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CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. 62, p. 285-305, Maio/Ago. 2011 285 John Abromeit HEIDEGGERIANISMO DE ESQUERDA OU MARXISMO FENOMENOLÓGICO? RECONSIDERANDO A TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA DE HERBERT MARCUSE 1 John Abromeit * Diferentemente de interpretações recentes sobre a teoria marcuseana da tecnologia, elogiosas ou críticas, que identificam nela uma forte e contínua influência de Heidegger, pretendo mos- trar, no presente artigo, que Marcuse toma de empréstimo elementos importantes da fenomenologia de Heidegger e, mais ainda, de Husserl, mas que essses elementos são apropri- ados dentro de uma abordagem teórica geral marxista. Dessa maneira, enfatizam-se os fatores sociais e históricos como os determinantes últimos da tecnologia e da racionalidade tecnológica. Com isso, o presente artigo procura esclarecer a relação entre o marxismo e a fenomenologia na obra tardia de Marcuse. PALAVRAS-CHAVE: Marcuse, Heidegger, teoria crítica, tecnologia, marxismo. DOSSIÊ O quanto a teoria de Herbert Marcuse deve a Martin Heidegger tornou-se objeto de uma renovada atenção. Várias publicações recentes documentaram e analisaram o envolvimento ini- cial de Marcuse com a filosofia de Heidegger, assim como os vestígios desse envolvimento nos seus trabalhos posteriores. Nas páginas seguin- tes, eu gostaria de contribuir para essas discus- sões recentes, ao revisitar a teoria de Marcuse da tecnologia e da racionalidade tecnológica. Uma reavaliação da teoria da tecnologia de Marcuse é crucial para determinar até que ponto ele per- maneceu ligado a Heidegger, já que muitos comentadores veem essa teoria como o aspecto do seu pensamento que mais claramente mostra a influência contínua de Heidegger. Em contras- te com essa interpretação, vou argumentar que Marcuse toma emprestado elementos da fenomenologia de Heidegger e – em um grau ain- da maior – de Edmund Husserl, mas que esses elementos são apropriados de forma crítica, den- tro de uma abordagem teórica geral marxista, na qual os fatores sociais e históricos são vistos como os determinantes últimos da tecnologia e da racionalidade tecnológica. Quero aqui oferecer uma interpretação alternativa para aquela recentemente proposta por Andrew Feenberg e Richard Wolin, os quais veem uma influência mais profunda e duradou- ra de Heidegger sobre o trabalho posterior de Marcuse. Embora tanto Feenberg como Wolin reconheçam o quanto Marcuse criticou Heidegger, eles também insistem que ele perma- neceu “heideggeriano” em um sentido bastante significativo até o fim de sua vida. Feenberg enfatiza a dívida de Marcuse para com Heidegger a fim de elogiar sua obra e destacar sua relevân- cia contínua para uma teoria crítica da tecnologia. 2 Wolin, em contraste, vê a dívida para * Doutor em Filosofia. Professor do Departamento de Histó- ria Universidade SUNY, Buffalo State. Buffalo State College | 1300 Elmwood Avenue | Buffalo, NY 14222. [email protected] 1 Tradução de Perminio Ferreira. Revisão técnica de Luiz Repa. 2 Feenberg argumenta que “o pensamento inicial de Heidegger é muito mais significativo para a crítica da tecnologia de Marcuse do que geralmente se supõe”, e que, apesar de que o próprio Marcuse “teria certamente considerado im- possível um retorno à fenomenologia [...], existem recur- sos na fenomenologia que ele poderia ter aplicado à expli- cação de seu projeto posterior“. Em outras palavras, Feenberg acredita que a teoria de Marcuse da tecnologia

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John Abromeit

HEIDEGGERIANISMO DE ESQUERDA OU MARXISMOFENOMENOLÓGICO? RECONSIDERANDO A TEORIA CRÍTICA

DA TECNOLOGIA DE HERBERT MARCUSE1

John Abromeit*

Diferentemente de interpretações recentes sobre a teoria marcuseana da tecnologia, elogiosasou críticas, que identificam nela uma forte e contínua influência de Heidegger, pretendo mos-trar, no presente artigo, que Marcuse toma de empréstimo elementos importantes dafenomenologia de Heidegger e, mais ainda, de Husserl, mas que essses elementos são apropri-ados dentro de uma abordagem teórica geral marxista. Dessa maneira, enfatizam-se os fatoressociais e históricos como os determinantes últimos da tecnologia e da racionalidade tecnológica.Com isso, o presente artigo procura esclarecer a relação entre o marxismo e a fenomenologia naobra tardia de Marcuse.PALAVRAS-CHAVE: Marcuse, Heidegger, teoria crítica, tecnologia, marxismo.

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O quanto a teoria de Herbert Marcusedeve a Martin Heidegger tornou-se objeto de umarenovada atenção. Várias publicações recentesdocumentaram e analisaram o envolvimento ini-cial de Marcuse com a filosofia de Heidegger,assim como os vestígios desse envolvimento nosseus trabalhos posteriores. Nas páginas seguin-tes, eu gostaria de contribuir para essas discus-sões recentes, ao revisitar a teoria de Marcuseda tecnologia e da racionalidade tecnológica. Umareavaliação da teoria da tecnologia de Marcuse écrucial para determinar até que ponto ele per-maneceu ligado a Heidegger, já que muitoscomentadores veem essa teoria como o aspectodo seu pensamento que mais claramente mostraa influência contínua de Heidegger. Em contras-te com essa interpretação, vou argumentar queMarcuse toma emprestado elementos dafenomenologia de Heidegger e – em um grau ain-da maior – de Edmund Husserl, mas que esses

elementos são apropriados de forma crítica, den-tro de uma abordagem teórica geral marxista, naqual os fatores sociais e históricos são vistos comoos determinantes últimos da tecnologia e daracionalidade tecnológica.

Quero aqui oferecer uma interpretaçãoalternativa para aquela recentemente propostapor Andrew Feenberg e Richard Wolin, os quaisveem uma influência mais profunda e duradou-ra de Heidegger sobre o trabalho posterior deMarcuse. Embora tanto Feenberg como Wolinreconheçam o quanto Marcuse criticouHeidegger, eles também insistem que ele perma-neceu “heideggeriano” em um sentido bastantesignificativo até o fim de sua vida. Feenbergenfatiza a dívida de Marcuse para com Heideggera fim de elogiar sua obra e destacar sua relevân-cia contínua para uma teoria crítica datecnologia.2 Wolin, em contraste, vê a dívida para

* Doutor em Filosofia. Professor do Departamento de Histó-ria Universidade SUNY, Buffalo State.Buffalo State College | 1300 Elmwood Avenue | Buffalo,NY 14222. [email protected]

1 Tradução de Perminio Ferreira. Revisão técnica de Luiz Repa.

2 Feenberg argumenta que “o pensamento inicial de Heideggeré muito mais significativo para a crítica da tecnologia deMarcuse do que geralmente se supõe”, e que, apesar deque o próprio Marcuse “teria certamente considerado im-possível um retorno à fenomenologia [...], existem recur-sos na fenomenologia que ele poderia ter aplicado à expli-cação de seu projeto posterior“. Em outras palavras,Feenberg acredita que a teoria de Marcuse da tecnologia

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com Heidegger como um ponto cego no traba-lho de Marcuse, o que o tornou suscetível a ten-dências antimodernas e antidemocráticas pro-blemáticas, compartilhadas por outros “filhos”de Heidegger, como Hannah Arendt, Karl Lowithe Hans Jonas.3 Embora tanto Feenberg quantoWolin captem aspectos importantes da relaçãode Marcuse com Heidegger, ao fim e ao caboeles exageram a dívida para com Heidegger e nãoconseguem compreender o papel subalterno queHeidegger, em particular, e a fenomenologia, emgeral, desempenham na Teoria Crítica Marxistanão-tradicional de Marcuse.4 Assim, a seguintereconsideração da teoria da tecnologia eracionalidade tecnológica de Marcuse tambémpretende esclarecer a relação entre o marxismoe a fenomenologia na obra tardia de Marcuse.

Herbert Marcuse começou seus estudoscom Heidegger em 1928, logo após a publicaçãode Ser e Tempo. Em seu primeiro artigo publica-do, Marcuse descrevia Ser e Tempo como um“ponto de virada na história da filosofia: o pontono qual a filosofia burguesa desfaz-se a partir dedentro e abre caminho para uma ciência nova e‘concreta’”.5 A linguagem de Marcuse aqui é for-temente reminiscente do jovem Marx. Assimcomo Marx acreditava que Hegel tinha dado apalavra final sobre a filosofia burguesa e, ao fazê-

lo, preparara o terreno para uma transição paraa crítica da economia política e para novas for-mas da práxis política, Marcuse acreditava que,em Ser e Tempo, Heidegger “conduzira sua in-vestigação radical ao ponto mais avançado a quea filosofia burguesa tinha até então chegado – epoderia chegar”.6 Marcuse pensava que Ser e

Tempo continha certos avanços filosóficos quepoderiam ajudar a filosofia a se mover para alémdas influentes interpretações positivistas erevisionistas de Marx que tinham emergido daSegunda International.7 Como Lucien Goldmanndemonstrou, o positivismo havia influenciadodecisivamente não só a filosofia “burguesa” nofim do século XIX e início do século XX, mastambém o marxismo.8 Marcuse acreditava que aanalítica existencial heideggeriana do Dasein iadecisivamente para além das teorias racionalistasabstratas da subjetividade, que haviam domina-do a filosofia moderna – do ego cogito de Des-cartes até as Investigações Lógicas de Husserl – etinham também contribuído para uma noçãopassiva de subjetividade nas interpretaçõesevolucionistas do marxismo, como o revisionismode Eduard Bernstein. Marcuse foi atraído aindamais para a teoria de Heidegger da historicidade:como uma crítica do positivismo e como umatentativa de descobrir o significado completo daconsciência histórica tanto para o indivíduoquanto para a sociedade. Apesar de seu entusi-asmo inicial a respeito de Ser e Tempo, Marcusetinha consciência das limitações da filosofia deHeidegger desde o começo de seus estudos comele em 1928 e nunca se tornou ele mesmo um“heideggeriano”. Quando os Manuscritos Econô-

micos e Filosóficos, de Marx, foram publicadospela primeira vez em 1932, Marcuse acreditavaque tinha encontrado, na própria obra de Marx,os elementos filosóficos que faltavam e que elevinha procurando na filosofia de Heidegger.9

foi profundamente influenciada por Heidegger e que a di-mensão heideggeriana de sua teoria era, na realidade, oque havia de melhor nela, embora o próprio Marcuse pos-sa não ter se dado conta disso totalmente. Cf. Feenberg(2005, p.83-140).

3 Wolin escreve: “todos aceitaram, aleatoriamente, uma sé-rie de preconceitos profundos sobre a natureza damodernidade política – democracia, liberalismo, direitosindividuais, e assim por diante – que tornou muito difícilarticular um ponto de vista teórico significativo no mun-do do pós-guerra“. (2001, p.8) (grifo dele).

4 Para uma interpretação de Marcuse que veja a obra em seutodo como uma tentativa crítica de reformular as categori-as de Marx à luz das novas circunstâncias históricas doséculo XX, cf. Kellner (1984). Por exemplo, Kellner escre-ve: “Ao contrário de muitas interpretações prévias queapresentam Marcuse como um pensador pré-marxista, não-marxista ou mesmo antimarxista, vou tentar mostrar queseu trabalho é uma versão extremamente crítica,especulativa e idiossincrática do marxismo [...]. Mesmonas obras, em que Marx nunca é mencionado, como Erose Civilização, ou naquelas em que o marxismo tradicionalé radicalmente questionado, como O HomemUnidimensional, Marcuse está usando conceitos e méto-dos marxistas para expandir a teoria marxista, para supe-rar suas limitações e questionar aspectos que ele acreditaque deveriam ser revistos ou rejeitados“ (p.5).

5 Marcuse (2005, p.11).

6 Ibid., p.15.7 Para um exame mais detalhado da mudança da relação

intelectual de Marcuse com Heidegger durante este perío-do, ver Abromeit, 2004, p.131-51.

8 Goldmann, 1977, p. 3.9 Como o próprio Marcuse manifestou em uma entrevista

posterior, “em 1932, apareceram os Economic and

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A adesão entusiasmada de Heidegger aonacional-socialismo em maio de 1933 surpreen-deu seus alunos e colegas.10 Enquanto Heideggerestava usando sua já formidável reputação filo-sófica e seu poder como o recém-eleito reitor daUniversidade de Freiburg para legitimar o naci-onal-socialismo, Marcuse se candidatou a umtrabalho no Instituto de Pesquisa Social de Frank-furt, sob a direção de Max Horkheimer. Depoisde uma entrevista bem sucedida com LeoLöwenthal, Marcuse foi aceito no Instituto e logoseguiu Horkheimer e o restante dos membrosdo núcleo do Instituto para o exílio na cidade deNova York. Trabalhar com o Instituto nos anostrinta deu a Marcuse uma oportunidade de con-tribuir não só para os esforços inovadores deHorkheimer para desenvolver uma teoria críticada sociedade, mas também para repensar a in-fluência de Heidegger em seu próprio pensamen-to. No seu primeiro artigo publicado enquantotrabalhava no Instituto, Marcuse criticou forte-mente o “existencialismo político”, referindo-seaqui não apenas a Heidegger, mas também a CarlSchmitt.11 Ele apontou, em particular, para a“desvalorização radical do logos como conheci-mento que revela e decide”,12 presente emHeidegger e Schmitt, o que levou ambos a umadefesa do voluntarismo, do decisionismo e, emúltima instância, do totalitarismo. Oenvolvimento de Heidegger com o nacional-so-

cialismo também demonstrou a fraqueza funda-mental de seu conceito de historicidade: ele con-tinuava a ser uma categoria antropológica e,como tal, separada dos acontecimentos históri-cos reais. A ênfase de Heidegger na autenticida-de e na consciência histórica, na primeira meta-de de Ser e Tempo, foi reduzida, no final do li-vro, para “escolher o próprio herói” e aceitar seupróprio lugar na “comunidade de destino”.13 Naausência de qualquer análise histórica ou socialsubstancial, a concretude cativante da filosofiade Heidegger sucumbiu muito facilmente à ide-ologia autoritária e a mitos pseudoconcretos.

A autocrítica de Marcuse e sua reavaliaçãode Heidegger continuaram ao longo da décadade 1930. Tal reavaliação ficou mais evidente quan-do ele reconsidera o potencial crítico da tradi-ção racionalista da filosofia ocidental. Antes de1933, Marcuse não teria certamente colocadoqualquer objeção às críticas fundamentais deHeidegger a Descartes. Mas, em seu ensaio de1936, “O Conceito de Essência”, Marcuse escre-veu as seguintes palavras de apreço a Descartes:

Afirma-se muitas vezes hoje em dia que Descar-tes, ao começar com o ego cogito, cometeu o pe-cado original da filosofia moderna, que ele colo-cou um conceito completamente abstrato de in-divíduo na base da teoria. Mas seu conceito abs-trato de indivíduo é animado pela preocupaçãocom a liberdade humana: a medição da verdadede todas as condições de vida em relação ao pa-drão do pensamento racional.14

A reavaliação positiva da tradiçãoracionalista por Marcuse durante esse períodoculminou em seu estudo de 1941 do racionalismocrítico e dialético de Hegel, Razão e Revolução:

Hegel e a Ascensão da Teoria Social.A questão da tecnologia decididamente

não era uma das razões pelas quais Marcuse seinteressou pela filosofia de Heidegger no finalda década de vinte. Marcuse só começou a es-crever sobre tecnologia mais de uma década maistarde, em seu ensaio “Algumas Implicações So-

Philosophical Manuscripts. Isso foi provavelmente o pontode viragem [...]. Depois disso, Heidegger versus Marx nãofoi mais um problema para mim”. “Theory and Politics: ADiscussion. Telos, n.38, 1978-1979. p.125.

10 Em uma entrevista em 1977, Marcuse declarou: “Por ex-periência pessoal, posso dizer que nem em suas palestras,nem em seus seminários, nem pessoalmente, havia qual-quer indício de sua simpatia pelo nazismo [...], seu nazis-mo declarado abertamente veio como uma completa sur-presa para nós.“ Heideggerian Marxism, p. 169. As im-pressões de Marcuse foram corroboradas por muitos ou-tros. Por exemplo, a maioria dos colegas de Heidegger naUniversidade de Freiburg ficaram aliviados quando ele foieleito reitor em uma reunião de emergência de 21 de abrilde 1933. Eles acreditavam que o estimado filósofo seriadefensor da liberdade acadêmica e protegeria a universi-dade do Gleichschaltung nazista. O “Discurso doreitorado”, pronunciado por Heidegger em 27 de maio,provaria o contrário. Cf. Die Freiburger Universität in derZeit des Nationalsozialismus, E. John, Freiburg: Ploetz,1991.

11 Herbert Marcuse,1968, p.31-42.12 Ibid., p.34.

13 Para uma análise detalhada, cf. Johannes Fritsche (1999).14 “The Struggle Against Liberalism, 1968, p.50.

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ciais da Tecnologia Moderna”, de 1941.15 Marcuseanalisa a tecnologia nos termos da transforma-ção social mais ampla do capitalismo liberal emum capitalismo monopolista e, em seguida, emum capitalismo de Estado, transformação queocorre desde o fim do século XIX até os anostrinta do século XX. Por volta de 1940, havia umintenso debate interno entre os membros do Ins-tituto sobre a viabilidade do conceito de capita-lismo de Estado.16 O conceito de Marcuse de“racionalidade tecnológica” deve ser visto comosua contribuição particular para esse debate, etambém como a base para a sua teoria datecnologia em seu sentido mais estrito.

Como já dito, na década de trinta, Marcusehavia reexaminado o potencial crítico da tradi-ção racionalista que se desenvolvera durante aascensão histórica da burguesia e do capitalismoliberal. Em sua luta contra o feudalismo e o ab-solutismo, a burguesia havia proclamado os di-reitos inalienáveis e a dignidade do homem, aautonomia do indivíduo e o imperativo de jul-gar todas as relações sociais segundo os padrõestranscendentes da razão. Mas, de acordo comMarcuse, essa forma de racionalidade crítica eautônoma foi cada vez mais atenuada e, em se-guida, completamente posta em causa na passa-gem do capitalismo liberal ao capitalismomonopolista e estatal e substituído pela“racionalidade tecnológica”. Mas o que exatamen-te é a “racionalidade tecnológica” e como Marcusea definiu? Provisoriamente, poder-se-ia dizer queele a definiu como a crença de que a racionalidadeestá corporificada no aparelho coordenado daprópria produção. No dizer de Marcuse: “É raci-onal aquele que mais eficazmente aceita e exe-cuta o que é atribuído a ele, que confia o seudestino às empresas e organizações de larga es-cala que administram o aparelho”.17 Marcuse ligaa racionalidade tecnológica ao surgimento degrandes corporações, ao aumento da interven-ção estatal na economia e à integração da classe

trabalhadora ao sistema capitalista. No ensaio,ele ilustra esses vínculos mais precisamente comdiscussões sobre o surgimento da burocracia delarga escala e da aplicação generalizada dofordismo e taylorismo na década de vinte. Eledestaca a maneira pela qual a burocracia ocultaa persistência da dominação social e “concedeaos grupos burocráticos a dignidade universalda razão”.18 Ele também mostra como a “uniãode ciência exata, impessoalidade e grande indús-tria”. no taylorismo e no fordismo. reduzem todanoção de autonomia crítica ou de política da clas-se trabalhadora a um ideal de “eficiência com-placente”.19

Marcuse desenvolveu pela primeira vez oconceito de racionalidade tecnológica ao obser-var a Alemanha nacional-socialista. Em várias“análises do inimigo” que Marcuse escreveu en-quanto trabalhava para o governo dos EUA noinício dos anos quarenta, ele descreve o nacio-nal-socialismo como a “adaptação especificamen-te alemã da sociedade às exigências da indústriade larga escala, como a forma tipicamente alemãda ‘tecnocracia’”.20 Com base nos argumentosexpostos pelo seu amigo e colega Franz Neumann,em seu estudo pioneiro Behemoth,21 Marcuseinterpreta as políticas nacional-socialistas comouma reação violenta às restrições, internas e ex-ternas, políticas e econômicas, impostas à Ale-manha de Weimar, tais como dívidas de guerra,leis trabalhistas e obrigações firmadas pelos tra-tados internacionais. Uma vez no poder, o regi-me de Hitler rapidamente cumpriu suas promes-sas de remover esses obstáculos, o que abriu aporta à sua subsequente expansão econômica epolítica implacável. Marcuse argumenta que essaexpansão foi realizada internamente através deuma mobilização total da população conforme aslinhas da racionalidade tecnológica. Ele escreve:

Sob o nacional-socialismo, todas as normas evalores, todos os padrões de pensamento e com-

15 Herbert Marcuse, 1998, p.39-66.16 Martin Jay, 1973, p.150-67.17 Marcuse. Technology, War and Fascism, (1998, p.60).

18 Ibid., p. 57.19 Ibid., p. 49.20 Ibid., p.145.21 Franz Neumann, 1942.

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portamento são ditados pela necessidade do fun-cionamento incessante da maquinaria de produ-ção, destruição e dominação [...]. Os homens sãoobrigados a pensar, a sentir e a falar em termosde coisas e funções que pertencem exclusivamen-te a esta maquinaria.22

Antecipando o argumento de HannahArendt sobre a banalidade do mal, Marcuse ar-gumenta que a reorganização brutal da socieda-de alemã segundo as linhas da racionalidadetecnológica manifestou-se entre a população emgeral não como uma aliança de sentimentos pro-fundos com a ideologia nazista, mas como umaautopreservação e como uma impessoalidaderesoluta e friamente calculista.23

Acabamos de ver as consequências e ascaracterísticas decididamente negativas daracionalidade tecnológica, tal como apresenta-das por Marcuse em seu primeiro ensaio sobre atecnologia e em suas análises do nacional-socia-lismo. Mas esse é apenas um lado da história. Éimportante contar o outro lado, porque a análisede Marcuse da tecnologia e da racionalidadetecnológica se afasta de Heidegger precisamentenesse ponto. Marcuse sempre insiste no caráterdialético da tecnologia nas sociedades capitalistasmodernas. Em outras palavras, ele enfatiza nãoapenas os seus efeitos destrutivos e repressivos,

mas também o seu potencial emancipatório. Jun-to com o caráter profundamente histórico, aoinvés de ontológico ou antropológico, de sua aná-lise, a insistência de Marcuse sobre o potencialemancipatório da tecnologia deixa claro que suateoria deve, em última instância, muito mais aMarx do que a Heidegger. Porque também Marxsempre destacara não apenas o caráterexploratório, mas também o caráter potencial-mente emancipatório da tecnologia. No primei-ro volume de O Capital, Marx demonstrou aforma como a concorrência e a “fome de lobiso-mem” do capitalista para aumentar a mais-valiarelativa levam os produtores a introduziremtecnologias novas e mais eficazes, sempre quepossível. Essa compulsão social constante de ino-var tecnologicamente leva, por sua vez, a umaproporção cada vez maior do capital constantesobre o capital variável, isto é, da tecnologia edo know-how tecnológico sobre o trabalho vivo.24

Se esse processo diminui o valor do trabalho as-salariado, também aumenta a riqueza material

da sociedade como um todo. Nos Grundrisse,Marx explicita o potencial emancipatório desseprocesso em mais detalhe, argumentando que acompulsão capitalista para aumentar a produti-vidade através da introdução de novas tecnologiascria a possibilidade histórica de superar uma so-ciedade baseada no trabalho abstrato, produtorde valor de troca. Pois essa tendência geral cria opotencial para a automação extensiva; tão ex-tensiva, de fato, que o trabalho assalariado po-deria ser reduzido a um ponto em que deixa deser a atividade dominante na vida da maioriadas pessoas.25

Marcuse integra em sua própria teoria es-sas noções marxistas do potencial emancipatórioda tecnologia. No seu ensaio de 1941, “AlgumasImplicações Sociais da Tecnologia”, Marcuse des-

22 Marcuse, Technology, War and Fascism, (1998, p.161).23 Marcuse, “The New German Mentality”. In: Technology,

War and Fascism, 1998. p.139-90 É interessante notar queMarcuse realizou esses estudos antes do final da guerra,antes que se tornasse conhecida a extensão completa dadestruição, perseguida sistematicamente pelos nazistas,dos judeus europeus e outros grupos-alvo (como os soci-alistas, os criminosos, os deficientes e doentes mentais,homossexuais, os sinti e os roma). Daí as análises deMarcuse e Neumann ainda terem sido marcadas por umaabordagem marxista bastante ortodoxa, que falhou emaprofundar adequadamente a importância dos componen-tes irracionais da ideologia nacional-socialista, como oantissemitismo. Como veremos abaixo, no período pós-guerra, Marcuse iria reconhecer essa deficiência de suaanálise e seguiria o caminho já aberto por Horkheimer eFromm nos anos 30; ele reconheceria que a teoria marxistarecisava ser complementada por categorias psicanalíticas,a fim de compreender as novas condições e o potencialmuito maior para a violência e para o genocídio nas socie-dades do século XX. Para uma discussão mais detalhadados escritos de Marcuse nessa época, cf. minha resenhade Technology, War and Fascism, in: Constellations: AnInternational Journal of Critical and Democratic Theory(2001, p.148-55). Cf. também Tim B. Müller, “BearingWitness to the Liquidation of Western Dasein: HerbertMarcuse and the Holocaust, 1941-1948”. In: New GermanCritique n. 85, p.133-64, 2002.

24 Karl Marx, 1977, p.455-564.25 Assim, de acordo com a análise de Marx nos Grundrisse, é

principalmente essa tendência, e apenas secundariamenteo proletariado, que é o verdadeiro coveiro do capitalismo.Pois é essa tendência que faz com que seja possível que oproletariado possa abolir a si próprio, como uma classe his-toricamente contingente criada pelo capitalismo moderno.Para uma discussão mais detalhada dessas questões, tal comoelas emergem nos Grundrisse, cf. Moishe Postone, 2008.

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taca duas tendências emancipatórias em parti-cular. Primeiro, ele aponta para a forma como astecnologias avançadas e a disseminação daracionalidade tecnológica levam a uma simplifi-cação e a uma padronização de tarefas no interi-or e através de várias profissões e ocupações.Essa “possibilidade de troca de funções” signifi-ca que as tarefas executadas por funcionáriosregulares e especialistas se tornam cada vez maissemelhantes, e se torna mais e mais difícil justi-ficar hierarquias sociais rígidas com base na for-mação especializada, na medida em que qual-quer um pode alcançar esse conhecimento.26 Asegunda tendência emancipatória, ainda maisimportante, inerente à tecnologia moderna, é oseu potencial para reduzir a quantidade de tra-balho humano necessário para satisfazer as ne-cessidades da vida, aumentando assim enorme-mente o escopo da liberdade individual. Marcuseescreve que “a mecanização e padronização po-dem um dia ajudar a mudar o centro de gravi-dade, retirando-o das necessidades da produçãomaterial e tranferindo-o para a arena da realiza-ção humana livre”.27

Após sua primeira aparição por volta de1940, a teoria da tecnologia de Marcuse perma-nece essencialmente a mesma até o final dos anos1960, quando uma mudança de ênfase ocorre.Mas, mesmo em seus últimos escritos, Marcusevolta ao jovem Marx em um esforço para anteci-par as formas qualitativamente diferentes que atecnologia pode assumir em uma sociedade pós-capitalista. Como veremos, ele levaria a teoriacrítica de Marx aos seus limites especulativos,mas sem nunca abandoná-la completamente.

Publicado em 1955, Eros e Civilização foio primeiro livro de Marcuse depois da guerra. Aessa altura, Auschwitz e a bomba atômica ti-nham provado, para além de qualquer dúvida, opotencial catastrófico inerente à tecnologia mo-derna e à racionalidade tecnológica. Essa novasituação histórica se refletiu na teoria de Marcuse,

com a introdução de categorias psicanalíticas.28

Marcuse reconheceu que Auschwitz e a bombaatômica não poderiam ser explicados unicamentecom as categorias do marxismo ortodoxo. EmMal-estar na civilização, Freud descreveu a ten-dência de as sociedades modernas criarem sen-timentos cada vez mais fortes de culpa, o quecomprometeu a autonomia individual e cons-tantemente ameaçava explodir em irrupçõesanticivilizacionais coletivas. Em seu ensaio de1936, “Egoísmo e Movimentos de Liberdade”,Horkheimer desenvolveu uma análise mais his-toricamente precisa da mesma dinâmica, que seinspirou nos esforços inovadores de Erich Frommpara complementar e refinar a teoria de Marxda história com categorias psicanalíticas.29

Marcuse se inspirou na metapsicologia deFreud, bem como no trabalho de Horkheimer eFromm da década trinta, para analisar a fatídica“dialética da civilização” em operação no capita-lismo moderno.30 Marcuse argumentou, parti-cularmente, que os eventos históricos catastrófi-cos tornaram-se mais prováveis porque as for-mas repressivas de sublimação – o trabalho alie-nado – exigidas pelo capitalismo moderno ate-nuaram a tendência inerente de Eros de fortale-cer os laços sociais e de manter os impulsosdestrutivos de Tânatos em cheque.31 Além dis-so, Marcuse considerou que as formas sociais detrabalho e de sublimação também determinama forma de tecnologia. Ele escreve:

Impulsos agressivos, assim como libidinosos,devem ser satisfeitas no trabalho ‘por meio desublimação’, e o ‘caráter sádico’ culturalmente

26 Adorno desenvolveria essas ideias mais sistematicamenteem seus escritos sociológicos depois da guerra. Cf., porexemplo, “Gesellschaft”. Rolf Tiedemann (1972, p.17).

27 Herbert Marcuse, 1941, p.437.

28Horkheimer já tinha – com a ajuda de Erich Fromm – inte-grado a psicanálise em sua teoria crítica na década de trin-ta. Ele argumentou que, sem ser complementado pelosinsights psicológicos e sociopsicológicos de Freud, a teo-ria de Marx não era adequada às novas circunstâncias his-tóricas do século XX. Para uma visão geral da teoria inicialde Horkheimer e as críticas e contribuições de Fromm aela, ver Abromeit, “The Origins and Development of theModel of Early Critical Theory in the Work of MaxHorkheimer, Erich Fromm and Herbert Marcuse, “ Politicsand the Human Sciences, ed. David Ingram, ed. AlanSchrift. London: Acumen Publishing, 2010. (History ofContinental Philosophy, v.8).

29 Horkheimer (1993, p.49-110). Erich Fromm, 1936, p.77-135.30 Marcuse,1955, p.78-105.31 Ibid., p. 54,87

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benéfico do trabalho tem sido frequentementeenfatizado. O desenvolvimento de técnicas e aracionalidade tecnológica absorvem em grandemedida os instintos destrutivos ‘modificados’.32

Mas Marcuse também coloca a questão:“Será que a destrutividade sublimada nessas ati-vidades está suficientemente subjugada e desvi-ada para assegurar o trabalho de Eros?” Sua res-posta é geralmente negativa. Ele escreve:

A destruição extrovertida permanece destruição:os seus objetos são, na maioria dos casos, real eviolentamente atacados, privados de sua forma,e reconstruídos apenas após sua parcial destrui-ção [...]. A destrutividade, em extensão e inten-ção, parece estar mais diretamente satisfeita nacivilização que a libido.33

Embora, em Eros e Civilização, Marcuse nãodesenvolva sistematicamente essas ideias no quese refere à racionalidade tecnológica, elas demons-tram seus esforços em determinar as maneiras pe-las quais a ciência e a tecnologia são formadas soci-

almente – mesmo em seus conceitos mais abstra-tos – nas condições historicamente específicas docapitalismo moderno. Os esforços de Marcuse aquipara complementar e refinar a teoria de Marx comcategorias psicanalíticas antecipam suas tentativasem Homem Unidimensional para fazer o mesmocom a fenomenologia.34

Mas Marcuse também continua a defen-der o potencial emancipatório da tecnologia e daracionalidade tecnológica em Eros e Civilização.Ele escreve:

A alienação do trabalho está quase completa. Amecânica da linha de montagem, a rotina do es-critório, o ritual de compra e venda são libera-

dos de qualquer conexão com as potencialidadeshumanas [...]. Os aspectos positivos da aliena-ção progressiva manifestam-se [...]. A teoria daalienação demonstrou que o fato de que o ho-mem não se realiza em seu trabalho, que sua vidatornou-se um instrumento de trabalho, que o seutrabalho e seus produtos assumiram uma formae poder independentes dele como um indivíduo.Mas a liberação deste estado parece exigir, não asuspensão da alienação, mas sua consumação[...]. A eliminação das potencialidades humanasno mundo do trabalho (alienado) cria as pré-con-dições necessárias para a eliminação do trabalhono mundo das potencialidades humanas.35

Mesmo que, devido ao clima vigente daGuerra Fria, Marcuse tenha escolhido não men-cionar explicitamente o nome de Marx em Eros

e Civilização, suas referências pouco veladas aotrabalho alienado e ao fetichismo da mercadorianão deixam dúvidas de que a teoria de Marxpermaneceu na estrutura subjacente à sua teoriada tecnologia. Elas também tornam claro queMarcuse de forma alguma esposou uma críticaromântica e antimoderna da tecnologia. A eman-cipação apenas pode ser baseada em uma “con-sumação” da racionalidade tecnológica, não emsua “suspensão”.36 Em resumo, Marcuse estavaperfeitamente disposto a complementar a análi-se de Marx com a psicanálise, como faria maistarde com a fenomenologia. Mas, em nenhumdos casos, ele abandonou a estrutura marxistabásica da sua teoria da tecnologia.

Tanto em Marxismo Soviético (1958) quan-to em Homem Unidimensional (1964), a análisee a crítica da racionalidade tecnológica desem-penham um papel ainda mais importante do queem Eros e Civilização. Marcuse começa Marxis-

mo Soviético mostrando como os velhos confli-tos imperialistas entre as principais potências

32 Ibid., p. 85.33 Ibid., p. 86.34 Traços da análise fenomenológica da tecnologia podem

ser encontrados já em Eros e Civilização. Em vez de Husserlou Heidegger, Marcuse evoca Max Scheler para fazer a se-guinte afirmação: “A natureza é a priori experimentada porum organismo levado à dominação e, portanto, sentidacomo suscetível de domínio e controle. [...] Nessa atitudeprópria do trabalho, o mundo objetivo aparece como ‘sím-bolos para pontos de agressão’; Scheler chama esse modode pensamento de ‘conhecimento orientado para a domi-nação e a conquista’ e o vê como o modo específico deconhecimento que tem norteado o desenvolvimento dacivilização moderna”. Eros e Civilização, 1955, p.110-11(grifos do autor).

35 Ibid., p.102, 10536 Marcuse expressou essa ideia na década de trinta, da se-

guinte forma: “Quando o corpo se torna um objeto com-pletamente, uma coisa bonita, ele pode prenunciar umanova felicidade. Ao sofrer a mais extrema reificação o ho-mem triunfa sobre a reificação. A arte do belo corpo, a suaagilidade e relaxamento sem esforço, que podem ser exibi-dos hoje apenas no circo, no vaudeville e no burlesco,anunciam a alegria que a humanidade alcançará ao ser li-bertada do ideal, logo que que a humanidade, tendo setornado um verdadeiro sujeito, tenha sucesso no domínioda matéria”. “The Affirmative Character of Culture”. In:Negations, 1968, p.116.

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ocidentais foram suplantado pelo conflito Les-te–Oeste no mundo pós-guerra. Ele observa queas condições sociais e históricas que originalmentederam origem ao capitalismo monopolista e deEstado ainda continuam sob forma modificada.A ameaça soviética torna impossível um retornoao capitalismo de laissez-faire no Ocidente, oqual, sob a liderança americana, desenvolve umaeconomia de guerra permanente com base num“planejamento capitalista internacional”.37 Emsua análise da União Soviética, Marcuse enfatizaa continuidade básica da primazia da industria-lização sobre a libertação nas suas políticas, deLenin a Khruschchev, passando por Stalin.Marcuse demonstra como esse imperativo polí-tico para alcançar a capacidade econômica doOcidente levou a uma reorganização da socieda-de soviética conforme às linhas da racionalidadetecnológica, tão brutal quanto aquela da Alema-nha nacional-socialista. Nesta como naquela, ospropósitos supostamente objetivos daracionalidade tecnológica escondem a domina-ção social em curso. Marcuse escreve:

A perfeição tecnológica do aparelho produtivodomina os governantes e os governados, enquantosustenta a distinção entre eles. A autonomia e aespontaneidade são confinadas ao nível da efici-ência e ao desempenho dentro do padrão estabe-lecido [...]. A discordância não é apenas um cri-me político, mas também uma estupidez técni-ca, sabotagem, mal-tratamento da máquina.38

Embora Marcuse destaque os efeitos re-pressivos da racionalidade tecnológica no con-texto soviético, ele também aponta para o seupotencial emancipatório oculto. Ele escreve: “Li-vre da política que tem de impedir o controleindividual e coletivo das técnicas e seu uso paraa satisfação individual, a racionalidadetecnológica pode ser um poderoso veículo de li-bertação”.39 De fato, Marcuse vai ainda mais lon-ge ao afirmar que a possibilidade da realizaçãodo potencial emancipatório da tecnologia é mai-

or na União Soviética do que nos países capita-listas ocidentais. Embora Marcuse descreva emdetalhes as maneiras pelas quais a teoria de Marxfoi reduzida à doutrina metafísica do “Materia-lismo Dialético”, o que serviu para justificar aspolíticas extremamente repressivas do Estadosoviético, ele fez a alegação questionável de queessa ideologia e essa economia já nacionalizadada União Soviética ofereceriam menos resistên-cia à realização do potencial emancipatório daracionalidade tecnológica que os sistemas com-petitivos do Ocidente.40 Escrevendo num mo-mento em que Kruschev estava realizando re-formas significativas, Marcuse superestimou opotencial das “tendências liberalizantes” emefetividade na União Soviética.41

Em Homem Unidimensional, Marcusevolta sua atenção para as sociedades industriaisavançadas do Ocidente. Nas páginas iniciais dolivro, Marcuse usa a mesma teoria dialética datecnologia e da racionalidade tecnológica paradescrever a ideologia dominante e as tendênciassociais básicas nas sociedades capitalistas con-temporâneas. Ele escreve:

Os processos tecnológicos de mecanização e pa-dronização poderiam liberar a energia individu-al em um reino ainda inexplorado de liberdadepara além da necessidade [...]. Essa é uma metano interior das capacidades da civilização indus-trial avançada, o ‘fim’ da racionalidadetecnológica. Na realidade, no entanto, a tendên-cia contrária opera [...]. Em virtude da forma comose organizou a sua base tecnológica, a sociedadeindustrial contemporânea tende a ser totalitária.Pois ‘totalitário’ não é apenas uma coordenaçãopolítica terrorista da sociedade, mas também umacoordenação não-terrorista econômico-técnicaque opera através da manipulação das necessi-dades por interesses investidos.42

O argumento de Marcuse, aqui, deixa cla-ro que sua compreensão básica da racionalidade

37 Marcuse, 1961, p.18.38 Ibid., p. 69.39 Ibid., p.240.

40 Ibid., p.xv.41 Apesar de o colapso da União Soviética trinta anos de-

pois ter confirmado as predições de Marcuse em certosaspectos. Para um reexame do Marxismo soviético depoisde 1989, que destaca a presciência da análise de Marcuse,cf. Peter Marcuse, 1994, p.57-72.

42 Marcuse, One-Dimensional Man (1964, p.2-3).

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tecnológica continuou a mesma. Pode-se discutirse Marcuse está correto ou não ao aplicar o concei-to de “totalitarismo” a sociedades capitalistas oci-dentais, o que o leva a fazer a afirmação polêmicaque elas representam uma forma branda de “tota-litarismo”. Essa afirmação certamente ajuda a ex-plicar o sucesso de Homem Unidimensional entreos estudantes radicais e na Nova Esquerda da dé-cada de 60, mas eu não quero examinar isso emmaior detalhe aqui. Eu gostaria, em vez disso, depassar a examinar a apropriação da fenome-nologia por Marcuse, um aspecto de Homem

Unidimensional que foi genuinamente novo. Mi-nha tese é que Marcuse utiliza a fenomenologiahusserliana e, em menor medida, heideggerianapara esclarecer e aprofundar sua crítica daracionalidade tecnológica, mas não fundamental-mente para alterá-la. É importante para os nossospropósitos aqui examinar a apropriação queMarcuse faz da fenomenologia, porque é a únicavez em que ele se refere explicitamente a Heideggernas principais obras publicadas depois de 1934.

A discussão de Marcuse sobre fenomenologia,no sexto capítulo de Homem Unidimensional,baseia-se principalmente na Crise das Ciências

Europeias, de Husserl.43 Marcuse mencionaHeidegger apenas de passagem. Embora haja,naturalmente, diferenças importantes entre afenomenologia de Heidegger e a do Husserl tar-dio, vamos nos concentrar nas semelhanças deseus argumentos aqui, como o próprio Marcuseparece fazer. Marcuse usa a fenomenologia –como tinha feito antes com a psicanálise – parapropugnar um dos argumentos principais, ouseja, que a razão científica, matemática etecnológica não é neutra, e que, mesmo em suasformas teóricas mais abstratas, ela reflete o con-

texto sócio-histórico mais amplo. Marcuse utili-za um conceito potencialmente enganoso parailustrar este argumento: o “a priori tecnológico”.44

Ele escreve: “a ciência da natureza se desenvolvesob o a priori tecnológico que projeta a naturezacomo instrumentalidade potencial, material decontrole e organização”.45 Porém, no restante docapítulo, Marcuse deixa bem claro que o viéscognitivo oculto em conceitos científicos supos-tamente neutros não é de forma alguma a-históri-co, como sugere o termo “a priori tecnológico”.Marcuse critica explicitamente a teoria antropo-lógica de Jean Piaget de racionalidade científicajustamente por esse motivo e se volta, em vezdisso, para Husserl, porque ele “ofereceu umaepistemologia genética que é focada na estruturasócio-histórica da razão científica”.46 Marcuse re-capitula com aprovação o argumento de Husserlsegundo o qual a racionalidade científica está sem-pre relacionada com as práticas concretas de ummundo da vida, embora seus conceitos escondamessa relação essencial. É nesse contexto queMarcuse também cita com aprovação a crítica deHeidegger à noção de neutralidade da tecnologiae sua afirmação de que a ciência moderna repou-sa sobre uma ontologia particular, em que a natu-reza é sempre preconcebida como mera matéria-prima para ser manipulada para fins humanos.47

43 Outra confirmação de que Husserl foi mais importante doque Heidegger para a teoria marcuseana da tecnologia podeser encontrada em “On Science and Phenomenology” umartigo que Marcuse escreveu em 1965. Marcuse não men-ciona Heidegger em absoluto no ensaio. Como em toda asua obra, Marcuse utiliza a fenomenologia para ilustrarcomo a ciência e a tecnologia não são neutras e são molda-das por forças externas. Mas ele também aponta para aslimitações idealistas da abordagem de Husserl, que preci-sam ser colocadas no interior de uma teoria crítica maisampla da sociedade, Andrew Arato and Eike Gephardt(Ed.) 2000, p.466-476.

44Cf., por exemplo, Samir Gandesha, 2004, p.188-208. Noseu ensaio, quase sempre lúcido e informativo, Gandeshadestaca o conceito de “a priori technológico” como provado caráter fundamentalmente fenomenológico da análiseda tecnologia de Marcuse (p.203). Como Feenberg,Gandesha tenta defender Marcuse contra as críticas deHabermas, mas pensa que o melhor modo de fazê-lo é re-correr aos aspectos fenomenológicos, em lugar dos aspec-tos marxistas de sua obra. A despeito de suas esclarecedorascríticas a Habermas, Gandesha também aceita a interpreta-ção equívoca do conceito de trabalho de Marx como uma“ação instrumental” trans-histórica realizada por Habermase vê esse mesmo conceito problemático operar na obra deMarcuse. Porém Marcuse (1973) cricitou explicitamente aredução do trabalho a uma noção tran-histórica de açãoinstrumental em seu ensaio de 1933. Abromeit; Wolin,2005, p. 122-150.

45 One Dimensional Man, p. 153.46 Ibid., p.162.47 A locução “ontologia particular” pode parecer uma

contradictio in adjecto; na verdade, ela capta o usoidiossincrático de Marcuse do conceito de ontologia refe-rido às fundações quase-transcendentais do conhecimen-to e da ação em uma determinada sociedade ou duranteuma época histórica em particular. O uso do termo porMarcuse não implica em qualquer validade trans-históricada “ontologia” em questão. Como argumentarei mais adi-

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Mas a afinidade de Marcuse com asfenomenologias husserliana e heideggeriana ter-mina aqui. Husserl e Heidegger podiam ajudarMarcuse a expor a falsa neutralidade daracionalidade tecnológica, mas não podiam ex-plicar adequadamente como e por que ela se tor-na dominante nas sociedades capitalistas moder-nas. Marcuse escreve:

O a priori tecnológico é um a priori político namedida em que a transformação da natureza en-volve a do homem, e na medida em que as ‘cria-ções feitas pelo homem’ provêm de um contextosocial e voltam a se inserir nele [...], o modo soci-al de produção, e não a técnica, é o fator históri-co básico.48

O compromisso contínuo de Marcuse comuma compreensão essencialmente marxista daracionalidade tecnológica é evidente em muitasoutras passagens no capítulo, incluindo a seguin-te: “A tecnologia tornou-se o grande veículo dereificação – reificação na sua forma mais madu-ra e eficaz”.49 Se isso tudo não fosse suficientepara demonstrar a sua distância constante emrelação a Heidegger, a adesão ininterrupta deMarcuse ao que ele considerava serem os me-lhores aspectos da tradição racionalista já nãodeixam mais nenhuma dúvida sobre isso. Essaadesão é evidente na declaração de Marcuse, nomesmo capítulo, de que uma sociedade domina-da pela racionalidade tecnológica “subverte aideia de razão”.50

Em seus trabalhos após Homem Unidimen-

sional, a teoria de Marcuse da tecnologia passapor uma mudança significativa de ênfase. Em-bora continuasse a insistir no desenvolvimentocapitalista da tecnologia como uma fase necessá-ria para definir o cenário de uma sociedade soci-alista, os movimentos de protesto dos anos ses-senta e a crítica da tecnocracia por parte da NovaEsquerda levaram a duas mudanças principaisna análise de Marcuse. Ele passou a insistir maissobre a importância de fatores subjetivos e a ex-plorar a possibilidade de integrar os valores es-téticos diretamente nas esferas da ciência e datecnologia.51 O interesse renovado de Marcusepelas condições subjetivas necessárias para amudança social e tecnológica registrava não ape-nas a experiência das revoltas generalizadas daépoca – o que demonstrava que as sociedadesindustriais avançadas podiam não ser tão“unidimensionais” como ele afirmara –, mas tam-bém a reação feroz contra elas, o que explica oseu retorno à psicanálise e às análises iniciais daEscola de Frankfurt do autoritarismo. Rejeitan-do o determinismo tecnológico mais fortementedo que nunca, Marcuse escreve:

O nível de produtividade que Marx projetou paraa construção de uma sociedade socialista hámuito foi alcançado nos países capitalistas maisavançados tecnicamente, e precisamente esta con-quista (a ‘sociedade de consumo’) serve para sus-tentar as relações de produção capitalistas, paragarantir o apoio popular e desacreditar os fun-damentos do socialismo.52

Assim, embora as condições científicas etecnológicas existam para a criação de uma soci-edade muito menos repressiva, o capitalismo tar-dio continua a produzir uma estrutura de cará-ter dominante que milita contra essa possibili-dade objetiva. No dizer de Marcuse:

ante, o uso por Marcuse do conceito de “ontologia” aqui éparalelo a seu uso igualmente enganoso do termo “a prioritecnológico” em O Homem Unidimensional. Para uma ex-plicação do conceito idiossincrático de ontologia em Marcusee sua base na antiga tradição filosófica, cf. Robert Pippin,(1988). Pippin; Feenberg; Webel (Ed.) 1988, p.70ss.

48 O homem unidimensional, p.154 (grifo meu). Marcuse fazessa objeção à teoria de Heidegger da tecnologia, explícitaem uma entrevista a Frederick Olafson de 1977. Ele afirma:“Tenho a impressão de que os conceitos de Heidegger detecnologia e de técnicas são os últimos em uma longa sériede neutralizações: eles são tratados como ‘forças-em-si-mes-mas’, retirados do contexto das relações de poder em queeles são constituídos e que determinam seu uso e função.Eles são reificados, hipostasiados como Destino“.“Heidegger’s Politics: An Interview”. Marcuse (2005, p.168).

49 One-Dimensional Man, 1964, p.168-169.50 Ibid., p.167. Por sua parte, Heidegger insistia em que “o

pensar só começa quando nós viemos a saber que a razão,glorificada por séculos, é o adversário mais obstinado dopensamento”. Citado por Richard Wolin (2001, p.94).

51 Marcuse, em sua teoria crítica, tinha, é claro, sempreenfatizado a importância de fatores subjetivos, começan-do com a sua recepção de Heidegger nos anos vinte. Noentanto, ainda se pode falar de um interesse renovado pelosfatores subjetivos no final dos anos sessenta e início dosanos setenta, especificamente no que diz respeito à suateoria da tecnologia.

52 Counterrevolution and Revolt, 1972. p.3.

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As necessidades geradas por este sistema são,portanto, eminentemente necessidadesestabilizantes, conservadoras: a contra-revoluçãoancorada na estrutura instintiva [...]. Ainda énecessário repetir que a ciência e a tecnologia sãoos grandes veículos de libertação, e que é apenasseu uso e restrição na sociedade repressiva queos torna veículos de dominação?53

Essas declarações demonstram claramen-te que a análise de Marcuse da tecnologia conti-nuou a ser firmemente enraizada na estruturamaior das teorias marxista e psicanalítica, as quaisguiaram seu pensamento a partir da década devinte e cinquenta, respectivamente.

Marcuse apontava cada vez mais para osGrundrisse como fonte das ideias mais profun-das de Marx sobre a dinâmica historicamenteespecífica das sociedades capitalistas modernas.54

Nos Grundrisse, Marx demonstrou como o desen-volvimento tecnológico acabaria por tornar possí-veis novas formas de subjetividade que não erammais determinadas pelo trabalho assalariado e pelaluta pela existência. Mas, como a história do sécu-lo XX deixou claro, a classe trabalhadora não veioa incorporar essas formas emancipatórias da sub-jetividade. Como Horkheimer e Fromm demons-traram em seus estudos sociopsicológicos, já nadécada de trinta, a maior parte da classe traba-lhadora nos países industriais mais avançadoshavia internalizado uma estrutura de caráter bur-guês conservador. Assim, de acordo com Marcuse,a análise de Marx sobre o potencial emancipatórioda tecnologia permaneceu válida, mas tinha deser complementada com uma análise e uma críti-ca da persistência de estruturas de carátersadomasoquista e autoritário em amplos setoresdas classes baixa e média baixa. De fato, Marcuseviu o forte momento estético das revoltas na Fran-ça em maio de 1968 e nos movimentos de protes-to da década de 60 mais geralmente como umsinal de que novas formas de subjetividade radi-cal estavam emergindo, apontadando para alémda “antropologia da época burguesa”.55

Em Homem Unidimensional, Marcusehavia se inspirado na fenomenologia para de-monstrar que a ciência e a tecnologia são deter-minadas – desde suas manifestações concretasaté a formação de seus conceitos mais abstratos– pelo contexto social e histórico em que elasocorrem. Embora ele utilize o conceito de Husserlde “mundo da vida” em umas poucas ocasiões,não há referências explícitas à fenomenologia nostrabalhos de Marcuse publicados após Homem

Unidimensional.56 Mas ele continua a insistir,com mais ênfase do que nunca, que a tecnologianão pode ser vista como fundamentalmente neu-tra ou trans-historicamente instrumental. Eleargumenta que “o progresso técnico quantitati-vo” teria de ser transformado em “modos de vidaqualitativamente diferentes”, e que, “para se tor-nar veículos de liberdade, a ciência e a tecnologiateriam de mudar sua direção e seus objetivosatuais”.57

Como parte de um movimento mais am-plo dos seus escritos dessa época, saindo de umacrítica predominantemente negativa em direçãoa uma crítica social mais utópica, Marcuse tentadescrever como seriam essas formas qualitativa-mente diferentes de ciência e tecnologia.58 Umadas características centrais de uma ciência e umatecnologia pós-capitalistas, de acordo comMarcuse, seria a sua capacidade de incorporaros valores estéticos. No dizer de Marcuse:

53 Essay on Liberation, Boston: Beacon, 1969, p. 21.54 Ibid., 29; Counterrevolution and Revolt, 1972, p.18.55 Para uma discussão do conceito de Horkheimer de “an-

tropologia da época burguesa” e sua relevância para a po-

sição teórica de Marcuse nesse momento, cf. John Abromeit,“The Limits of Praxis: The Social-PsychologicalFoundations of Theodor Adorno and Herbert Marcuse’sInterpretation of the 1960s Protest Movements“, in: B.Davis et al (Ed.) Changing the World, Changing Oneself:political protest and collective identities in the 1960s/70sWest Germany and U.S., l. Oxford and New York:Berghahn Books, 2010.

56 Essay on Liberation, p.38.57 Ibid., p.27-28.58 Uma vez que o que antes era considerado utópico – por

exemplo, a possibilidade de criar um mundo no qual “nin-guém mais vai passar fome” (Adorno) – agora se tornouuma possibilidade real, Marcuse acreditava que a teoriasocialista deveria responder a isso, voltando-se para argu-mentos mais “utópicos” em vez de puramente “científi-cos”. Aqui, os argumentos de Marcuse estavam reconhe-cidamente fora de sintonia com as sensibilidades profun-damente antiutópicas do “pós-modernismo”, que se de-senvolveu em parte como uma reação a ou como uma de-silusão com 1968. Para uma crítica mais recente doantiutopismo pós-moderno e algumas reflexões sobre oconteúdo de verdade histórica da especulação utópica, cf.Fredric Jameson, 2000, p.382-392.

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A técnica, então, tenderia a se tornar arte, e a artetenderia a formar a realidade: seriam invalida-das as oposições entre a imaginação e a razão,faculdades superiores e inferiores, o pensamen-to poético e científico. O surgimento de um novoPrincípio de Realidade: em que uma nova sensi-bilidade e uma inteligência científicadessublimada combinar-se-iam na criação de umethos estético [...]. A técnica, assumindo as ca-racterísticas de arte, traduziria a sensibilidadesubjetiva em forma objetiva, em realidade.59

Em seus primeiros escritos, Marcuse ti-nha pouco a dizer sobre que formas a ciência e atecnologia teriam em uma sociedade pós-capita-lista. Ele parecia seguir a afirmação de Marx noterceiro volume de O Capital, segundo a qualuma organização racional e democrática da esfe-ra da necessidade – em que ciência e tecnologiaseriam cruciais – ampliaria enormemente a esfe-ra de liberdade para todos. Mas, fiel ao seu ape-lo por um movimento que retrocede “de Marx aFourier”,60 presente em seus escritos mais tardi-os, Marcuse argumentou que “o desenvolvimen-to das forças produtivas para além da sua orga-nização capitalista sugere a possibilidade de li-berdade dentro do reino da necessidade”.61 Porisso, Marcuse especulou mais livremente em seusúltimos escritos sobre as formas qualitativamentenovas que a ciência e a tecnologia tomariam emuma sociedade pós-capitalista.

As formulações especulativas de Marcuseprovocaram uma série de críticas, entre as quaisa mais notável talvez seja a de Jürgen Habermas.Em “Tecnologia e Ciência como ‘Ideologia’”– umensaio que ele dedicou a Marcuse em seu ani-versário de 70 anos em 1968 –, Habermas seocupa da crítica marcuseana da racionalidadetécnica como foi formulada em um importanteensaio que Marcuse escreveu sobre Max Weberem 1964.62 Por um lado, Habermas era simpáti-co à ideia principal do argumento de Marcusecontra Weber; tão simpático, de fato, que as ob-jeções de Marcuse ao caráter unilateralmente

instrumental e ideológico do conceito de Webersobre a racionalidade ocidental tornou-se umadas inspirações mais importantes para os esfor-ços de Habermas para fornecer uma teoria alter-nativa da racionalidade baseada no conceito dediscurso, a qual veio a se realizar uma décadamais tarde em sua magnum opus, a Teoria da

Ação Comunicativa. Por outro lado, Habermasarticulou várias objeções fundamentais contra acompreensão de Marcuse da tecnologia e daracionalidade tecnológica, que se mantiveramintactas nos trabalhos posteriores de Habermas.63

Ele argumenta que Marcuse não distingue ade-quadamente entre ação simbólica e ação racio-nal com respeito a fins, e acredita, erroneamen-te, que o primeiro tipo de interação pode tam-bém ser aplicado às relações entre os seres hu-manos e a natureza.64 Habermas também fazobjeção à insistência de Marcuse sobre o condi-cionamento social e histórico profundo da ciên-cia e da tecnologia. Ele observa que esse argu-mento de Marcuse provém de Husserl eHeidegger, mas também que Marcuse se movefundamentalmente para além deles, na medidaem que ele “é o primeiro a fazer do ‘conteúdopolítico da razão técnica’ o ponto analítico de

59 Essay on Liberation, 1969, p.32.60 Ibid., p. 30.61 Ibid., p. 29.62 Marcuse, “Industrialism and Capitalism in the Work of

Max Weber”, 1968, p.201-226.

63 Seria ir muito longe examinar as maneiras como a com-preensão de Habermas sobre a relação entre os seres hu-manos (incluindo a sua ciência e sua tecnologia) e a natu-reza mudou na sua obra posterior. Apesar de algumasmudanças, Habermas jamais abandonou a sua posiçãobásica – que pertence a suas suposições mais fundamen-tais – segundo a qual a relação básica entre os seres huma-nos e a natureza deve permanecer instrumental. Cf., porexemplo, a resposta de Habermas a vários teóricos quecriticam esse aspecto deste seu pensamento: 1982, p.243-245. A introdução mais recente por Habermas de concei-tos como “naturalismo fraco” e “ética da espécie” podemrepresentar um distanciamento mais significativo de seusprimeiros trabalhos, o que o aproxima da posição deHorkheimer, Adorno e Marcuse. Mas não podemos discu-tir esses desenvolvimentos aqui. Cf. Jürgen Habermas,(1999, p.32 ss.; 2001, p.70 ss.; e “‘Ich selber bin ja einStück Natur’ - Adorno über die Naturverflochtenheit derVernunft”, 2005, p.187-215.

64 Em “Technology and Science as ‘Ideology’” (p. 86),Habermas argumenta que Marcuse compartilha a ideia da“ressurreição da natureza caída”, que vem do misticismojudaico e protestante, com outros da tradição marxistaocidental, como Horkheimer e Adorno, Ernst Bloch e WalterBenjamin. Mas, em contraste com esses outros pensado-res – especialmente Bloch e Benjamin –, que vão procurarpor quaisquer resíduos teológicos no pensamento deMarcuse, Habermas parece assumir que qualquer tentati-va de ir além de uma compreensão transcendental ou an-tropológica da relação entre humanos e natureza leva detodo modo a uma posição teológica.

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partida para uma teoria da sociedade capitalistaavançada”.65

Independentemente de relacionar o argu-mento de Marcuse a Marx ou à fenomenologia,Habermas faz objeção a toda tentativa de ver aessência da ciência e da tecnologia como funda-mentalmente histórica. Ele argumenta que a re-lação entre os seres humanos e a natureza, talcomo se manifesta na ciência e na tecnologia –ou também significativamente no trabalho hu-mano – será sempre guiada por uma forma deação racional com respeito a fins, cujas caracte-rísticas de base não são históricas, mas antropo-

lógicas, ou seja, característica da espécie huma-na como um todo. Ele escreve:

O desenvolvimento tecnológico, portanto, segueuma lógica que corresponde à estrutura da açãoracional com respeito a fins, regulada por seuspróprios resultados, que é de fato a estrutura dotrabalho. Percebendo isso, é impossível prevercomo, enquanto não mudar a organização danatureza humana e, portanto, enquanto tivermosque alcançar a autopreservação através do traba-lho social e com o auxílio de meios que substitu-am o trabalho, nós poderíamos renunciar àtecnologia, mais particularmente à nossatecnologia, em favor de uma outra qualitativamen-te diferente.66

Em resumo, Habermas se recusa a aceitara afirmação de Marcuse de que a ciência e atecnologia são decisivamente determinadas pelocontexto social em que estão localizadas e querelações sociais qualitativamente diferentes tra-riam consigo formas qualitativamente diferen-tes da ciência e da tecnologia.67

Vários comentadores tentaram defenderMarcuse das críticas de Habermas.68 O recente

estudo de Andrew Feenberg é motivado, em par-te, justamente por uma dessas defesas de Marcusecontra Habermas.69 Mas, em contraste comFeenberg, que acredita que os melhores aspectosda teoria da tecnologia de Marcuse são deriva-dos da fenomenologia em geral, e da reformulaçãopor Heidegger do conceito aristotélico de techné

em particular, eu gostaria de sugerir que as raízesmarxistas da teoria da tecnologia de Marcuse de-vem ser levadas a sério. Não é necessário abando-nar o marxismo de Marcuse a fim de defendê-locontra Habermas ou para preservar aqueles as-pectos de sua teoria que são relevantes ainda hoje.

Para esse fim, eu gostaria de delinear al-guns dos problemas inerentes a uma abordagemfenomenológica e, mais especificamente,heideggeriana da tecnologia, que poderiam sersuperados através de uma consideração renovadada teoria de Marx, que se move para além dealguns dos equívocos generalizados sobre sua obra.

Como já foi observado, Marcuse acredita-va que a fenomenologia estava limitada por suaincapacidade de ir além de uma abordagem pu-ramente filosófica. Marcuse articula esse argu-mento do seguinte modo, em seu ensaio de 1965sobre Husserl:

A subjetividade transcendental de Husserl é no-vamente uma subjetividade cognitiva pura. Nãoé preciso ser um marxista para insistir que a re-alidade empírica é constituída pelo sujeito dopensamento e da ação, da teoria e da prática [...].A filosofia pura agora substitui a ciência puracomo o legislador cognitivo final, estabelecendoa objetividade. Esta é a arrogância inerente a todotranscendentalismo crítico, o qual, por sua vez,deve ser cancelado.70

Em outras palavras, a fenomenologia nun-ca incorporou adequadamente as dimensõesmaterialistas da teoria crítica de Marx do capi-

65 Ibid., p.85.66 Ibid., p.87 (grifos dele)67 Há um debate, na literatura secundária, sobre o quão ra-

dicais eram realmente as intenções de Marcuse. Para meuspropósitos aqui, é suficiente defender a pretensão geralde Marcuse de que as relações entre os seres humanos e anatureza incorporadas em ciência e tecnologia não sãonecessariamente trans-historicamente instrumentais. ComoC. Fred Alford argumenta convincentemente, a pretensãode Habermas, ao contrário representa uma conclusão des-necessária do possível desenvolvimento de novas formasde conhecimento e ação. (1985, p.143).

68 O relato mais abrangente e nuançado do debate entreMarcuse e Habermas ainda é o estudo de C. Fred Alford,mencionado acima. Alford levanta objeções bem pensa-

das tanto à posição de Marcuse quanto à de Habermas,mas, em última análise, sugere que “o argumento deHabermas, embora extraordinariamente fecundo em pro-vocar o debate, pode ter chegado a um impasse”, e que “aobra de Marcuse contém várias sugestões valiosas de comoessa percepção pode ser contornada” (p. 15).

69 Samir Gandesha argumenta de modo semelhante em“Marcuse, Habermas and the Question of Technology”.

70 The Essential Frankfurt School Reader, p.475-476 (grifosde Marcuse).

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talismo moderno. Desnecessário dizer que, paraMarcuse, o materialismo aqui significa materia-lismo histórico, não metafísico ou mecânico.71

Em segundo lugar, nunca Marcuse sucumbiu auma celebração acrítica da experiência cotidia-na, que ele via como totalmente condicionadapor fatores sociais e históricos. De fato, Marcusenão acredita tampouco que Husserl ou Heideggerdefenderam essa posição. Por exemplo, no en-saio mencionado acima, Marcuse escreve: “ex-periências científicas, bem como pré-científicas,são falsas, incompletas, na medida em que elasexperimentam como objetivo (material ouideacional) o que na realidade é sujeito-objeto,objetivação da subjetividade”.72 Assim, a ênfasede Feenberg quanto à centralidade da experiên-cia cotidiana para a fenomenologia e sua impor-tância para a teoria de Marcuse parecem fora delugar.73 Marcuse, o hegeliano, nunca celebrariaacriticamente a “certeza sensível” ou outras for-mas de experiência cotidiana não-mediadas. Aestrutura e as práticas do “mundo da vida” nãosão a-históricas, mas são profundamente mol-dadas por fatores sociais e históricos, que de-vem ser reconhecidos, não ignorados. Finalmen-te, e talvez mais importante, Heidegger, em par-ticular, nunca desenvolveu qualquer categoriasofisticada para compreender a sociedade mo-derna. Apesar de suas muitas vezes penetrantesleituras da filosofia moderna, a filosofia deHeidegger pós-Kehre [pós-virada] – da qual fez partesua teoria madura da tecnologia – foi baseada nopressuposto fundamental de que a metafísica oci-dental tinha tomado um caminho errado com odesenvolvimento do logocentrismo na filosofia gre-ga antiga, e o que veio depois foi uma longa crônicada Seinsvergessenheit [esquecimento do ser]. Comomuitos comentadores argumentaram, a filosofiatardia de Heidegger representou uma negação abs-trata da modernidade.74

Em contraste com a crítica “pré-pecadooriginal” de Heidegger aos pressupostos metafísicosenraizados na sociedade e tecnologia modernas,tanto Marx quanto Marcuse acreditavam que ocapitalismo moderno possuía uma dimensão en-faticamente emancipatória vis-à-vis às socieda-des tradicionais, mas que essa emancipação per-maneceu parcial e logo deu lugar a novas formasabstratas de dominação social. No entanto, odesenvolvimento capitalista dos meios de pro-dução – em que a ciência e a tecnologia cada vezmais suplantam o trabalho vivo como o elemen-to decisivo – continuam sendo a condição ne-cessária para a criação de uma sociedade quali-tativamente diferente, em que as mercadorias, ocapital e o trabalho abstrato não seriam mais asformas essenciais de mediação.75 O desenvolvi-mento capitalista da ciência e tecnologia tornapossível a eliminação tendencial dessas formassociais, o que, por sua vez, também transfor-mam a essência da própria ciência e da própriatecnologia. A principal objeção de Habermas aMarcuse repousa sobre a suposição equivocadade que tanto a tecnologia quanto o trabalho sãocaracterísticas trans-históricas da relação entre aespécie humana e a natureza. Dentro desse mo-delo, é impossível distinguir entre as diferentesformas de trabalho e de tecnologia que existiramhistoricamente e que poderiam existir no futuro.Embora Marx tenha reconhecido o “metabolis-mo” (Stoffwechsel) entre os seres humanos e anatureza como uma condição ontológica de todasas sociedades,76 isso não o impediu de identifi-car as formas qualitativamente diferentes de tra-balho e tecnologia (como o trabalho abstrato e otrabalho produtor de valor de troca no capitalis-mo) como a differentia specifica das sociedadese épocas históricas. O achatamento dessas dife-renças por Habermas nos leva para dentro danoite antropológica em que todas as formas detrabalho e de tecnologia são cinzentas. Em con-traste com Habermas, Heidegger pode ter reco-nhecido que a essência da tecnologia não é uma

71 Marcuse seguiu Horkheimer a esse respeito. Cf. os ensai-os de Horkheimer (1992, p.10-46; 1993, p.15-48).

72 The Essential Frankfurt School Reader, p.475.73 Heidegger and Marcuse, p.131.74 Cf., por exemplo, Michael E. Zimmerman, 1990, e Jürgen

Habermas, 1987, p.131-160.

75 Moishe Postone, Time, Labor and Social Domination.76 Marx, Capital, 1977, p.283 ss.

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característica trans-histórica da relação entre aespécie humana e a natureza, mas ele não refletiuadequadamente sobre as condições concretas, so-ciais e históricas que determinam as formas par-ticulares que a ciência e a tecnologia assumemem qualquer época dada. Por causa desse reco-nhecimento é que Marcuse foi capaz, em algunspoucos casos, de complementar a sua teoria datecnologia com as ideias de Heidegger, mas sem-pre as colocou no interior de uma teoria marxistamais ampla da sociedade capitalista moderna.

Ainda assim, persistem muitas reservasem relação à teoria de Marx da tecnologia. Porexemplo, muitas pessoas leem Marx como umdeterminista tecnológico. Em sua reinterpretaçãopioneira da teoria crítica de Marx, Moishe Postoneargumentou que o determinismo tecnológico éuma das características definidoras do que elechama de “marxismo tradicional”.77 Os marxis-tas tradicionais tendem a juntar as categorias deMarx de valor e de riqueza material, ofuscando,assim, o caráter historicamente específico do tra-balho abstrato e do trabalho produtor de valorde troca como uma forma social característicado capitalismo moderno, uma forma que nãoiria desempenhar o mesmo papel central de me-diação em uma sociedade pós-capitalista. Assimcomo o trabalho, a tecnologia é vista com umalógica própria, que é largamente independentede fatores sociais e históricos. Segundo Postone:

Eles [os marxistas tradicionais] tendem a ver omodo de produção como um processo essencial-mente técnico influenciado por forças e institui-ções sociais, e eles tendem a ver o desenvolvi-mento histórico da produção como um desen-volvimento tecnológico linear que pode ser res-tringido por fatores sociais extrínsecos, como apropriedade privada, e não como um processointrinsecamente técnico-social, cujo desenvolvi-mento é contraditório. Tais interpretações, emsuma, se equivocam fundamentalmente a respeitoda natureza da análise crítica de Marx.78

Essa interpretação “marxista tradicional”otimistamente acredita que a evolução natural

da ciência e tecnologia e a riqueza material cadavez maior vão levar quase inevitavelmente à cri-ação de uma sociedade de abundância; em ou-tras palavras, apenas as formas de distribuição,e não as formas de produção, precisam ser alte-radas. Mas essa interpretação não consegue apre-ender as formas pelas quais a ciência e atecnologia continuam a ser constituídas e subor-dinadas à forma de valor na sociedade capitalis-ta, o que as coloca a serviço, não de finsemancipatórios, mas da dominação social emcurso. Postone escreve:

A contradição básica do capitalismo [...] está fun-dada no fato de que a forma das relações sociais eda riqueza, bem como a forma concreta do modode produção, permanecem determinadas pelo va-lor mesmo quando se tornam anacrônicas do pontode vista do potencial de criação de riqueza mate-rial do sistema. Em outras palavras, a ordem soci-al mediada pela forma mercadoria dá lugar, porum lado, à possibilidade histórica de sua próprianegação determinada – uma forma diferente demediação social, uma outra forma de riqueza, eum novo modo de produção [...]. Por outro lado,essa possibilidade não se realiza automaticamen-te, a ordem social permanece com base no valor.79

Não há dúvida de que Marcuse era críticodesse tipo de interpretação de Marx como umdeterminista tecnológico. Ao longo de seus es-critos sobre a tecnologia e racionalidadetecnológica, Marcuse salientou as maneiras comoelas facilitaram e reforçaram a dominação soci-al. Como vimos também, Marcuse voltou suaatenção cada vez mais, em seus últimos escritos,para os fatores subjetivos envolvidos na trans-formação do capitalismo.

Outra objeção comum a Marx é que elepostulava a relação entre os seres humanos e anatureza como puramente instrumental. Comoo estudioso de Marx, George Lichtheim susten-tou em 1961: “para o jovem Marx a única natu-reza relevante para a compreensão da história éa natureza humana [...]. Marx deixou sabiamen-te a natureza (aquela que não é a natureza hu-mana) em paz”.80 Lichtheim refere-se aqui ao jo-

77 Postone, Time, Labor and Social Domination, p. 3-120.78 Ibid., p. 199.

79 Ibid., p. 232.80 George Lichtheim, 1964, p.245.

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vem Marx, mas o trabalho posterior de Marx émuitas vezes visto como ainda mais “prometeico”,dada sua ênfase na necessidade de os seres hu-manos subjugarem a natureza para desenvolveros meios de produção. Mas, a começar pelo im-portante estudo de Alfred Schmidt de 1962, OConceito de Natureza em Marx, os comentadoresreconheceram que o materialismo de Marx esta-va altamente afinado com a complexa relaçãoentre o homem e a natureza e representou umaruptura com a tendência idealista dominante dereduzir a natureza a nada mais do que matériainerte, modificada à vontade para se adequar aosobjetivos humanos.81 Particularmente em seusprimeiros trabalhos, Marx salientou a inserçãodo ser humano na natureza, à qual se referiacomo o “corpo inorgânico” do homem.82 Não éuma coincidência que Marcuse tenha retornado,em seus últimos escritos, à obra inicial de Marx,em uma tentativa de antecipar as formas detecnologia em uma sociedade pós-capitalista, aqual não mais repousaria sobre uma relação pu-ramente instrumental com a natureza.83

Mas Andrew Feenberg vê esse retorno aMarx como um beco sem saída, que poderia tersido evitado se Marcuse tivesse retornado antesa Heidegger e à sua reformulação da noção detechné de Aristóteles. Feenberg reconhece que“Marcuse nunca distinguiu a sua ideia de nature-za da de Marx”, mas que a ideia de Marx “sofrede uma ambiguidade desconcertante sobre o statusontológico da natureza”.84 Feenberg descreve essasuposta ambiguidade da seguinte forma:

A palavra ‘natureza’ em Marx refere-se a um emesmo tempo ao objeto imediato da experiência

sensorial, a natureza vivida contrastada no ro-mantismo com a natureza da ciência natural, e ànatureza apropriada pelo trabalho no processo deprodução [...]. A receptividade poética em relaçãoà natureza e a sua transformação técnica são opos-tos, reportando-nos a entendimentos diferentes doobjeto. O que é intrigante na insistência de Marxtanto contra o idealismo quanto contra o realismonaturalista é que a natureza, neste sentido ambí-guo, é essencialmente correlacionada com o sujei-to e ainda assim é totalmente independente dele[...]. O Aristóteles de Heidegger poderia ter dadoum sentido a isso.85

Ao invés de considerar o conceitosuperdeterminado de Marx da natureza comouma fraqueza, pode-se vê-lo antes como umatentativa de compreender a complexidade dorelacionamento homem-natureza nas sociedadesmodernas, a qual não sucumbe nem aoantimodernismo romântico nem a uma celebra-ção acrítica da subordinação da natureza emnome da “produção pela produção” capitalista.

Seria admirável se a reformulação deHeidegger da noção pré-moderna de techné pu-desse realmente fazer justiça a essas complexida-des. Feenberg está correto ao enfatizar a afinidadede Marcuse com Heidegger no que diz respeito à“análise da produção (techné), em que a naturezaé compreendida como o objeto essencial do sujeitoprodutivo” e “não é indiferente à sua transforma-ção por meio de artifício, mas é apropriado parasua forma final, na qual seu próprio potencial érealizado”.86 Mas Marx também enfatizou o poten-cial para esse tipo de “produção”, particularmenteem uma sociedade pós-capitalista. Feenberg, quenão considera a compreensão de Marx da nature-za como puramente instrumental, e que distingueentre Marx e o marxismo tradicional, aponta elepróprio para isso. Ele escreve:

Apesar da dependência da natureza em relaçãoao trabalho, a alteridade do objeto é preservada:o significado do objeto não é imposto arbitraria-mente, não é apenas matéria-prima para os pro-jetos humanos. A natureza mantém a sua inde-pendência, sua verdade, mesmo no processo detransformação por meio do trabalho humano.87

81 Alfred Schmidt, 1971. A edição alemã de 1993 contémum prefácio novo, que explora com mais detalhes a rele-vância da obra para as discussões mais contemporâneasno interior da teoria ambiental. Cf. Der Begriff der Naturin der Lehre von Marx. Hamburg: EuropäischeVerlagsanstalt, 1993, p. i-xvii. A tentativa recente maisabrangente em demonstrar a importância da teoria críticade Marx para as questões ambientais contemporâneas é ade John Bellamy Foster 2000.

82 Marx, 1978.83 Cf., por exemplo, “Nature and Revolution”, 1972, p.59-

78.84 Feenberg, 2005, p.119.

85 Ibid., p. 125.86 Ibid., p. 130.87 Ibid., p. 124-5.

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O fato de que Marx também examinou asoutras manifestações do relacionamento homem-natureza nas condições historicamente específi-cas da sociedade capitalista – com vistas à possi-bilidade de mover-se para além delas, ao mes-mo tempo que preservava seus aspectos positi-vos – deve ser visto como uma força. Pois a au-sência de uma compreensão conceitual nuançadadas particularidades da sociedade moderna po-deria facilmente levar a uma negação abstrata,em vez de determinada, dessas relações. O pró-prio envolvimento de Heidegger na política “re-volucionária conservadora” presta um testemu-nho inquietante quanto a um resultado possíveldessa abordagem.88

Tentei demonstrar que a teoria de Marcuseda tecnologia e da racionalidade tecnológica em-prestou elementos da fenomenologia husserlianae heideggeriana, mas, em última instância, semanteve muito mais relacionada à teoria críticade Marx. Embora eu pense que a abordagem deMarx e seu desenvolvimento e aperfeiçoamentopor Marcuse no século XX ofereçam um pontode partida muito mais promissor para tentativascontemporâneas de teorizar a tecnologia do quea filosofia de Heidegger, a teoria de Marcuse nãodeixa de ter seus problemas. Por exemplo, a teo-ria de Marcuse da racionalidade tecnológica re-fletia as condições históricas de meados do sé-culo XX – o período do alto fordismo e da cha-

mada “sociedade afluente”. De nossa perspecti-va contemporânea pós-fordista, na esteira datransição global para novas formas de “acumu-lação flexível”,89 a centralização rígida e a padro-nização repressiva já não parecem definir a“racionalidade tecnológica” do presente. Alémdisso, as especulações otimistas de Marcuse, se-gundo as quais a tecnologia irá em breve tornarpossível uma época histórica não mais definidapela escassez, parecem menos convincentes nummomento em que os salários reais dos cidadãosde classe média e baixa dos países industriaisavançados permanecem estagnados há décadas;além disso, as últimas décadas de “globalização”conduziram a um aumento dramático na pobre-za em muitas áreas do globo.90 A mais recentecrise econômica global reforçou muitas dessastendências e resultou em um retorno parcial aformas estadocêntricas de capitalismo. Mas a ilu-são, que foi difundida em meados do século XX,de que os estados-nação isolados poderiam con-trolar a bellum omnium contre omnes do capita-lismo global não voltou. Assim, as categoriasmarxistas que informam a teoria de Marcuse datecnologia ainda são relevantes, mas precisari-am ser repensadas para dar conta dos aconteci-mentos históricos mais recentes.91

Finalmente, alguns comentadores recen-tes – inclusive eu – apontaram para um “déficitdemocrático” na teoria de Marcuse.92 Como jávimos, Richard Wolin acredita que esse déficitpode ser atribuído à duradoura influência de88 Em seu trabalho extremamente rico e exaustivo sobre a

filosofia da tecnologia, Andrew Feenberg de maneira ne-nhuma defende qualquer tipo de visão antimodernasimplista da tecnologia. Mas alguns de seus argumentosem Heidegger and Marcuse chegam a uma romantizaçãodas artes pré-modernas, que foi semelhante à romantizaçãode Heidegger do camponês da Floresta Negra. Por exem-plo, Feenberg escreve: “os artesãos qualificados veem oobjeto não só em sua forma presente, mas na falta de for-ma que ele deve perder no trabalho. Esta visão éexperiencial e não intelectual” (p.131). Esse tipo de privi-légio da “experiência” sobre o “intelecto” ressoa bem coma filosofia de Heidegger, mas eu acho que dificilmenteMarcuse o teria aceitado. Feenberg liga o conceito de “ex-periência” a um conceito de “política existencial” e “au-tenticidade” que Marcuse supostamente “se recusou aabandonar” (p.133). Apesar de Marcuse ter sido um firmedefensor do indivíduo e crítico de qualquer tipo de coleti-vismo ao longo de sua vida, ele usou o conceito de“existencialismo político” para demonstrar os perigos dema política anti-racionalista em Heidegger e Carl Schmitt.Cf. nota 10 acima. Para mais evidências da visão funda-mentalmente crítica que Marcuse tinha em relação aoexistencialismo, cf. Jean Paul Sartre, 1948, p.309-336.

89 David Harvey, 1989, p.121-97.90 David K. Shipler, 2005; Moishe Postone, 2006, p.93-110;

Mike Davis, 2006.91 Para uma tentativa de repensar a teoria da crise de Marx à

luz dos desenvolvimentos do século XX, cf. David Harvey,1982. Embora escrito no final dos anos setenta e iníciodos anos oitenta, o relato histórico e analítico de Harveydo papel das instituições financeiras dentro do quadromais amplo de produção e acumulação capitalista lançamuita luz sobre a atual crise e também fornece um correti-vo para críticas unidimensionais ao “capital financeiro”.Para uma análise da atual crise, que localiza sua origemnão nas finanças, mas no declínio a longo prazo da pro-dução capitalista lucrativa, cf. Robert Brenner, “What isGood for Goldman Sachs is Good for America: The Originsof the Current Crisis”, disponível on-line em: http://w w w. s s c n e t . u c l a . e d u / i s s r / c s t c h / p a p e r s /BrennerCrisisTodayOctober2009.pdf

92 Abromeit e Cobb (Ed), 2004, p.24.

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Heidegger sobre o pensamento de Marcuse. Maso nosso exame da teoria da tecnologia de Marcusedeve ter deixado claro que ele diferiu de Heideggerem pelo menos dois aspectos decisivos: a suarejeição de uma crítica da tecnologia regressiva,unilateralmente antimoderna e sua maior sim-patia para com a tradição racionalista na filoso-fia. Embora Marcuse normalmente mantivessedistância de tendências antidemocráticas na es-querda e fosse muito menos encantado com aideia de uma ditadura educacional platônica doque afirma Wolin,93 sua crítica intransigente dademocracia burguesa94 ocasionalmente o levou atomar posições profundamente problemáticas –tais como o seu elogio acrítico da revolução cul-tural chinesa95 ou o seu apelo à suspensão dosdireitos civis da “direita política” em seu ensaiode 1965 chamado “Tolerância Repressiva”.96 Masesse ponto fraco não pode ser explicado a partirde qualquer influência duradoura de Heideggersobre o pensamento de Marcuse. Marcuse foicrítico de Heidegger desde o início e sempre seapropriou de seu pensamento para complemen-tar uma abordagem fundamentalmente marxis-ta da sociedade moderna. Há razões claras e jus-tificáveis para rotular Marcuse de “marxistaheideggeriano”, pelo menos desde sua recepçãoentusiástica de Ser e Tempo, em 1927, até suadescoberta dos Manuscritos de Paris de Marx,em 1932, ou até mesmo um “marxistafenomenológico”, com relação a seus escritosposteriores sobre tecnologia. Mas seria de admi-rar que fosse correta a descrição que Wolin fazde Marcuse como um “heideggeriano de esquer-

da”, especialmente em relação a seus escritosdepois de 1932.

A explicação para o déficit democráticono pensamento de Marcuse deveria ser procura-da no interior da própria teoria marxista e emseu desenvolvimento no século XX.97 Emborahouvesse vários teóricos marxistas do século XXque tentaram recuperar os melhores aspectos datradição política liberal-democrática, eles forama exceção, e não a regra – e Marcuse não se en-contrava entre eles.98 Mas a experiência catas-trófica do chamado “socialismo real” no séculoXX deixou claro que qualquer tentativa contem-porânea de revitalizar a teoria e a prática socia-listas tem de preservar, e não simplesmente ne-gar, os melhores aspectos daquela tradição.99

Habermas e seus seguidores tomaram para si essatarefa. Ao mesmo tempo, as tentativas mais re-centes de Habermas em trabalhar os fundamen-tos normativos da democracia liberal parecemcada vez mais formalistas e fora de contato comos recentes acontecimentos históricos.100 Assim,parece que os teóricos críticos hoje são confron-tados com a tarefa de recuperar as abordagens

93 Cf., por exemplo, Heidegger and Marcuse,2004, p.143;Abromeit e Cobb, 2004, p.18-19.

94 Cf., por exemplo, seu ensaio, “O destino histórico da de-mocracia burguesa”, que só foi publicado postumamenteem Herbert Marcuse; Douglas Kellner (Ed.) 2001, p.163-86.

95 Cf., por exemplo, Essay on Liberation, 1969, p.9,87. Ésurpreendente que Marcuse, que era um crítico consisten-te e ferrenho do anti-intelectualismo tanto da direita comoda esquerda, tenha se identificado com um movimentoque se tornou notório pelo envio de “intelectuais” ao cam-po para finalidades de “reeducação”. Mas a compreensãoacrítica da Revolução Cultural chinesa foi bastante comumentre os intelectuais de esquerda naquele momento. Cf.Richard Wolin, 2010.

96 Cf. Marcuse 1968, p.110.

97 Não é preciso ressaltar que nem todos os críticos do sécu-lo XX da tradição liberal-democrática políticos eramheideggerianos. Outros teóricos marxistas, como GeorgLukács, que eram ainda mais antipáticos a Heidegger doque Marcuse, também poderiam ser acusados de negligen-ciar os aspectos progressistas da tradição política liberal-democrática. O caso Lukács também ilustra a necessidadede reexaminar o papel crucial que desempenharam osbolcheviques, com sua hostilidade incessante a formaspolíticas liberal-democráticas, no desenvolvimento da te-oria marxista do século XX.

98 Marcuse era simpático aos esforços de seu amigo e colega,Franz Neumann, em recuperar os melhores aspectos datradição política liberal-democrática para uma teoria críti-ca marxista do capitalismo do século XX, mas seuenvolvimento com essa tradição não era tão profundo. Porexemplo, cf. a introdução breve mas claramente elogiosade Marcuse a Franz Neumann 1957, p.vii-x.

99 Entre os “melhores aspectos” podem-se incluir, no míni-mo, a divisão de poderes, o Estado de Direito e a preser-vação e ampliação de direitos subjetivos. Esses direitosnão precisam incluir os direitos ilimitados de proprieda-de, que – como C.B. MacPherson e outros mostraram –foram desenvolvidos historicamente para salvaguardar apropriedade burguesa contra o Estado absolutista, por umlado, e contra as classes marginalizadas mais baixas, poroutro. Mas eles incluiriam a preservação de direitos civisbásicos (inclusive o direito “de ser diferente sem medo”,como Adorno disse uma vez), mas também criam novosdireitos sociais, tais como o direito à habitação adequada,saúde e educação.

100 Cf., por exemplo, William Scheuermann, 1999, p.153-77; John P. McCormick, 2007, p.1-15, 176-230; MoishePostone, 1996, p.175-176.

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mais críticas e mais matizadas da história, dasociedade, da cultura, da ideologia e das estru-turas de caráter psicológico encontradas na obrade Marx e na “primeira geração” da Escola deFrankfurt, enquanto, ao mesmo tempo, levam asério os esforços de Habermas e seus seguidorespara preservar o que há de melhor na tradiçãoliberal-democrática.

(Recebido para publicação em 28 de maio de 2011)

(Aceito em 19 de julho de 2011)

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John Abromeit - Doutor em Filosofia pela Universidade da Califórnia, Berkeley. Professor do Departamentode História Universidade SUNY, Buffalo State. Suas mais recentes publicações, são: Max Horkheimerand the Foundations of the Frankfurt School. Cambridge University Press, 2011; The limits of praxis: thesocial psychological foundations of Herbert Marcuse and Theodor Adorno’s Interpretations of the 1960sProtest Movements. Changing the World. Changing Oneself: Political Protest and Collective Identitiesin the 1960s/70s West Germany and U.S., eds. B. Davis; W. Mausbach; M. Klimke; C. MacDougall.Berghahn Books, 2010; The origins and development of the model of early critical theory in the work ofMax Horkheimer, Erich Fromm and Herbert Marcuse. Politics and the Human Sciences, ed. David Ingram.This will be the fifth of an eight volume History of Continental Philosophy, ed. Alan Schrift. London:Acumen Publishing, 2010.

LEFTIST HEIDEGGERIANISM ORPHENOMENOLOGICAL MARXISM? ReconsideringHerbert Marcuse’s Critical Theory of Technology

John Abromeit

Unlike recent interpretations of Marcuse’stheory of technology, be it in praise or criticism, whichidentify in it a strong and continuing influence ofHeidegger, I intend to show in this article, that Marcuseborrows important elements of Heidegger’sphenomenology, and even more so, Husserl’s, but alsothat these elements are appropriate within a generalMarxist theoretical approach. Thus, the social andhistorical factors are emphasized as ultimatesdeterminants of technology and technologicalrationality. Therefore, this paper seeks to clarify therelationship between Marxism and phenomenologyin Marcuse’s later work.

KEYWORDS: Marcuse, Heidegger, critical theory,technology, Marxism.

HEIDEGGERIANISME DE GAUCHE OU MARXISMEPHÉNOMÉNOLOGIQUE? Reconsidérant la Théorie

Critique de la Technologie de Herbert Marcuse

John Abromeit

Contrairement aux interprétations récentes dela théorie marcusienne de la technologie, rempliesd’éloges ou de critiques, qui identifient en elle uneinfluence forte et continue de Heidegger, j’ai l’intentionde montrer dans cet article que Marcuse empruntedes éléments importants à la phénoménologie deHeidegger et, plus encore, de Husserl, mais que ceséléments sont appropriés dans une approche théoriquegénérale marxiste. Ainsi les facteurs sociaux ethistoriques sont mis en évidence en tant quedéterminants de la technologie et de la rationalitétechnologique. De cette manière, cet article essaied’expliquer la relation entre le marxisme et laphénoménologie dans l’œuvre tardive de Marcuse.

MOTS-CLÉS: Marcuse, Heidegger, théorie critique,technologie, marxisme.

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