direito e divergência teórica: considerações a partir de heidegger

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O presente artigo tem por objetivo investigar o problema: “o que torna possível que a divergência entre os juristas com relação aos fundamentos do direito não seja perceptível?”. Para responder à questão, primeiramente será apresentado um julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal como um exemplo de divergência comumente suscitada entre os juristas. A partir desse caso mostrar-se-á a com base no pensamento de Ronald Dworkin que os diferentes posicionamentos acerca do conteúdo de uma lei são, na verdade, divergências com relação aos fundamentos do direito, isto é, dizem respeito àquilo que o direito é. Por fim, utilizando a analítica existencial do ser-aí desenvolvida por Martin Heidegger, se buscará encontrar uma resposta para o problema por meio de uma radicalização das ideias do direito como ciência e prática argumentativa.

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    DIREITO E DIVERGNCIA TERICA: CONSIDERAES A PARTIR DE HEIDEGGER

    Lucas Salgado Macedo Gomes de Carvalho1

    RESUMO: O presente artigo tem por objetivo investigar o problema: o que torna possvel que a divergncia entre os juristas com relao aos fundamentos do direito no seja perceptvel?. Para responder questo, primeiramente ser apresentado um julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal como um exemplo de divergncia comumente suscitada entre os juristas. A partir desse caso mostrar-se- a, com base no pensamento de Ronald Dworkin, que os diferentes posicionamentos acerca do que o direito diz sobre um caso determinado, na verdade so divergncias com relao aos fundamentos do direito, isto , dizem respeito quilo que o direito . Por fim, utilizando a analtica existencial do ser-a desenvolvida por Martin Heidegger, se buscar encontrar uma resposta para o problema por meio de uma radicalizao das ideias do direito como cincia e prtica argumentativa. Palavras-chave: Filosofia do Direito; Ontologia; Martin Heidegger; Ronald Dworkin. ABSTRACT: This paper aims to investigate the following problem: What makes it possible that jurists do not recognize their own divergence regarding the fundamentals of law? .To answer that question, firstly a judgment carried out the Brazilian Supreme Court is presented as an example of a common disagreement occurring among jurists. This case, based on Ronald Dworkins thought, demonstrates that the differing views among jurists in a specific case are, in fact, divergences regarding the fundamentals of law, in other words, about what the law is. Finally, the existential analytic of Dasein, developed by Martin Heidegger, is used to find a solution to the problem through a radicalization of the ideas of law as science and as argumentative practice. Keywords: Philosophy of law; Ontology; Martin Heidegger; Ronald Dworkin.

    A divergncia no direito

    O Supremo Tribunal Federal, no dia cinco de maio de dois mil e onze, julgou a Ao

    Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguio de Descumprimento de Preceito

    Fundamental (ADPF) 132, que buscavam o reconhecimento da unio estvel para casais

    homoafetivos, estendendo a esses os mesmo direitos e deveres dos companheiros de relaes

    heteroafetivos.

    1 Mestrando em Filosofia pela UERJ.

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    O Ministro relator das aes, Carlos Ayres Britto, afirmou ter aplicado a tcnica de

    interpretao conforme a Constituio para realizar seu voto2. Segundo o ministro, os incisos

    II e V do art.19, e art. 33 do Decreto-Lei n 220/1975 possuem mais de um significado, devendo,

    ento, serem interpretados de modo a se compatibilizarem com a Constituio, e essa, por sua

    vez, asseguraria de modo objetivo em seu artigo 3, inciso IV que constituem objetivos

    fundamentais da Repblica Federativa do Brasil: (...) promover o bem de todos, sem

    preconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminao. De

    acordo com Ayres Britto, tal dispositivo constitucional veda explicitamente o tratamento

    discriminatrio ou preconceituoso em razo do sexo dos seres humanos. Tratamento

    discriminatrio ou desigualitrio sem causa que, se intentado pelo comum das pessoas ou pelo

    prprio Estado, passa a colidir frontalmente com o objetivo constitucional de promover o bem

    de todos 3. Tal bem de todos, prossegue o Ministro, enquanto valor objetivamente posto pela

    Constituio, uma situao jurdica ativa a que se chega por meio da eliminao do

    preconceito de sexo 4. Assim, seu voto foi pelo reconhecimento da unio entre pessoas do

    mesmo sexo como entidade familiar, e pelo seu tratamento igual unio estvel heteroafetiva.

    O Ministro Ricardo Lewandowski, apesar de ter reconhecido como aplicveis s unies

    homoafetivas as mesmas prescries legais relativas s unies estveis heteroafetivas, e de

    tambm ter afirmado que seu voto era conforme a Constituio, divergiu do Ministro Ayres

    Britto com relao fundamentao de sua deciso5. O tratamento igualitrio entre as duas

    formas de unio no se deve, segundo Lewandowski, principalmente vedao constitucional

    da discriminao sexual e ao objetivo de promoo do bem comum, mas sim existncia de

    uma lacuna normativa, pois, segundo o Ministro, a unio entre pessoas do mesmo sexo no

    pode ser enquadrada em nenhuma das espcies de famlia descritas pelo ordenamento jurdico

    brasileiro, quais sejam: a constituda pelo casamento, a unio estvel entre homem e mulher, e

    a famlia monoparental. Estando diante de uma situao no prevista pelo ordenamento, cabe

    aos magistrados, afirmou o Lewandowski, suprir o vcuo normativo por meio de tcnica

    hermenutica de integrao analgica. Essa tcnica tem o objetivo de reger uma realidade social

    que no abarcada por nenhum dispositivo legal atravs de uma analogia com a disciplina

    2BRITTO, Carlos Ayres. Disponvel em: www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277re - visado.pdf. Acesso em: 22/08/14, pag. 1. 3 Ibidem, pag.10. 4 Ibidem, pag.11. 5 LEWANDOWSKI, Ricardo. Disponvel em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo - /ADI4277 RL.pdf. Acesso em 22/08/14.

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    normativa mais prxima situao examinada, sempre observando os limites objetivamente

    delineados dos parmetros legais, e principalmente buscando se conformar vontade original

    constituinte, de modo que o judicirio no atue como substituto do legislador. Deste modo, o

    Ministro procurou dar a essa situao no abarcada pelo direito brasileiro, isto , as unies

    homoafetivas, prescries legais anlogas s conferidas pelo poder constituinte originrio s

    unies heteroafetivas.

    Verifica-se que ambos os votos dos Ministros retiraram sua fundamentao de um

    mesmo lugar, o ordenamento jurdico brasileiro, principalmente a Constituio, mas, apesar

    disso, eles divergiram com relao quilo que o direito diz sobre o referido caso. Diante desse

    tipo de divergncia, to comum entre os juristas, normalmente se procura verificar qual

    posicionamento realiza a interpretao correta do ordenamento. Essa verificao da correo

    dos posicionamentos feita por meio da anlise das proposies jurdicas emitidas em relao

    aos textos legais, de modo a averiguar quais proposies so verdadeiras e quais so falsas, ou

    quais possuem uma melhor fundamentao. Essa anlise, contudo, insuficiente para aclarar

    as divergncias existentes entre os operadores do direito em relao ao contedo das normas

    jurdicas, pois o verdadeiro fundamento de tais discordncias permanece encoberto. Os

    diferentes posicionamentos em relao ao que diz o direito sobre um determinado fato se deve

    a uma divergncia quanto a quais so os critrios que devem ser utilizados para verificar se uma

    determinada proposio jurdica verdadeira ou falsa, ou seja, uma divergncia em relao ao

    que o direito.

    Em um primeiro momento pode parecer absurdo que exista uma discordncia entre os

    juristas quanto ao significado do direito. Para alguns filsofos a discusso e a crtica racionais

    s so possveis caso haja um consenso acerca das questes fundamentais; a racionalidade

    dependeria da aceitao de uma linguagem e um conjunto de suposies comuns. Karl Popper

    nomeia esse pensamento como a tese do relativismo6. Ronald Dworkin descreve uma ideia

    semelhante que compartilhada por alguns juristas e filsofos do direito, denominando-a como

    aguilho semntico7. O aguilho semntico o argumento presidido pela lgica de que uma

    discusso jurdica sensata somente possvel se forem aceitos e seguidos os mesmos critrios

    para decidir quando as proposies so bem fundadas, mesmo que no se possa afirmar com

    exatido que critrios so esses. preciso contestar a tese do relativismo e mostrar que os

    6 POPPER, Karl. A cincia normal e seus perigos. In: LAKATOS I.; MUSGRAVE, A. A crtica e o desenvolvimento do conhecimento. So Paulo: Cultrix, 1979, p. 69. 7 DWORKIN, Ronald. O imprio do direito. So Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 55.

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    juristas de fato divergem sobre o significado do direito. Para tanto, o presente artigo realizar

    uma exposio da ideia desenvolvida por Dworkin em seu livro O imprio do direito de modo

    a caracterizar o direito como uma prtica interpretativa, e assim poder evidenciar a existncia

    de tal divergncia.

    A divergncia terica

    Os processos judiciais, normalmente, suscitam trs tipos de questes: questes de fato,

    que buscam responder pergunta o que aconteceu?; questes de direto que verificam qual

    a lei pertinente para o fato ocorrido; e questes interligadas de moralidade poltica e fidelidade,

    que interrogam se a lei pertinente ao fato justa ou no, e se os juzes deveriam aplic-la ou

    ignor-la. As questes do segundo tipo so as mais frequentes e problemticas entre os

    profissionais do direito, e delas que se originam as proposies jurdicas.

    Dworkin designa como proposies jurdicas todas as diversas afirmaes e alegaes

    que as pessoas fazem sobre aquilo que a lei lhes permite, probe ou autoriza 8. Tais proposies

    so classificadas como podendo ser verdadeiras ou falsas, sendo que, a constatao da sua

    veracidade sempre se d com relao a outras proposies. Essas, de onde as proposies

    jurdicas retiram seus contedos, so os chamados fundamentos do direito, sendo, ento, os

    enunciados responsveis por tornarem uma proposio jurdica verdadeira.

    Deste modo, Dworkin mostra que o direito consiste em uma prtica argumentativa, na

    qual os que nela esto envolvidos compreendem que aquilo que ela permite ou exige depende

    da verdade de certas proposies que s adquirem sentido atravs e no mbito dela mesma; a

    prtica consiste em grande parte em mobilizar e discutir essas proposies 9. Fica agora um

    pouco mais claro em que consistem as questes de direito. As discordncias entre os juristas

    em relao ao que diz o direito sobre um determinado fato so, em maioria, divergncia quanto

    aos fundamentos do direito. Os juristas chegam a resultados diferentes quanto ao significado de

    um texto legal, quanto ao que diz uma lei, o que ela permite ou probe, por estarem utilizando

    critrios distintos para verificar a veracidade das suas proposies jurdicas. Essa divergncia

    com relao aos fundamentos do direito, quanto quilo que o direito realmente , Dworkin d

    o nome de divergncia terica sobre o direito 10. Se a ideia de que os aplicadores do direito

    8 Ibidem, p. 6. 9 Ibidem, p. 17. 10 Ibidem, p. 8.

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    divergem sobre o que o direito, inclusive os ministros do Supremo Tribunal Federal, continua

    parecendo absurda, porque ainda no se explicou como cada um daqueles que se relacionam

    com a prtica jurdica constroem seu significado.

    O direito caracterizado por Dworkin como uma prtica interpretativa, sendo a

    interpretao uma atitude em que o intrprete identifica um objeto naquilo que ele , e adota

    comportamentos adequados a esse objeto. O filsofo divide esquematicamente a atitude

    interpretativa em trs etapas11. Na primeira etapa so identificados as regras e os padres que

    se consideram fornecer o contedo da prtica jurdica. Essa etapa denominada pr-

    interpretativa, ainda que com ressalvas, j que nela seria necessrio algum tipo de interpretao

    para se identificar quais regras sociais so consideradas normas jurdicas e quais no.

    Admitindo-se que j em um primeiro momento realizada uma interpretao do direito,

    tambm ser preciso admitir que necessrio um mnimo consenso inicial acerca da prtica

    jurdica para que todos interpretem as mesmas regras e padres. Dworkin admite a necessidade

    desse consenso inicial forte sobre quais prticas so prticas jurdicas para o florescimento do

    direito como um empreendimento interpretativo, ressalvando que tal consenso no absoluto e

    tampouco eterno, mas contingente e local12. Porm, no se pode depreender da necessidade da

    existncia desse consenso inicial que exista um significado compartilhado por todos do que o

    direito, pois, como se demonstrar, tal significado consiste em muito mais do que esse primeiro

    acordo.

    Na segunda etapa o intrprete se concentra em encontrar o significado da prtica

    jurdica, a justificativa geral para os principais elementos que so identificados como a ela

    pertencentes. Dworkin ressalta que a justificativa no precisa se ajustar de forma exata a todos

    os aspectos e caractersticas da prtica estabelecida, devendo ser uma adequao suficiente para

    que o intrprete se veja como algum que interpreta a prtica, e no como algum que est

    inventando uma prtica nova13.

    Com as duas primeiras etapas, identificao do objeto e seu significado, so colocados

    diante do intrprete uma srie de possibilidades de comportamentos que ele pode adotar com

    relao quilo que interpretado. ento que se tem a terceira ultima fase, chamada de ps-

    interpretativa, na qual o intrprete assume determinados comportamentos dentre os que lhe so

    possveis. Essas atitudes buscam se adequar a ideia que o intrprete possui daquilo que a prtica

    11 Ibidem, p. 81-82. 12 Ibidem, p. 113. 13 Ibidem, p. 81.

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    realmente requer para melhor servir justificativa por ele aceita na etapa interpretativa14.

    fundamental enfatizar que a atitude interpretativa se d, quase que sempre, de forma automtica

    e irrefletida pelo intrprete. Raras so as vezes e aqueles que fazem esse agir se tornar explcito.

    Com essa rpida delineao de uma atitude interpretativa apresentada por Dworkin j

    deve ter ficado um pouco mais visvel do que se tratam as questes de direito. Para se evidenciar

    mais ainda que esses desarcodos entre os juristas so fruto da pluralidade de significados

    atribudos ao direito, resta explicar como seu significado composto.

    Tomando-se mais detidamente a interpretao realizada acerca de uma prtica social

    complexa como o direito, Dworkin identifica no significado composto pelo intrprete duas

    partes. A primeira seria um enunciado central, genrico e abstrato sobre o objeto interpretado,

    que fornece uma espcie de patamar a partir do qual todas as demais proposies se formam15.

    Sua abstrao decorre da sua finalidade, que interpretar o ponto essencial, a estrutura da

    prtica, ou seja, descrever seu sentido mais geral. Dworkin denomina esse primeiro elemento

    do significado como conceito. A segunda parte, chamada de concepo, consiste em

    subinterpretaes do conceito, um refinamento mais concreto daquilo que exige a prtica, do

    que ela . Elas so um aprimoramento da interpretao inicial abstrata.

    A distino entre conceito e concepo surge de um contraste entre nveis de abstrao

    em que se pode analisar uma determinada prtica. O primeiro nvel, o dos conceitos, tem por

    base ideias distintas que so utilizadas na maior parte das interpretaes; no segundo, o das

    concepes, as controvrsias entre diferentes ideias acerca das interpretaes abstratas so

    identificadas e assumidas, sedo possvel, assim, aprimorar-se a interpretao do conceito da

    prtica. A ideia do conceito, que tambm pode ser definida como sentido, propsito, objetivo,

    ou princpio justificativo, o fundamento do objeto interpretado como um todo, sendo que,

    cada intrprete constri sua teoria interpretativa a partir de suas convices acerca do que essa

    justificativa do objeto, o que faz com que cada interpretao seja diferente das vises de outros

    intrpretes16. Como j dito, um mnimo de consenso entre os que esto envolvidos na

    interpretao do direito necessrio para que eles dirijam seu olhar para as mesmas prticas e

    normas.

    Se retomarmos os votos acima expostos dos Ministros do STF, possvel agora perceber

    que as divergncias suscitadas derivam de interpretaes distintas acerca do que o direito.

    14 Ibidem, p. 82. 15 Ibidem, p. 86. 16 Ibidem, p. 110.

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    Dificilmente se pode afirmar com preciso qual significado do direito est por trs de cada

    proposio jurdica, j que um intrprete normalmente no expe quais so os fundamentos das

    suas afirmaes, ou, o que ocorre na maioria das vezes, sequer tem conscincia expressa deles,

    mas possvel ao menos esboar quais foram os critrios utilizados para avaliar se uma

    proposio jurdica verdadeira ou falsa.

    O posicionamento defendido pelo Ministro Ayres Britto pode ser definido, grosso modo,

    como aquilo que Dworkin denomina como uma concepo pragmtica do direito17. O direito

    consistiria em um instrumento para a promoo de um futuro melhor da sociedade, sendo os

    critrios utilizados para a avaliao daquilo que ele permite ou probe, por exemplo, a

    concretizao dos princpios e dos valores compartilhados pela comunidade, e assim, a

    promoo do bem de todos. Dessa forma, o direito teria um compromisso com a transformao,

    com o avano e desenvolvimento no sentido da formao de uma comunidade melhor e mais

    justa, e no com o passado, com a manuteno de um status quo. J o posicionamento do

    Ministro Ricardo Lewandowski pode ser classificado como compartilhando de uma ideia

    convencionalista do direito18. O direito seria o resultado de decises polticas tomadas no

    passado que criariam para uma comunidade direitos e deveres exigveis de forma coercitiva, ou

    seja, uma prtica cujo valor reside em assegurar comportamentos esperados. Os direitos e

    deveres criados pelas decises tomadas no passado devem poder ser conhecidos por todos, ou

    por qualquer um que possua a tcnica jurdica, no podendo ser alterados pela vontade pessoal

    do juiz. Assim, o significado de uma lei no pode depender das apreciaes acerca da

    moralidade e da justia que diferentes juzes poderiam fazer em diferentes contextos.

    As descries dos conceitos e concepes do direito acima foram apenas esboadas,

    pois tinham somente o intuito de mostrar que existe de fato uma divergncia entre os juristas

    em relao ao que o direito. Alm disso, como j dito, elas tiveram de ser feitas grosso modo

    devido ao fato de aqueles que possuem as referidas interpretaes do direito, no as exporem,

    e, na maioria das vezes sequer as terem de uma forma explcita para si mesmos. Assim, surge

    um questionamento: como possvel que todas as proposies jurdicas retirem seu fundamento

    de uma ideia acerca do que o direito, sem que se possua uma compreenso expressa de tal

    ideia? O que torna possvel que os juristas sustentem proposies jurdicas divergentes sem

    perceberem que na verdade esto divergindo quanto aos critrios utilizados para verificarem

    17 Ibidem, p. 119. 18 Ibidem, p. 118.

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    quais proposies so verdadeiras? Ou seja, qual o fundamento da possibilidade de

    encobrimento dos conceitos fundamentais do direito?

    O direito como cincia

    O direito foi definido acima como uma prtica argumentativa: um contexto de

    mobilizao e discusso de proposies acerca do que a prtica jurdica autoriza ou impede em

    decorrncia de outras proposies - os fundamentos da prtica -, que s adquirem sentido

    atravs e no mbito da prpria prtica. Desse modo, a atividade jurdica consiste precipuamente

    em verificar quais afirmaes acerca do que o direito permite ou probe so verdadeiras. Tal

    caracterizao do direito se assemelha a uma descrio usual da cincia. A cincia pode ser

    definida como a unidade do nexo de fundamentao de proposies verdadeiras19. Segundo

    Martin Heidegger, tal conceituao segue a lgica de que sendo a cincia um conhecimento que

    visa verdade, mas a verdade uma propriedade das proposies, ento a cincia enquanto

    uma conexo de conhecimentos uma conexo de proposies verdadeiras20. Tal conexo

    uma conexo de fundamentao, o que permite afirmar que a atividade cientfica a unidade

    da conexo de fundamentao de proposies verdadeiras.

    Nas dcadas passadas, alguns juristas, como Hans Kelsen, alcanaram grande

    notoriedade ao se empenharem em elevar a Jurisprudncia altura de uma genuna cincia, de

    uma cincia do esprito21. No h como negar a importncia de tais esforos para o

    desenvolvimento da cincia do direito, no entanto, cabe questionar se a viso da atividade

    cientfica como unidade da conexo de fundamentao de proposies verdadeiras completa

    e alcana o sentido da cincia e, consequentemente, da prtica jurdica.

    A definio corrente de cincia inegavelmente correta. Porm, como afirmou

    Heidegger em sua conferncia A questo da tcnica22, embora o correto constate sempre algo

    exato e acertado naquilo que se d na frente dele, ele no descobre a essncia do que se d e

    apresenta. O correto no o verdadeiro. Somente onde se d o descobrir da essncia acontece

    o verdadeiro em sua propriedade, e apenas este nos leva a uma atitude livre com aquilo que a

    partir de sua prpria essncia nos concerne. preciso encontrar uma definio verdadeira da

    atividade cientfica, a partir da qual possamos nos relacionar livremente com a cincia. No livre

    19 HUSSERL, Edmund. Investigaciones lgicas. Madri: Alianza Editorial, 2001, p.42. 20 HEIDEGGER, Martin. Introduo filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 50. 21 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. So Paulo: Martins Fontes, 2006, p. XI. 22 HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferncias. Petrpolis/Bragana Paulista: Vozes/Edusf, 2006, p.12.

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    relacionar-se a nossa existncia se abrir essncia da cincia, e, ento, essa se mostrar como

    possibilidade essencial da existncia do homem. Somente assim se poder fazer a experincia

    de tudo que diz respeito cincia, e ento se conseguir encontrar o fundamento do

    encobrimento da divergncia terica no direito. A busca pelo conceito verdadeiro da cincia se

    dar a partir da sua correta definio.

    As cincias movimentam-se dentro de certos enunciados, proposies e conceitos que

    so determinados em seu conjunto por meio de proposies e conceitos fundamentais23. Como

    dito acima, essa viso da cincia como o todo de um conjunto de fundamentao de proposies

    verdadeiras se funda na concepo de que o lugar da verdade a proposio. Qual o significado

    dessa concepo? Kelsen afirma que o ideal de toda cincia a objetividade e a exatido24. Se

    objetividade e exatido forem tidas como expresses sinnimas de determinabilidade

    matemtica, ento no se pode dizer que elas so o ideal de toda cincia, j que nem todo objeto

    pode ser apreendido matematicamente. Melhor seria ento dizer que o rigor o ideal de toda

    cincia. Por rigor deve-se entender o modo como pode ser conquistado e determinado o

    conhecimento adequado ao objeto 25. Nesse sentido, cincia conhecimento investigador, um

    modo determinado de apropriar-se de um conhecimento correto ao objeto. A adequao do

    intelecto ao objeto a definio escolstica de verdade, o que faz com que se possa definir a

    pesquisa e doutrina cientficas como atividades cuja meta a verdade. E como se chega

    concepo de que a verdade est nos enunciados?

    Enunciar ligar. Em toda enunciao ocorre uma ligao entre sujeito e predicado, na

    qual o predicado atribudo ao sujeito. O lugar da verdade na proposio est justamente nesse

    ligar. Caso as representaes sujeito e predicado se impliquem reciprocamente, ou, dito de outra

    forma, caso o predicado seja conveniente ao sujeito, a proposio ser verdadeira, o que torna

    a verdade uma propriedade do enunciado. A lgica desse raciocnio correta, no entanto ela se

    esquece de algo essencial. A mtua implicncia entre sujeito e predicado no pode se

    fundamentar apenas no enunciado em si mesmo. Se for dito que uma proposio verdadeira

    por nela ocorrer uma ligao pertinente, a pertinncia desse ligar dependente de um outro que

    no a prpria proposio. Quando estamos no contexto de uma atividade cientfica, um

    enunciado emitido no tido como verdadeiro em si mesmo de modo ltimo. Como dito, a

    cincia o todo de um conjunto de fundamentao de proposies verdadeiras, assim uma

    23 HEIDEGGER, Martin. Introduo filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 38. 24 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. So Paulo: Martins Fontes, 2006, p. XI. 25 HEIDEGGER, Martin. Introduo filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 47.

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    proposio retira o fundamento da pertinncia do predicado ao sujeito, ou seja, da sua verdade,

    de outras proposies, a saber, das proposies fundamentais. Desse modo, deve-se ento dizer

    que a fundamentao da verdade de um enunciado retirada das proposies fundamentais.

    Heidegger define os conceitos fundamentais das cincias como determinaes em que

    o mbito dos objetos, que serve de base a todos os objetos temticos de uma cincia,

    compreendido previamente de modo a guiar todas as pesquisas positivas 26. As proposies

    fundamentais colocam as estruturas fundamentais que delimitam o campo de investigao da

    atividade cientfica, de modo que toda investigao possa encontrar um fio condutor at seu

    objeto. Como essas proposies fundamentais realizam a primeira abertura concreta do mbito

    de investigao cientfica, no possvel que esses conceitos retirem seu fundamento de outros

    enunciados; o lugar da verdade deles tem de ser outro.

    Quando se diz algo como o cu azul ou o giz branco, no se emite tais enunciados

    a partir de outros mais originrios. Na proposio o giz branco a sua veracidade, ou seja, a

    pertinncia do predicado ao sujeito no se deve a outras proposies fundamentais, tampouco

    a um carter implcito da representao de giz, pois a palavra giz no carrega consigo uma

    determinada cor. A implicao recproca de sujeito e predicado nesses enunciados se d pela

    pertinncia da proposio quilo que est se enunciando, o sobre o que do enunciado. Ao se

    dizer o giz branco, o fazemos a partir do prprio giz branco. Desse modo, Heidegger

    afirma27 que esse tipo de enunciado s pode ser realizado em vista do que j se encontra diante

    de ns. importante salientar que esse estar diante de ns no se refere a algo fsico, a um

    sentido espacial, e sim a um ter acesso ao que se enuncia, um estar manifesto em si mesmo

    desse algo sobre o qual se emite uma proposio.

    Retornando para os conceitos fundamentais que estruturam a cincia, possvel agora

    ver que, se eles conservam a forma de toda proposio ligao entre sujeito e predicado , a

    implicao recproca desses retira seu fundamento do prprio sobre o qu do enunciado,

    daquilo que j se encontra diante de ns de modo manifesto e que somente por isso podemos

    emitir proposies sobre. Caso as proposies fundamentais retirem seu fundamento da coisa

    mesma, daquilo que j se encontra diante de ns mostrando-se naquilo que em si mesmo,

    ento se tem de concluir que o enunciado no pode ser o modo originrio de se ter acesso ao

    objeto, mas o contrrio: s porque j temos acesso ao objeto enquanto o que ele nele mesmo

    que podemos emitir enunciados adequados a esse objeto. Antes da emisso de uma proposio

    26 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrpolis/Bragana Paulista: Vozes/Edusf, 2011, p.46. 27 HEIDEGGER, Martin. Introduo filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 55.

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    j estamos imediatamente relacionados com a coisa mesma, e, em verdade, no de um modo tal

    que s teramos da coisa uma representao em nossa alma. Ao fazermos a enunciao, j

    estamos antes nos mantendo junto prpria coisa desvelada nela mesma. Se apresentando dessa

    forma, podemos emitir enunciados sobre ela, e mesmo comprovar esses enunciados. O mostrar-

    se em si mesmo de um objeto ns o denominamos desvelamento, que expresso em grego pela

    palavra (altheia), que se traduz como verdade. Verdadeiro, isto , desvelado, o prprio objeto. No , ento, a proposio nem o enunciado que so verdadeiros no sentido

    mais originrio, mas a coisa mesma. Somente porque a coisa mesma verdadeira, as

    proposies sobre ela podem ser verdadeiras em um sentido derivado, podendo se adequar ao

    modo de ser daquilo sobre o que esse enunciado pode versar28.

    Inicialmente foi dada uma definio de direito como contexto de fundamentao de

    proposies acerca do que a prtica jurdica permite ou autoriza em virtude de outras

    proposies denominadas fundamentais, e equiparou-se essa definio de cincia. Essas

    definies repousavam sobre o entendimento de que o lugar da verdade era o enunciado. Agora

    mostrou-se que se um enunciado verdadeiro, ou seja, se o predicado corresponde de fato ao

    sujeito, essa verdade no a mais originria. A verdade s pode residir no enunciado de modo

    derivado. A pertinncia recproca entre sujeito e predicado , em primeiro lugar, dependente da

    adequao quilo que est se enunciando, o sobre o que do enunciado, a coisa mesma.

    preciso que antes de qualquer enunciao j se esteja diante da coisa nela mesma, e essa deve

    j ter se mostrado naquilo que ela para ento ser feita a correta correspondncia entre o objeto

    que se enuncia e enunciado. Com essa passagem da ideia de verdade proposicional para a

    verdade como desvelamento, possvel agora ver que se a cincia o todo de um conjunto de

    fundamentao de proposies verdadeiras, ela s pode s-lo caso j se esteja diante da coisa

    em si mesma sobre a qual se emitem enunciados. Assim, s se pode conquistar uma

    compreenso verdadeira da cincia a partir da compreenso verdadeira do ser-em-meio-ao-

    desvelamento como modo de ser do homem. Para tanto, o presente artigo realizar de forma

    breve e esquemtica uma exposio da analtica existencial do ser-a-humano desenvolvida por

    Martin Heidegger.

    A analtica existencial do ser-a

    28 Ibidem, p. 82.

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    Como dito, o fundamento mais originrio da verdade de uma enunciao est no manter-

    se junto ao desvelamento daquilo que se anuncia. Antes de qualquer verbalizao de um

    enunciado, ou de qualquer ocupao expressa com as coisas necessrio que j exista um estar

    em meio ao desvelamento. No ocupar-se com algo expressamente ocorre uma mudana no

    permanecer junto verdade, de modo que a ateno passa a ser direcionada para as coisas em

    meio s quais j se mantinha. Se as coisas j estavam presentes antes de se direcionar a ateno

    a elas, ento esse ocupar-se expressamente com o que j era presente, ou o emitir enunciados

    sobre elas no lhes traz ou altera nada, no acrescenta ou retira coisa alguma da coisa mesma.

    Esse prestar ateno segundo sua essncia um tornar aparente enquanto um deixar vir ao

    encontro, um acolher aquilo que se mostra em si mesmo 29. Enquanto receptividade, o ser em

    meio ao desvelamento um deixar-ser como se , um entregar as coisas a elas mesmas na

    ocupao. possvel enxergar esse entrega das coisas a elas mesmas na forma de uma certa

    indiferena, no entanto no como um no fazer nada. Heidegger afirma que esse deixar-ser

    um fazer do tipo mais elevado e originrio e s possvel em razo de nossa essncia mais

    ntima, em razo da existncia, da liberdade 30. Tendo-se dito que para o acolhimento da coisa

    nela mesma, ela precisa j ter se mostrado, deve agora ser dito que esse desvelamento no

    algo que subsista na coisa mesma como se dela fosse uma propriedade. O mostrar-se no uma

    caracterstica por si subsistente na coisa, e sim algo que a ela advm ou pode advir.

    Com essas consideraes, cabe colocar, com relao ao desvelamento que determina a

    essncia da cincia, a pergunta: se para construirmos os enunciados fundamentais que

    estruturam toda a atividade cientfica necessrio que j se tenha acesso coisa enquanto o que

    ela nela mesma, mas essa no carrega consigo um desvelamento, como ento se d esse

    mostrar-se? Muito da dificuldade de se encontrar a resposta para esse questionamento est na

    forma como enxergamos o que o homem.

    O ser humano, ainda hoje, visto como uma coisa pensante. O homem seria algo que

    ocorre concomitantemente s demais coisas que existem e que se situam dentro de um mundo.

    Enquanto coisa pensante, o homem se diferenciaria das demais coisas por ter a capacidade

    de conhecer o mundo no qual est inserido e tambm a si mesmo. Quando se procura

    compreender esse conhecimento humano, o principal problema est em determinar como se d

    sua estrutura de funcionamento. O conhecimento no algo que se d no mundo como as

    demais coisas subsistentes, mas algo que pertence quele que tem capacidade de conhecer.

    29 Ibidem, p. 78. 30 Ibidem, p. 108.

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    Porm, sendo uma propriedade da coisa pensante e se referindo s coisas que ela mesma no

    , como possvel que o sujeito faa essa ligao entre a sua esfera interna e a esfera das

    demais coisas, a externa? No h dvida que a coisa pensante no tida como sendo um

    casulo, algo encapsulado e hermtico, contudo, ao se problematizar esse movimento de sada e

    de uma possvel adequao entre as duas esferas, permanece sem esclarecimento o fenmeno

    do conhecimento enquanto um modo de ser do homem enquanto um ser-no-mundo.

    O esclarecimento do que e de como em si mesmo o conhecimento foi desenvolvida

    por Martin Heidegger atravs de uma analtica existencial do ser-a-humano, no sentido de uma

    interrogao na qual esse ente questionado em seu ser na tentativa de, a partir dessa

    investigao, ser possvel conquistar a resposta para a pergunta acerca do sentido de ser. O

    filsofo utiliza a palavra Dasein (ser-a) para se referir ao ser humano31, sem que isso signifique

    um sinnimo de homem, ou que seja apenas um preciosismo filosfico. Ao interpretar a

    atividade cognitiva, Heidegger afirma: Ao dirigir-se para... e apreender, o ser-a no sai de uma esfera interna em que antes estava encapsulado. Em seu modo de ser originrio, o ser-a j est sempre fora, junto a um ente que lhe vem ao encontro no mundo j descoberto. E o deter-se determinante junto ao ente a ser conhecido no uma espcie de abando no da esfera interna. De forma nenhuma. Nesse estar fora, junto ao objeto, o ser-a est dentro, num sentido que deve ser entendido corretamente, ou seja, ele mesmo que, como ser-no-mundo, conhece. E, mais uma vez, a percepo do que conhecido no um retorno para o casulo da conscincia com uma presa na mo, aps se ter sado em busca de apreender alguma coisa. De forma nenhuma. Quando, em sua atividade de conhecer, o ser-a percebe, conserva e mantm, ele, como ser-a, permanece fora. Tanto num mero saber acerca do contexto ontolgico de um ente, num mero representar a sim mesmo, num simples pensar em alguma coisa, com numa apreenso originria, eu estou fora no mundo, junto ao ente 32.

    Enquanto ignorar esse modo de ser essencial do ser-a (manter-se fora junto a...) o

    entendimento sobre o homem enquanto coisa, substncia, objeto, ainda que pensante,

    permanecer aleijado. Pertence ao ser do ser-a ser-no-mundo, sem que com isso esteja se

    referindo a um carter espacial, no sentido ser simplesmente dado na totalidade de um todo. O

    ser-no-mundo deve ser entendido como um ser-junto-ao-ente retirando-o do encobrimento. Na

    medida em que existe, o ser-a j des-cobriu, a todo o momento, as coisas. Nesse ter sido

    descoberto, o ente vem ao encontro do ser-a, o que no significa que ele o apreenda ou que

    com ele se ocupe. Ser-no-mundo significa retirar o ente do velamento, manter-se em meio ao

    desvelamento, como quer que dele se possa fazer uso33. Ser um ente descobridor junto ao

    31 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrpolis/Bragana Paulista: Vozes/Edusf, 2011, p.42. 32 Ibidem, p.109. 33 HEIDEGGER, Martin. Introduo filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 127-128.

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    mundo de modo desvelado trazer consigo de maneira primordial um crculo de manifestao,

    no qual o ente na totalidade pela primeira vez retirado do velamento. Por promover atravs

    da irrupo de seu ser um campo de manifestao dos entes ao longo de todo tempo que existe,

    e no de modo ulterior e ocasional, o ser-a deve ser visto como um ser desvelado a partir de si

    mesmo34.

    Anteriormente quando foi empreendida a busca pela essncia da cincia, fez-se a

    pergunta sobre o lugar da verdade. Nesse questionar encontrou-se um conceito mais originrio

    de verdade, , verdade como um retirar do velamento. Aps essas breves consideraes sobre o ser-a, se consegue ver que o lugar da essncia da verdade o ser do ser-a. Com isso,

    se quer afirmar que a partir da existncia do ser-a se torna possvel o acontecimento da verdade

    enquanto desvelamento. Como ente desvelado a partir de si mesmo, o ser-a torna manifesto o

    ente na totalidade por mais estreita que seja a esfera em que isso venha a ocorrer e por mais

    manifestamente rudimentar e desarticulado que seja o modo das determinaes35.

    Sendo o ser-a essencialmente na verdade e, consistindo a essncia da cincia em um

    ser em meio ao desvelamento (verdade), faz agora sentido a afirmao que a definio

    verdadeira da cincia abriria nossa existncia essncia da cincia enquanto algo que nos

    concerne. Mas o questionamento central desse trabalho ainda permanece sem resposta: como

    possvel que nesse ser em meio ao desvelamento os fundamentos da cincia permaneam

    velados?

    A essncia da cincia reside em um j estar em meio ao mostrar-se do ente nele mesmo.

    Contudo, se j se tem acesso ao ente enquanto o que ele , parece que deixa de ter sentido

    qualquer investigao cientfica. Para que a cincia possa ser o que , uma investigao para se

    conhecer o ente nele mesmo, preciso que ainda exista algum tipo de velamento que precisa

    ser arrancado pelo ser-no-mundo em seu modo de ser cientfico. No ser em meio verdade,

    vm ao encontro do ser-a, com amplitudes, estgios de clareza e distino diversos, aqueles

    entes que possuem o modo de ser da existncia (o ser-a); os entes que possuem o modo de ser

    da vivncia (os demais seres vivos); os entes com o modo de ser da subsistncia por si (as coisas

    materiais); os entes que so mo (coisas de uso nos sentido mais amplo possvel); e os entes

    com o modo de ser da consistncia (o nmero e o espao). Alm disso tem-se tambm aqueles

    entes que ainda no foram desvelados, no se possuindo deles nem conhecimento nem

    desconhecimento,e os que esto obstrudos: entes que tinham sido descobertos, mas voltaram a

    34Ibidem, p. 145. 35 Ibidem, p. 161-163.

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    se encobrir totalmente, ou mostrando-se visveis s que agora como aparncia 36. Sendo-em-

    um-mundo, o ser-a retira o ente do velamento sem que nesse processo exista necessariamente

    uma entrega completa daquilo que o ente nele mesmo. Em meio diversidade de entes e de

    desvelamentos, o ser-a sempre se relaciona com os entes. Como j dito, para ser possvel

    qualquer emisso de enunciado ou comportamento com relao a algum ente, necessrio que

    anteriormente o ente j esteja desvelado diante de ns. Qual ento o velamento do ente

    arrancado pela cincia?

    Para que ocorra uma modificao no modo como algo se mostra para ns no pode

    apenas ter acontecido uma ampliao da experincia tcnico-prtica para alm dos contextos e

    circunstncias em meio aos quais nos movimentamos cotidianamente. Uma ampliao das

    regras cotidianas de lida com as coisas, da experincia tcnico-prtica para alm do campo de

    viso mais restrito em nada ajuda para que se d uma transformao no modo como essas coisas

    se entregam nelas mesmas. Assim, no pode apenas ocorrer uma ampliao do mbito de

    aplicao das regras de utilizao dos entes, pois o desvelamento cientfico ocorre justamente

    quando se abstrai da ocupao cotidiana com as coisas, e se passa a fixar o olhar no modo como

    elas so nelas mesmas, de forma que se consiga apreender que s foram adotadas as referidas

    regras de comportamento prtico por serem elas exigncias das coisas mesmas devido s suas

    propriedades37.

    O novo modo da coisa se mostrar uma completa transformao da postura fundamental

    do ser-a em relao ao ente, em que se fixa o olhar nas coisas elas mesmas, sem que tal postura

    contemplativa se confunda com um no fazer nada. Ainda que o ser-a sempre descubra e se

    mantenha em meio ao ente retirando-o do velamento, preciso que ocorra uma mudana em

    seu modo de ser no mundo para que uma nova forma de descoberta possa ocorrer e, assim, lhe

    seja propiciado a ocasio para o ente mostrar-se em outro mbito. Quando esse novo mbito do

    ente se mostra, no ocorre uma substituio de entes, e sim uma nova determinao desse ente

    em meio ao qual j nos mantnhamos. Heidegger afirma que ao se mostrar sob uma nova luz o

    ente deixa de ser visto como, por exemplo, somente um giz, e ento visto como massa, coisa

    simplesmente material sujeita ao de foras, corpo sujeito alterao de lugar no tempo.

    Em conjunto com essa determinao de um mbito fundamental do ente tambm se d uma

    outra concepo de seu modo de ser, deixando de ser tomado como instrumento, ente que est

    mo para o processamento tcnico, e passando a se mostrar, por exemplo, como coisa apenas

    36 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrpolis/Bragana Paulista: Vozes/Edusf, 2011, p.76. 37 HEIDEGGER, Martin. Introduo filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 195.

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    presente, o ente qua natureza. Retendo-se a afirmao de que essa determinao o modo de ser

    no uma troca de uma coisa por outra, mas a configurao de um outro mbito ontolgico do

    ente em meio ao qual o ser-ai j se mantinha, se consegue enxergar melhor quais podem ser os

    estgios de clareza, amplitude e distino em que as coisas se mostram e, assim, se torna mais

    ntido qual o velamento do ente a cincia tem de retirar.

    Desenvolvendo a compreenso da atividade cientfica, Heidegger afirma que toda

    cincia precisa ter em vista o fato de o ente que ela transforma em objeto j precisar estar, de

    antemo, suficientemente definido em sua essncia, para que toda questo concreta possa

    encontrar um fio condutor para localizar o que objeto nessa cincia 38. A cincia autntica ,

    ento, aquele conhecimento investigador que se desenvolve em meio prvia definio

    ontolgica do que ser tomado como objeto (definio do ser do ente), ou seja, a interrogao

    do ente que, antes de qualquer experimentao e investigao dos fatos, j est de posse de uma

    compreenso do que esse ente. Essa determinao da constituio ontolgica do ente, do seu

    ser, daquilo que ele e de como ele , antecede a investigao cientfica concreta do ente, pois

    reconhece que s possvel comparar os entes como, por exemplo, coisas naturais, caso j se

    saiba de antemo o que prprio a uma coisa natural39.

    Em Ser e tempo Heidegger afirma: Ser sempre ser de um ente. O todo dos entes pode tornar-se, em seus diversos setores, campo para se liberar e definir determinados mbitos de objetos. Estas, por sua vez, como por exemplo histria, natureza, espao, vida, existncia, linguagem, podem transformar-se em temas e objetos de investigao cientfica. A pesquisa cientfica realiza, de maneira ingnua e a grosso modo, um primeiro levantamento e uma primeira fixao dos mbitos de objetos. A elaborao do mbito em suas estruturas fundamentais j foi, de certo modo, efetuada pela experincia e interpretao pr-cientfica do setor de ser que delimita a prpria regio de objetos. Os conceitos fundamentais assim produzidos constituem, de incio, o fio condutor da primeira abertura concreta de mbito. Se o peso de uma pesquisa sempre se coloca nessa positividade, o seu progresso propriamente dito no consiste tanto em acumular resultados e conserv-los em manuais, mas em questionar a constituio fundamental de cada mbito que, na maioria das vezes, surge relativamente do conhecimento crescente das coisas 40

    O que caracteriza propriamente a atividade cientfica , antes de qualquer realizao de

    experimentos, ocorrer a delimitao de um setor de entes que resulta na circunscrio de um

    mbito temtico de investigao e decide o que pertence a determinado campo, servindo como

    guia para toda pesquisa positiva. Essa delimitao de um setor de ser do ente se d sob a mesma

    38 Ibidem, p. 201. 39 Ibidem, p. 202. 40 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrpolis/Bragana Paulista: Vozes/Edusf, 2011, p.44.

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    forma que todas as representaes cientficas possuem: a delimitao de conceitos, a

    formulao de enunciados sobre algo. A diferena que essa delimitao produtora dos

    conceitos fundamentais da cincia, o que significa uma interpretao do ente na constituio

    fundamental de seu ser41. Porm, as definies dos conceitos fundamentais apenas fornecem as

    linhas limtrofes e as regras para a investigao do ente. Os conceitos fundamentais s so

    discutidos at o ponto em que, para todo questionamento cientfico concreto, j esteja

    previamente estabelecido em que consiste esse ente. Assim, essncia do ente delimitada de

    maneira prvia sem que essa constituio ontolgica do ente seja expressamente objeto de

    questo. Heidegger sintetiza essa tese com a afirmao de que na cincia se d um projeto

    prvio no-objetivo demarcador de campo da constituio de ser42.

    Quando esse trabalho iniciou a busca pela razo do velamento da divergncia terica no

    direito, a prtica jurdica foi definida como um contexto de mobilizao e discusso de

    proposies acerca do que prpria prtica autoriza ou impede em decorrncia de outras

    proposies que s adquirem sentido atravs e no mbito da prpria prtica. Aps serem feitas

    algumas consideraes sobre a cincia, as proposies cientficas e a verdade, pde se entender

    melhor porque um enunciado no pode ser verdadeiro por si mesmo. Toda afirmao que se d

    no interior da prtica jurdica s pode ser verdadeira caso seja adequada outra proposio.

    Desse modo, no direito enquanto cincia subsiste um conjunto de proposies aos quais todos

    os demais conceitos e enunciados jurdicos remontam por meio da retirada de seu fundamento,

    os chamados conceitos fundamentais, os quais, como visto, no so o lugar originrio da

    verdade. Agora que mais alguns passos foram dados na busca que est sendo desenvolvida, se

    consegue enxergar melhor porque somente a partir dos conceitos fundamentais possvel

    desenvolver uma atividade cientfica. nesse direcionamento, ainda que no-objetivante, para

    os conceitos fundamentais que se d justamente a mudana necessria no modo de ser do ser-

    a de forma que possa ocorrer outro tipo de desvelamento do ente que j se tinha descoberto.

    por meio da definio de ser que o ente, que antes se mostrava como um objeto com o qual

    estvamos familiarizados nas nossas atividades cotidianas, pode agora se revelar como, por

    exemplo, um corpo dotado de massa, uma coisa material. Com relao cincia do direito pode-

    se dizer, por exemplo, que o que antes era nascimento de um ser humano agora passa a se

    mostrar como o acontecimento no qual se adquire personalidade jurdica, ou seja, os eventos

    que se do na cotidianidade deixam de ser enxergados apenas como fatos naturais e passam a

    41 Ibidem, p.46. 42 HEIDEGGER, Martin. Introduo filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 209.

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    ser vistos como fatos jurdicos. Desse modo, o projeto no-objetivo da constituio de ser no

    altera em nada o ente ou o acontecimento, apenas faz-se com que ele se mostre sob outra luz e

    assim seja passvel de uma investigao cientfica.

    Os conceitos fundamentais da cincia definem o ente em seu ser ainda que de modo

    no-objetivo. Mas o que o ser? Caso se pea a um jurista que defina o direito em sua essncia

    e modo de ser, ou seja, em seu ser, muito provvel que ele enfrente dificuldades. Porm, ele

    entender uma a pergunta do tipo o que o direito? e, ainda que no consiga conceituar

    expressamente e com preciso a prtica jurdica, certo que ele carrega consigo uma

    compreenso do que ela , do seu ser. Como j afirmado diversas vezes ao longo desse texto,

    s possvel emitir proposies no interior da prtica jurdica caso se possua critrios que

    permitam verificar a veracidade dessas proposies. Tais critrios so os conceitos

    fundamentais, definies do que o direito, do seu ser. Contudo, no so s os juristas que

    entendem a pergunta o que o direito?. No apenas os profissionais do direito sustentam

    posicionamentos divergentes com relao s decises do Supremo Tribunal Federal: o

    julgamento acima exposto foi amplamente debatido em todos os setores da sociedade. Desse

    modo, tambm os que no so juristas compreendem o que a prtica jurdica. Indo para alm

    do direito preciso afirmar: toda pessoa enquanto ser-a carrega consigo uma compreenso

    de ser.

    Anteriormente foi visto que o ser-a o ente que j est sempre fora junto a um ente

    que lhe vem ao encontro no mundo j descoberto. preciso agora dizer: essncia do ser-a

    que se mantm em meio ao desvelamento do ente pertence originariamente o fato de

    compreender algo assim como o ser. Apenas a compreenso de ser permite que o ente se mostre

    nele mesmo e, assim, que sejam colocadas todas as possibilidades de comportamento em

    relao ao ente, ou, como afirma Heidegger: s nos deparamos com o que deixamos vir ao

    nosso encontro como ente a partir do ser j compreendido 43; somente a partir de tal

    compreenso possvel que o ente venha ao nosso encontro, se torne manifesto. Detendo-se

    nessas consideraes, se for observado que todo ser-a j permanece junto ao ente comportando-

    se em relao a ele, mas que tal modo de ser s possvel pela compreenso de ser, se ver que

    o ser-a j sempre realizou uma ultrapassagem ntica (do ente). O ser do ser-a ultrapassa de

    antemo o ente em direo ao ser desse ente. Nesse movimento, ocorre uma compreenso do

    ser do ente, a partir do qual possvel que o ente se manifeste como ente. Estando fora junto

    43 Ibidem, p. 221.

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    ao ente desvelado, o ser-a precisa sempre realizar e continuar realizando o ato de ultrapassagem

    no fundo de seu ser. Heidegger denomina esse ato prvio de ultrapassagem do ente como

    transcendncia e, desse modo, a essncia fundamental da constituio ontolgica do ente que

    ns mesmos somos a ultrapassagem do ente 44. O ser-a como tal transcendente.

    Afirmou-se que o trao distintivo da cincia est no fato de ela realizar um projeto prvio

    no-objetivo demarcador de campo da constituio de ser. Contudo, se em seu ser todo ser-a

    j entregou a si mesmo uma compreenso do ser do ente na totalidade, mais uma nova

    formulao precisa ser feita: o projeto no ocorre apenas em um modo de ser cientfico, mas

    todo ser-a projetante45. Ser projetante dar a si mesmo o ser, ainda que no ocorra uma

    apreenso expressa na qual o ser tematizado. A diferena entre um projetar no cientfico e

    um cientfico que o ltimo realiza uma definio e delimitao de ser para que seja possvel

    a apreenso do ente nele mesmo. Porm, como cincia conhecimento do ente e no do ser,

    esse no expressamente concebido, no se tornando objeto de investigao e de apreenso.

    Da reside que a clareza do conhecimento cientfico do ente permanece envolta a uma certa

    obscuridade do ser. O modo de ser na verdade da presena cientfica justamente um estar

    rodeado pelo velamento, o que leva Heidegger a afirmar que necessariamente, o desvelamento

    sempre segue lado a lado com o velamento 46.

    Do fundamento do encobrimento da divergncia terica

    Questionou-se inicialmente o fundamento do encobrimento da divergncia terica no

    direito. Para chegar-se resposta foi percorrido um caminho no qual se desvelou o que ns

    mesmos somos e nossos modos de ser, algo que estava to prximo, mas que permanecia

    encoberto. Em meio ao percurso o ser humano deixou de ser algo pensante presente em um

    mundo, onde tambm subsistem outras coisas que podem ser conhecidas, e o direito no mais

    apenas um contexto de fundamentao de proposies jurdicas; eles agora se mostram como

    ser-a e um modo de ser do ser-a.

    O ser-a o ente transcendente, que em seu contnuo movimento de transcendncia

    projeta-se, entrega a si mesmo o ser dos entes que so ultrapassados. Na verdade, no somente

    o ser do ente que o ser-a no , mas tambm o seu prprio ser sempre entregue a si mesmo,

    44 Ibidem, p. 221. 45 Ibidem, p. 220. 46 Ibidem, p. 228.

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    e, assim, como momento estrutural constitutivo do ser do ser-a est sempre o ter de possuir o

    prprio ser47. Ser a cada vez um si prprio, ter de ser, no se trata de um ter o conhecimento

    mo, mas colocar diante de si mesmo, por meio da compreenso de ser, ainda que de forma no

    expressa para si, possibilidades de ser, e ter de decidir-se com relao a essas possibilidades. O

    ser-a sempre um sendo, ele a todo o momento precisa decidir-se quanto ao que pode seu ser

    mais prprio em relao s possibilidades de ser que essencialmente lhe pertencem 48. Em

    meio aos possveis modos de ser, o ser-a pode decidir ir para as coisas mesmas, mover-se para

    onde elas se mostram enquanto o que so. nessa aproximao do ente em seu desvelamento

    que pode acontecer algo como a prtica jurdica enquanto atividade cientfica.

    Em sua busca por resultados, pela enunciao de proposies jurdicas verdadeiras, o

    direito teve de formular previamente conceitos fundamentais de modo a servirem de critrio

    para verificao da validade das demais proposies. No entanto, os enunciados fundamentais

    no so objeto de estudo da prtica jurdica, eles so desenvolvidos somente at o ponto em que

    possam guiar as atividades que nela se do. Deste modo, ainda que o direito s possa existir

    devido formulao de suas proposies fundamentais, essas permanecem, de certo modo,

    encobertas para o prprio direito enquanto cincia. S consegue se entender a possibilidade de

    encobrimento da divergncia terica no direito caso esse seja tomado como modo de ser na

    verdade de um ente que em sua essncia carrega consigo, sempre, uma compreenso de ser do

    ente. Por ser projetante o ser-a j sempre entregou a si mesma o ser do ente na forma de uma

    compreenso, o que quer que faa com tal compreenso. A maioria de ns carrega consigo a

    compreenso de ser em uma forma pr-ontolgica, ou seja, sem nunca ter dirigido sua ateno

    para ela; alguns a possuem em uma espcie de grau intermedirio, na qual ela foi desenvolvida

    apenas para responder a outras perguntas, sem que se tornasse tema de investigao, isto , os

    cientistas; outros se ocupam expressamente dessa compreenso de ser e, ao buscarem entender

    o ente na totalidade, transformam-na em concepo de ser. Esses ltimos so os filsofos.

    Somente na filosofia o ser objeto de investigao expressa. Por serem, portanto, modos

    diferentes de ser no desvelamento, que se d a diferena entres as posies do filsofo na

    filosofia e do cientista na cincia.

    Karl Popper diz em A lgica da pesquisa cientfica que um cientista pode atacar

    diretamente o problema que enfrenta, tendo a possibilidade de penetrar imediatamente no cerne

    de uma estrutura organizada, por contar sempre com a existncia de uma estrutura de doutrinas

    47 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrpolis/Bragana Paulista: Vozes/Edusf, 2011, p.48. 48 HEIDEGGER, Martin. Introduo filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 345.

  • Nmero XVII Volume II dezembro de 2014

    www.ufjf.br/eticaefilosofia

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    cientficas j existentes e com uma situao-problema que reconhecida como problema nessa

    estrutura49. No caso do direito, s possvel existir uma estrutura organizada, que se mostra

    como um edifcio consolidado, e que fornece ao jurista uma situao-problema amplamente

    aceita, por no ser essa estrutura mesma objeto de investigao em suas atividades normais; por

    ser a prtica jurdica um determinado modo do ser-a ser em meio a verdade, um comportamento

    em que o ser do ente ainda permanece de certo modo encoberto. Na prtica jurdica, no sendo

    o ente em seu ser objeto de investigao expressa, no se evidencia que cada um dos envolvidos

    na cincia do direito possui uma compreenso prpria do que o direito, do seu ser. Porm,

    essa divergncia terica no impede o desenvolvimento da cincia. Como o prprio Popper

    afirma, sempre possvel o surgimento de uma discusso crtica e uma comparao dos vrios

    referenciais, na verdade, nada mais proveitoso que uma discusso dessa natureza.

    REFERNCIAS DWORKIN, Ronald. O imprio do direito. So Paulo: Martins Fontes, 2007. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. So Paulo: Martins Fontes, 2006. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferncias. Petrpolis/Bragana Paulista: Vozes/Edusf. ___________. Introduo filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 2009. ___________. Ser e tempo. Petrpolis/Bragana Paulista: Vozes/Edusf, 2011. HUSSERL, Edmund. Investigaciones lgicas. Madri: Alianza Editorial, 2001. POPPER, Karl. A lgica da pesquisa cientfica. So Paulo: Cultrix, 2008. ___________. A cincia normal e seus perigos. In: LAKATOS I.; MUSGRAVE, A. A crtica e o desenvolvimento do conhecimento. So Paulo: Cultrix, 1979, p. 69.

    49 POPPER, Karl. A lgica da pesquisa cientfica. So Paulo: Cultrix, 2008, p.23.