heidegger e a daseinanálise

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Apesar das contundentes críticas de Heidegger, a analítica existencial por ele intentada em Ser e Tempo não tardou manifestar-se a profissionais das ciências psicoterápicas como um conjunto bem arquitetado de teses ontológicas, capaz de servir como alicerce para a reformulação científica da arquitetônica daquelas mesmas ciências. A reconstrução, no âmbito das ciências terapêuticas, era então pensada como absolutamente necessária e ligada mesmo ao destino de continuidade ou esterilidade das pesquisas no campo da psicologia, da psiquiatria, da psicanálise... Havia necessidade de fundamentos ontológicos, pressupostos antropológicos firmes, enfim, pensava-se numa completa refundação do saber científico sobre o homem para, somente após, pensar as terapias para os males da existência. Pelo menos dois nomes se destacam nesta tarefa de reconstrução, no campo da psiquiatria: Medard Boss e Ludwig Binswanger. Ambos mantiveram com Heidegger, sobretudo no que diz respeito aos parâmetros analíticos do Dasein traçados por este em Ser e Tempo, um diálogo fundante. Poder-se-ia falar, cremos sem exagero, que a psiquiatria Daseinsanalítica ou a Daseinsanálise psiquiátrica, fundada pelos pensadores acima indicados, iniciando-se com L. Binswanger, é fruto de uma apropriação dos pressupostos filosóficos da analítica existencial de Sein und Zeit, na tentativa de encontrar 1

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Procura-se averiguar como o pensamento de Heidegger fora apropriado pela psiquiatria, no século XX.

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Page 1: Heidegger e a Daseinanálise

Apesar das contundentes críticas de Heidegger, a analítica existencial por ele intentada em Ser

e Tempo não tardou manifestar-se a profissionais das ciências psicoterápicas como um

conjunto bem arquitetado de teses ontológicas, capaz de servir como alicerce para a

reformulação científica da arquitetônica daquelas mesmas ciências.

A reconstrução, no âmbito das ciências terapêuticas, era então pensada como absolutamente

necessária e ligada mesmo ao destino de continuidade ou esterilidade das pesquisas no campo

da psicologia, da psiquiatria, da psicanálise... Havia necessidade de fundamentos ontológicos,

pressupostos antropológicos firmes, enfim, pensava-se numa completa refundação do saber

científico sobre o homem para, somente após, pensar as terapias para os males da existência.

Pelo menos dois nomes se destacam nesta tarefa de reconstrução, no campo da psiquiatria:

Medard Boss e Ludwig Binswanger. Ambos mantiveram com Heidegger, sobretudo no que

diz respeito aos parâmetros analíticos do Dasein traçados por este em Ser e Tempo, um

diálogo fundante.

Poder-se-ia falar, cremos sem exagero, que a psiquiatria Daseinsanalítica ou a Daseinsanálise

psiquiátrica, fundada pelos pensadores acima indicados, iniciando-se com L. Binswanger, é

fruto de uma apropriação dos pressupostos filosóficos da analítica existencial de Sein und

Zeit, na tentativa de encontrar fundamentos ontológicos para a ciência da psiquiatria que, já

aqui adotando um vocabulário heideggeriano, se constitui como ciência ôntica.

Assim, a Daseinsanálise psiquiátrica, como a nomearemos doravante, com fundamento em

Heidegger, parte de uma leitura existencial-analítica, dos distúrbios psiquiátricos e da própria

atividade terápica.

Mais precisamente, os distúrbios (as neuroses, as psicoses, a esquizofrenia...) são modos

possíveis da existência, possibilidades concretas do Dasein, movimentos que se situam, num

plano mais extenso, no projeto do existir. Também a terapia ganha novos contornos e tem

renovada sua função de meio apropriado de cura (Sorge). Trata-se de esforço de terceira

pessoa, alheia ao projeto desviado do Dasein, no sentido de ‘fazer ver’ o desvio e de indicar o

recomeço, a possibilidade da ascensão. A correção de rota, ou a reconstrução do projeto

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existencial sob medida, é devolvida ao próprio Dasein, a terapia introduz o outro do Dasein, é

indicativa da recomposição de seu caminho.

Enfim, renova-se a psiquiatria, empoeirados conceitos, mantidos à custa de compromissos

teóricos nem sempre esclarecidos, devem ceder espaço a uma bem pensada arquitetura

científica, cujo princípio primeiro consiste em dar conta de situar aquela ciência em um bem

fundado conceito de homem. É na esperança de encontrar uma antropologia1 que pudesse

fundar, ou mais propriamente, refundar a psiquiatria que os olhos de Ludwig Binswanger

descortinam como promissora a analítica existencial heideggeriana.

Assim, na tentativa de revitalizar e refundar a psiquiatria2, Binswanger adotou boa parte da

terminologia e conceitos introduzidos por Heidegger.

Um dos termos mais significativos do vocabulário heideggeriano, que dá nome à nova forma

científica traçada para a psiquiatria renovada, é Dasein (literalmente, ser-aí), termo referente

ao modo de existência propriamente humano. O termo, no original, carrega consigo

conotações sutis: remete à continuidade da existência, à sobrevivência, à persistência... Além

disso, a ênfase em uma das partes da composição do vocábulo, “da” ou “sein”, pode remeter

ao sentido de estar no meio de tudo, no grosso das coisas.

1 Como se sabe, inicialmente, o intuito principal de Heidegger era esclarecer o sentido do Ser enquanto tal. As explicitações do existir humano que aparecem em Ser e Tempo devem ser consideradas como uma primeira etapa no caminho de seu pensamento, essencialmente voltado para a ontologia, não como uma definitiva antropologia. De fato, não foi intenção de Heidegger, de pronto, construir uma antropologia. Se esta se mostrou, de algum modo necessária, foi para o cumprimento de um segundo e mais radical desígnio: pensar, por ela, a questão do Ser. Eis o caráter propedêutico da analítica do Dasein, desenvolvida em Ser e Tempo. O que Binswanger faz é, dentre outras idiossincrasias, ler o texto heideggeriano de Ser e Tempo como uma antropologia, de preferência, traindo o intuito (ontológico) que lhe era subjacente, ou pelo menos deslocando-o para segundo plano.

2 Como se colhe dos textos do site da Associação Brasileira de Daseinsanlyse, “Binswanger considerou que uma “Daseinsanalyse Psiquiátrica” traria um novo método de investigação para compreender e descrever, sob um ângulo fenomenológico, as síndromes e os sintomas concretos, distintos e diretamente perceptíveis da psicopatologia, afastando-se do método científico que até então prevalecia na Psiquiatria e na Psicanálise. Seguindo o pensamento de Heidegger, Binswanger dedicou-se a um caminho fenomenológico: julgando não haver nada a procurar atrás dos fenômenos, quis esclarecer, de modo mais diferenciado, os significados e as relações que se mostravam imediatamente a partir deles mesmos”. Acessível em http://www.Daseinsanalyse.org, acesso em 11 de janeiro de 2007.

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Page 3: Heidegger e a Daseinanálise

Para Binswanger, seguindo Heidegger, a qualidade principal do Dasein é o cuidado (Sorge).

O “estar-aí” nunca é uma questão de indiferença: estamos envoltos pelo mundo, nele nos

movemos com os outros e conosco. Na vida, podemos fazer muitas coisas mas, descuidar não

é uma delas, sob pena de malograr o projeto existencial autêntico.

A partir de uma leitura muito própria de Heidegger3, mas de algum modo fiel a muitos de seus

conceitos, Binswanger busca construir novas possibilidades para a psiquiatria. Pensa trazer

novos fundamentos tanto para a ciência psiquiátrica quanto, a partir desta, para a prática de

terapias mais consentâneas com a estrutura essencial do humano.

3 Lê-se no recitado site da Associação Brasileira de Daseinsanlyse, o seguinte pertinente comentário, “Binswanger fez uma descrição Daseinsanalítica de numerosos casos de esquizofrenia. Afastou-se, entretanto, do pensamento de Heidegger num ponto capital, isto é, achou necessário acrescentar o conceito de “amor” ao conceito heideggeriano de “zelar”. (N.T.- Do alemão “sorge” que significa: cuidar, zelar, preocupar-se, etc...). Não percebeu que nesse termo “zelar”, empregado por Heidegger num sentido ontológico, já estavam incluídas todas as formas de relações afetivas, portanto também o amor. Quando reconheceu o próprio engano, deixou de qualificar suas pesquisas como “Daseinsanalíticas” e chamou sua nova orientação de pesquisa de “fenomenologia antropológica”. Em seguida voltou a se aproximar mais do pensamento de Husserl, o mestre de Heidegger”. Ver a referência ao site, constante da bibliografia final.

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