heidegger e a daseinanálise
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Pensa como a psiquiatria se apropriou de alguns conceitos heideggerianos.TRANSCRIPT
Heidegger e a Daseinsanálise
José Carlos Henriques
Apesar das contundentes críticas de Heidegger, a analítica existencial por ele intentada em Ser
e Tempo não tardou manifestar-se a profissionais das ciências psicoterápicas como um
conjunto bem arquitetado de teses ontológicas, capaz de servir como alicerce para a
reformulação científica da arquitetônica daquelas mesmas ciências.
A reconstrução, no âmbito das ciências terapêuticas, era então pensada como absolutamente
necessária e ligada mesmo ao destino de continuidade ou esterilidade das pesquisas no campo
da psicologia, da psiquiatria, da psicanálise... Havia necessidade de fundamentos ontológicos,
pressupostos antropológicos firmes, enfim, pensava-se numa completa refundação do saber
científico sobre o homem para, somente após, pensar as terapias para os males da existência.
Pelo menos dois nomes se destacam nesta tarefa de reconstrução, no campo da psiquiatria:
Medard Boss e Ludwig Binswanger. Ambos mantiveram com Heidegger, sobretudo no que
diz respeito aos parâmetros analíticos do Dasein traçados por este em Ser e Tempo, um
diálogo fundante.
Poder-se-ia falar, cremos sem exagero, que a psiquiatria Daseinsanalítica ou a Daseinsanálise
psiquiátrica, fundada pelos pensadores acima indicados, iniciando-se com L. Binswanger, é
fruto de uma apropriação dos pressupostos filosóficos da analítica existencial de Sein und
Zeit, na tentativa de encontrar fundamentos ontológicos para a ciência da psiquiatria que, já
aqui adotando um vocabulário heideggeriano, se constitui como ciência ôntica.
Assim, a Daseinsanálise psiquiátrica, como a nomearemos doravante, com fundamento em
Heidegger, parte de uma leitura existencial-analítica, dos distúrbios psiquiátricos e da própria
atividade terápica.
Mais precisamente, os distúrbios (as neuroses, as psicoses, a esquizofrenia...) são modos
possíveis da existência, possibilidades concretas do Dasein, movimentos que se situam, num
plano mais extenso, no projeto do existir. Também a terapia ganha novos contornos e tem
renovada sua função de meio apropriado de cura (Sorge). Trata-se de esforço de terceira
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pessoa, alheia ao projeto desviado do Dasein, no sentido de ‘fazer ver’ o desvio e de indicar o
recomeço, a possibilidade da ascensão. A correção de rota, ou a reconstrução do projeto
existencial sob medida, é devolvida ao próprio Dasein, a terapia introduz o outro do Dasein, é
indicativa da recomposição de seu caminho.
Enfim, renova-se a psiquiatria, empoeirados conceitos, mantidos à custa de compromissos
teóricos nem sempre esclarecidos, devem ceder espaço a uma bem pensada arquitetura
científica, cujo princípio primeiro consiste em dar conta de situar aquela ciência em um bem
fundado conceito de homem. É na esperança de encontrar uma antropologia1 que pudesse
fundar, ou mais propriamente, refundar a psiquiatria que os olhos de Ludwig Binswanger
descortinam como promissora a analítica existencial heideggeriana.
Assim, na tentativa de revitalizar e refundar a psiquiatria2, Binswanger adotou boa parte da
terminologia e conceitos introduzidos por Heidegger.
Um dos termos mais significativos do vocabulário heideggeriano, que dá nome à nova forma
científica traçada para a psiquiatria renovada, é Dasein (literalmente, ser-aí), termo referente
ao modo de existência propriamente humano. O termo, no original, carrega consigo
conotações sutis: remete à continuidade da existência, à sobrevivência, à persistência... Além
disso, a ênfase em uma das partes da composição do vocábulo, “da” ou “sein”, pode remeter
ao sentido de estar no meio de tudo, no grosso das coisas.
1 Como se sabe, inicialmente, o intuito principal de Heidegger era esclarecer o sentido do Ser enquanto tal. As explicitações do existir humano que aparecem em Ser e Tempo devem ser consideradas como uma primeira etapa no caminho de seu pensamento, essencialmente voltado para a ontologia, não como uma definitiva antropologia. De fato, não foi intenção de Heidegger, de pronto, construir uma antropologia. Se esta se mostrou, de algum modo necessária, foi para o cumprimento de um segundo e mais radical desígnio: pensar, por ela, a questão do Ser. Eis o caráter propedêutico da analítica do Dasein, desenvolvida em Ser e Tempo. O que Binswanger faz é, dentre outras idiossincrasias, ler o texto heideggeriano de Ser e Tempo como uma antropologia, de preferência, traindo o intuito (ontológico) que lhe era subjacente, ou pelo menos deslocando-o para segundo plano.
2 Como se colhe dos textos do site da Associação Brasileira de Daseinsanlyse, “Binswanger considerou que uma “Daseinsanalyse Psiquiátrica” traria um novo método de investigação para compreender e descrever, sob um ângulo fenomenológico, as síndromes e os sintomas concretos, distintos e diretamente perceptíveis da psicopatologia, afastando-se do método científico que até então prevalecia na Psiquiatria e na Psicanálise. Seguindo o pensamento de Heidegger, Binswanger dedicou-se a um caminho fenomenológico: julgando não haver nada a procurar atrás dos fenômenos, quis esclarecer, de modo mais diferenciado, os significados e as relações que se mostravam imediatamente a partir deles mesmos”. Acessível em http://www.Daseinsanalyse.org, acesso em 11 de janeiro de 2007.
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Para Binswanger, seguindo Heidegger, a qualidade principal do Dasein é o cuidado (Sorge).
O “estar-aí” nunca é uma questão de indiferença: estamos envoltos pelo mundo, nele nos
movemos com os outros e conosco. Na vida, podemos fazer muitas coisas mas, descuidar não
é uma delas, sob pena de malograr o projeto existencial autêntico.
A partir de uma leitura muito própria de Heidegger3, mas de algum modo fiel a muitos de seus
conceitos, Binswanger busca construir novas possibilidades para a psiquiatria. Pensa trazer
novos fundamentos tanto para a ciência psiquiátrica quanto, a partir desta, para a prática de
terapias mais consentâneas com a estrutura essencial do humano.
3 Lê-se no recitado site da Associação Brasileira de Daseinsanlyse, o seguinte pertinente comentário, “Binswanger fez uma descrição Daseinsanalítica de numerosos casos de esquizofrenia. Afastou-se, entretanto, do pensamento de Heidegger num ponto capital, isto é, achou necessário acrescentar o conceito de “amor” ao conceito heideggeriano de “zelar”. (N.T.- Do alemão “sorge” que significa: cuidar, zelar, preocupar-se, etc...). Não percebeu que nesse termo “zelar”, empregado por Heidegger num sentido ontológico, já estavam incluídas todas as formas de relações afetivas, portanto também o amor. Quando reconheceu o próprio engano, deixou de qualificar suas pesquisas como “Daseinsanalíticas” e chamou sua nova orientação de pesquisa de “fenomenologia antropológica”. Em seguida voltou a se aproximar mais do pensamento de Husserl, o mestre de Heidegger”. Ver a referência ao site, constante da bibliografia final.
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