hello brasil! - notas de um psicanalista europeu viajando ao brasil - contardo calligaris.pdf

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  • . '

  • . P.qulpe de ruliulo: Capa: Yvoty Macambln Rc.vid.o: Eliana Antonloli Bdlton4u: Araide Sanche.s

    Dlr-e~lo executiva: Monica Ma1alhles Selncman l!dltores: Manoel Tosta Berlinclr.

    Maria Cristina 1Uo5 Maga lhies

  • Informaes bibliogrficas

    Ttulo

    Autor Editora Original de Digitalizado ISBN Num. pgs.

    Helio Brasil! notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil O sexto lobo Contardo Calligaris Escuta, 1991 Universidade do Texas 30 ago 2008 857137032X, 9788571370326 173 pginas

    ' \ t I

  • Contardo CaUigaris

    HELLO BRASIL! Notas de um psicanalista europeu

    viajando ao Brasil

    > escuta

  • SUMRIO

    "Este pas nio presta" . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 O escru vo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 Crianas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41 Quero goz.ar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51 Funo paterna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59 Fundaes ........................... , . . . . . 83 Marginalidade e criminalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109 Consumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123 Notas de viagem . . .. . ................... ; . . . . 131 O sintoma nadonal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151 Olvida externa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1.57 Anivederci ... ....... . .......... , . . . . . . . . . . . 169

  • Em 1985, dois amigos, Raul Sdarretta, de Buenos Aires, e Aldufsio Moreira de Souza, de Porto Alegre, convidaram-me, junto com alguns colegas, para uma breve temporada de trabalho na Argentina e ~o Bra-sil. Nessu poca, eu no falava sequer uma palavra de portugus, e na verdade ignorava at a indicao no mapa, se no a existncia, da cidade de Porto Alegre.

    Sabia, do Brasil, o que sabe um honesto leitor co-tidiano do Le Monde. Curiosamente, desde esta pri-meira viagem, nasceu uma paixo pelo Brasil, que me levou a voltar trs vezes em 1986, e, a partir de 87, a cada dois meses. Isso at uma situao na qual me transformei num impossvel viajante, e tive que. deci-dir entre no vir mais ou vir mesmo, e deixar a Fran-a. Deciso que tomei em janeiro de 89.

    Que a paixo por esta terra se confundisse com a paixo por uma mulher algo que no me parece comprometer nenhum dos dois amores. Pelo que vou en tendendo da minha paixo brasileira, alis, esta

  • 12 tiELLO BRASIL!

    terra, mais do que qualquer outra, talvez seja desti-nada a ser amada como um corpo feminino.

    O escrito que segue ento um escrito de amor: ao mesmo tempo uma declarao, uma elegia e, na-turalmente, tambm uma queixa. Se tivesse que per-tencer a um gnero literrio, gostaria que fosse rece-bido como uma .. Viagem ao Brasil".

  • "ESTE PArs NO PRESTA"

    No fim de 881 estou com ~ impre~s~o de me insi~ n\Jar no pafs a contrafluxo. Quanto mais vou decidin-do me estabelecer no Brasil .. mais me deparo com a estupefao dos amigos brasileiros. Acredito que no tenha nada ou pouco de cimes na calorosa tentativa de me dissuadir: parece mesmo que eles esto ante-vendo e querendo prevenir a necessria repetio de uma ecep..a.o secular.

    Nesta dissuaso volta assiduamente uma frase: "Este pas n~ presta". uma frase comum at a ba-nalidade; ela aparece na conversa ocasional com cada motorista de txi, e inevitavelmente ressoa nas pala vras das pessoas mesmas que deveriam ter e tm o maior interesse na minha presena nc;> Brasil. Estra-nha-me ainda a facilidade com a qual, em situaes no extremas, ~ enunciado - como prova e demons traao - um projeto de emigrar: aqui no presta, vamos embora para onde preste.

    E finalmente entendo por que esta frase me deixa a cada vez perplexo. Pouco importam, com efeito, as

  • )4 HELLO BRAS ILI

    razOes que cada um agrega para justificar que o pafs no presta: a enunciao mesma da frase configura um enigma. Pois como possvel enunci-la? De on-de ser que se pode dizer "Este pas no presta"? A frase pareceria natural se fosse de um estrangeiro, mas como enunciao dos brasileiros mesmos, ela surpreende.

    Parece-me que um europeu poderia afirmar que um governo no presta, que a situao econmica no presta, ou mesmo que o povo no presta ..mas ..d.i-ficilmente diria que o seu pafs n9_presta. Deve haver alguma razo que coloca os brasileiros~ com respeito prpria identiCiade nacional,. em urna curiosa ex-cluso interna, que permite articular a frase que me interpela. Esta razo no deve dafar de hoje .

    . A ditadura propunha um ''Brasil, ame-o o dei-xe-o", que tambm soa estranho aos meus ouvidos. Um fascismo europeu teria dito: "Ame-o ou te ma-to". Tambm ningum, imagino, teria achado a res-posta fa mosa "O lt imo a sair apague as luzes", pois um europeu antes responderia pela reivindicao de uma filiao que no a~eita a alternativa proposta. A histria do Partido Comunista Italiano, durante a primeira dcada do fascismo, exemplo disso: 'uma incessante reconstruo do quadro organizntivo, re-gularmente descoberto e desmanchado, se justificava antes de mais nada para afirmar o direito, o dever e a necessidade de ficar.

    Algo em suma me parece testemunhar, nesta fra-se, um problema de - se me permitido um neolo-gismo - umtegrao. No digo de integrao, pois no se trata de urna dificuldade em ocultar ou uni-formar as diferenas originrias das diversas etnias.

  • "ESTE PAS NO PR6ST A" IS

    Tamb~m no se trata - evidente - de uma falta qualquer de sentiment9 patritico. Trata-se de uma dificuldade relativa ao UM. ao qual uma nao refere os seus filhos, relativa a'O significante nacional ria sua histria e na sua s.fgnificao. . .

    Em outras palavras: se os brasileiros podiam falar do Brasil como se fossem estrangeiros, ~ que de al-guma forma "Brasil", o UM das suas diferenas devia ser algo mais ou algo menos do que um trao identifi-catrio fundando a filiao nacional. Pois um tal tra-o t1ormalmente no se discute, assim como normal-mente um sujeit no discute o seu sobrenome.

    Como diabo funciona ento um significante na-cional que permite que quem se reclama dele enun-cie "este pafs no presta"? Encontrei eco a esta ex-presso de uma excluso interna em formas s vezes extremas de execrao ou ludbrio nas pginas dos jornais; lemhro por exemplo de uma reportagem da revista Veja, que se impunha na capa, sobre a fuga dos brasileiros para o extrior, e de outra capa, de ls to , inacreditvel, onde s via o Brasil derretendo e sumindo pelo ralo do esgoto.

    Resistindo ao contrafluxo, ento, imaginei duas figuras brasileiras que pudessem, nos corredores es-treitos dos aeroportos, lanar-me 14este pars no pres-ta": o colonizador e o colono.

    Estas duas figuras, que desde ento no me deixa-ram e com as quais fui pensando o Brasil; devem ser entendidas como figuras retricas~ na minha leitura, as figuras retricas dominantes do discurso brasileiro. Elas tm uma relao com a histria, pois certamente

  • 16 lllELLO l.iRASJL~

    a histria da nao que compe o quadro, a estru-tura dos lugares possfveis de enunciao no Brasil.

    Se entende que o povo brasileiro no se divide em colonizadores e colonos. Poderamos dizer que cada um tem em si um colonizador e um colono, mas ainda seria psicolgico e impreciso. O certo seria dizer que, no discurso de cada brasileiro, seja qua~ for a sua histria ou a sua posi.o social, parecem falar o colo-nizador e o colono.

    O coJoniz~ador

    aquele que veio impor a sua ifngua a uma no-va terra, ou seja, ao mesmo te~po demonstrar a

    Esclaf'clmento te6rico Nu piei nas q~ "C~m. trt ler..sc-i de lngua ma lema. E ta.lvc;r; Yllll\a a pc

    na ~idarcccr o c:onc~ito. una q~.ii l lo aobrc a qual butalllc se CJC:RYCII c fa Jou. I!tilite em par1 i cu lar uma c:onf~riftda feita em Israel por 1.1m P'lcanaliata (nnc&, Charlu: Mdman, que me parece 'e r o que 11e dlssc de mclboc &Obre ou-aunto (cf. in; lanta&e et l'incoiUCitnt, Aa. freudiennc, Paria, 1990). Para .a psi cn"i'c, 1 J{np matcrn nlo ~ propritmcnlc nem a lfn&u que a mie Calou para a 1u1 criana, nem a lfngua na q~~&l 4"1dl 11m apre!ldcu a falar. f!la ~ a Uncua na qual ucb um lm;Jnama o corpo m1tcmo como lmJIO"!...:l. De1te ponto de vil ta, n6o 6 uma tlngua Mlural e ainda mcnOii nacional; ltlta-sc de lima llnJua 5ln guiar, talvez: babtlica: a Jfn,ua inconKienle qual adl um imti'tu1 a ~imendo 1imbdliea de um pal que o a"ite numa fili~, A rondilo de lnterdlu alJO que puA a ~er o corpo matemo. Podem ali~ dc5tc ponto de vlata, ser c"amada d_e lfoaua paterna, nlo roaac a colncldencla pela qual a Jfnpa quo inlctdlla ~ a m ma que permite 50nhar no que (oi intcr

  • "ESTI! l'AfS NO PRESTA" 17

    potncia paterna (a lngua do pai saber fazer gozar um outro corpo do que o corpo materno) e exerc-la longe do pai. Pois talvez o pai interdite s o corpo da me ptria, e aqui, longe dele, a sua potncia herdada e exportada abra-me o acesso a um corpo que ele no prpibiu. .

    Ele o verdadeiro explorador, no fantstico equ-voco que s a lngua portuguesa - que eu saiba -prope, onde explorar uma terra ser o primeiro a c{:>nhec-la e tambm arrancar os seus recursos. Ele maneja a nova terra como se pode sacudir o corpo de uma mulher possuda, gritando: "Goza Brasil", e es-perando O seu prprio gozo do momento no qual a

    ror duas rn6cs: primeiro, porque: 11 el!rvtu ra simbl ica que nos fu 1ujc:itos -por ser linaular - no deixa de ser tomwda numa rede: maior, cultura l, que~ pri-vilegiadamente a rtdc que uma histria nacional Ofl&Riza; accundo, porque 1c cada um dispe de um pai sin~:ul11 r, o:s lc: p;~i ~,Cmprc: vak na n1cdida em q11c: se ilu"re de a lc uma ma neira na n:dc soci~l. que tan1bl!m l privilc:"i ad.am~nu: na-cional (vejamlc, como contra-exemplo, u dilk~>ldadcs de orianiuo\o ' ubjct iva com as quais ac: dcpua o s ujeito cujo pai ni o encontra no socia l nenhum tipo de reconhecimento, por exemplo achando-se numa mis~ria real que o pri~r& de cida dania). .

    Tudo l51io lmplita que 1e possa, liCill cxtraplar demasiado, considerar que a llnsua matem/patcmalieja n:prcsc:n leda pela lin&ua u cional.

    Coahecemos bem, por uemplo, o caso de eml&rlnlu que procur1m a naiI lts que falem 011 pelo menos posnn1 escutar u s uas lln&uu nacionai' ori&in' rias. 1\ procura conccmc I ICnj,'UI mate rn11; ~ ccr1o que ela pode b veze' 'c r 11ma annadilha, pois, analisando-'e 1111 l uQ tlnt:ua ori&inria, o aufcilo pode fncr a triste economia de lntcnoear a posi\iO gn,ular na qual o "" csutulo de cmi-lrlnlc o coloca. Corno " ele quiic:NiC continuar se confrontando com a Hngua que i.utltul11 o pai c intcrdilo11 a mie, quando j6 cuolheu, por uemplo, de falar ou Ir., o, quem "bc, d tcnlar assim um accuo poufvclao corpo matemo c: uma desmentida do Interdito plllcrno.

    l!dstcm cxcmt*>' ck crltorc:s (lkckcll, Nabokov etc.) que 1 consc&ul-ram .aollar a caneta ab1ndonando a prpria Unc ua materna , c cieolhcnllo outra na qual talvez 1 mie n'o fo"e In te rdilgdQ ou o pai u l talnu.sc un1 JlOuco.

    Jlux 1cntltlu , o.lu 1)t1111o de vista llu t~l~m"4, ~urniJe rr 'I'"~ muJar J lln 1~ llOUIIIICt 11 111 jcllo para muLiar

  • 18 lmLLO BRASIL!

    mulher esgotada se npngnr em suas mfios - prova definitiva da potncia do estuprador.

    O colonizador deve ser quem inventou, ainda no barco, us piadas de portugueses. Pois esta extraor-dinria proliferao de chistes ao redor de uma vti-ma escolhida, embora seja freqente (os belgas para os franceses, os berneses para os genebrinos etc.), apresenta a caracterfstica nica de ter como vrtima o povo mesmo do qual se origina a maioria dos brasi-leiros. E as piadas de portugueses parecem-me todas redutveis a um denominador comum, do qual fica emblemtica a histria das portuguesas de grandes seios. Sabem por qu? Porque os portugueses, ao invs de chupar, sopram. Os portugueses so os que ficaram, no vieram para c c por isso so para sem-pre os que no sabem e nunca vo saber gozar direi-to, pois renunciaram a gozar de um corpo que no lhe fosse talvez proibido.

    Mas o colonizador triste tambm, pois, de qual-quer forma, mesmo que o corpo entre us suas mos no seja proibido e goze, ele sempre saber que no bem este o corpo que ele queria. O corpo que ele queria fazer gozar era o corpo que deixou, o corpo materno interditado. Este outro corpo que o Brasil, explorado, gozado at o fim, esgotado, deslocado nas suas mos como um manequim, lhe aparecer ainda como a simples lembrana de que ele s conseguiu fazer gozar um -corpo diferente do nico que contas-se. Ele no pode deixar de multiplicar uma explo-rao que continue ilustrando a potncia da lngua paterna da qual se apropr iou, mas constata o fracHsso desta apropriao. Pois, para exercer a potncia pa-

  • "ESTE PAtS NO PRESTA" 19 terna como se fosse a .sua, teve que deixar o corpo da me ptria.

    O colonizador veio ento gozar a Amrica, por is-so deve esgot-la, mas sabe que no era Amrica que queria faier gozar.

    Ele tem com o pas enquanto corpo uma cobrana que lhe permite dizer "este pars no presta", quer se-ja porque deveria ser o outro (aquele que ele deixou), quer seja porque no goza como deveria.

    'Quem sabe a figura do colonizador nos explique alguma dificuldade especfica de qualquer reforma agrria neste pas. Expropriar, mesmo que no impli que nem de longe "privar", de qualquer forma um gesto polftico inaceitvel para o colonizador, pois contradiz o essencial da sua empresa. Na poca, no enco.ntrei ningum em So Paulo, nem nas conversas dos botecos mais humildes, que aprovasse - a no ser por razes de militncia partidria - a expro-priao da casa dos Matnrazzo, na avenida Paulis-ta. Pois foi para "possuir" a terra, s por isso. que o colonizador veio.

    O colono

    . O colono quem, vindo para o Brasil, vi'ajou para outra Ungua, abandonando a sua lfngua ~aterna. Isso evidentemente vale tambm para os portugueses. No tanto por razes histricas (ou seja, por ondas de imigrao sucessivas nas quais portugu~ses j viaja-ram para o brasileiro como lfngua outra): mas porque

  • 20 IIELLO IIHASJU

    ser colono ou colonizador so antes posies subjeti-vas. O colono no um colonizador atrasado que po-deria esperar participar na festa do colonizador; a sua esperana outra; se adere nova lngua, no para ter acesso a um corp.a materno fmalmente llenctoso3 O que o diferencia do colonizador parece ser a pro-cura de um nome. Ele nao vem fazer gozar a Amri-ca, mas, na Amrica, se fazer um nome. Procura aqu~ numa outra lngua, um novo pai que interdite, certo, e de repente o reconhe_a.

    Existe, em Bento Gonalves, um admirvel museu. da imigrao italiana. Nele est exposto, entre outras coisas, o passaporte de um imigrante italiano, vindo ao Brasil com a mulher grvida e os filhos pequenos; como se sabe, o passaporle da ~poca . um salvo-con-duto, uma simples folha de papel, sem imagens, na qual o Rei da Itlia autoriza s esta viagem, e s para esta destinao. O nosso imigrante, provavelmente analfabeto, talvez neste comeo de sculo encontras-se pela primeira vez, na ata do seu passaporte, algu-ma forma de reconhecimento da sua consist~ncia simblica e jurfdica. Deixar a sua lfngua materna produzia milagrosamente um documento no qual, por ele ser nomeado, a sua dignidade humana era reco-nhecida.

    Foi o colono certamente quem escreveu a divisa comtiana sobre a bandeira do Brasil: Ordem e Pro-gresso. Sobretudo 11ordem". Pois se ele pedia algo ao pafs, era 9 contrrio do pedido do colonizador: no um corpo de gozo alm do interdito paterno, mas um interdito paterno que, impondo limites ao gozo, fizes se dele um sujeito, o assujeitasse.

  • "I!STI: l'AS NO I'IUiSTA" 21

    E o colono tambm pode dizer: ''Este pas no presta", mais inesperadamente, e talvez mais drama-ticamente. Pois o seu "no presta" sanciona o fracas-so da umtegrao: o pas no soube ser pai, o um na-cional no conseguiu assujeitar o colono. No que ele fique fora, excludo, nada disso; mas algo fez e faz qu aqui, nesta nova lfngua, o colono nao parea en-contrar um interdito paterno que, regulamentando o apetite de gozo, organize um quadro social que lhe outorgue uma cidadania.

    Sobretudo nas minhas primeiras viagens, quando eu ainda falava um portugu~s duvidoso, era freqente encontrar em So Paulo e em Porto Alegre imigran-tes de origem italiana, de segunda ou terceira ge-rao. lnevitavelm~nte falavam deste Brasil "que no presta", da Hngua italiana mais ou menos esquecida, e eu colocava sempre a questo fatdica da volta. No a volta para sempre, mas uma volta de frias, uma vez. E a resposta era inevitavelmente a mesma: no dava, nunca dava pura voltar, era caro demais. Aca-bei estranhando, pois, se a coisa podia fazer - ape-nas - sentido para algum com poucas condies,

    parecia incongruente para o dono de um restaurante importante.

    O imigrante norte-americano sempr'e volta e so-nha em voltar. verdade que h neste sonho, como se sabe. a infantil esperana de um retorno do filho prdigo. Mas eles voltam mesmo que no possam desfilar nas ruas da vila como se espera que desfile o tio americano. Eles podem voltar. Talvez os colonos brasileiros no possam voltar porque justamente o Brasil no conseguiu faz-los outro~. quero dizer, no conseguiu fazlos brasileiros. Imagino que a dificul-

  • 22 III::LLO BRAS I L!

    d:ade em voltar seja proporcional a um fracasso que no econmico, antes cultural. Como voltar para a Itlia, por exemplo, se sar renunciando a uma lngua que no me reconhecia como sujeito e a lfngua que escolhi tambm no me reconheceu?

    O colono de repente parece suspenso no meio de urna viagem. O colonizador tambm: a presena de-les aqui s uma parada, no na perspectiva de uma volta, mas eventualmente de um prosseguimento. Respectivamente, se no encontrar mais o que explo-rar ou se no houver jeito

  • "'BSTf! PA(S NO PRESTA" 23 integrativo das diferenas culturais das comunidades. Quem s~he. a histria da constituio da. nao ofe-rea um indcio. pois -mesmo as inconfidncias minei-ras e baianas no so nem de longe o movimento po-pular da revoluo .americana. E qual teria sido o destino dos Estados Unidos se ~ .Decla~ao de Inde-pendncia tivesse sido, nlo o fato dos delegados em Filadlfia, mas dos prprios ingleses? Se concordar que "Independncia ou morte .. assume, no contexto, o valor de uma melodramtica pardia.

    Impressiona-me mais ainda o prprio significante "Brarir". Que extraordinria herana do colonizador para o colono este significante nacional, que eu saiba o nico que no designa nem. trma longnqua origem

    ~tnica, nem um lugar, m~s um produto de exP.loraAo, o primeiro e completamente esgotado. R como se o colonizador entregasse para o colono o manequim deslocado por um gozo sem freio, e ironicamente o convidasse a fazer com isso o UM da nao da qual ele quer ser sujeito.

    Quem ganha entre o colonizador e o colono? Difcil dizer: coexistem. A voz do colono se ouviu nas ltimas eleies presidenciais e no s do lado de Lu-la, pois a exigncia de moralizao da vida pblica e civil foi certamente.o fundamento do fenmeno Col-lor. De qualquer forma, o essencial no ~ inventar consertos (a neurose ~ a ci~ncia dos consertos e das ocul taes subseqentes que no do certo). O es-sencial indicar um real contraditrio que no tem conserto, para fazer com isso, com o inevitvel, algo in teressantc.

    No dia que apresentei em pblico pela primeira vez estas cogitaes, o cotidiano de Porto Alegre, Ze-

  • 24 HElLO HKASIL!

    ro Hora, publicava em destaque a fotografia e a hist-ria de Valdomiro 0Jiveira1 que de repente homena-geei: "Sob o viaduto Imperatriz Dona Leopolilina, nas avenidas Joo Pessoa e Perimetral1 esto instala-das vrias pessoas que n tm outros locais par morar. Isso acontece em outros pontos da cidade, mas nenhum, como o mendigo Valdomiro Oliveira, tem uma bandeira brasileira para marcar sua re-sid!ncia,.

    Valdorniro faz certo: ~ na beira do horror que precisa plantar a bandeira, pois s a partir daf, sem esconder~ que talvez ela possa se tornar uma bandei-ra.

  • O ESCRAVO

    depois de um churrasco, um domingo," que a av Eduarda consente em contar a histria de sua chegada ao Brasil. Ela tinha mais ou menos trs anos e vinha do Marrocos, para onde seus pais - espa-nhis - j emigraram.

    Os primeiros anos de sua vida no Brasil estao lon-ge, esquecidos, e o relato no chega a se organizar como histria antes da descida da fam1ia para o Rio Grande do Sul ~ alguns anos depois. Mas, esutaru:lo, me digo que, se o relato se organiza como hisfria s a partir da chegada no Sul, no apenas por uma razo de maior proximidade temporal e, geralmente falando, pela amn~sia da qual todos parecemos sofrer relativamen~e primeira infncia. Talvez mesmo an-tes da chegada no Sul, a famlia no pudesse ter histria.

    No Rio Grande, quando a famlia chegou, na. completa misria, no foi fciL Todo mundo se sepa-ra: a me e as filhas entram a servio na cidade e o pai tenta a sorte nas minas de carvo. Encontrar~se

  • 26 HELLO BRASIL!

    uma vez por ano j um luxo. Mas o pai no desiste da e~perana de reunir um mrnimo peclio; e traba-lhando dois turnos cada dia na mina que finalmente consegue voltar para a cidade e estabelecer um pe-queno varejo ambulante de frutas e verduras.

    O que acontecera antes? A chegada fora em San-tos, e o destino inicial uma fazenda de caf na regio de So Paulo. A av Eduarda s lembra a extrema misria da casa atribuda famnia, o trabalho das crianas, ela tambm, na colheita do caf, e mais ain-da o cultivo de terras onde era permitido ao colono plantar para ele mesmo. Lembra que estas terras es-tavam cada vez ma.is distantes: duas, tr!s horas para ir e outras tantas para voltar.

    Fala de seu pai como de um homem culto, que lia livros, e surge tambm a lembrana de reunies no-turnas de ensino, adultos e crianas, que o seu pai talvez animasse.

    Depois, um episdio estranho: uma tia chegando de noite na casa, acordando todo mundo em uma grande agitao e a sarda definitiva da fazenda, na hora, no escuro, levando o que dava. Uma expulso? Uma fuga? \

    Leio um Hvro pouco banal , Memrias de um colo no no Brasil (1850) de Thomas Davatz (Itatiaia & Universidade de So Paulo, 1980) e, lendo, pareo adivinhar o que deve ter acontecido. o drama que nos conta Thomas Davatz em 1850 devia se repetir inda no comeo do sculo, em trs atos.

    , .. Primeiro ato: a propaganda mentirosa do inter-medirio que vende um sonho de felicidade. preci-so ler os contratos e considerar as condies que em-purravam o emigrante europeu, para se dar conta que

  • , QESCitAVO 27

    o sonho do futuro colono no era tanto o Eldorado do colonizudor. mas muito mais a conquista do reco-nhecimento da sua dignidade de cidado. No era um sonho de explorao sem limite de um novo corpo, mais o sonho de um pars que, por dar acesso ao direi-to um dia a um pedao de terra, reconhecesse no co-lono ~im sujeito, um seu futuro sujeito.

    Segundo ato: 6 a realidade da viagem, da chegada e do trabalho. Fundamentalmente se sabe que o aces-so aos bens, inclusive aos bens necessrios sobre-vivncia e ao cultivo da terra da qual o colono tinha usufruto (geralmc;nte proporcional, alis, quela que cultivava para a fazenda), passava por um monoplio de venda da fazenda mesma. A circulao ffsica dos colonos, alis, era freqentemente proibida. Por con-seqncia, a venda da eventual sobra da sua . pro-duao passava pelo mesmo monoplio. De tal forma que paradoxalmente o colono comprava ao preo im-posto pelo vendedor e vendia ao preo imposto pelo comprador (lgica esta que se repete, como a vingan-a da histria, na constituia da d!vida externa , do pafs). Graas a taxas arbitrrias de juros e tambm a verdadeiros calotes que pretendiam por .exemplo co-brar o preo da viagem j paga ou, segundo o contra-to europeu, oferecida, ou ento cobrar o aluguel do casebre quando o mesmo contrato garantia a mora-dia, o colono era ligado fazenda por lJm& dvida in-solvvel perfeitamente comparvel ao preo da liber-dade para o escravo.

    Terceiro ato e final: pode ser a transformao do colono em escravo branco. Ou ento o seu apelo a uma autoridade que reconhea a sua condio de ex-plorado, a descoberta que a autoridade ~ a sombra do

  • 28 HELLO ORAS I L!

    fazendeiro que o explora, a revolta e a morte. Ou ento ainda a fuga -antes da morte. Uma fuga que, graas imensido do pas, o liberta para urna via-gem onde conseguir, ou no, abrir um espao no s de sobrevivncia, mas de vida: se fazer um nome, um mfnimo de nome, alm do nome da fazenda que teria sido a nica estampilha do seu corpo.

    _. As primeiras lembranas da av Eduarda, gosto de reconstru-las no quadro deste drama, como se o pai dela, Antnio, tivesse sido um outro Thomas Da-vatz. Homem instrudo, rpidamente consciente da armadilha que levava escravido, quem sabe abrin-do "demais" os olhos dos seus companheiros de in-fortnio, teve qt e fugir diante de ameaa de more, ou ento foi expulso no meio da noite por um dono menos cruento.

    O drama, logo contado, revela uma tragdia que preciso articular. Pois no interessa _tanto espalhar l-grimas sobre um destino duro e violento, quanto constatar, entender como se inscreveu na histria do pafs uma decepo sem remdio. O ponto trgico do drama no se manifesta nas condies de vida impos-tas ao colono, mas na mentira - mentira do contrato assinado na Europa. O que importa alis no me pa--rece ser a privao de bens prometidos que no fo-ram oferecidos. " a mentir em si que se revela trgi-ca, sobretudo se confirmando quando a resposta ao apelo do colono a uma autoridade terceira, q~e inter-venha no lao de escravido que lhe imposto, revela que no h autoridade terceira, que a partida se joga a dois; na confrontao de foras mpares.' ,

    A tragdia a descoberta que a autoridade que assinou, por intermedirio, o contrato a marionete

  • OESCkAVO 29

    inconsistente do colonizador que pede corpos para explorar. Tanto mais que o contrato, por ser contrato e engaja"' o colono, j antecipava o seu sonho de re-cm h~cimento e de cidadania. A tragdia do drama tambm teria trs atos.

    Primeiro: (, pai fundador da

  • 30 lli . LO DRAS I L!

    dia inscreva, no discurso brasileiro, um cinismo J .. adi-cal relativamente autoridade. Uma espcie de im-possibilidade de levar a srio as instncias simblicas, como se sempre inevitavelmente elas fossem a ma-quiagem de uma violncia que promete a escravatura dos corpos.

    O corpo escravo se constitui assim como hori-zonte fantasmtico universal' das relaes sociais, co-

    ~ se o colonizador tivesse conseg11ido instaurar a sua explorao do corpo da terra como metfora l-tima das relaes sociais. E de fato o corpo scravo onipresente. Os jornais nos falam regularmente da escravatura que ainda existe e que a polcia persegue. E h aquela que a polcia no persegue. Um mal-es-. tar permanente nas classes ptiviiegiadas, relativo s condies de indig!ncia de uma grande parte da po-pulao, manifesta o sentimento de que alg, no vn-culo empregatcio, ainda parti~ipe ou possa participar da escravatura. . . O fantasma do corpo escravo tambm deve ser

    pensado na sua complexidade. O hspede europeu, por exemplo, sempre comea escandalizando-se com os salrios mseros das empregadas d9msticas. E, geralmente, acaba escandalizando-se com o lugar de dignidade "excessiva" que elas lhe parecem ocupar no quadro familiar. Gostaria de pagar mais e COJ)Ver-sar menos, ou ento pagar mais, mas no se respon-sabilizar pelos filhos, a sade, o futuro, a casinha para a aposentadoria da empregada etc ... O problema que o hspede europeu pensa a es-cravatura, da qual pretende se indignar, nos moldes da explorao do trabalho no capitalismo nascente. O corpo escravo, fantasma brasileiro, no exclui uma

  • O ESCRAVO 31

    (orma de integrao familiar ou mesmo de pardia de nominao (os enteados) que mais propriamente s'e deveria chamar de marcao (os fazendeiros en-tendem): O escravo nAo uma extensAo instrumental do colonizador, como o proletrio europeu do sculo passapo podia ser um suplemento instrumental, como era o tear. Ele mais urna extenso e talvez mesmo o melhor repre~11tante do corpo da:!erra, de um corpo permitido, aberto, por efeito da potncia da Hngua que o .explora e que nele, portanto, se in~creve ..

    . Lembro-me 'do estranhamente experimentado, num carnaval baiano, escutando os blocos fros can-tar um plausvel Senegal, um impossvel Madagascar e um grotesco Egito dos faras, presumidos todos

    "originrios'~. Lembrome tambm de ter comentado com o meu amigo baiano Euvaldo que no havia nis so nada de cmico: o importante no . a origem efe. tiva. O que conta o ~.sforo para fundr, me.~mo na mais imp~ovvel das lendas, um significante UM.

    Betty Milan no seria a nica alis a me dizer, imagino, que neste esforo comovedor da cultura afro-brasileira que talvez esteja se propondo uma cul-tura nacional.

    A idia que a cultura miticamente originria dos escravos possa vir constituir o.u pelo menos sustentar o significante nacional, parece s testemunhar um vi sionarismo que, por ser simptico, no 6 menos pro-blemtico. como se o colono, decepcionado, justa-mente vingativo, esperasse que um Outro pai possvel surgisse na memria do escravo que ele mesmo foi chamado a ser.

  • 32 lll!LLO URASII.!

    o discurso afro-brasil~iro deste ponto de vista fa-la a mesma coisa que o colono: o anseio de wn pai. verdade que o escravo africano tem uma boa razo de recorrer memria do pai de origem, pois dele foi tirado fora, quando o colono deixou o seu pas pe-lo silncio do seu pai. Mas ambos~ o escravo e o colo-no, conheceram a escravido: que na chegada ao Bra-sil o primeiro j fosse e 9 scf.!uodo se encontrasse pri-vado da esperana de um nome._ no me parece _pro-duzir uma substanciafdiferena de discurso. Pois am-bos__pedem uma cidadania que realize o fim, no tan-to de uma eseravatura j aC'dbada. mas do corpo es-cravo como horizonte fantasmtico da relao com um pai que desconheceu os nomes e quis os coq~os. Que ambos tambm, desprovidos e irremediavelm-en-te desconfiados de um novo pai fundador, possam re-correr nostalgia do pai perdido ou. deixado do outro

    . lado do oceano, natural. Deste ponto de vista, Blu-menau, Nova Drscia, Garibaldi etc. so quilombos, como Palmares. Mas o UM nacional dificilmente po-de surgir como efeito da problemtica suma dos UNS perdidos que a lenda e a memria celebram. Os UNS das origens . ~esgatadas no constituem, a princpio, impedimento .nenhum: no 6 por ter sido e ainda ser alemo, portugus, italiano, sencgals que no se conseguiria ser brasileiro. E no lora de unifor-mizao integrativa das diferenas .que s.e. constitui qualquer UM nacioiUtl. Mas tamb6m o resgate das di-ferenas originrias, se oferece o consolo da nostalgia de uma referncia simblica perdida, no garante suma nenhuma.

    A questo. alis, no de produzir uma ~uma. Que o UM nacional valha ou no como referncia

  • OESCkAVO 3)

    para todos, talvez dependa das condies da sua insti-tuio. E no Brasil, le parece ter sido proposto ao colono, rio como valor simblico onde ser reconhe cido e se reconhecer, mas como marca de uma pre-potncia exploradora.

    Uma vez mais a comparao com os Estados Unidos se impe. Pois ela indica que a importncia do fantasma do corpo escravo no discurso brasileiro no pode ser um simples efeito do passado escrava-gista. Precisou uma repetiao: ou seja, que o colono encontrasse, na sua chegada, .a ameaa, s vezes rea-lizada, da sua . escravatura. Precisou disso para que por um lado a escravizao permanecesse como hori zonte das relaes discursivas e sociais, e que por ou-tro lado .o pedido de cidadania do escravo se encon trasse com o discurso do colono, expresso do mesmo pedido.

    . Se o fantasma do corpo e.scrvo no ~um fantas-ma norte-americano, porque o colono norte-ameri-cano encontrou resposta ao seu pedido. suficiente lembrar que o governo federal dos Estados Unidos, no sculo XIX, interveio legalmente contra a impor-tao de escravos brancos. E tamb~m que a fronteira norle-americana ofereceu, ao colono, a propriedade das terras bandeiradas e no a simples posse. Em ou-tras palavras: a escravizaso do seu corpq, proposta ao colono em busca de um nom~z eterniza a escrava-tura como modelo de assuJeitamento ao prprio sig-nficante nacional. O qual, por sua vez, pela signfi cao que acarreta, no deixa de repetir o equvoco que j se consumou na descida do barco. S!!r "brasi-leiro, em que sentido?

  • )4 IIELLO HRASILI

    Existe uma soluo conhecida s dificuldades aparentes do significante nacional brasileiro: o antro-pofagismo.

    Cansei de ouvir falar do manifesto de Oswald de . Andrade, tanto preventivamente quanto, se posso as-sim me expressar, pos-ventivamente. Ou seja: antes que decidisse me estabelecer no Brasil, alguns amigos brasileiros previam que eu seria comido, destino normal de qualquer eropeu, ainda mais se portador de algum projeto cultural. Era um jeito de me dize-rem que a palavra que eu j trazia em cursos e con-ferncias seria escutada, respeitada e cuidadosamen-te digerida num processo quCmico que a privaria de .toda aspereza para concili-la e amalgam-Ia num bolo estomacal que - graas . potncia dos seus cidos - no se espanta. nem de uma feijoada ao meio-dia de vero.

    Eles previam em suma uma variante interessante da aventura da psicanlise nos Estados Unidos. Se, neste caso, parece que ela teve que se adaptar aos ideais nacionais locais, no Brasil ela no precisaria se adaptar nem um pouco, pois a digesto nacional se encarregaria de adapt-la. Alis, algo nestes propsitos preve.ntivos se reve-lou certo, pois, pelo menos no campo da psicanli-se - mas quem sabe a mesma considerao valha para a polftica .... a idia do amlgama conciliatrio a melhor vinda. raro que a questo se coloque em termos de adeso a uma orientao, mais natural mente a tendncia seria beliscar o suposto melhor de cada prato num rodfzio de antepastos. A desconfian a no significante nacional como referente se reper-cute, normal, na desconfiana em qualquer signifi-

  • O 13SCRAVO 35

    cante que poderia vir a ser paterno: a escolha me-nos se filiar do que tentar escolher o prprio coquetel de .. referncias.

    Mas interessante que a postura antropofgica pos~a ser e tenha sido positivamente evocada como uma soluo para a identidade brasileira. A soluo assim proposta consiste em deslocar a questo mes~

    . ma de um significante nacional: em suma, disso no precisaramos, PC?rque o que faz UM' entre ns que somos devoradores de UNS.

    Freud, como se sabe alis, expressou a primeira identificao, fundante e paterna, nos t~rmos das pulses orais, batizando~n de 'incorporaO.. Mas ele reconheceu a esta primeira ucomlda" um carter de~ cisivo e pontual: o que foi incorporado inicialmente foi sirnblizado e assim contribuiu para fundar o su-jeito; o que no foi, fica de fora. Qual seria um sujei-to que estendesse indefinidamente esta voracidade de leito? Se significantes paternos transitassem diaria-mente pelo seu corpo como amanteigados na boca de um boxer, como conseguiria se apoiar firme num de~ les e em qual? O remdio evidentemente seria esco-lher como valor nacional a voracidade mesma.

    O projeto antropofgico parece propor a unidade d~ um tubo digestivo como sotu.s~l . . falta_c.le..Y.ID .. Iiig-nificante nacional. Deixando de considerar as tristes conseqncias previsveis do lado da prod~Ao, resta que se pediria de fazer ~M a um corpo e as su~s funes. Q~e corpo ser e~se, se no_. o corpo escravo que justamente .foi prometido a quem pedia filiao? o colonizador s conseg~ dar ao corpo da. terra o noJTle de um resto exangue. O colono pede reconhe-cimento e recebe, junto com a herana deste nome, ~

  • 36 JH!LLO IIRASIL!

    ameaa de escravatura. Como no surgiria a tentao de proclamar que o UM nacional este corpo escra-vo mesmo, alrgico e impermevel a toda nomi-nao?

    A escolha justifica um exotismo que no s para os turistas (o Brasil no seria um nome, mas um cor-po que goza - timo para as frias), mas tambm para os brasileiros, que contemplariam assim felizes e contentes as pragas mesmas pelas quais o colono acha que o pas no presta, certos que estas pragas -ao preo "mdico" da falta de um significante pater-

    . no .;.. reservariam um espao de gozo sem limites. O dra.ma que, se o corpo sem nome, do qual

    fadamos assim o nosso nome, o corpo escravo, o gozo .sem limites no seria tanto deste corpo, quanto do Outro que o explora justamente sem Hinites. Se reduzir a um corpo se entre&ar a qu.em queira gozar de ns.

    assim, talvez, que o colonizador, por no querer nomear a terra mas s explor-la, e por n4o reconhe cer no colono seno uma extenso do corpo explora do, poderia acabar definindo o pa!s como corpo es-cravo ofertado ao gozo de quem pense ainda poder lhe extirpar um gemido.

    O meu amigo Luiz Tarlei de Arago, em um texto recente, "Me preta e tdsteza branca" (in: C/fnica do Social.: ensaios, Escuta, O sexto lobo, So Paulo, 1991) .analisa a funo da bab preta (estruturalmen-te preta mesmo quando branca) e escrava ( estrutu-ralmente escrava, mesmo cem anos depois da Abo lio) na formao das elites brasileiras. A id6ia es-

  • O ESCRAVO 37

    ~encial que o jovem estaria_ tomado entre dois cor-pos,maternos: o da me branca, interditado, e o da me de lei.te, licencioso. Ucencioso, alis, no sentido que a liberdade com o corpo da me preta seiia mesmo o que o pai encoraja, como se a licena do fi-lho demonstrasse a potncia paterna transmitida.

    ~ vals_a entre as duas mes nQs lembra a viagem do colonizador, da me interditada nova terra per-mitida. E no estranha que a vida familiar colonial acabe reservando um espao onde o filho possa exer-cer a Ungua paterna sobre um corpo materno mila-grosamente perm,itido.

    Alis, no necessrio Tecorrer aqui clssica funo de iniciadora sexual da bab e da empregada. Basta lembrar - mais pertinentemente talvez - a extraordinria possibilidade de comandar que a criana se reconhece. A hierarquia de idade na edu-cao burguesa europia antecede absolutamente a hierarquia social. A idade a partir da qual ser pos s(vel pdir autonomamente empregada um copo d'gua, parece quase ter valor inicitico de entrada na vida .adulta. E que o lao empregatcio, jurdico, no um domnio hereditrio escravagista.

    Ainda quase turista no Brasil, lembro-me de uma minha interveno espontnea na briga entre urna criana e uma empregada. A. rebeldia da criana de seis anos autoridade delegada empregada se ex pressou assim: 11Voc! minha empregada"-. Eu corri-gi: "No. e1a a empregada dos teus paisn. Hoje no estou certo de que a minha interveno fosse mais do que uma ortopedia etnocntrica~

    Enfim, o texto de Luiz permite pensar uma transmisso original do discurso do colonizador: no

  • 38 IJELLO UKI\SII.!

    precisa que o filho do colonizador procure num outro pafs ainda um corpo materno no interditado, pois ele lhe oferecido em casa, no corpo escravo e licen-cioso da me preta; Se transmite e se mantm assim,

    . de pai para filho, o discur.so do colonizador: o projeto inicial de explorao no se esgota nas geraes; ele se confirma. E a observao no concerne s s ditas elites.

    freqente, ou mesmo tradicional, que uma famflia burguesa brasileira aceite e sustente a even-tu ai prole de uma empregada, a qual prole pode se si-tuar, na ~strutura familiar, numa variedade de po-sies qe vo da quase adoo at a uma excluso cuidadosamente mantida.

    O surpreendente que nesta situao, seja qual for a posio da criana, pseudo-adotada, enteada ou mesmo excluda, a relao dela com o .corpo

  • OCSCRAVO 39

    dania do colono, ora a pretenso .exploradora. do co-lonizador.

    O escravo no tanto um agente de. enunciao, quanto o fantasma que parece sustentar o discurso de todos os agentes. Ele se origina no sonho do incesto possvel com uma me terra dcil.e nQ interditada,

    se prlonga na dominao de corpos explorados co-mo metonmias desta terra submissa e oferecida.

    . .

    No discurso do colono mesmo, ele no s uma ameaa, mas tambm se torna uma espcie de espe-rana: a armadilha que o colono encontra, quando ameaado de esc~avatura, e talvez tambm a escrava-tura mesma produzem um efeito de sugesto. A quem pede reconhecimento e nome, corno a quem foi arrancado de seu pai originrio, a escravatura ou a sua ameaa parecem indicar um outro caminho possvel: aqui. no encontrars um nome, m.as--.t.ahez seja esta a ocasio de esquecer a procura de um pai e

    expcrim~n1.aLUS delfcias de quem poderia tentar US por do corpo da terra e, por que no, de seus seme-lhantes sem interdito nenhum.

    A ameaa da escravatura, e a escravatura mesma, parecem introduzir no pedido do colono e na rebel-dia do escravo o fantasma de poder eles mesmos es-cravizar.

  • CRI ANCAS .

    O Brasil me aparece como o pararso das crianas. Estranha-me o sorriso do garom de um restaurante luxuoso tragicamente atrapalhado no servio por uma lurma de meninos correndo entre as mesas. E tamb~m que nenhum cliente parea se incomodar com o barulho do qual no dava parasuspeitar que estivesse inclurdo no preo.

    Surpreende-me, durante uma festa em casa. a chegada de mais um cas~ l convidado. com crianas pequenas implicitamente no convidadas. Aqui uma graa. Na Europa, salvo laos de amizade fr-reos, seria uma imperdovel grosseria.

    Num hotel cinco eslrelas exigido que exista uma sala de jogos eletrnicos para as crianas e que sejam previs tas atividades infamis. Assusta-me a insistn-cia - p~dagogicarnente justificada com um requinte de.rousseausmo - sobre a necessidade do ldico na

    aprendi~gem. Em algumas das melhores escolas pri-vadas, decorar ~ considerado tortura. Assombra .. me a importncia que a~sume o programa das crianas na

  • 42 IH!LLO llltASILt

    vida cotidiana: os pedidos alimentares de praJos e bebidas especiais, as sardas, as vindas dos amigos ... O adulto brasileiro parece constantemente preocupado com o prazer da~ suas crianas

    Brevemente: a crian_a rei. Curioso, tanto mais num pars cuja reputao no

    estrangeiro est comprometida com legies de crian-ns ab.andonadas na rua.

    Evidentemente toda educao - como Freud j apontou - reacionria, pois cada um no educa como foi educado, cada um pretende educar como os seus pais imaginavam que os pais deles teriam pre-tendido educar. E, o mesmo valendo para os avs, se entende q~e a educao seja sempre fundamental-mente restaurativa de uma ordem passada, que por sinal nunca existiu.

    Esta constatao, porm, no uma crtica, pois parece - op pelo menos me parece - que a restau-rao tentada. desta ordem passada que nunca existiu justamente o que permite ao ltimo chegado de en-contrar, nesta ordem, um lugar. Explico-me: foime contado que nn inmncia de meu pai, as crianas, quando excepcionalmente tomassem as suas rcfeiOcs na mesa com os adultos, precisavam ficar em p, no lhes sendo permitido sentar. Pouco importa que esta histria seja verdadeira ou falsa, de fato presumo ho-je que j fosse, para o meu prprio pai, uma lenda do seu pai criana. Pouco importa tambm que ela possa parecer a testemunha de um costume brbaro. Pouco importa, pois, separando a criana do adulto, esta lenda e outras similares constituem a mitologia possr-

  • 44 IIELLO BRASJLI

    _te, ainda que o Vietn do Sul no seja apenas o Viet-cong. E, sobretudo, embora se possa pensar que a guerra teria sido outra se os combatentes norte-ame-ricanos no fossem eles mesmos, pela falta de ideali-dade que, acredito, parou a guerra, convertidos em sdicos autorizados.

    Tudo isso para defender a idia segundo a qual o que h de necessariamente reacionrio nuq1a edu-cao mesmo o que-permite que ela tenha o seu efeito essencial: constituir uma filiao simblica.

    Agora, que o Brasil seja o paraso das crianns no fmpica necessariamente que a educao seja um fracasso. Poderia imaginar que milagrosamente aqui se consiga reconhecer criana uma cidadania pre-coel que freqentemente lhe t negada na "E"urqp~E que, tambm milagrosamente, o preo em interditos desta cidadania, deste lugar reconhecido consiga aqui ser menor. Assisto com emoo crianas de seis, sete ans encomendar o prato de sua escolha, comprar

    mer~adorias em lojas. quando sei que o simples in-gresso de uma criana, mesmo acompanhada, numa loja em Paris poderia s~r considerado como uma ameaa, ou ento que na mesma loja uma criana so-zinha veria .negligenciar a sua vez na fila. Mas a emo cessa quando ouo uma criana de seis, sete anos convocar imperiosamente o garom: "Mooooo-o!l" Algo me incomoda, e nao sei bem o qu!. Certo, a licena sobre o corpo de uma adulto lembra ~m

    passado escravagista, onde a diferena adulto/ cri;.ma s podia valer no campo dos homens livres, o escravo senda escravo tanto para a criana quanto purlcl o adulto. Mus h algo a mais na imperiosidade dope-dido infantil e na dedica.o tanto parenta! quanto

  • CRIANAS 45

    educacional e geralmente social em responder a este pedid~. Curiosamente, acredito que aquito que me incomoda deve ter algum lao com o exrcito de crianas di tas abandonadas na rua. Pois estranho, depois de tudo, que a criana seja rei e ao mesmo tempo dejeto. No acredito ou mesmo descuido e descnfio, neste caso, das explicaes soc.iolgicas: se a criana dispusesse de um estatuto simblico parti-cular, se fosse um sujeito precocemente ronhecido, isso valeria para qualquer criana. E me interrogo sobre uma majestade cuja alternncia com a dejeo assinala que talyez ela nao esteja fundada em ~ma excelncia simblica.

    Confrontado com uma crimnalidade de n1enores e de menores muito jovens indita para mim, acabei estranhando a impunidade que o cdigo reserva ao crime do menor. Mas estranhei sobretudo de estra-nhar, pois no h nisso nada de especial no conhe-o cdigo que preveja uma responsabilidade penal para os menores. Tambm me parece insuficiente considerar que se trate de uma reao "normal", vista da violncia da criminlidade infantil.

    Por exemplo: escuto um dia um relato triste e es-pantoso que envolve uma conhecida. Algumas crian-as de sete, oito anos, numa esquina paulistana, tal-vez por ter-lhes sido recusado' o troco que pediram, cortam com uma gilete - aproveitando o vidro aber-to - a garganta do beb de poucos meses, na sua ca-deirinha no lado da me. A minha rea,o indignada explode contra a impunidade, mas ao mesmo tempo o meu horror do crime, por grande que seja, no me parece justificar uma tal posio.

  • 46 IIELL(.) IJRASIL!

    Se, cuidadoso como sempre sou da sociedade de direito, surpreendo-me protestundo pl\rn que n pu-nio seja exemplar e sem atenuantes relativos ida-de, que a impunidade dos menores talvez seja aqui no Brasil outra coisa do que um princpio de direito. A Febem, por exemplo, aparece, pelo menos na len-da popular, mas tambm na pgina de crnica dos co-tidianos, como o porto de mar de onde se entra e sai . seguindo os ventos. Tudo acontece como se a socte dade no soubesse, mais por uma impo.ssibiHdade de estrutura do -que por uma impot~ncia, reprimir os menores, as crianas. E quem no sabe reprimir, tambm no consegue reconhecer um lugar e uma dignidade simblicos.

    Confirma-se, dessa forma, a dvida que o lugar de majestade que a criana parece ocupar no seja uma excelncia simblica, mas algum tipo de incondicio-nal exaltao fantasmtica da criana. O que alis ex-plicaria como, quando esta exaltao fantasm~tica no a sustenta, a criana seja um simples dejeto.

    como se, faltando um reconhecimento simbli-co, frente sua impotncia a garantir para cadu criana o parafso, a sociedade deva escolher deixar impunes as tentativa5 criminais (de ter acesso ao pa-rafso) das crianas as quais os pais no poderiam ga-ranti-lo.

    Mas a questo se desloca: o que , de onde surge esta aparente impossibilidade de reprimir, que parece testemunhar um verdadeiro fantasma relativo infncia?

    Clinicando no Brasil, encontrei, certo, uma

  • CRIANAS 47

    quantidade impressionante de exemplos de promis-. cu idade dom~stica. O acesso das crianas cama pa-

    " rent.al freqente, at pocas tardias, assim corno a extrema tolerncia de fobias e enureses noturnas. A psicologizao ajuda por sinal a desaconselhar uma sonora interdio. que seria . salutar. curioso

    tamb~m como, na gesto do lazer da crian, o gozo prima: raro que, quando u~a criana descobre que, por exemplo, aprender piano, ingls, bal, tnis, hi-pismo, xadrez etc. no cai do cu, ela encontre .a in-juno necessria para considerar com interesse o gozo limitado e trabalhoso de uma aprendizagem. A alternativa parece 'ser aceita pelo adulto assim como a criana a coloca: ou d para gozar na hora ou ento no vale a pena.

    "Le goOt de l'effo~t", literalmente "o gosto pelo esforo", ''o prazer da dificuldade": no parece haver uma expresso consagrada que possa traduzir esta pea-chave da pedagogia europ~ia, onde o que se tra-ta de transmitir uma espcie de esprito qlfmpico permanente; importa participar, no ganhar. Qual o interesse do ''gout de l'effort"? Ele vale como prind-pio pedaggico num quadro simblico claramente or-ganizado ao redor de um impossvel interditado: o gozo do corpo materno impossvel e o gozo que te permitido relativo ao exerdcio dos teus esforos (vos) para atingi-lo. E a excelncia de uma vida re-lativa nobreza dos esforos: ser algum, ou seja, um filho digno, se distinguir no esforo, no alcanar. Por isso, alis, na Eurpa a manifestao aparente de gozo - signos externos de riqueza, como os define o Estado que os penaliza fiscalmente - ainda no eno brece o sujeito.

  • 48 IIELLO UkASI.l.!

    Mas se o colonizador veio para gozar, no para exceler no exerccio da lngua paterna, mas para ten-tar com ela o acesso a um corpo no interditado, o "gout de l'effort" t~qui no tem vaJor. S vale gozar,

    Talvez o paraso das crianas. te_stemunhe um cui-

  • CRIANAS

    limites. E o gozo sem limites um projeto que impli-ca o desrespeito de qualquer ~ignificante paterno ...

    Mas concluir apressadamente aqui que faltar ia no Brasil funo paterna seria uma besteira, pois seria esquecer a esperana do colono que veio para encon-trar um pai e cujo discurso o contraponto do discur-so do colonizador.

    O mesmo Brasil parafso das crianas, sonho de impunidade do menor crirrunoso, ~ tambm um lugar onde a maior esperana parece estar depositada na instncia pe9aggit:a. Como j mencionei, a pedago-gia dominante vagamente rousseausta e parece desconfiar de uma transmi,sso do "gout de l'effort". Mas, de qualquer forma, dos progressos da escola to-do mundo espera o milagroso surgimento de um ci-dado novo. Jules Ferry e todos os arUfices da escola obrigatria europia no comeo do sculo seriam aqui bem-vindos, pois se respira uma verdadeira f nos efeitos possrveis do ensino. o colono certamen-te quem espera que o ensino constitua magicamente para seus filhos o nome que ele no encontrou nesta etapa Brasil da sua viagem. .

    Deste ponto de vista, alis, para ambos, coloniza-dor e colono, a cdana portadora de um fantasma de esperana. Que as decepes dos dois sejam dife-rentes e, portanto, que os fantasmas delegaos criana tambm sejam, pouco importa. ~ No deixa de ser preocupante um ingresso na fil iao nacional no qual parea decisivo responder, ou melhor, ser encar-regado de responder a uma frustrao ancestral, seja aquela do colonizador ou aquela do colono.

  • 50 HELI.O ORASlL!

    Os psicanalistat; sabem que quanto mais um sujei-to cuida das suas frustraes (que so tambm aque-las que lhe foram transmitidas), tanto menos ele CQn-segue propri

  • QUERO GOZAR

    Salvador, praa Castro Alves na noite de tera de carnaval, estamos sentados~ eu e Eliana, ao lado de uma barraca tomando cerveja, olhando e escutando passar os blocos e os trios, esperando a ~anh.

    Eliana est sentada de pernas cruzadas, tornozelo sobre o joelho, com uma bermuda larga. Um negro alto e sorridente pra na frente dela, olha fascinado para a fenda que sobe entre o tecido e a perna e fi-nalmente enfia a sua mo. Embora um natural bri-guento, a situao surpreendentemente no me aba-la, como se no me sentisse chamado a ocupar o lu-gar flico que me competiria, ou ento como :se no estimasse que a investida pesada se endereasse indi-retamente a mim que visivelmente acompanho a mu-lher. Eliana, com um sorriso, pra e des~ia a mo do pretendente e lhe dedica um 'pega leve", ao qual ele responde desistindo, sacudindo a cabea com uma expresso de infinita tristeza. Abana para ns dois e se afasta.

  • 52 IIELLO llRASIL!-

    A cena atpica porque, at mesmo no carnaval baiano, a mulher acompanhada tanto mais respei-tada, a ser evitada, que cada um deve supor que o acompanhante engaje na relao com a sua mu-lher - mesmo ocasional - toda a ambio de pos-sesso exclusiva do colonizador. Mas 6 atpica tambm pela minha reao ou aus~ncia de reao, como se estivesse de repente fascinado por uma pre-tenso ao gozo que se legitimaria fora da competio entre irmos para um corpo interditado a todos.

    Um pouco mais tarde, o sol j batendo na praa Castro Alves, o bloco da limpeza j descendo de Campo Grande, DadO e Osmar tocam um "quero go-zar", que decidimos danar e abrimos um .caminho na massa compacta dos ltimos foHes. Uma mo se en-fia a fundo no bolso da minha bermuda, penso na burrice de quem imaginaria que numa hora dessas eu circularia com dinheiro no bolso, seguro com a minha mo o brao annimo. que me sonda e com fora o levanto. Virando-me, descubro um jovem que, com a mo mesma que aprisiono, fecha o punho e levanta o polegar em signo de cumplicidade e me lana um sor-riso divertido. o movimenta da massa o afasta e eu o solto s~m saber se ele queria roubar meu dinheiro ou um instante de prazer. Logo toca o hino a Nosso Se-nhor do Bonfim, todos cantam.

    Voltando para Camp Grande, atravessamos o bloco da limpeza e atrs dele a cidade j est de novo funcionando. O sentimento de tristeza, normal no fim de um carnaval.

    O carnaval no Brasil nao deixa de ser um rito de . \ mverso como em qualquer lugar no mundo. Nesse sentido,. o .meu amigo Alfredo Jerusalinsky foi quem

  • QUERO GOZAR 53 .

    me falou as coisas mais bonitas sobre o desfile das es-colas, me fazendo notar a funo de destaq~e da por-ta-bandeira e do mestre-sala, nico .casal, geralmente vestido com roupas .que evocam a melhor poca da escravatura. O casal abre o desfile e a mulata solista parec~ apresentar o fruto dos amore.s do colonizador com.o corpo escravo. .

    Mas, neste carnaval, penso mais na contaminao d~ uma extraordinria determinao a gozar, herana do colonizador, que de repente parece se enunciar para todos. A tolerncia inesperada s investidas ao corpo da minha ~uiher ou ao meu prprio testemu-nham que participei de uma festa onde se celebra a abertura dos corpos, todos, a um gozo finalmente sem impedimentos.

    No carnaval carioca e geralmente nos desfiles de carnaval, j foi notada muitas veze!uu:.ela.~ilo narcfsi-ca, quase especular, entre a escola_gue passa e a ar- _

    qui~ancada que explode. Olha como go.zo que olho c()mo gozas: a festa est na mtua sustentao da ef~mera certeza que estamos gozando.

    A tristeza da ltima hora ligada ao hino ao Nos-so Senhor do Bonfim. Pois, se gozamos, nos resta a

    no~talgia de um pai desmentido que nos deixou go-zar, melhor: desmentido por ter nos deixado gozar; se gozamos, mas, como :sempre, no foi hem o que deve ria ter sido, nos resta o apelo a um pai que seja o bom fim da nossa viagem, o par.S impossvel de um pai que valha no por interditar, mas por permitir gozar. Ou ento, que nos perdoe a nossa viagem e nos ace ite de volta como filhos. . .

    O imperativo de gozo no , verdade seja dita, nem ui'JUl. inveno nem uma especificidade brasilei-

  • 54 llfiLl.O flRAS II.I

    r.a. Mas o colonizador parece ter imprimido aqui marca especial.

    Q11_erer gozar poderia ser uma "razo de ser" uni-versal, que normalmente. se resolve num gozo insa\.is.-fatrio mas no sem prazer, relativo ao .exerccio dos ~tossos limites. De urna maneira simples, poderia di-zer por exemplo que, minha "razo de ser" sendo go-zar, ela se resolve no gozo de um "ser filho", que se mede como insatisfatrio do pont de vista de um eventual possfvel acesso a um outro gozo que me proibido. A minha vida de repente se organiza .ao re-dor da questo do ~nbe.cimento pelo pai interdi-tor. certo alis que no penso nem um segundo que a slida sujei~ a uma funo paterna seja um sin-toma social particularmente invejvel - a prova que escolhi viver no Brasil. De qualquer forma, mes-mo que ser filho seja o centro das minhas preocu-paes, posso dizer que querer gozar continua sendo a minha "razo de ser": por ser filho, o meu gozo impedido, e assim descubro um gozo necessaria-mente amputado relativo ao exerccio d!. ... .minha fi-liao (aqui -surge o "got de l'effort"). E h. mais: mesmo que eu goze amputadamente de ser filho, con-tinuo sonhando num gozo outro, aquele que o pai ter-me-ia interditado.

    Mas o colonizador fez uma aposta contra a a.mpu-ta~o do seu gozo que lhe impunha o fato de ser fi-Ih~ ele escolheu ir para ou tro lugar onde a lfngY.a Jl- trna lhe permitiria gozar plenamente. Disso, umas conseqncias: gozar, para quem aposta contra os li-mites impostos pela sua fil iao, no pode ser uma "razo d.e ser". Se transforma necessariamente em uma "razo de es tar" onde o gozo seja possvel, urna

  • QUERO GOZAR . .5.5

    razo, alis, que no gozo predsa se justificar. Por isso o "estar", embora contingente, mais imperativo do que o "ser". Para quem " daqui", o "ser'~ , uma ne-cessidade, talvez chata mas sem outras obrigaes do que a simples determinao simblica; para quem "est aqui", o "estar'' 6 uma co~tingncia que precisa ser justificada a cada instante, gozando. Se gozar

    . minha razo de estar, por que no ir embora quando no gozo como previsto ("este pafs no presta")? Por que no procurar sem trguas um lugar outro onde possa estar gozando?

    Num determinado momento necessitei escolher um funcionrio. Fiz nessa ocasio uma pequena aprendi-zagem sobre triagem e fiquei impressionado com as carteiras de trabalho: seis meses esquerda, trs di-reita, cinco no meio ... No entendia o porqu! de uma tal mobilidade da mo-de-obra. Justificava-a pensan-do nos salrios eventualmente medocres, nos am-bientes de trabalho etc. Mas conhecia tambm a ex traordinria mobilidade da mo-de~obra norte-ame-ricana, e, por outro lado, a extraordinria estabi-lidade da mAo-de-obra europia. Na Europa, em caso de declnio econmico de uma regio, as propostas eventuais de transfer!ncia para zonas mesmo limtro fes de nova industrializao encontram sempre uma resistncia feroz das instncias sindicais que defen-dem a insero cultural local do trabalhador como um valor vital. E a coisa acaba custando preos ele-vadssimos aos governos que inventam projetos quase sempre inviveis de industrializao forada, quando no decidem a nacionali~ao de empresas j mortas.

  • . !

    56 HE LLO BRASIL!

    Nos Estados Unjdos, outra coisa~ o trabalhador vi-vendo em "mobl-home", a casa amarrada ao seu car-ro, correndo atrs da fronteira de trabalho, parece uma espcie de heri de sonho americano, meio Walt Whitman, meio Jack Kerouac; o amor dos vastos es-paos, de uma terra grande onde a mobilidade se transforma num ideal que sublinha a filiao simbli-ca aos mitos nacionais.

    Aqui ainda outra .. coisa: algo diretamente relati-vo hiptese ou ao sonho de um ganho apenas maior ou de um tempo de trabalho menor. Ou, mais exata-mente, nada de tudo isso: trata-se do anseio de uin outro lugar; 6 impossfvel deter-se na viagem para Passrgada. Os la-os que tecem a yida no meio do trabalho no entram, ou entram pouco na conta da deciso. Pois o que conta o sonho de gozo e ele sempre razo de estar. Mas onde? .

    Encontro no Brasil os motis. Parisiense durante mais de quinze anos, conhecendo Alemanha, nor-malmente os motis no deveriam me estranhar. Mas os motis brasileiros so . bem aiferentes dos hotis "de passe, franceses. Mesmo nos mais requintados destes, com a tradicional escolha de quartos - me-dieval, oriental, nollywoodiano etc. - no se deixa de rspirar um ar de pecado, de algo ilegftimo e repre-ensfvel. Por exemplo, nada indica exteriormente que tal hotel seja um "hotel de passe". A discrio are-gra._

    Os "Eros centers" alemes no obedecem neces-sariamente a estas regras de discrio. mas ao mesmo tempo se pretendem prostfbulos modernos. Eles so consagrados ao exerccio da prostituio.

  • QUERO GOZAR 51

    O mote) brasileiro se anuncia de longe, com car-tazes e non, com oferta de almoo executivo, teto solar e cadeira ertica. Mais importante ainda, quan-do recorre publicidade na imprensa, por exemplo em So Paulo ou no Rio, ele chega a se propor como alternativa de lazer ao casal casado. Pois anunciado .um lugar onde a tranqilidade, as maravilhas da tc- nica, "water-bed'', vdeo, cama vibrante, luzes estro-boscpicas, pisdna individual... oferecem uma estada no mundo do gozo, uma visita Disneylndia da transa amorosa. Em poucas palavras: a questo no parece ser ofere,cer a oportunidade de uma transa ilegtima o de uma excurso prostibular~ trata-se de ve~der a iluso de um lugar onde haveria uma boa razo de estar.

    . O "tudo bem" portugus j supe mais felicidade no interlocutor do que qualquer outra frmula de cortesia que eu conhea. A verso . mais carioca e paulista, 44tudo jia", impressiona ainda mais: a supo-sio paradisaca. Por que ser que necessrio enunci-la mutuamente num encontro? Mais do que uma pergunta, alis, o "tudo jia" parece uma con-firmao recfproca.

    Uma idia da sua significao me vem de um pa-ciente particular e dramaticamente preocupado pelas escolhas possveis dos rumos de sua vida profissiomil. Ele me cumprimenta, apertando vigorosamente a minha mo e perguntando: "Firme?".

    DigO-me, daf, que para quem se encontra aqui, prociamar "tudo jia" vale uma pleonstica decla-rao de "razo de estar": se estou aqui, firme, se ainda.no viajei, s pode ser, tem que ser "tudo jia".

  • FUNCO PATERNA

    Gosto, chegando num pafs, antes e alm mesmo de investigar seriamente a sua histria e cultura, de mergulhar na imagem bsica que ele parece ter dele mesmo, e sobretudo na verso da sua histria que ele ntcsmo se conta.

    No me privei, chegando no Brasill... de ler os llvros escorares de fiistra, por exemplo para a 51 srie. A leitura foi instrutiva e angustiante pelo extremo ci-Ilismo dos textos. Trata-se de livros recentest efeito da safda da insuportvel retrica de qualquer ditadu ra militar. E tambm, por alguma alquimia mental que j revelou num texto bem conhecido C'Nardsis~ mo em tempos sombrios", in Percursos na histria da psicanlise, Rio de Janeiro, Taurus, 1989} o meu ami-go Jurandir Freire Costa, o marxismo e geralmente o progressismo acham bom, nesses dias, se vestirem de cfnicos, como se qualquer ideal fosse reacionrio.

    Procuro, por exemplo, o capftulo que introduz o momento - inaugural para o Brasil - das grandes

  • IJELLO JII{J\.SIL!

    viagens e des.cobertas. Na minha lembrana, nos meus livros de texto, um tal captulo tecia um lao desde o Ulisses homrico quele da Divina comdia, at os navegadores, interrogando o anseio de conhe-cer, a paixo de aventura, o apelo e o fascfnio do ho-rizonte martimo. No sem lembrar os efeitos inci-pientes do declnio do universo ptolomaico e a nova angstia de um mundo infinito. Bobagens e no: pois, o imperialismo fornecendo eventualmente os inves-timentos necessrios, trata-se de um momento-chave na transformao da viso bsica do mundo do ho-mem ocidental. Procuro ento o captulo em questo e encontro o ttulo "Os europeus procuram novas ri-quezs". E basta.

    Outro exemplo instrutivo: 1806, a Europ~ est quase inteiramente napoleonizada, e Napoleo de-creta o bloqueio continental da Inglaterra. Como se sabe, Dom Joo decide ajudar a Inglaterra, o que vai lhe custr nada menos que a perda da sua terra (com a conseqente instalao no Brasil). Ajudar a Ingla-terra nesta 6poca era sem dvida um ato de grande coragem e de fidelidade ~ uma tradio j cumprida de intercmbio comercial e cultural. De tudo isso nem uma meno: "Dom Joo no poderia agir de outro modo, uma vez que tinha dvidas com a Ingla-terra e grnndes in.teresses comerciais.,, e basta:

    Nem udlanta continuar: tudo acontece como se o nico motor da ao humana pudesse ser o apetite de um gozo direto da coisa.

    Pensando bem, no 6 nada estranho: j constata-mos que a decepo do colono para com a autoridde

  • FUNO I'A'i'I.!I{NA 61

    que dava legitimidade ao seu sonho faz do cinismo o m_pdo dominante da... relao . brasileira com toda ins tncia simblica. Nada estranho tambm que de repente o colono, na sua busca contnua qe uma funo paterna que lhe outorgue a filiao procurada, acabe medindo qualquer funo paterna possfvel pelo gozo ao qual ela poderia dar acesso. evidentemente

    . paradoxal, pois uma funo paterna normalmente se mede pelo gozo que interdita e eventualmente imagi-nariza e no pelo gozo que permite. Mas se o signifi-cante ao qual peo filiao me designa o corpo exan-gue e gozado da me ptria, se a autoridade preten-sarrtente simblica qual recorro se revela como a expresso obscena do gozo do dono, como acreditar que um Nome do Pai possa se medir a outra coisa que no regozijante potncia que ele exibe e even-tualmente pelo acesso que ele mesmo me reserva na festa?

    O aparente cinismo dos livros de histria talvez se explique assim: o motor da ao certamente ainda uma referncia paterna, mas aqui a referancia no ideal, um pai s se sustenta medida que det~m o bolo e promete a maior fatia.

    A coisa aparece na vida cotidiana, na escolha de uma profisso, por exemplo, no discurso das crianas. O qu~ fazer quando for grande? :B raro que, mesmo no momento das identlflcaOes edfpicas, se manifeste a escolha de um "ideal" que no seja me~ido parte do bolo que promete.

    Impressiona-me, por exemplo, como uma famlia inteira parece desconsiderar um pai que no conse guiu enriquecer como se esperava, por no ter ~'apro veitado" das suas chances. O capital incrvel de ami-

    . '

  • 62 HELl.O BRASIL!

    zades, estima, valor d.e um nome respeitado que ele deixa, pouco parece valer.

    inevitvel por conseqncia que o exerccio do poder seja, digamos, 1'exibido" numa espcie de potlach necessariamente infinito (no sistema de potlach - como lembram certamente us leitores de Marcel Mauss . - o dom, a ddiva o que sus tenta a autoridade do doador, impondo alis, a quem recebe, ddiva semelhante ou maior) . Um cargo, uma funo p~~tensamente simblica parecem poder se sustentar tanto rnel'hor quanto mais quem os c::xerce, gastando, exibe a medida da riqueza da qual dispe. Isso abre necessariamente as portas do clientelismo e da cor-rupo: se o cargo, que ocupo vale na medida em que posso dar prova patente do meu poder e da minha disponibilidade de recursos, s posso sustent-lo nu-ma indefinida demonstrao; o exercfco do argo se confunde com o gasto que comprova o seu valor. Um exemplo clssico continua sendo a viagem a Momba-a do famoso presidente interino: no espao breve e contingente do nterim rclalivo a uma ausncia do presidente Sarney, urna volt~ grandiosa cidade natal sustenta o valor '1simblico" de um cargo, comprome-tido pelo seu carter interino. Nasce, alis, assim um neologismo: "fazer uma mombaatla", para indicar um gasto exibido que tenta sustentar uma funo problematicamente simblica.

    A vida poiCtica do pas uma mornbaada atrs da outra, por necessidade. Por exemplo, o clienlclis-mo local e familiar, ou seja, o fato esperado que um homem poHtico ou um funcionrio no poder devolva riqueza para a sua cidade na tal e para o seu cf rculo familiar, no tanto uma retribuio dos votos que

  • I'UNOPATERNA 63

    lhe foram eventualmente acordados, nem o signo de seu amor para a terra natal e a famflia. O problema que' nestes lugares, onde, mais do que em outros, o nosso poirtico ou funcionrio gostaria de encontrar o justo reconhecimento da dignidade do seu percurso e do seu cargo, ele descobre que esta dignidade s ser reconheida medida que ele a ilustre com uma pro-digalidade qu demonstre os seus recur~os.

    instrutivo deste ponto de vista o episdio Slvio Santos na campanha presidencial de 89. Por um 'lado parecia que distribuir presents no ba da felicidade era justamente urna prodigalidade suficiente para fa zer um plausvel candidato. fo.LOllJJP lado, mais as-sustador, aparentemente o fato que a candidatura se revelasse possvel a partir, no de uma filiao poUti-ca ou ideal, mas dii compra manifesta de uma legen-da poltica. uo comprometia a candidatura. Pergun-tava-me: mas como po.de ser? Como esta compra simplesmente por ser pblica e conhecida no invia-biliza a candidatura? Quem poderia querer votar em algum que sustenta sua posio de candidato em seu poder de compra? A minha interrogao era ridcula, pois justamente a fora da candidatura residia na amostra produzida do poder de compra.

    Paralelamente, quando nos primeiros tempos da minha estada as pessoas tentavam me explicar o fun-cionamento do sistema dientcHstico, os ditos grnndes eleitores, as obrigaes que constituem os privilgios acordados, ainda que irrisrios, evidentemente no entendia. Parecia-me bvio que, se o segredo do voto fosse respeitado - e em alguma medida devia ser -nenhum favor poderia garantir uma fidelidade prati-camente invcrificvel. De fato a fidelidade no ga-

  • llcLLO DRASIL!

    rantida por razes r~tributivas (tipo "Devo o meu vo-to a fulano porque pagou para todos uma extrao de dentes"); ela garantida porque a tentativa de me . corromper no s e no tanto me beneficia, mas so-bretudo me permite reconhecer no corruptor uma au-toridade.

    Uma referncia paterna que valesse simbolica-mente seria imediatamente desacreditada pela. sua

    pr~pria (suspeita) prodigalidade; aqui acontece o contrrio: a exibio da potncia real e, em ltima instncia, da corrupo valida a autoridade e impe uma fidelidade que signo de respeito.

    Sem isso seria impossvel entender alguns slogans oficiosos de uma recente campanha poltica para a eleio dos governadores. A proposta de um candida-to conhecido como prolfero sugere: ''Vote X, ele po-deria .ser o seu pai". Outro candidato -deixa circular o mote: "Rouba, mas f.az". Cumulando perfeitamente cinismo . e amor de uma autoridade simbolicamente indigna, encontro uma frase pichada num muro, que - se prevalecendo da rima: - diz: "Bosta por bosta, voto no ... ". O incrvel que estes slogan.s ofi-ciosos possam ser considerados e funcionem a favor do candidato que apontam.

    Falo com um visitante portugus de alguns pro-blemas relativos. gestao de um hospital psiquitrico. problemas suspensos mudana iminente de direo nas prximas eleies. S no meio da conversa nos damos conta do equrvoco: estou falando das eleies do governo estadual e ele est imaginando que se tra-te de eleies internas no hospital. Descubro assim que, e.Ill.JlQU.C.O tempo de permanncia. j est me pa-

  • t-UNO J>AT I::RNA 65

    recendo normal um tipo de atribuio L.le cargos pQr via poltica, que deveria ser naturalmente por via de cooptao ou por concurso. Cada governo distribui cargos no segundo escalo administrativo, o qual em outros pases de terminado por competncia espec-

    . fica. O drama que esta sustentao do poder se

    transmite, pois quem foi assim escolhido ter ele mesmo um cuidado de qualquer forma pr~vio ao exerccio da sua competncia: o cuidado de sustentar por sua vez a prpria posio de poder com uma de-monstrao de poder, ou seja, nomeando. Realiza-se assim uma cadeia que destina toda a funo pblica a uma inevitvel incompetncia, ocupada com a neces-sidade de demonstrar o bem fundado do seu exerccio do poder; como? Exercendo o poder de distribuir cargos. Por esse caminho a funo pblica se sustenta crescendo exponencialmente e se distingue pela sua ineficincia a preencher uma funo .outra que a de sua prpria sustentao.

    O princfpio dominante segundo o qual uma funo paterna vale pelo gozo que e~ibe e promete acaba tornando difcil uma anlise honesta do coti-diano.

    Chega ao ponto que a distino se torna pro-ble~tica seno impossvel, para a opinio pblica, entre as exJg!ncias normais da dignidade de um cargo e_ a sua paradoxal sustentao numa prodigalidade exibida. Assim se, sentado na frente da televiso, con-sigo apenas acreditar no relato tragicOmico da viagem de Paes de Andrade, de repente tambm no consigo entender as contas feitas no bolso de Fernando Col-

  • 66 IIELLO ORAS! L!

    lor almoando "chez Lipp .. ou baixando no Ritz em Paris. Ser que o presidente eleito do Brasil deve descer neste hoteJzinho da rue de Turenne, que acon-selho freqentemente, ou almoar no chins da es-quina?

    Do mesmo jeito, querendo moralizar a vida pbli-ca, se instaura, por exemplo. uma verdadeira caa ao parente favorecido. A cura no muito diferente da doena e manifesta de. qualquer forma o exflio do critrio normal da competncia. Ouvida num boteco paulistano, a discusso entre dois clientes motivada pela coincidncia de sobrenomes entre o presidente Collor e a Ministra da Economia, acaba assim: "Bom, talvez no sejam mesmo parentes, mas o mesmo nome".

    Pior ainda no equfvoco - . embora o fenmeno no seja s brasileiro - lembro-me da polmica ao redor da construo do Memorial da Amrica Latina em So PauJo durante o governo Qurcia. O argu-mento crtico tradicional concerne aos custos que sempre parecem astronmicos. De fato este tipo de obra pode tambm ser considerada como utn potlach e de uma certa forma . No final das contas, t-rata-se de um gasto que parece sustentar uma funo simb-lica; mas a distino merece ser feita entre um gsto que sustenta uma funo simblica e uma funo que pretende ser simblica fora de gastos. Os gastos para sustentar uma funo simblica so propriamen te os gastos culturais, e eu sempre os acho insuficien-tes, sendo insensfvel aos argumentos que colocam as necessidades ditas bsicas como prioritrias. As

    razes histricas que poderia trazer so conhecidas: se as necessidades bsicas fossem prioritrias, a hist-

  • FUNO PATERNA 67

    ria dos seres falantes no teria simp,esmente produ-zido a incrvel prolifera~o cultural da qual os huma-nistas diriam que ela assintoticamente produz uma . definio do humano e da qual preferiria dizer que o lugar de onde, por ser interrogado. o sujeito ganha a su~ identidade. Alis, aqui no Brasil. o ~rgumento das necessidades bsicas, por justificado que seja, acaba produzindo um. efeito especialmente. pernicio-so, pois s do investimento cultural que se pode es-perar, acredito, a milagrosa inveno de uma instn-cia simblica verdadeira que no ~enha mais que se sustentar na prndigalidade. Uma instncia simblica verdadeira seria aquela, entende-se, que permitiria a ada um finalmente ser e no estar brasileiro; e daria a "brasileiro" ~ma significao definitivamente outra do que a proposta pelo colonizador. ..

    A crtica comum ao investimento cultural enquan-to "desnecessrio" pode melhorar o nosso entendi-mento do que o gasto exigido do .poder no Brasil. Este gasto exigido e parece valer eomo sustentao d;t funo do poder s na me.dl"da em que ele distribui l!m ganho efetivo e material. Em outras pal..aYw....Que o homem poHtico gaste, isso sustenta a sua funo, s se este gasto tambm me reservar uma parte de gozo.

    E. sobretudo, no de qualquer gozo: no pode se tratar do gozo do ser que nos ofereceriam, por exem-plo, as obras de arte dos museus nacionais, mas tmbm decises polticas corajosas, embora s vezes pouco rentveis; o go.zo exigido se espera que seja de consumo direto, que justifique o estar aqui.

    A diferena novamente aparece. entre dois pedi-dos que podem se enderear a uma funo paterna:

    q~e me d um nome o que me d um po. Que para

  • 68 IIEI.I .O IIKASII .I

    dar nome precise dar po, testemunha de uma fra-queza especfica da funo que nomeia. O ditado fa-moso diz ''No s de po vive o homem."; se a distri-buio milagrosa dos pes lhe for necessria para acreditar no seu Deus, ele ter como deus os Pes (de Andrade) que merece.

    Desde as minhas primeiras viagens ao Brasil, quando a minha atividade era principalmente de cur-sos e palestras, algo me seduziu no trabalho aqui. Em hora eu chegasse com todo o "charme" de uma formao estrangeira e prestigiosa, parecia que os auditrfos conseguiam ultrapassar a inibio que qualquer idealizao produz e por conseqncia in-terrogar mais o que eu estava propondo do que a mi:-nha pessoa.

    Isso era, para o meu prprio trabalho de pesquisa e inveno, de uma importncia notvel. E parecia marcadamente mais interessante ensinar no Brasil do que na Frana, pelo menos no ca~po da psicanlise. Tumb6m, e no mesmo sentld), achava que us

    . questes dos ~eus interlocutores preferiam ser tmi-das ou arriscadas do que fundadas em argumentos de autoridade. Para quem vinha de uma cultura (sobre-tudo psicanaltica) onde a citao reina soberna, era mesmo um pouco de ar .fresco.

    Isso tambm um efeito - mas positivo desta vez - da exigncia de medir uma funo paterna no que ela traz e permite. A que_sto t complicada, pois, se por um lado era estimulante constatar'que o qu-~ eu trazia, sobretudo no registro da clnica, podia ser considerado e discutido independentemente dos efei-

  • FUNO J'ATI:KNA 69

    tos de autoridade do meu nome, eis que surgiam dois problemas.

    Um primeiro problema relativo ao tipo de urgn-cia com a qual o saber que eu produzia era solicitado. Pois era facilmente pedido que as consideraes clf-nicas v_iessem acompanhadas das justas regras de suas aplicaes prcas, com garantias de resultados. Essa postura pragmtica, .e mais geralmente americana do que especificamente brasileira, deve ser certamente versada ao captulo das dificuldades da psicanlise no Brasil. Dito brevemente, a psicanlise uma prtica que pressupe fundamerualmente que naja um psica-'nalista. Ou seja, no h uso .cHnico possvel da psi-canlise por quem no seja analista. E um psicanalis-ta se forma, fundamentalmente, no na transmisso e um saber, mas numa experi!ncia efetiva que trans-fllttna o ... ser" 1emQJ1 ~m um sentido paradoxal, pois se trata de uma certa forma de reduzir o "ser" do sujeito ao mfnirno). Oeve-se poder entrever?- difi-culdade: como produzir_e fazer valer um.saber que se funda numa experincia de despojamento, quan_do qualquer saber parece dever ser medido pelos efeitos e gozo que pro~ete, e como engajar algum em urna experincia que certamente no se sustenta nu-ma promessa desta natureza?

    O segundo problema era uma forma atpica de plgio. S no Brasil me aconteceu de presenciar - u convite - a conferncia de um aluno para escut-lo apresentar publicamente fragmentos do meu ensino que eu mesmo eventualmente considerava como bipteses corajosas e ainda precrias. Digo uma for-ma atpica de plgio, pois tanto o convite quanto a tranqilidade do palestrante, e mais ainda o estilo da

  • 70 HCLLO BRASIL!

    apresentao me deixavam pensar que no se tratava de um exerccio simples de cara-de-pau. Parece mais que - para o aluno em questo - ficava desaperce-bido, no._meu . .ensino~ o lao entr~ o que eu p_odia propor e a minha enunciao de sujei to. o que eu podia ensinar no era considerado como o fruto su-posto da minha singularidade. Desde que enunciado, ele podia ser apropriado pois no er mais de nin-gum, no carregava assinatura nenhuma.

    Fiz a mesma experincia repetidas vezes em con-versas mais restritas, onde conceitos que me so pr-prios podiam voltar na boca de um interlocutor como .se fossem seus. No acredito na propriedade intelec-tual; a linguagem" j;lOr s1naf" no de ningum Mas a questo aqui no tanto a da pro~riedade: o ex-traordinrio e ra constatar que um sujeito pudesse fa-zer uso de um conceito ou de uma teoria com uma perreita e assdua in'diferena sua origem subjetiva, que~o dizer ... simples marca que a assina.

    Nenhum descaramento. ento; mas uma certa im-possibilidade de reconhecer marca singular num sa- ber. Pois reconhecer esta marca seria, na eventual adoo deste saber, reconhecer uma . forma de fi-liao no "autor", a qual contraria pelo menos a po-sio do colonizador. O colonizador veio desconhe-cendo o pai e ao msmo tempo usurpando a prpria Hngua dele, para imp-la a um corpo terra que ele no interditasse. Este esquema parece ento conco-mitantemente privilegiar a interrogao da eficcia de qualquer saber e resistir ao reconhecimento da fi-liao que a adoo deste saber implica. Pouco im-portaria, se esta resistncia niio produzisse obstculos

    especficos 'na relao com o saber: em particular, a

  • fUNO PATEMNA 71

    preferncia - sensfvel na relao com o ensino psi-canaHtico - para a comida pr-digerida. Os alunos -eventualmente famintos - no se jogam na leitura, por exemplo, de Freud ou de Lacan. ou de I

  • n tii:LLO IJRASIL!

    trangimento na sua vida familiar. Sabendo que tradi-cionalmente os horrios marcados so de qualquer forma pagos, a supervisionanda propunha: "A senho-ra se importaria ento se, para ocupar o meu horrio, . eu mandasse uma amiga que est precisando de uma superviso?"

    Com efeito, por que um paciente "muito ocupa-do'' no aproveitaria dos horrios que ele falta para mandar a mulher, ou o -filho, ou mesmo o seu moto rista? A histria~ reveladora de um deliberado des-conhecimento do que envolve singularmente um su-jeito numa experincia.

    Outro exemplo. Uma analista, ppr sinal respeit-vel e respeitada por mim, me liga um dia explicando que foi convidada a dar uma conferncia sobre um tema que ela desconhece e do qual. no tem expe-rincia prtica, e que ela aceitou; o que j pouco banal e sup(! uma vez mais uma curiosa desvincu-lao de saber e sujeito. Ela sabe que poucos meses antes eu administrei um curso inteiro sobre o tema

    em questo e desenvolvi algumas id~ias int~ressantes, lamenta no ter assistido ~ me pede uma "sup_erviso terica .. , "paga, natur~lmente", na qual eu pudesse lhe resumir estas minhas idias para ela orga!lizar a sua conferncia. Resolvi a coisa de tim jeito que. me pareceu o nico analiticamente possfvel: recusei, e a atendi s para emprestar alguns livros. A histria indicativa da mesma problemtica: a da resistncia a

    pa1.ar o preo de uma filiao no acesso a um saber, e . do pressuposto que o saber (a lngua pate,rna)nruL.te-nha pai (entende-se: no tenha pai que no seja'\o prprio usurpador do saber paterno).

    Para quem conhece a tragicomdia que a si-

  • fUNO PAT ERNA 73

    tuao da psicanlise, lacaniana particularmente, em So Paulo, estas indicaes podem ser preciosas. Pois se trata de uma vasta comunidade ana.ltica que, primeira vista, pode parecer unicamente preocupada com as condies de gozo que lhe reserva o exercfcio de uma disciplina da qual se trata naturalmente de desconhecer a filiao. No seria diferente da posio do colonizador: o pai da Hngua est longe, na Frana por exemplo, ele pode ser esquecido, e a sua lngua pode nos servir aqui.

    As lutas intestinas da comunidade no seriam des-te ponto de vista. propriamente fratricidas, embora violentas: sem a referncia implcita a um pai ca: mum, s se trataria de guerras para a posse e a explo-rao da nova terra entre colonizadores sem lei. De fato mais complicado, pois inevitavelmente, na competio, cada um ou cada grupo acaba tentando se prevaJecer de uma referncia a um pai. E no uso desta referncia que se desdobra uma valsa engraa-da que - se valesse a pena ser contada em detalhes - talvez fosse exemplar do drama inteiro das dificul-dades nacionais com a funo paterna. S vale a pena articular a complicao que parece constituir o esfor-o repetido para, ao mesmo tempo, ter acesso a um ensino, se prevalecer eventualmente do privilgio imaginrio que ele outorgaria e desmentir qualquer forma. de filiao.

    Um conjunto de grupos de analistas convida um analista estrangeiro - conhecido por uma.srie de valiosas e importantes contribuies; cada um assina nominalmente uma convocatria pblica. O,. lder lo-cal de um destes grupos se prevalece da situao para transformar u.ma apresentao do convidado em uma

  • 74 HELLO BRASIL!

    incrvel exibio retrica do seu prprio lugar de po der (que evidentemente a presena do convidado sus tenta implicitamente), e eis que o conjunto inteiro se nega a pagar honorrios ao analista convidado inter-rogandose comicamente sobre o lugar de onde a demanda emanou. Ou seja: mas ser que ns o con vidamos ou que ele quis nos ensinar? O exemplo excelente: convida~se um pai p~tra prevalecer-se da sua sustentao, mas no mesmo momento precisa de-negar qualquer dfvida com ele, re.p.e.tir a desmentida da fi liao do colonizador, como se reconhecer um fiozinho de filiao pudesse privar-nos de algum go-zo. Mais especificamente do gozo que o saber do pai nos promete, se soubermos usurp-lo.

    Outra histria: na ocasio da viagem prevista de um amigo para o Brasil, proponho a uma instituio paulista hospedar e promover algumas conferncias que ele se d isporia a dar. De fato, por razes de tem-po. a proposta sendo bem em cima da hora., a coisa no se revela possvel, embora a dita instituio se mostre muito interessada pelo trabalho terico e clf-nico do meu amigo. Pouco tempo depoi~, antes da viagem, ele toma na Frana. algumas posies pbli-cas cortantes no campo da vida institucional~ E aprendo Jogo depois que a dita instituio paulista fi-cou retroativamente to apavorada idia de qve ela poderia ter convidado o meu amigo, desconhecendo os seus ltimos engajamentos polftico~institucionais,

    que ela resolve ficar estupefata comigo pelo ~isco ao qual eu a teria exposto. Para entender a histria. necessrio lembrar que a dita instituio se envaidece da sua falta de filiao definida; ela adota a soluo . j mencionada: tomar um pouco de tudo e de todos

  • FUNO PATERNA 1S

    seria o que permite o acesso a u_m sa_ber, ~Qnhe ce.ndo a singularidade. que_Q _ _assina e, portanto, evi-tando;o risco dos limites (ao qu?) que uma filiao imporia. DaJ a pilico retroativo relativo a uma mani-festao na qual o comprometimento poltico do pa-

    . lestrante poderia ter jogado a sombra de um com-prometimnto anlogo sobre a instituio. Se petguri tar por que, pois, se a instituio se coloca suspensa no limbo que antecede as filiaes, deveria poder de repente freqent-las todas sem que nenhuma a con-tamine e de todas absorver s o saber que elas trans-mitem. Mas este lim~o frgil. A denegao sobre a filiao s consegue se mantq _no contato com pais distantes, fracos e um pouco inspidos. O preo pago a pobreza do,limbo~que, se a ocasio se apresentas- se, no poderia convidar nem Freud, nem Lacan, nem Klein. A soluo. melhor sendo que a comparsa cha-mada a ocupar a funo p~aterna conforte a platia na idia que o pai estaria morto de verdade, por exem plo que ele mesmo participe de uma impotncia fren-te a um "impondervel" real da clnica que nos impo-ria a todos o recurso a uma incerteza de saberes ne-nhum dos quais nos comprometa. A soluo do lim-bo, alis, no necessar.iame~te institucional; . at~, em So Paulo, ela a posio individual standard.

    A exceo ao lir_nbo tambm oferece um exemplo de um tipo de solu!o ao transtorno da funo pater-na que nos interessa. Existem tambm grupos que se constituem ao redor de uma filiao reconhecida ex plicitamente. O engraado que - neste caso - a preferncia de repente para os laos afiliativos mais pesados e coercitivos e mais "exteriores". Deixo a ex-plicao deste fenmeno para o momento em que

  • 76 UELLO BRASIL!

    tentarei me interrogar sobre a inverso histrica que parece transformar o colonizador, uma vez a sua em-presa fracassada (e s poderia ser), em devedor ex-temo.

    Estas observaes, se valem para a psicanlise la-caniana em So Paulo, no deixam de constituir uma parbola que talvez valha mais geralmente para grande parte da vida cultural no pais. O limbo da .maione~e s um efeito do j mencionado antropo-fagismo: comer todos os pais na iluso que, neutrali- zados no bolo digestivo, se transformem coletivamen-te em sangue e foras .

    . A escolha evidentemente preventiva, pois, se precisa comer todos os pais, porque Q colonizador S imagina um pai sua imagem e semelhana, e O colono s o imagina imagem e semelhana do colo-nizador. Apelar para um pai sempre comporta o risco da prpria escravatura: ~ vai querer nos comer e pre.cjsn portanto ser comido. No por isso os rfos param de chorar lgrimas de crocodilo.

    A primeira vez que uma paciente brasileira me fa-lou da deciso, tomada de comum acordo no casal, que seu marido sofresse uma vasectomia, pensei que eu estava lidando com alguma patologia do lao con-jugal. Aos poucos, as vasectomias projetadas e feitas se sucedendo, devia me dar conta que a operao era uma prtica culturalmente comum. No sem estru nhar.

    Um amigo, em So Paulo, por exemplo, me COJ\ fessa estar satisfeito com a sua (mica filha, levando tambm em conta sua precria situ