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Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
29
Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
30
(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
33
regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
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Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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Natildeo soacute o conhecimento dos signos ajudam no estudo das Sagradas Escrituras
mas tambeacutem o conhecimento das coisas elaborado nas disciplinas e ciecircncias pode
auxiliar o estudioso a esclarecer aquelas sombras que provecircm de sua proacutepria ignoracircncia
Assim quem desconhece as propriedades de certos minerais vegetais e animais que
aparecem na Biacuteblia em linguagem metafoacuterica tem maior dificuldade de interpretar o
significado de expressotildees figuradas Tambeacutem eacute muito uacutetil o conhecimento do
simbolismo dos nuacutemeros e da harmonia matemaacutetica articulada na arte da muacutesica Haacute
que se notar que o estudioso das Escrituras haacute que se servir das ciecircncias profanas como
algueacutem que exerce o que lhe eacute de direito Neste sentido o princiacutepio norteador de
Agostinho eacute em que qualquer parte onde a Verdade se encontre ela eacute propriedade de
Deus Deste modo o estudioso cristatildeo examina tudo e fica com o que eacute bom e
verdadeiro onde quer que apareccedila Este princiacutepio levou Agostinho a um confronto
criacutetico e purificador com a cultura do mundo antigo natildeo cristatildeo60
Em todo o caso haacute ciecircncias que satildeo instituiacutedas pelos homens que satildeo uacuteteis para
a inteligecircncia das Sagradas Escrituras Estas ciecircncias descobrem razotildees prejacentes que
natildeo satildeo invenccedilotildees humana mas que pertencem agrave estruturaccedilatildeo da realidade como tal
Agostinho passa em resenha estas ciecircncias Enumera como ciecircncias descritivas a
geografia a botacircnica a geologia a astronomia e a histoacuteria Enumera tambeacutem as artes
mecacircnicas da medicina da agricultura do governo Todas estas satildeo ciecircncias que
atingem o campo de descoberta aberto pelos sentidos corporais e que dizem respeito
agraves coisas e agraves suas propriedades ao movimento e agraves suas leis em resumo ao espaccedilo e
ao tempo
De maior importacircncia poreacutem satildeo aquelas ciecircncias que descobrem e fazem
temaacutetica a ordem estaacutevel e imutaacutevel em determinados campos do real como a
aritmeacutetica a dialeacutetica a loacutegica e tambeacutem a retoacuterica
60 Neste confronto Agostinho rejeitava a supersticcedilatildeo do culto dos iacutedolos o fatalismo astroloacutegico as vaidades e superfluidades da cultura literaacuteria etc Para o relacionamento com o mundo pagatildeo Agostinho indicava as seguintes atitudes evitar a temeridade examinar com esmero e diligecircncia as doutrinas profanas repudiar e detestar as que eram incompatiacuteveis com ldquodoctrina christianardquo evitar a superfluidade e a erudiccedilatildeo luxuosa interessar-se pelas doutrinas que servem agrave convivecircncia humana em sociedade na medida em que isto for necessaacuterio Acima de tudo haver-se-ia de ter em mente a maacutexima ldquone quid nimisrdquo nada com excesso
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Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
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Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
30
(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
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Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
28
Na antiguidade as artes do discurso tinham um papel especial Para Agostinho
o discurso eacute obra da razatildeo
Aquilo que haacute em noacutes de dotado de razatildeo que usa a razatildeo e opera e segue o que eacute racional uma vez que por viacutenculo natural era obrigado a criar comunicaccedilotildees entre aqueles que tinham em comum a mesma razatildeo e o homem natildeo podia comunicar de modo vaacutelido a um outro homem se natildeo atraveacutes de encontros e algo como trocas de pensamentos e conceitos entatildeo viu que era necessaacuterio impor nomes aacutes coisas ou seja sons com um significado para que os homens que natildeo podiam ler os acircnimos utilizassem o sentido como inteacuterprete para reforccedilar a ligaccedilatildeo entre eles (De Ordine II 1235)61
A razatildeo institui pois o discurso por uma necessidade de comunicaccedilatildeo do pensamento
entre homens seres viventes racionais que compartilham do mesmo mundo O
discurso eacute neste sentido o exerciacutecio do commercium mental entre os homens eacute a forma
especiacutefica de comunicaccedilatildeo entre eles o modo pelo qual eles convivendo compartilham
do mesmo mundo Da necessidade do discurso vem o ato de impor nomes agraves coisas
Mas o que satildeo nomes Uma primeira indicaccedilatildeo nos eacute dada no texto sons com
significado Natildeo simples sons Mas sons com significado A intencionalidade do ato de
significar daacute pois ao som da voz a forma de nome O som eacute mateacuteria O ato de significar
eacute a forma do nome
A razatildeo produziu portanto o discurso para servir agrave comunicaccedilatildeo entre os
homens e instituiu assim o nome que eacute voz com significado A voz eacute som que vem da
boca expressatildeo oral Entretanto foi preciso a razatildeo inventar a letra e com a letra a
gramaacutetica
Mas natildeo podiam ser ouvidas as palavras dos ausentes por isso a razatildeo gerou as letras tendo distinguido e determinados sons das vocais dos das consoantes Natildeo teria podia fazer nada de tudo isso se a multidatildeo das coisas tivesse podido dilatar-se ao infinito sem um limite fixado Por isso foi advertida a utilidade do numerar como uma grande necessidade Com as duas invenccedilotildees nasceu a profissatildeo dos professores de letras e de caacutelculo tendo sido esta a infacircncia da gramaacutetica que
61 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 8-9
29
Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
30
(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
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O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
xxxxxxxxxxxx
Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
xxxxxxxxxxxxxx
40
Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
29
Varratildeo chama de aprendizagem da escritura (De Ordine II 1235)62
Como se pode ver gramaacutetica e caacutelculo satildeo disciplinas (aprendizagens) gecircmeas
A gramaacutetica nasce da invenccedilatildeo das letras que permitem dar voz aos ausentes Jaacute o
caacutelculo nasce da necessidade que a razatildeo tem de pocircr limite agrave multiplicidade das coisas
Tanto o discurso quanto o caacutelculo definem limitam disciplinam a multiplicidade
fazendo-a entrar no foco da unidade da ordem Agostinho a partir de Varratildeo define a
gramaacutetica como aprendizagem da escritura e observa que as letras ou melhor a
escritura permite dar voz agraves palavras dos ausentes
A dialeacutetica eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo ou agrave potecircncia
intelectiva da alma Tematiza natildeo a verdade das coisas mas a verdade dos raciociacutenios
Estes com efeito possuem leis proacuteprias que regem a ordem das premissas e conclusotildees
satildeo as regras dos silogismos Eacute muito importante conhecer estas leis para vir a descobrir
os sofismas que enganam a mente e induzem a conclusotildees falsas Haacute que distinguir a
verdade dos raciociacutenios e a verdade das sentenccedilas Aquela depende estritamente da
consequencialidade interna e formal do raciociacutenio esta por sua vez depende da
adequaccedilatildeo do que eacute proposto na sentenccedila com a realidade a que esta sentenccedila se
refere A loacutegica eacute a ciecircncia da definiccedilatildeo da divisatildeo e da classificaccedilatildeo Ela pode ser
empregada tanto para esclarecer quanto para enganar Eacute muito uacutetil para discernir o falso
do verdadeiro O falso consiste em dar a uma coisa um sentido que natildeo eacute seu ou um
sentido bem diferente que natildeo corresponde agrave proacutepria natureza da coisa
A dialeacutetica diziacuteamos eacute a disciplina dos conhecimentos relativos agrave razatildeo A ldquoratiordquo
(razatildeo) para Agostinho eacute certo ldquomentis aspectusrdquo (certa mirada da mente)
Razatildeo (ratio) eacute a mirada da mente (mentis aspectus) e raciociacutenio (ratiocinatio) eacute a indagaccedilatildeo da razatildeo (rationis inquisitio) ou seja o movimento (motio) da mirada da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a procura (opus est ad quaerendum) para ver (ad videndum) Quando esse olhar da mente chamado razatildeo concentrado em (conjectus) alguma coisa a vecirc (videt) denomina-se ciecircncia
62 Idem p 9-10
30
(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
33
regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
xxxxxxxxxxxx
Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
xxxxxxxxxxxxxx
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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(scientia nominatur) Quando natildeo consegue ver por mais esforccedilo que empregue chamamos ignoracircncia63
No ldquoDe ordinerdquo (II 11) Agostinho define a razatildeo tambeacutem como ldquouma atividade
da mente capaz de distinguir e de conectar as coisas que vecircm a ser conhecidasrdquo 64 Ele
considera Agostinho considera a dialeacutetica a disciplina das disciplinas Eacute que segundo ele
a dialeacutetica
Ensina a ensinar ensina a aprender nela a razatildeo revela a si mesma e torna manifesto quem ela eacute o que ela quer o que ela pode (consegue) fazer Sabe que sabe Ela natildeo soacute quer criar saacutebios mas tem tambeacutem a possibilidade de fazecirc-lo (De Ordine II 13 38) 65
Acerca da dialeacutetica Agostinho retoma a tradiccedilatildeo em duas vertentes na vertente estoica
e na vertente platocircnica Os estoicos definiam a dialeacutetica como ldquociecircncia do discutir
retamente sobre argumentos por pergunta e respostardquo 66 Ela eacute portanto a disciplina
do ὖ έ (eu dialeacutegesthai) do bem discutir ldquoDialeacutegesthairdquo em sua
composiccedilatildeo etimoloacutegica apresenta o verbo leacutego (falar) na forma medial leacutegesthai que
significa ldquovir agrave falardquo deixar e fazer vir agrave fala O prefixo ldquodiaacuterdquo jaacute indica movimento de
atravessamento Dialeacutetica diz respeito ao percurso que o discurso faz no concurso da
discussatildeo entre os homens para deixar e fazer alguma coisa vir agrave fala isto eacute vir agrave luz
evidenciar-se A dialeacutetica se empenha em ldquodiscernir a verdaderdquo Ela ldquoestuda a forccedila da
palavrardquo no que diz respeito agrave sua possibilidade de dizer a verdade Platatildeo entendeu a
dialeacutetica como um movimento ascensional em que por meio da discussatildeo as coisas vatildeo
adquirindo um ldquocrescendordquo na medida e intensidade de sua evidecircncia Eacute um movimento
que parte do mais sensiacutevel para alcanccedilar o mais inteligiacutevel as ideias ou essecircncias das
coisas67
63 Cfr Agostinho Sobre a potencialidade da alma Petroacutepolis-RJ Vozes 1997 p 126 (traduccedilatildeo modificada) 64 Apud Di Napoli G La scienza nel pensiero mediovale In Padovani U A Grande Antologia Filosofica Milano Carlo Morzarati ed 1954 p 533-534 65 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 10-11 66 Dioacutegenes Laeacutercio 7 42 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 11 67 Trata-se de fazer uma passagem da ό (doacuteksa) ndash a aparecircncia o parecer a consideraccedilatildeo a opiniatildeo ndash
para a ἐή (epistḗmē) ndash o saber competente provado que vem de uma atenccedilatildeo agrave coisa mesma e sua evidecircncia No livro VI da Repuacuteblica (509d ndash 511e) Platatildeo apresenta quatro niacuteveis nessa elevaccedilatildeo do sensiacutevel ao inteligiacutevel dois niacuteveis estatildeo ainda no patamar da doacuteksa e dois niacuteveis estatildeo jaacute no patamar da
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
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Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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O estudioso pode se beneficiar ainda do conhecimento das regras que regem a
comunicaccedilatildeo e a eloquecircncia Eacute o domiacutenio de outra disciplina da linguagem a retoacuterica
Esta trata do embelezamento da linguagem em vista da persuasatildeo No ldquoDe Ordinerdquo (13
38) Agostinho diz
Uma vez que todavia frequentemente os ignorantes para chegar a ser persuadidos pela retidatildeo pela honestidade e pela utilidade natildeo veem a puriacutessima verdade como a vecirc um espiacuterito eleito mas seguem os proacuteprio sentidos e a experiecircncia era entatildeo necessaacuterio que a estes se ensinasse natildeo soacute segundo as suas capacidades mas frequentemente e sobretudo tentando interessar-lhes A razatildeo chamou de retoacuterica a parte de si que fazia isso mais rica de leis fixas do que de pureza linguiacutestica com o seio cheio de ornamentos literaacuterios que pode esparramar sobre o povo para que se convenccedila a deixar-se guiar ao proacuteprio bem 68
Agostinho foi grande mestre de retoacuterica (oratoacuteria) Reverenciou Ciacutecero como o
mestre dos mestres nesta arte Entretanto preocupado em ser filoacutesofo e natildeo sofista
entendeu que a tarefa do orador era ldquopersuadir agrave medida que a condiccedilatildeo das coisas e
das pessoas o permita somente nas questotildees civisrdquo Agostinho se preocupava com a
tentaccedilatildeo da vaidade e do orgulho que se apoderam de muitos que se dedicam ao estudo
da retoacuterica agrave qual ele mesmo sucumbira muitas vezes em seus tempos de professor de
retoacuterica A retoacuterica diz respeito pois ao exerciacutecio do discurso no falar uns com os outros
episteme Primeiramente na dimensatildeo da doacuteksa se daacute a ἰί (eikasiacutea) a conjectura baseada nas imagens isto eacute nas aparecircncias das coisas nas impressotildees natildeo examinadas que noacutes temos delas Em
segundo lugar tambeacutem na dimensatildeo da doacuteksa mas jaacute um pouco melhor temos a ί (piacutestis) ou seja a crenccedila um fiar-se em e um firmar-se no modo como reiteradamente as coisas se nos aparecem nos pareceres que se confirmaram a partir da experiecircncia A crenccedila eacute pois uma videcircncia a videcircncia das possibilidades passadas das aparecircncias que reiteradamente se confirmaram ao olhar da mente humana
O terceiro momento jaacute no acircmbito da episteme eacute a ά (dianoia) o pensamento discursivo que discorre percorrendo o caminho de um raciociacutenio Neste niacutevel o pensamento discursivo opera com conceitos proposiccedilotildees e raciociacutenios e soacute indireta e mediatamente eacute que apreende algo de essencial das
coisas mesmas O quarto e uacuteltimo momento cume da episteme eacute a ό (noacuteesis) o pensamento
intuitivo que contempla direta e imediatamente o ό ou seja o inteligiacutevel a evidecircncia da coisa ela mesma em sua essecircncia ideia ou eidos A dialeacutetica assim muito mais do que um instrumento (organon) do pensamento eacute o proacuteprio movimento ascensional do pensar que vai da aparecircncia agrave evidecircncia do sensiacutevel ao inteligiacutevel do muacuteltiplo ao um do ente ao ser A dialeacutetica eacute pois anagogia ascensatildeo da mente Agostinho conhece este uso do entendimento da dialeacutetica Para ele a dialeacutetica eacute o meacutetodo da ascensatildeo intelectual que permite agrave mente remontar a Deus 67 Aliaacutes gramaacutetica dialeacutetica e retoacuterica satildeo degraus para subir do conhecimento das ldquocorporaliardquo (coisas corporais) agraves ldquoincorporaliardquo (coisas incorporais) Constituem portanto estudos ou exerciacutecios intelectuais que ajudam agrave mente elevar-se agrave contemplaccedilatildeo das coisas divinas 68 Cfr Agostino Il Maestro e la parola il maestro la dialettica la retorica la grammatica Milano 2004 p 20
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
xxxxxxxxxxxx
Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
xxxxxxxxxxxxxx
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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no mundo da convivecircncia puacuteblica Seu objetivo eacute persuadir por meio da beleza para a
verdade e para o bem
A linguagem portanto serve para expressar o pensamento (gramaacutetica) para
argumentar discutir e fazer encontrar a verdade das coisas (dialeacutetica) e para persuadir
os ouvintes pela beleza em vista da verdade e do bem (retoacuterica)
Haacute ainda o conhecimento das regras imutaacuteveis da matemaacutetica quer em relaccedilatildeo
a si mesmas (aritmeacutetica) quer em relaccedilatildeo agraves figuras (geometria) aos sons (muacutesica) ou
a outros movimentos (mecacircnica celeste)
Em todas estas ciecircncias que tratam das coisas o estudioso iraacute procurar mediante
o exerciacutecio da inteligecircncia alccedilar sua mente do aspecto mutaacutevel dos corpos para a
verdade imutaacutevel de Deus
O homem busca a felicidade mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa isto eacute natildeo seria
felicidade Como o homem poreacutem pode alcanccedilar a verdade Resposta dentro de si
mesmo A Verdade habita o homem interior ela eacute o proacuteprio Deus que ilumina o homem
desde dentro ldquoUbi enim inveni veritatem ibi inveni Deum meum ipsam veritatem ndash
onde encontrei a verdade ali encontrei o meu Deus que eacute a verdade mesmardquo (Confissotildees
X 24) Ora haacute uma diferenccedila ontoloacutegica entre a Verdade e o verdadeiro A verdade eacute
aquilo que possibilita o verdadeiro como verdadeiro Agostinho entende a verdade
primordialmente natildeo no sentido loacutegico como a retidatildeo do juiacutezo pois esta jaacute supotildee a
verdade ante-predicativa a verdade no sentido manifestativo ou seja a verdade no
sentido ontoloacutegico verdade eacute o que eacute ou ainda verdade eacute o que mostra aquilo que eacute
(quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religiatildeo XXXVI 66) Verdadeiro eacute aquilo que se
mostra tal como eacute ou que eacute tal como se mostra Verdade eacute aquilo que produz tal mostrar
ou seja eacute aquilo que ilumina tanto a coisa conhecida como o proacuteprio ato de conhecer
Assim como o olho do corpo conhece o visiacutevel graccedilas agrave claridade da luz sensiacutevel tambeacutem
o olho da mente o intelecto da criatura espiritual conhece o inteligiacutevel graccedilas agrave
claridade da luz divina ou seja da Verdade Ora esta Verdade natildeo eacute algo que se
submete ao juiacutezo do homem Pelo contraacuterio para que o juiacutezo do homem seja verdadeiro
isto eacute reto eacute necessaacuterio que ele esteja de acordo com as regras da verdade A estas
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
xxxxxxxxxxxx
Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
xxxxxxxxxxxxxx
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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regras Agostinho chama de rationes aeternae (razotildees eternas) pois satildeo imutaacuteveis em
si mesmas Elas datildeo acesso ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas
quer no campo teoacuterico quer no campo praacutetico Elas datildeo acesso portanto ao mundo
inteligiacutevel ao reino das ideias como chamava Platatildeo Por exemplo como pode o
homem injusto conhecer o que eacute justo De onde ele tira a ideia da justiccedila jaacute que ele eacute
injusto se natildeo da luz da Verdade que ilumina o homem sobre o que eacute justo e injusto
Onde pois estaratildeo escritas essas regras Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que eacute justo descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo natildeo possui Onde hatildeo de estar escritas senatildeo no livro daquela luz que se chama Verdade Nesse livro eacute que se baseia toda lei justa que eacute transcrita e que se transfere para o coraccedilatildeo do homem que pratica a justiccedila Natildeo como se ela emigrasse de um lado para o outro mas a modo de impressatildeo na alma Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera sem se apagar do anelrdquo (Da Trindade XIV 15 21)
A Verdade natildeo se encontra somente no iacutentimo mais iacutentimo do homem Ele
tambeacutem se encontra acima dele no sentido de transcendecirc-lo Enquanto a mente do
homem eacute mutaacutevel a Verdade eacute imutaacutevel Enquanto a mente criada eacute temporal a
Verdade incriada eacute eterna Ao ldquoin te ipsum redirdquo (entra em ti mesmo) corresponde
tambeacutem o ldquotranscende te ipsumrdquo (ultrapasse a ti mesmo) pois a verdade natildeo eacute somente
ldquointimardquo (o que haacute de mais interior) mas tambeacutem ldquosumardquo (o que haacute de mais elevado)
no homem E esta Verdade eacute Deus ldquoTu autem eras interior intimo meo et superior
summo meordquo (Tu com efeito eras mais iacutentimo que o meu proacuteprio iacutentimo e mais sublime
que o aacutepice do meu ser (Confissotildees III 6) Agostinho lembra que mais importante que
ser douto eacute ser saacutebio Age poreacutem com sabedoria aquele que tudo direciona ao
reconhecimento e ao louvor de Deus
A exemplo de outros Padres da Igreja69 Agostinho considerava que o acervo de
verdades da cultura dos natildeo cristatildeos podia e devia ser apropriado pelos cristatildeos assim
69 No acircmbito do cristianismo chamamos de ldquoera patriacutesticardquo o tempo dos ldquopadres da Igrejardquo Denominam-se ldquopadres da Igrejardquo determinados escritores da antiguidade cristatilde cleacuterigos e leigos em cujas obras a doutrina cristatilde foi primeiramente elaborada exposta e conservada De seus escritos surgiu toda uma elaboraccedilatildeo da vida e da doutrina da moral dos sacramentos do governo da ascese e da miacutestica que veio a dar uma feiccedilatildeo concreta e institucional ao cristianismo Costuma-se delimitar o teacutermino da era patriacutestica da seguinte maneira no ocidente com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente com a morte de Joatildeo Damasceno (749) As trecircs grandes fases da era patriacutestica satildeo 1 Padres Apostoacutelicos ndash satildeo
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
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O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
xxxxxxxxxxxx
Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
xxxxxxxxxxxxxx
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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como os hebreus no ecircxodo do Egito se apossou de tesouros destes sob ordem divina
(cf Ex 3 22) No entanto era preciso lembrar que segundo diz o Apoacutestolo (Paulo) ldquoa
ciecircncia incha mas eacute a caridade que edificardquo (1 Cor 8 1) O cristatildeo assim nunca deve
esquecer o seu Mestre que era manso e humilde de coraccedilatildeo Sua principal tarefa eacute a
edificaccedilatildeo da caridade Ele deve estar arraigado e fundado no amor A doutrina cristatilde
mediante todos os seus esforccedilos tem como tarefa a compreensatildeo da largura do
comprimento da altura e da profundidade da revelaccedilatildeo que se daacute em Cristo o Deus
crucificado O cristatildeo realiza esta busca purificando-se pela vida ativa na qual ele se
dedica a fazer o bem em Cristo crescendo na perfeiccedilatildeo da vida contemplativa pela qual
ele chega a conhecer o amor que excede todo o conhecimento Quem assim se
confronta com as doutrinas natildeo cristatildes e se dedica agrave doutrina cristatilde este reconhece a
imensa superioridade da Escritura sobre todo o acervo cultural dos pagatildeos Nela ele
encontraraacute a plenitude da ciecircncia de Cristo
xxxxxxxxxxxxxxx
O livro III do ldquoDe doctrina christianardquo trata das dificuldades a serem dissipadas
nas Escrituras Trata antes de tudo das ambiguidades que podem provir dos termos
tomados em sentido proacuteprio ou dos termos tomados em sentido figurado A
ambiguidade dos termos proacuteprios podem por sua vez ser provenientes da pontuaccedilatildeo
ou da pronuacutencia Quando se trata destas ambiguidades haacute que se recorrer agrave criacutetica
textual buscando remontar ao texto original compreender o contexto significativo
captar a intencionalidade do autor e confrontar as diversas traduccedilotildees Estas
ambiguidades satildeo resolvidas com relativa facilidade Mais difiacuteceis satildeo aquelas que
aqueles que conviveram ainda com os apoacutestolos (sec I) 2 Padres Apologetas ou Apologistas ndash defensores do cristianismo diante dos pagatildeos (sobretudo seacutec II) 3 Padres Dogmaacuteticos ndash defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboraccedilatildeo dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do seacuteculo III) A era patriacutestica constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregaccedilatildeo cristatilde em seu fervor se expandem pelo mundo antigo (a oikoumene) A expansatildeo da mensagem cristatilde a revelaccedilatildeo e a feacute em Cristo pelo espaccedilo geograacutefico e espiritual do mundo helecircnico tornou inevitaacutevel o encontroconfronto entre cristianismo e filosofia Daiacute a importacircncia da era patriacutestica tanto para a histoacuteria do cristianismo quanto para a histoacuteria da filosofia
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derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
xxxxxxxxxxxx
Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
xxxxxxxxxxxxxx
40
Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
41
provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
35
derivam de termos tomados em sentido figurado Eacute o que em segundo lugar trata o
livro III
No caso das ambiguidades devidas a termos figurados satildeo necessaacuterios cuidado
e atenccedilatildeo Antes de tudo natildeo haacute que se tomar expressotildees figuradas em sentido literal
Aquele cuja inteligecircncia se torna escrava da letra como que morre para a compreensatildeo
viva do espiacuterito Isto Agostinho lembra citando a palavra do Apoacutestolo (Paulo) que diz
ldquoA letra mata e o espiacuterito vivificardquo (2 Cor 3 6) A compreensatildeo carnal eacute uma verdadeira
morte para a alma O cristianismo eacute essencialmente a proclamaccedilatildeo da liberdade dos
filhos de Deus Realizaccedilatildeo singular desta liberdade eacute a instauraccedilatildeo de uma compreensatildeo
espiritual que liberta os israelitas da servidatildeo aos signos uacuteteis da Lei e os gentios da
servidatildeo aos signos inuacuteteis do culto idolaacutetrico Sob a servidatildeo do sinal vive quem faz ou
venera alguma coisa simboacutelica sem saber o que ela significa isto eacute sem estar no
horizonte da compreensatildeo do sentido que daacute significa a ela70
Ao se ler os textos das Escrituras Sagradas torna-se necessaacuterio natildeo tomar uma
expressatildeo figurada em sentido proacuteprio e vice versa tomar uma expressatildeo em sentido
proacuteprio como figurada Para isto haacute que se observar uma regra geral tudo o que natildeo
puder se referir em sentido proacuteprio nem agrave honestidade dos costumes pautados pelo
duplo preceito do amor nem agrave verdade da feacute deve ser tomado em sentido figurado Ao
se avaliar a honestidade dos costumes eacute mister natildeo julgar pautando-se pelos criteacuterios
dos costumes culturais em que se estaacute inserido Criteacuterio vaacutelido eacute dado pela proacutepria
Escritura a qual prescreve a caridade (caritas) e condena a cobiccedila (cupiditas) Agostinho
daacute alguns princiacutepios para esclarecer algumas questotildees que entranham agrave primeira vista
um contra-sentido Primeiro princiacutepio constatar a destruiccedilatildeo da concupiscecircncia Isto se
daacute por exemplo quando textos falam em sentido figurado da ira divina e da
70 Para o povo da antiga alianccedila a Lei tinha uma funccedilatildeo pedagoacutegica Graccedilas a ela os judeus estavam muito proacuteximos das realidade espirituais embora natildeo compreendiam espiritualmente os significados de suas ofertas e siacutembolos temporais e carnais Quando poreacutem chegou a plenitude dos tempos os fieis israelitas que acolheram a revelaccedilatildeo divina pelo misteacuterio da encarnaccedilatildeo do Verbo foram levados graccedilas ao dom do Espiacuterito Santo a uma inteligecircncia dos misteacuterios que prefiguravam a nova e eterna alianccedila Aos pagatildeos a doutrina cristatilde veio arrancar da vaidade do culto dos iacutedolos ergueu a inteligecircncia ao sentido espiritual conduzindo ao culto do uacutenico Deus Comparados com os sinais do judaiacutesmo e do paganismo os sinais cristatildeos satildeo em nuacutemero reduzido faacuteceis de celebrar sublimes agrave compreensatildeo e simples para serem realizados A vida sacramental e lituacutergica cristatilde prima pela simplicidade e beleza Sublimes e profundos satildeo os seus poucos sacramentos especialmente os do Batismo e da Eucaristia
36
mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
37
O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
xxxxxxxxxxxx
Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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mortificaccedilatildeo ou crucifixatildeo da carne quando passagens rigorosas e duras visam destruir
a concupiscecircncia Segundo princiacutepio verificar com que intenccedilatildeo uma accedilatildeo estaacute realizada
quanto agrave sua moralidade Terceiro princiacutepio eacute preciso examinar o que se lecirc com
minuciosa atenccedilatildeo ateacute que a interpretaccedilatildeo seja conduzida a esse fim o reino da
caridade Quarto princiacutepio tudo interpretar pelo criteacuterio da caridade Quando a
Escritura ordena algo que fere este princiacutepio esta expressatildeo deve ser tomada em
sentido figurado Quinto princiacutepio natildeo imitar atualmente os costumes do Antigo
Testamento visto que a vinda de Cristo estabelece uma nova ordem eacutetica Sexto
princiacutepio desculpar com humildade as faltas dos antigos especialmente dos grandes
homens lembrados da admoestaccedilatildeo do Apoacutestolo ldquoaquele que julga estar de peacute tome
cuidado para natildeo cairrdquo (1 Cor 10 12)
Uma dificuldade que o estudioso da Escritura iraacute encontrar eacute a polissemia das
palavras Uma palavra pode apresentar sentidos diferentes quer sejam contraacuterios quer
sejam apenas diversos Quando se deparar com uma pluralidade de sentidos possiacuteveis
o estudioso da Escritura procuraraacute chegar ao sentido que possa estar mais proacuteximo do
pensamento do autor e que natildeo esteja em incompatibilidade com a regra da feacute No caso
de este sentido ser apenas plausiacutevel e natildeo plenamente certo haacute que se procurar pelo
menos basear-se no testemunho de outras passagens mais claras das Escrituras Um
outro recurso muito uacutetil para se esclarecer ambiguidades de termos tomados em
sentido figurado eacute conhecer bem os tropos ou figuras de pensamento tais como a
alegoria o enigma a paraacutebola a metaacutefora a catequese a ironia a antiacutefrase etc
Num terceiro momento o livro III traz uma exposiccedilatildeo e uma discussatildeo de regras
que o donatista Ticocircnio (c 400) em seu ldquoliber regularumrdquo apresenta para descobrir o
sentido das passagens obscuras da Biacuteblia (Regulae Mysticae)
Agostinho termina o livro III concluindo que nas palavras tomadas em sentido
figurado como nas expressotildees metafoacutericas eacute preciso entender uma coisa por outra Por
fim ele aconselha aos estudiosos das Escrituras natildeo somente tomarem conhecimento
delas e das categorias de expressatildeo a examinarem com cuidado o pensamento
apresentado e a reterem na memoacuteria mais ainda ndash e isto de modo indispensaacutevel ndash a
rezarem para as compreender
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
38
cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
39
persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
xxxxxxxxxxxx
Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
xxxxxxxxxxxxxx
40
Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
41
provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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O livro IV trata da maneira de ensinar a ldquodoctrina christianardquo Eacute um tratado de
oratoacuteria sacra
O orador sacro deve aproveitar o que for uacutetil na retoacuterica profana A arte retoacuterica
possui duplo efeito o forte poder de persuadir seja para o mal seja para o bem O
pregador iraacute zelar para que a forccedila persuasiva da palavra esteja a serviccedilo da verdade Haacute
uma certa relatividade quanto agrave aprendizagem das regras da eloquecircncia tais como eram
ensinadas na cultura romana claacutessica uma vez que estas regras podem ser operadas de
modo atemaacutetico e um espiacuterito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloquecircncia
lendo ou escutando bons oradores mais do que estudando os seus preceitos
O aprendiz deveraacute exercitar-se tambeacutem no escrever no ditar no compor e expor
as ideias segundo a regra da feacute e a piedade O pregador eacute doutor e expositor das divinas
Escrituras Ele deve ensinar o bem e refutar o mal Deve atingir a todos cada qual de
maneira apropriada Deve conquistar o hostil motivar o indiferente informar o
ignorante manter o ouvinte beneacutevolo na escuta expor com coerecircncia e clareza a
doutrina
Agostinho poreacutem afirma que mais vale a sabedoria sem eloquecircncia que a
eloquecircncia vazia e inuacutetil No entanto o ideal eacute unir a eloquecircncia agrave sabedoria Homem
saacutebio eacute aquele que aprofunda o coraccedilatildeo das Escrituras captando o acircmago do sentido
com os olhos de seu coraccedilatildeo isto eacute com o acircmago de seu ser Os que falam
eloquentemente satildeo escutados com prazer e os que falam sabiamente com proveito
Pode-se constatar que nas Escrituras os hagioacutegrafos unem a sabedoria com a
eloquecircncia Eacute proacuteprio da eloquecircncia biacuteblica a humildade e seriedade a suavidade e a
sobriedade O hiponense analisa a eloquecircncia biacuteblica com base em textos paulinos e em
textos dos profetas Em Rm 5 3-5 as palavras ou ideias se sucedem de grau em grau
uma depois da outra numa circularidade perfeita71 Em 2 Cor 11 16-30 a sabedoria e a
eloquecircncia satildeo fluentes correndo como uma torrente72 Os escritos dos profetas estatildeo
71 ldquoE natildeo somente isto mas tambeacutem nos gloriamos nas tribulaccedilotildees sabendo que a tribulaccedilatildeo produz a paciecircncia e a paciecircncia a experiecircncia e a experiecircncia a esperanccedila E a esperanccedila natildeo traz confusatildeo porquanto o amor de Deus estaacute derramado em nossos coraccedilotildees pelo Espiacuterito Santo que nos foi dadordquo 72 ldquoOutra vez digo Ningueacutem me julgue insensato ou entatildeo recebei-me como insensato para que tambeacutem me glorie um pouco O que digo natildeo o digo segundo o Senhor mas como por loucura nesta confianccedila de gloriar-me Pois que muitos se gloriam segundo a carne eu tambeacutem me gloriarei Porque sendo voacutes
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
xxxxxxxxxxxx
Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
xxxxxxxxxxxxxx
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
41
provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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cheios de figuras Estas se mostram luminosas para aqueles que as desvendam Satildeo
linguagem poeacutetica carregada de misteacuterio O comentador haveraacute tornar esta linguagem
compreensiacutevel aos ouvintes expondo de modo mais claro possiacutevel
Natildeo se deve imitar as formas obscuras das Escrituras Sagradas mas imitar-lhes
o fundo Quanto agraves dificuldades sutis o comentador iraacute reservar sua discussatildeo a ciacuterculos
de estudo A grande preocupaccedilatildeo do expositor seraacute a clareza Aquele que ensina evitaraacute
todas as palavras que natildeo ensinam Na pregaccedilatildeo mais do que na conversa eacute preciso se
preocupar sem interrupccedilatildeo de se fazer compreender O orador deve perceber quando
o povo estaacute compreendendo e quando natildeo estaacute Ele deveraacute cuidar para natildeo ser
cansativo nem trivial Uma vez que a liccedilatildeo foi compreendida o expositor deve dar-se por
satisfeito O orador antes de tudo amar nas palavras a verdade e natildeo as proacuteprias
palavras Ele iraacute temperar o alimento da Palavra com a elegacircncia da eloquecircncia
Trecircs satildeo os objetivos do orador instruir agradar e convencer Instruir eacute o
principal objetivo Quando poreacutem os ouvintes jaacute sabem o que devem fazer e natildeo o
fazem eacute preciso convencer Para ensinar usa-se o estilo simples para enaltecer ou
desprezar o estilo temperado e para determinar agrave accedilatildeo e fazer voltar agrave verdade o
espiacuterito desviado emprega-se o estilo sublime O orador sacro iraacute avaliar os trecircs estilos
para manter o ouvinte na escuta O discurso poreacutem tomaraacute o nome do gecircnero
dominante O orador deveraacute fazer-se escutar com inteligecircncia com prazer e com
docilidade Ele deveraacute dar estas trecircs qualidades a cada um dos gecircneros de discurso No
estilo simples o que persuade eacute a verdade demonstrada sem ornamentos mas que
assim nua e desarmada se mostra invenciacutevel e cheia de encantos O estilo temperado
sensatos de boa mente tolerais os insensatos Pois sois sofredores se algueacutem vos potildee em servidatildeo se algueacutem vos devora se algueacutem vos apanha se algueacutem se exalta se algueacutem vos fere no rosto Envergonhado o digo como se noacutes focircssemos fracos mas no que qualquer tem ousadia (com insensatez falo) tambeacutem eu tenho ousadia Satildeo hebreus tambeacutem eu Satildeo israelitas tambeacutem eu Satildeo descendecircncia de Abraatildeo tambeacutem eu Satildeo ministros de Cristo (falo como fora de mim) eu ainda mais em trabalhos muito mais em accediloites mais do que eles em prisotildees muito mais em perigo de morte muitas vezes Recebi dos judeus cinco quarentenas de accediloites menos um Trecircs vezes fui accediloitado com varas uma vez fui apedrejado trecircs vezes sofri naufraacutegio uma noite e um dia passei no abismo Em viagens muitas vezes em perigos de rios em perigos de salteadores em perigos dos da minha naccedilatildeo em perigos dos gentios em perigos na cidade em perigos no deserto em perigos no mar em perigos entre os falsos irmatildeos Em trabalhos e fadiga em vigiacutelias muitas vezes em fome e sede em jejum muitas vezes em frio e nudez Aleacutem das coisas exteriores me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas Quem enfraquece que eu tambeacutem natildeo enfraqueccedila Quem se escandaliza que eu me natildeo abrase Se conveacutem gloriar-me gloriar-me-ei no que diz respeito agrave minha fraquezardquo
39
persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
xxxxxxxxxxxx
Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
xxxxxxxxxxxxxx
40
Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
41
provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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persuade o ouvinte a escutar com docilidade e o inspira ao apego sincero e irremoviacutevel
agraves coisas que se louva e o afastamento e o horror agraves coisas que se condena No estilo
sublime os coraccedilotildees endurecidos satildeo comovidos e determinados para uma mudanccedila de
vida e uma nova conduta
Na assembleia cristatilde natildeo se haacute de empregar o estilo pomposo mas ir-se-aacute
cultivar a disciplina de uma eloquecircncia mais seacuteria e soacutebria O pregador iraacute falar da justiccedila
da santidade da virtude Agostinho insiste que o pregador deveraacute ser um orante antes
de ser um orador Ele deve ter consciecircncia de que ldquonoacutes e nossas palavras estamos nas
matildeos de Deusrdquo (Sb 7 16) e ainda que eacute o Espiacuterito de Deus que falaraacute nele Por isso antes
de tomar a palavra ele deveraacute rezar para saber derramar para fora o que hauriu e
comunicar aquilo de que se impregnou Na assembleia cristatilde trata-se de assuntos que
atingem de modo decisivo e definitivo a existecircncia humana Dever-se-aacute falar deles com
correspondente dignidade No fundo todos os temas tratados na igreja satildeo grandes e
devem ser ditos com seriedade e encanto O pregador deve ter claro que a vida tem um
peso bem maior do que a mais sublime elevaccedilatildeo da linguagem Ele deve por outro lado
apegar-se mais agrave verdade do que agrave forma persuadindo-se de que nunca se fala tatildeo bem
do que quando se diz a verdade
xxxxxxxxxxxx
Para Agostinho a compreensatildeo das Sagradas Escrituras se daacute a partir de uma
caminhada de libertaccedilatildeo desde a e para a verdade de Cristo Eacute uma caminhada de
iluminaccedilatildeo em que ele vai compreendendo aos poucos a largura o comprimento a
altura e a profundidade do misteacuterio de Cristo progredindo cada vez mais no amor-
caridade que eacute a plenitude das Escrituras O importante para o leitor destas natildeo eacute se
tornar douto mas sim saacutebio
xxxxxxxxxxxxxx
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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Terminemos esta exposiccedilatildeo sobre Agostinho e a hermenecircutica com uma citaccedilatildeo
do bispo de Hipona em que este recorda aos seus ouvintes a necessidade de ouvir o
discurso de Deus antes que o seu proacuteprio discurso que eacute apenas evocativo e alusivo
Recordai-vos que um soacute eacute o discurso de Deus que se desenvolve em toda a Sagrada Escritura e um soacute eacute o Verbo que ressoa sobre a boca de todos os escritores santos o qual sendo no princiacutepio Deus junto de Deus natildeo conhece silabaccedilatildeo e eacute fora do tempo (Enarrationes in psalmos 103 41)
O grande desafio do homem eacute pois receber a mensagem do uacutenico Verbo que fala por
miriacuteades de bocas no livro da criaccedilatildeo e tambeacutem na Sagrada Escritura Aliaacutes em toda a
interpretaccedilatildeo estaacute em jogo esta capacidade de o homem na unidade da palavra dita
apreender a multiplicidade dos sentidos ocultos e de na multiplicidade dos significados
recolher a unidade do sentido Captar a multiplicidade na unidade e unidade na
multiplicidade para isso serve a leitura que a mente faz de todo o discurso na escuta
do Verbo Assim ao comentar nas Confissotildees o versiacuteculo biacuteblico ldquocrescei e multiplicai-
vosrdquo Agostinho intui nestas palavras o mandato e o envio que rege toda a compreensatildeo
e interpretaccedilatildeo da Sagrada Escritura ou seja toda a sua hermenecircutica
Sei que por meio de sinais sensiacuteveis se significam diversas coisas que o nosso espiacuterito percebe de uma uacutenica maneira e que pelo contraacuterio o espiacuterito entende de muitas maneira o que os sinais sensiacuteveis representam de uma soacute Assim por exemplo o amor de Deus e do proacuteximo com quantas metaacuteforas em que inuacutemeras liacutenguas ndash e em cada liacutengua com que inuacutemeras expressotildees ndash se enuncia de maneira concreta
Eacute neste sentido que ldquocrescem e se multiplicam os peixes das aacuteguasrdquo
Mas tu leitor quem quer que sejas atende novamente A escritura declara de uma soacute maneira e a nossa voz tambeacutem de um soacute modo pronuncia estas palavras ldquoNo princiacutepio criou Deus o ceacuteu e a terrardquo E no entanto natildeo eacute verdade que se interpretam sob vaacuterios aspectos natildeo sofisticada e falsamente mas segundo a variedade de pontos de vista legiacutetimos (Confissotildees 12 24)
Assim o mandato divino ldquocrescei e multiplicai-vosrdquo Agostinho aplica ao exerciacutecio
hermenecircutico da mensagem da Palavra de Deus Esta palavra ele toma como uma
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s
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provocaccedilatildeo e uma exigecircncia de exposiccedilotildees interpretativas da revelaccedilatildeo que sejam
variadas que sejam plurais A revelaccedilatildeo soacute eacute recebida de modo apropriado se o um
sentido for exposto em muacuteltiplos modos Como os homens vivem e falam uns com os
outros na pluralidade assim tambeacutem deveria os muacuteltiplos conhecimentos viver e falar
uns com os outros No diaacutelogo dos diferentes espiacuteritos eacute que o um espiacuterito vem agrave
linguagem Heinrich Rombach que escreveu um livro chamado ldquoVida do Espiacuteritordquo a
propoacutesito deste texto de Agostinho conclui
Quem entende isso entenderaacute melhor o que quer dizer ldquoVida do Espiacuteritordquo Ele vai natildeo somente tolerar mas promover e exigir outras concepccedilotildees fundamentais E como o diaacutelogo vai ldquopara laacute e para caacuterdquo sem abandonar seu lugar assim ele iraacute ldquopara laacute e para caacuterdquo entre as interpretaccedilotildees de sentido sem perder-se e sem perder sua convicccedilatildeo 73
Terminemos entatildeo esta exposiccedilatildeo com uma fala diversa que faz ressoar esta mesma
consideraccedilatildeo de H Rombach a saber uma declaraccedilatildeo de E Carneiro Leatildeo sobre a
importacircncia da conversa e do diaacutelogo no acontecer da conversa na vida humana
Pois tudo que o homem conhece sente pensa sabe ou faz soacute se torna realmente significativo soacute adquire sentido essencial se houver possibilidade de conversa e diaacutelogo na medida em que dele se puder falar a partir da linguagem Natildeo haacute verdade no singular fora de toda e qualquer envergadura de discurso Toda verdade eacute plural A verdade soacute se daacute por existirmos na linguagem do plural numa correnteza que nos arrasta para uma convivecircncia de diaacutelogo Enquanto vivermos pensarmos e agirmos na Terra soacute faz sentido o que pudermos falar uns com os outros o que puder receber um significado na e da linguagem 74
73 Rombach H Vida do Espiacuterito p 295 74 Leatildeo Emmanuel Carneiro Aprendendo a pensar Vol II Petroacutepolis Vozes 2000 p 103s