heidegger e a tÉcnica moderna

100
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: METAFÍSICA POLIANA EMANUELA DA COSTA HEIDEGGER E A TÉCNICA MODERNA NATAL 2014

Upload: doanxuyen

Post on 07-Jan-2017

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA MESTRADO

    REA DE CONCENTRAO: METAFSICA

    POLIANA EMANUELA DA COSTA

    HEIDEGGER E A TCNICA MODERNA

    NATAL

    2014

  • POLIANA EMANUELA DA COSTA

    HEIDEGGER E A TCNICA MODERNA

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao

    em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande

    do

    Norte, como requisito parcial para a obteno do

    ttulo de Mestre em Filosofia, rea de

    Concentrao: Metafsica.

    Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Ribeiro Alves Neto.

    Natal - RN

    Novembro de 2014

  • POLIANA EMANUELA DA COSTA

    HEIDEGGER E A TCNICA MODERNA

    Dissertao aprovada em 07/11/2014, para obteno do ttulo de Mestre em Filosofia.

    Banca Examinadora:

    ___________________________________________

    Prof. Dr. Rodrigo Ribeiro Alves Neto

    Orientador (Depto. de Filosofia - UFRN)

    ___________________________________________

    Prof. Dr. Daniel Durante Pereira Alves

    Membro Interno (Depto. de Filosofia UFRN)

    ___________________________________________

    Prof. Dr. Francisco Jos Dias de Moraes

    Membro Externo (Depto. de Filosofia - UFRRJ)

    Natal - RN

    Novembro de 2014

  • UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede

    Catalogao da Publicao na Fonte

    Costa, Poliana Emanuela da.

    Heidegger e a tcnica moderna. / Poliana Emanuela da Costa. Natal, RN, 2014.

    100 f.

    Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Ribeiro Alves Neto.

    Dissertao (Mestrado) Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Cincias

    Humanas, Letras e Artes. Programa de Ps-Graduao em Filosofia.

    1. Heidegger Dissertao. 2. Modernidade Dissertao. 3. Tcnica Moderna Dissertao. 4.

    Metafsica Dissertao. 5. Tecnologia Dissertao. I. Alves Neto, Rodrigo Ribeiro. II. Universidade

    Federal do Rio Grande do Norte. III. Ttulo.

    RN/UF/BCZM CDU 1

  • Mauro Rogrio,

    Por sua particularidade de extremos antagnicos (farpas e penas), tudo para me exigir

    e estimular o melhor..., Por sua parceria intelectual e devaneios do mais singular afeto

    que faziam dos dias mais insuportveis dias amenos com amor e humor.

  • Agradecimentos

    O meu mais afetuoso e grato agradecimento pertence aos meus pais, Antnia Lcia da

    Costa e Firmino Targino da Costa por terem sempre me apoiado a seguir em frente em

    todos os caminhos que me levaram a iniciar, construir e terminar esta pesquisa, e por

    terem me recebido de volta quando precisava apenas de um lugar estranhamente

    familiar onde eu pudesse descansar. (Obrigada por seus olhares, cuidados e mimos).

    Agradeo de um modo nico a Mauro Rogrio de Almeida Vieira por ter suportado

    minhas intempestividades e por sempre me trazer de volta. Por ter acompanhado de

    perto a minha pesquisa, me incentivando, me ajudando no esclarecimento de ideias e

    por estar sempre comigo.

    Agradeo sobremaneira ao meu orientador Rodrigo Ribeiro Alves Neto, por suas

    constantes reticncias (mania de melhor). Estas reticncias fizeram com que eu me

    aprimorasse como pesquisadora e que meu trabalho dissertativo ganhasse contornos de

    uma pesquisa, para utilizar um dos seus termos modestos, mas que querem dizer uma

    grande coisa, satisfatoriamente boa. (Obrigada Professor por sua mania de melhor.

    A minha mais expressiva admirao).

    O meu agradecimento cheio de gratido aos professores Francisco Jos Dias por seu

    olhar de lince e sagacidade em fazer ver toda a pertinncia de discusso em torno da

    pesquisa. Por ter enriquecido e estimulado minhas reflexes sobre o assunto estudado e

    me fazer perceber o quo vasto o universo da pesquisa o qual estou inserida. Ao

    professor Daniel Durante por sua sensibilidade em relao ao tema de pesquisa proposto

    e pelas ricas contribuies discursivas e incentivo ao aprimoramento do tema abordado.

    Meus sinceros agradecimentos aos professores Markus Filgueira e Srgio Dela-Svia,

    por terem esclarecido e conduzido os rumos da pesquisa durante o processo de

    qualificao.

    No poderia esquecer do meu orientador de graduao em filosofia Telmir de Sousa

    Soares por sua insistncia para que eu estudasse Martin Heidegger. Sempre com

    extrema boa vontade e bom humor e me conduzindo durante meu amadurecimento

    intelectual. Meu sincero agradecimento.

    Agradeo de uma forma muito singular ao meu Quick por ter a capacidade infinita de

    me emocionar, de despertar o que de melhor h em mim. Sempre que olho para ele,

    tenho vontade de fazer tudo da melhor maneira possvel e com a mais extrema alegria.

    Enfim, o meu necessrio agradecimento quela que sempre persistiu e sem a qual jamais

    teria conseguido vencer todas as desventuras e desprazeres que passei no incio deste

    mestrado. Desventuras estas, com pessoas e situaes mesquinhas e menores que

    superam qualquer perspectiva de m-sorte e infortnio. Agradeo a uma voz que canta,

    a uma voz que dana, a voz que gira, bailando no ar...

  • No nos iludamos. Todos ns, mesmo aqueles que pensam por dever profissional,

    somos muitas vezes pobres-em-pensamentos; ficamos sem-pensamentos como

    demasiada facilidade. A ausncia-de-pensamentos um hspede sinistro que, no mundo

    atual, entra e sai em toda parte. Pois, hoje toma-se conhecimento de tudo pelo caminho

    mais rpido e mais econmico e, no mesmo instante e com a mesma rapidez, tudo se

    esquece.

    (Martin Heidegger).

  • RESUMO

    COSTA, Poliana Emanuela. Heidegger e a tcnica moderna. Dissertao (Mestrado em

    Filosofia), Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2014.

    O objetivo geral da pesquisa consiste em esclarecer e discutir a contribuio original de

    Martin Heidegger para a reflexo filosfica sobre a essncia da tcnica moderna. Para

    tanto, estruturou-se o percurso interpretativo da presente dissertao em dois momentos

    fundamentais. Em um primeiro momento, apresentamos a interpretao heideggeriana

    da essncia da era moderna que, por sua vez, ser reconhecida a partir do fundamento

    metafsico que funda a essncia da cincia moderna, qual seja: a subjetividade que

    representa, calcula, controla e produz o real. Veremos que, nesse contexto, a cincia

    moderna foi pensada ainda ao lado da tcnica moderna, o que vai mudar

    consideravelmente a partir dos escritos do ps-guerra, nos quais Heidegger pensa a

    cincia moderna a partir de um processo muito mais amplo e fundamental em que j

    vem se desdobrando a essncia da tcnica. Assim, em um segundo momento,

    analisaremos de que modo, para Heidegger, a moderna metafsica da subjetividade

    atingiu o seu acabamento na poca da tcnica moderna a partir do princpio de controle

    e planificao dos entes em geral (Gestell), revelando o sentido no-tcnico da tcnica

    (para alm da viso antropolgica, humanista e instrumental) bem como o carter

    ameaador da tcnica moderna em seu projeto de converso do ente em fundo de

    reserva (Bestand).

    Palavras-chave: Modernidade, Tcnica Moderna, Metafsica, Tecnologia, Heidegger.

  • ABSTRACT

    The general objective of this research is to clarify and discuss the original contribution

    of Martin Heidegger's philosophical reflection on the essence of modern technique. For

    this purpose, it was structured the interpretative course of this dissertation in two

    essential moments. At first, we present Heidegger's interpretation of the essence of the

    modern age which, in turn, will be recognized from the metaphysical foundation that

    establishes the essence of modern science: the subjectivity that represents, calculates,

    manages and produces the real. We will see which, in this context, modern science was

    still thought close to the modern technology, what will change considerably from the

    writings of the post-war, in which Heidegger thinks modern science from a much

    broader and essential process in that the essence of the technique has already been

    unfolding. Thus, in a second moment, we will analyze how, for Heidegger, the modern

    metaphysics of subjectivity reached its completion at the time of modern art from the

    principle of control and planning of entities in general (Gestell), revealing the non-

    technical sense of the technique (beyond the anthropological, humanistic and

    instrumental view) as well as the threatening character of modern technique in its

    conversion project of the entity from the reserve fund (Bestand).

    Keywords: Modernity, Modern Technique, Metaphysics, Technology, Heidegger.

  • SUMRIO

    Introduo............................................................................................................

    1. As bases metafsicas da modernidade cientfico-tecnolgica.......................

    1.1. A era da metafsica consumada: a verdade como certeza da subjetividade..

    1.2. A era do mundo convertido em imagem..........................................................

    2. A questo da tcnica e a essncia da tcnica moderna..............................

    2.1. O que vige na tcnica: instrumentalidade, causalidade e desencobrimento......

    2.2. Gestell: a tcnica moderna como destino de um desencobrimento...................

    Concluso ...............................................................................................................

    Referncias ............................................................................................................

    08

    15

    15

    39

    40

    40

    66

    86

    92

  • 11

    Introduo

    O objetivo geral do presente estudo consiste em esclarecer e discutir a

    contribuio original concedida por Martin Heidegger reflexo filosfica sobre a

    essncia da tcnica moderna. Para tanto, estruturou-se o percurso interpretativo desta

    dissertao em dois momentos fundamentais. Demonstraremos, no primeiro captulo, o

    percurso traado por Heidegger no que diz respeito s bases metafsicas da

    modernidade, era em que o mundo foi convertido em imagem pela subjetividade que

    representa e produz. Analisaremos de que modo o transcurso histrico modernidade se

    encontra arraigado ao projeto condutor da metafsica que, por sua vez, caracteriza-se

    pela concepo de ente como fundamento de verdade. Trata-se de apresentar um exame

    da interpretao crtica que o autor elaborou a respeito da modernidade, visto que,

    segundo Heidegger, a essncia da era moderna se deixar reconhecer a partir do

    fundamento metafsico que funda a essncia da tcnica moderna, qual seja: a

    subjetividade (Cf. HEIDEGGER, 2002a, p. 97). Com efeito, veremos, no segundo

    captulo do presente estudo, de que modo, segundo Heidegger, somente no

    encaminhamento da histria moderna e no advento do domnio planetrio do homem

    tecnicamente organizado esse fundamento metafsico da modernidade atinge o todo de

    sua histria, em sua extrema possibilidade. Apresentaremos em que medida, nesse

    contexto mais tardio do ps-guerra, a cincia moderna j no foi mais pensada por

    Heidegger apenas ao lado da tcnica moderna como processos paralelos, uma vez que a

    prpria essncia da cincia moderna, segundo o filsofo parte essencial da prpria

    natureza tcnica, operando a partir do princpio do controle e da planificao dos entes

    em geral (Gestell) que converte o ente em seu todo em fundo de reserva (Bestand).

    Trata-se de reconstruir e analisar a compreenso heideggeriana da era moderna

    em seu carter epocal e o seu vnculo essencial com a cincia e a tcnica. Contudo, no

    investigaremos o pensamento do autor sobre a tcnica moderna em todo o seu percurso

    de lenta meditao e aprofundamento terico que, mesmo sem contradio ou drstica

    ruptura interna, possui diferentes contextos de discusso, tais como a ontologia

    fundamental de Ser e Tempo, passando pelos escritos da segunda metade dos anos 30,

    atravessando os anos 40 e chegando ao perodo ps-guerra, com os textos dos anos 50 e

    60. amplamente conhecido que, aps a chamada viragem ou inflexo (Kehre) do

    pensamento heideggeriano, a cincia e a tcnica assumiram importncia decisiva para o

  • 12

    autor, diferentemente do contexto de reflexo que marca os textos que giram ao redor

    do projeto da ontologia fundamental de Ser e Tempo. Serviro de base para a anlise a

    seguir os textos A era da imagem de mundo (de 1938) e os escritos mais tardios de

    Heidegger, publicados na dcada de 50 e 60, tais como A questo da tcnica, O fim da

    filosofia e a tarefa do pensamento, Cincia e pensamento do sentido, A Superao da

    Metafsica, Nietzsche I e II, entre outros.

    Ainda que no faa parte dos propsitos do presente estudo elucidar

    minuciosamente as diferenas na abordagem heideggeriana da relao entre cincia,

    tcnica e modernidade, sabemos que o texto A era da imagem de mundo, situado no

    final dos anos 1930 e meados dos anos 1940, exprime uma interpretao ainda no

    totalmente madura ou desenvolvida do autor sobre as determinaes metafsicas da

    cincia e da tecnologia na era moderna, pois somente aps a Segunda Guerra a

    meditao heideggeriana foi aprofundada e conduzia ao Gestell como conceito

    fundamental no apenas para um amplo diagnstico crtico da modernidade, mas para a

    interpretao do presente enquanto era da metafsica consumada, isto , enquanto

    ltima poca da Histria da Metafsica. Embora no possa elucidar todo o processo de

    constituio da modernidade como era da tcnica, a anlise do mundo como imagem

    lana luz sobre as bases metafsicas do advento da tcnica moderna. Nessas bases esto

    enraizadas a converso histrico-ontolgica do ente em seu todo em objetividade

    calculvel pelo auto-asseguramento do sujeito que se torna, assim, centro de referncia

    do mundo. No perodo ps-guerra, Heidegger dir que o domnio planetrio do homem

    tecnicamente organizado, primeiramente fundado nos termos de uma oposio sujeito-

    objeto, atingiu a sua extrema possibilidade no Gestell, inaugurando o definitivo

    acabamento da metafsica com a determinao do prprio homem como recurso

    disponvel (Bestand). Cumpre analisar no decorrer desta pesquisa de que modo, sob o

    domnio do Gestell, no haver mais sujeitos e objetos, pois tanto o homem quanto o

    mundo foram desafiados pela interpelao provocadora do pensamento calculador.

    Tal discusso se desdobrar a partir do momento em que tratarmos da questo da

    subjetividade no pensamento de Heidegger, tendo como escopo principal a sua crtica

    noo de fundamento. A metafsica , para Heidegger, a fundamentao da entidade ou

    da verdade do ente enquanto ente na totalidade, sob a forma da substancialidade e da

    subjetividade. Nesse sentido, procuramos discutir essa concepo consolidada na

    modernidade como ideia embrionria pertencente inicialmente metafsica ocidental.

  • 13

    No segundo captulo, caracterizaremos a meditao heideggeriana sobre a

    essncia da tcnica, isto , sobre o que nela vige. Apresentaremos um exame da

    interpretao crtica que o autor elaborou a respeito da modernidade, visto que, segundo

    Heidegger, a essncia da era moderna se deixar reconhecer a partir do fundamento

    metafsico que funda a essncia da tcnica moderna. Trata-se, portanto, de investigar de

    que modo a meditao heideggeriana sobre a tcnica moderna est vinculada ao modo

    como a metafsica funda a verdade do ente enquanto tal na totalidade, isto , como um

    ente eterno e imutvel margem dos desdobramentos histricos edificando, assim, a

    histria do Ocidente. Analisaremos os caminhos realizados por Heidegger para elaborar

    uma concepo ontolgica sobre a tcnica moderna, ou seja, vinculada abertura ou o

    desencobrimento do ser e o modo como essa abertura atinge e reivindica o homem

    como ser-no-mundo, trazendo o ente vigncia, para alm da viso antropolgica,

    humanista e instrumental que considera a tcnica como perseguio de fins e aplicao

    de meios, uma atividade inteiramente voltada para as realizaes do homem.

    Por esta via, esta pesquisa tem como fio condutor o exame da relao entre

    metafsica, modernidade e tcnica a partir de diferentes escritos de Heidegger, com

    maior nfase sobre os seguintes textos fundamentais: Lngua de tradio e Lngua

    tcnica (1962); O fim da filosofia e a tarefa do pensamento (1966); A poca das

    imagens do mundo (1938); A questo da tcnica (1953) e A superao da metafsica

    (1954). , contudo, desnecessrio enumerar o universo de textos utilizados para a

    compreenso e a interpretao do tema posto em causa no presente estudo. A utilizao

    dos textos ser observada pelo leitor no somente nas citaes, mas, sobretudo, no

    prprio encadeamento das anlises de cada captulo. Os diferentes escritos do autor

    sero utilizados como via de acesso interpretativa ao tema aqui investigado,

    apropriando-se das passagens em que tais textos abordam explicitamente a questo da

    tcnica ou analisam aspectos que contribuem decisivamente para a compreenso desse

    tema. Utilizaremos tambm uma bibliografia secundria, cujos comentadores da obra de

    Heidegger serviro como fonte de maior esclarecimento de ideias, como tambm nos

    ajudaro no percurso da interpretao das reflexes do filsofo estudado no que se

    refere ao tema proposto. Portanto, o presente estudo investiga a reflexo heideggeriana

    sobre a relao entre metafsica, modernidade e tcnica luz de diferentes textos do

    pensador e comentadores, sem pretender transformar esta dissertao em uma leitura

  • 14

    sistemtica ou um comentrio geral acerca do conjunto da j to extensa obra publicada

    de Heidegger.

    Desse modo, procuramos evidenciar analisar a importncia de questionarmos a

    tcnica moderna luz do pensamento de Heidegger, sobretudo, para compreendermos

    que ela no de forma alguma um modo neutro de lidar com a natureza. Heidegger no

    sugere nenhuma maneira especfica de apresentar a tcnica, antes, o que o filsofo

    prope que pensemos a tcnica livremente, isto , que consigamos apresentar outra

    compreenso daquela proposta pela modernidade. por este vis que Heidegger

    constri sua crtica sobre o mundo moderno. De maneira ainda mais especfica, trata-se,

    na verdade, de discutir a questo da tcnica para alm das concepes mais usuais que

    se sobrepem na modernidade, a saber: a tcnica como um meio para um fim ou como

    instrumentalidade.

    Pensar a essncia da tcnica de acordo com Heidegger significa, de fato,

    enfatizar a sua recusa determinao instrumental da tcnica. Essa perspectiva do

    pensamento heideggeriano se d, sobretudo, por defender que a essncia da tcnica,

    enquanto desencobrimento ou abertura do mundo, no resulta do mero fazer dos

    homens, de algum empreendimento humano, atividade isolada do homem, ou, como diz

    Heidegger no acontece apenas no homem e nem decisivamente pelo homem (2008a,

    p. 27), pois o desencobrimento do ente na totalidade no uma produo humana, e sim

    uma abertura que abarca e apela pelo homem enquanto ser-no-mundo. De outro modo, a

    tcnica um destino histrico, um modo de ser, cujo processo conduzido pelo

    homem por sua constituio histrica e no absoluta e, nesse sentido, o homem no

    pode fundamentar como verdade essencial nenhum ente fora da perspectiva temporal.

    Heidegger efetuou um aprofundado dilogo entre o mundo grego e o mundo

    moderno, evidenciando que a tcnica (tchne), para os gregos, consistia em um

    desencobrir que se desdobrava em pro-duzir (poiesis), levar frente ou desabrigar e,

    portanto, assim como a natureza (), participa dos processos de trazer o ente

    vigncia e fazer vir a ser o ente no aberto. Como diz Plato (Banquete, 205b): Toda

    causa (aita), seja ela qual for, do que passa de no ente a ente, produo (poesis).

    Heidegger traduz para o alemo o movimento da poiesis com o termo her-vor-bringen,

    verbo hifenizado para destacar que todo produzir um trazer e conduzir para diante, um

    pro-ducere (Herkunft), que significa o movimento de levar ou chegar (-ducere) diante

    de (pro-), isto , o movimento de deixar e fazer chegar a ser o que ainda no , um fazer

  • 15

    emergir algo que no se mostraria seno atravs da tcnica. esta, portanto, a regio a

    partir da qual a tcnica manifesta a sua essncia, qual seja: o desvelamento ou o

    desencobrimento (Unverborgenheit).

    a partir dessa anlise que Heidegger ressalta o carter do saber caracterstico

    da tchne grega, ao invs do fazer. Por outro lado, a singularidade de tal caracterstica

    no a exime da lida ou manuseio para com o objeto. Mas o cerne da questo no que diz

    respeito ao modo da tchne grega consiste no que Heidegger considera uma

    possibilidade da tcnica no ser definida apenas como simples produo ou fabricao,

    sentidos imperantes na modernidade. O filsofo v na tchne grega um modo de

    desencobrimento do ente.

    nesse campo de discusso que se torna premente a questo da tcnica

    moderna, isto , existe ainda na modernidade um desencobrimento do ente? De acordo

    com Heidegger, existe um tipo de desvelamento caracterstico da poca moderna que

    no o de pro-ducere, no sentido de fazer da tcnica um meio para fazer emergir do

    ente algo que por si s no se mostraria. O sentido da tcnica moderna, segundo o

    filsofo alemo aparece como uma forma de reteno da natureza. Um modo de lidar

    que se insurge unilateralmente, o homem moderno se apodera dos recursos da natureza

    para transform-la em fundo de reserva. Assim, o modelo de tcnica presente na era

    moderna fruto de uma vontade de dominao, e no mais de desencobrimento do ente.

    Constri-se, desse modo, o escopo da crtica de Heidegger modernidade. Uma

    crtica que comea a ser erguida no a partir de um conservadorismo ou de uma

    nostalgia que impele a um pessimismo em relao ao desenvolvimento do mundo

    moderno. Heidegger, atravs do seu olhar perscrutador sobre a modernidade, quer

    meditar sobre a tcnica no a partir de um caminho traado pelo homem para dominar a

    natureza; por isso a sua crtica pretende recuperar o sentido de tcnica proveniente

    dos gregos antigos.

    Sendo assim, esta pesquisa pretende contribuir para a compreenso do modo

    como o pensamento heideggeriano favorece uma reflexo sobre o sentido no-tcnico

    da tcnica e sobre o carter ameaador da tcnica moderna que j teria atingido a

    essncia do homem na contemporaneidade, afastando-o de um desencobrimento mais

    originrio do mundo.

    Heidegger faz uma anlise da modernidade que no desconsidera o carter

    desencobridor da tcnica, pois demonstra sua preocupao quanto ao modo em que se

  • 16

    d este desencobrimento. Em outros termos, na era moderna, a tcnica desvela o ente

    como disponibilidade. Ergue-se, ento, um modelo de subjetividade preponderante em

    nosso tempo. A subjetividade aqui tratada diz respeito ao modo como os entes so

    vistos, isto , como disponibilidade constante atravs da projeo da racionalidade

    cientfico-tecnolgica. Eles existem como uso contnuo para um sujeito que determina o

    que o ser. diante dessa determinao subjetiva que os entes na modernidade so

    desencobertos ou como afirma Heidegger, desvelados.

    Podemos perceber que a discusso aqui intentada parte de um contraponto entre

    a tchne grega e como erguido pela modernidade um novo modelo de tcnica.

    Entretanto, Heidegger no estabelece um rompimento radical entre estas duas formas de

    lidar com o ente, uma vez que ambas tem em comum um modo especfico de abordar o

    ente. Analisemos que tipo de desencobrimento se d na poca moderna. a partir dessa

    anlise que Heidegger quer recuperar o sentido de tcnica nos moldes gregos, para alm

    de um simples fazer, fabricar e, por conseguinte, reter os recursos desse ente.

    Trata-se de pensar a essncia da tcnica como aquilo que impulsiona as

    potencialidades da natureza a expressar-se de maneira no subjugada, mas de forma

    reveladora dos entes. Heidegger considerou que a tcnica no uma inveno humana,

    mas antes um acontecimento ontolgico, que ocorre no desvelamento dos entes em

    geral. Como diz Zimmermann: O desvelar dos entes no deve ser interpretado como

    ocorrendo com vista a um qualquer propsito instrumental, como, por exemplo, o de

    aumentar o poder humano, mas deve antes ser considerado como desprovido, em ltima

    instncia, de finalidade (1990, p. 186). Heidegger buscou evidenciar a natureza

    ontolgica ou desveladora da tcnica, abrindo caminho para alm da era no niilismo

    tecnolgico, ao definir a tchne como o desvelamento apropriativo do ser dos entes, em

    vez de produo industrial irrefrevel (Cf. ZIMMERMANN, 1990, p. 186).

    Contudo, necessrio perceber de que modo Heidegger no adota uma postura

    maniquesta, isto , ele no se limita a defender uma posio afirmativa ou negativa em

    relao tcnica. O que interessa para o autor explorar a questo da tcnica at suas

    extremidades. As extremidades da tcnica moderna no se abrem na manifestao

    ntica, isto , no mundo dos entes, mas meditando sobre a sua essncia.

    Para compreendermos mais claramente a essncia da tcnica e, por conseguinte,

    a crtica de Heidegger modernidade, necessrio analisar mais cuidadosamente o seu

    pensamento. A tcnica moderna se torna inacessvel em sua essncia se no for pensada

  • 17

    no horizonte da histria da metafsica. Heidegger vai buscar na histria da metafsica os

    elementos primordiais que compe o esquecimento do ser. O ser foi transformado em

    ente pela metafsica que, voltando-se para a presentidade dos entes, tornou-se o ncleo

    decisivo da essencializao histrica do pensamento ocidental. O ser foi entificado pela

    metafsica a partir do momento em que foi concebido como a presena constante, o

    sempre-presente ou a subsistncia do presente.

    Na poca moderna, somos tomados to somente pelo que ela nos apresenta, isto

    , todo o aprimoramento das invenes de outras pocas como tambm pela criao de

    novas utilidades que to logo se fazem necessidades urgentes para o homem moderno.

    Diante desse processo de esquecimento de sua existncia ontolgica, o homem moderno

    se v absorvido por si mesmo e pelo que pode disponibilizar. neste contexto, que

    segundo Heidegger, o homem mergulha em uma espcie de niilismo ao ponto da tcnica

    se transformar no ponto mximo de chegada da compreenso do ser. Esse tipo de viso

    e posicionamento do homem moderno frente ao mundo, a natureza e a si mesmo o

    culminar do posicionamento proposto inicialmente pela metafsica ocidental.

    diante dessa perspectiva que Heidegger retoma a questo da tcnica pelo vis

    das concepes erigidas na modernidade, tendo como fundamento a metafsica. Em

    outras palavras, a tcnica moderna a extrema possibilidade da entificao do ser

    gestada e nutrida pela metafsica ocidental. Confirma-se, pois, que a tcnica no um

    meio de apropriao da natureza usado unilateralmente pelo homem. Esse uso e

    manipulao dos meios de produo que hoje se sobressaem de maneira desenfreada,

    segundo Heidegger, no pertencem to somente ao domnio humano, mas necessitam

    ser pensados no arcabouo da metafsica como dissimulao do ser atravs da evidncia

    do ente.

    A essncia da tcnica, segundo Heidegger, no nada de tcnico. Por isso,

    enquanto permanecermos atrelados s concepes vigentes sobre a tcnica moderna,

    no teremos como constituir uma proximidade original com a sua essncia. Veremos

    que as concepes mais correntes sobre a tcnica moderna se constituem somente como

    um meio de conduzir ou proceder do homem frente natureza para atingir os fins e que

    podem ser evidenciadas a partir do coroamento da modernidade com o racionalismo

    cartesiano.

  • 18

    1. As bases metafsicas da modernidade cientfico-tecnolgica:

    1.1. A era da metafsica consumada: a verdade como certeza da

    subjetividade:

    A era moderna traz consigo, alm de um percurso histrico que apresenta

    profundas transformaes no mundo, a certeza de que estas transformaes se sustentam

    a partir do prprio homem. Percebemos nesse sentido, que a relao do homem com o

    mundo moderno apresenta caractersticas conflitantes. De um lado, o homem da era

    moderna se mostra com todo mpeto e poder de deciso sobre os acontecimentos da

    nova era que atravessam todos os seguimentos da vida humana e o modo de estar e lidar

    com o mundo. De outro, a complexidade de tais transformaes chama a ateno para se

    pensar at que ponto a certeza que o homem possui de que o senhor absoluto do

    mundo moderno benfica para a humanidade.

    diante do carter conflituoso e complexo da era moderna que Heidegger lana

    sua crtica a partir de uma discusso sobre as bases da modernidade. O filsofo tenta

    compreender as razes pelas quais a subjetividade e a certeza se tornaram os pilares de

    sustentao da era moderna. Heidegger faz um percurso de volta at a antiga metafsica

    com o propsito de demostrar que nela se encontram os fundamentos para a

    compreenso do mundo moderno. Dito de outro modo, Heidegger v na metafsica

    clssica o incio da entificao do ser, o ser pensado e determinado a partir de um

    princpio subjetivo como uma constante presena imvel e imutvel margem das

    prprias transformaes histricas.

    A ideia de funcionalidade, quer dizer a ideia de que todo e qualquer ente tem que

    estar necessariamente disponvel para servir como fonte de recurso tecnologia

    moderna, coloca o homem no centro de todas as articulaes de deciso da

    modernidade. Assim, podemos perceber a relao entre a antiga metafsica e a era

    moderna. O homem do perodo metafsico clssico pensa o ser como o eternamente

    presente. O ser se revela a partir do desencobrimento dos entes. Para a metafsica

    clssica, o ser constante presena na medida em que produz a coerncia do real.

    Podemos ento, perceber traos semelhantes entre a metafsica clssica e a

    modernidade. O ser se revelando a partir dos entes permite que o mundo seja ordenado,

    uma vez que a metafsica clssica pensava o ser como essncia permanente do real. J

    na modernidade o mundo e a natureza so determinados e projetados atravs da

  • 19

    subjetividade que calcula, objetiva e prev toda a realidade. A cincia moderna

    baseada nesta mudana da experincia da presena do ente para a objetidade (Cf.

    HEIDEGGER, 2001, p. 126-127). De acordo com os textos trabalhados neste captulo

    (A poca da imagem de mundo e a conferncia O fim da filosofia e a tarefa do

    pensamento, Cincia e pensamento do sentido), Heidegger caracteriza a era moderna

    como um momento ou desdobramento histrico em que mais uma vez o homem aparece

    como fundador de verdade. Nesse sentido, a era moderna compreendida, segundo

    Heidegger como uma consequncia inevitvel da histria do ser. A Histria do Ser,

    desde a metafsica se caracteriza por seu esquecimento, assim, esquecendo o ser, o

    homem o substitui pelo ente, tornando-se o centro e a referncia do ente na totalidade.

    Diante desse domnio proposto pelo (sujeito, cogito), o homem assegura a

    previsibilidade do mundo e da natureza. Mundo e natureza so calculados e retidos

    como fonte de recursos. Vejamos o que afirma Heidegger neste contexto:

    A histria do ser no a histria do homem e da humanidade, nem a histria

    do relacionamento humano com os entes e com o ser. A histria do ser ser-

    ele-mesmo, e apenas ser. Contudo, uma vez que o ser carece do ser humano

    [Menschenwesen], para fundamentar a sua verdade nos entes, o homem

    permanece atrado para a histria do ser, mas apenas e sempre no concernente

    maneira como ele adquire a sua essncia [Wesen] a partir da relao do ser

    consigo, e em conformidade com este relacionamento perde a sua essncia,

    negligencia-a, cede-a, fundamenta-a, ou a dissipa-a (Apud, Zimmerman,

    1990, p. 256).

    De acordo com Heidegger, a poca moderna parece ser mais um perodo de

    ocultamento do ser. Entretanto, vale ressaltar que negligenciando, cedendo,

    fundamentando ou dissipando o ser, sempre com ele que o homem se relaciona e se

    compreende. Desde a metafsica clssica, quando enganosamente o homem disse o que

    era o ser elegendo-o como princpio ulterior a si mesmo, ele no o via como passvel de

    uma determinao puramente racional proveniente de sua subjetividade. Desse modo,

    uma possvel sensao de vertigem do homem ocidental frente ao abismo metafsico

    surge, na modernidade, com contornos bem mais claros da compreenso racional de sua

    existncia. O homem moderno substitui as determinaes metafsicas pela certeza e

    subjetividade da era cientfico-tecnolgica.

    Esse processo de representao do ente, como vimos, no unilateralmente fruto

    da era moderna, mas sua histria teve incio no seio da prpria metafsica. A metafsica

    procurou construir um caminho objetivo que levasse de igual maneira a uma resposta

  • 20

    objetiva que pudesse retirar o homem da sensao de angstia perante o nada,

    determinando assim, os caminhos da cincia moderna. Vejamos o que diz Heidegger:

    A cincia moderna fundamentada tambm no fato de que o homem coloca a

    si mesmo como o sujeito determinante para o qual todo o ente pesquisvel

    torna-se objeto. Isto, por sua vez, baseado numa transformao da essncia da

    verdade para a certeza, em consequncia do que o ente verdadeiro assume o

    carter de objetividade (2001, p. 121).

    A angstia diante do nada, do desconhecido no permitia ao homem metafsico

    ter o controle de sua prpria existncia. Esse desconforto foi sanado a partir do

    momento que o nada se afasta em prol de retermos o ente na sua totalidade. Essa

    discusso pode ser evidenciada quando Heidegger trata da questo do nada na preleo

    Que metafsica (1933). De acordo com Heidegger, o carter de constante presena

    caracterstica da metafsica produtivista comea pontualmente com Plato e Aristteles.

    Plato definiu a essncia das coisas finitas atravs da sua teoria das ideias. O eidos,

    nesse sentido, seria o responsvel por configurar o fundamento de todos os entes e como

    fundamento, o eidos se tornaria constantemente presente. Aristteles por sua vez, como

    a antiguidade metafsica expressa toma o ser como constante presena no momento em

    que o concebe como entelquia (entkheia). Para Aristteles, entelquia seria, portanto,

    o movimento em sua plenitude. Dito de outro modo, o fundamento ou ousia era a

    concentrao do movimento de produzir, iniciar e conter a si mesmo do ser-presente

    (Cf. ZIMMERMAN,1990, p. 259). Assim, o ser apresentado na sua totalidade como

    vigente, aquele que permanece e perdura.

    com base nas interpretaes metafsicas do ser, de uma necessidade de

    superao do nada que a modernidade recorre, sobretudo, a cincia moderna para

    garantir domnio sobre a essncia do ser. A supremacia da existncia frente essncia

    um dos elementos que permite que todos os entes sejam pensados como objeto. dando

    seguimento a esse contexto de anlise que Heidegger lana sua crtica modernidade

    percebendo, porm, uma modificao do homem frente ao mundo moderno. O homem,

    no contexto da modernidade v na cincia, isto , nos princpios racionais de sua

    subjetividade uma superao da doutrina contemplativa e especulativa greco-crist que

    via o ente como constante presena, como aquele que permanece e garante a

    permanncia dos outros entes. O conhecimento na modernidade cunhado pela cincia

    moderna, na qual o homem no mais contempla e especula, mas calcula, intervm e

    controla todos os meandros da natureza. Nas palavras de Heidegger:

  • 21

    A cincia moderna nem serve a um fim que lhe primeiramente proposto,

    nem procura uma verdade em si. Ela , enquanto um modo de objetivao

    calculadora do ente, uma condio estabelecida pela prpria vontade de

    vontade, atravs da qual esta garante o domnio de sua essncia.

    (HEIDEGGER, 1983a, p. 47)

    Percebemos ento, que a principal caracterstica do homem moderno, quer dizer

    da racionalidade moderna a edificao de um novo conceito de verdade. Esse novo

    conceito de verdade, embora pautado no sujeito que representa o mundo superou o

    modo de investigao metafsica, mas no rompeu totalmente com ela. Isto porque,

    segundo Heidegger, o sujeito da representao (o animal rationale) no coloca a

    verdade do ser propriamente como questo, mas a dissimula com o conceito de

    representao subjetiva, o que na metafsica era tido como constante presena. Ambas

    as determinaes ocultam a verdade do ser como acontecimento histrico.

    Mesmo considerando o advento da modernidade como uma forma ou um destino

    do ser, alguns acontecimentos marcaram de modo decisivo a construo dessa nova

    ontologia. A teoria heliocntrica de Coprnico, mais tarde confirmada por Galileu,

    passando por Kepler, tomam corpo em Descartes e que so posteriormente utilizadas na

    formulao das leis de Newton. Em outras palavras, um novo modelo de verdade foi

    erguido na modernidade. A verdade agora tomada para a esfera do sujeito que

    representa, um sujeito convicto de que toda a certeza acerca do universo, da natureza

    proveniente da organizao de suas estruturas mentais. Percebemos com isso, que na

    modernidade o sujeito passa a ser o centro de onde irradia as verdades sobre si mesmo,

    o mundo e natureza.

    A modernidade governada pelo sujeito que representa, encontra seu eixo de

    articulao na cincia, mais precisamente na fsica e matemtica. Estas por sua vez,

    proporcionam a objetividade da natureza a partir do momento em que estabelecem um

    sistema de previsibilidade, disponibilidade e controle da natureza, baseada em uma

    razo objetiva e calculadora que dispe constantemente do real como fonte de recurso.

    Diante desse novo contexto, conhecer a causa do fenmeno implica controlar de

    igual modo esse fenmeno. Assim, os efeitos so cerrados dentro de um campo de

    previsibilidade. A natureza perde toda a sua dinamicidade para dar lugar ao controle de

    seus fenmenos. A cincia confere, nesse sentido, status de poder ao sujeito que

    representa, da a afirmao de Francis Bacon que saber poder, ou seja, preciso

    prever, controlar para produzir e intervir para ajustar. Desde ento, o princpio de poder

  • 22

    se tornou a articulao de todo o relacionamento do homem moderno com ente em seu

    todo. A moderna racionalidade cientfica construiu seu espao de pesquisa em meio a

    uma espcie de circularidade ou crculo vicioso, isto , suas hipteses so antes de tudo,

    retiradas da previsibilidade que se se exerce sobre a natureza, depois estas hipteses se

    transformam em experimentos para confirmar sua previsibilidade. A natureza

    cerceada no campo da manipulao e representao do homem moderno.

    A manipulao da natureza modifica significativamente toda a realidade do

    homem frente aos entes. A realidade juntamente com os entes passa a fazer parte de um

    grande processo de operao, de um funcionamento que na, modernidade, depende

    exclusivamente do homem, do sujeito que representa a realidade. Fica claro o

    distanciamento do homem clssico, medieval e moderno. grosso modo, o homem

    clssico, inserido no contexto predominantemente metafsico no operava sobre o ente,

    no sentido de adequ-lo constantemente s suas representaes mentais, mas estava

    eternamente sob uma constante presena margem de qualquer modificao histrica.

    O homem medieval, por sua vez era contemplativo, passivo diante das determinaes do

    ser divino, e, por fim, o homem moderno operante, ativo em relao realidade

    como um todo subjugando a natureza aos desgnios de sua representao mental.

    O homem moderno passou ento edificar o ideal de confiana sobre si mesmo. A

    verdade agora compreendida e definida como certeza da representao. Os conceitos

    que versavam na antiguidade e no perodo medieval sobre o ente como constante

    presena e como fonte de contemplao so substitudos na modernidade pela ideia de

    funcionalidade. Assim, o sujeito da representao se torna fundamento dessa ideia,

    uma vez que opera, manipula, prev todos os aspectos da realidade.

    Percebemos, ento, que Heidegger ao tratar da questo da tcnica moderna, no

    o faz margem de um rompimento abrupto com a metafsica, mas a evidencia como um

    eixo de desdobramento ontolgico, mais do que isso, a metafsica para Heidegger o

    fundamento das diversas matizaes do ser ao longo da histria. Nesse sentido, a era

    moderna configura um destino, no qual mais uma vez o ente tomado em sua totalidade

    atravs da racionalidade cientfico-tecnolgica. Desse modo, O percurso de Heidegger

    desde a metafsica at a modernidade no se identifica como uma anlise

    historiogrfica, mas como um modo de apresentao do ser que se caracteriza como um

    destino diante do qual no podemos nos eximir. O Gestell se constitui em nosso tempo

    como a abertura para a compreenso do ser. Trata-se nesse sentido, de uma

  • 23

    subjetividade imperiosa que encontra na tcnica moderna um aparato de projeo do

    mundo, no qual tudo pensado a partir da prpria identidade do sujeito.

    A tcnica moderna fornece a objetividade do mundo mediante um projeto j

    muito bem desenhado pela subjetividade, isto , a modernidade se configura como uma

    poca na qual uma nova interpretao do ente na totalidade edificada. Um novo

    modelo de verdade construdo, porm, no mais a partir da ideia de constante presena

    ou de uma essncia eterna e sim atravs de algo que provem diretamente do prprio

    homem, a saber, a sua subjetividade. A subjetividade na era moderna no se confunde

    com uma forma de anlise e reflexo subjetiva sobre o mundo, mas ao contrrio disso, a

    prpria subjetividade aparece nesse novo contexto como a primeira forma objetiva e

    calculada de projetar o mundo moderno, como assevera Heidegger:

    O objeto originrio a objetividade em si mesma. A objetividade originria

    o eu penso, no sentido do eu percebo, que j se apresenta e j se

    apresentou, subiectum. Na ordem da gnese transcendental do objeto, o

    sujeito o primeiro objeto da re-presentao ontolgica. (HEIDEGGER,

    2008l, p. 64).

    Para Heidegger, o mundo moderno visto pela racionalidade cientfico-

    tecnolgica, sendo assim, a subjetividade no poderia ser diferente da viso que ela tem

    sobre o mundo, um mundo de possibilidades, no sentido de fazer dos entes uma

    constante fonte de previsibilidades, clculo, planejamento e recursos disponveis. A

    subjetividade assume o fio condutor de toda essa engrenagem que pe o mundo

    moderno em funcionamento e, para isso, necessrio que ela prpria seja tomada como

    objeto de previsibilidade e manipulao. Da Heidegger, no evidenciar em seus escritos

    ou nas suas reflexes uma ruptura com a metafsica ou a construo de uma nova era na

    modernidade margem da antiguidade do pensamento grego. Antes, o que Heidegger

    prope que pensemos a modernidade como a consumao da metafsica em seu

    sentido pleno. A metafsica entificou o ser o enclausurando em conceitos eternos e

    imutveis. Na modernidade, Heidegger ir perceber traos da antiga metafsica, agora

    com uma nova roupagem inaugurada por Descartes. O filsofo do cogito aparece como

    expoente principal do projeto matemtico da cincia moderna, o que quer dizer, de

    acordo com Heidegger que a conscincia assume o lugar ou o tribunal da verdade e se

    pe autnoma para lidar com um mundo no mais de aparncias ou substncias, mas

    com um mundo totalmente modelvel pela subjetividade do sujeito.

  • 24

    Heidegger no dedica parte de sua vida a formular uma teoria ou filosofia da

    tcnica propriamente ditas, mas todas as suas reflexes se confrontam a problemtica do

    ser e do seu desdobramento histrico. Por esta razo que Heidegger considera que a

    metafsica determinao histrica para se compreender a modernidade e que o faz

    questionar em seu confronto com Nietzsche se o ser possua apenas uma significao de

    vapor ou um destino do Ocidente. A partir dessa indagao, Heidegger percebe que o

    ser enquanto acontecimento histrico ainda idealizado devido histria da metafsica

    e atravs dela que o homem se relaciona de um modo ou de outro com o ser.

    (DUARTE, 2010, p. 17-18). No obstante, na era moderna, o homem no se d conta

    que o esquecimento do ser resultado de um longo percurso metafsico. A era moderna

    caracterizada pela subjetividade tem enganosamente a racionalidade cientfico-

    tecnolgica como uma construo solitria e imperiosa que se fundou a si mesma,

    dominando toda uma poca histrica. Nesta mesma perspectiva, Zimmerman afirma

    que:

    Essa viso moderna da racionalidade estava relacionada de perto com o

    triunfo do fenmeno paradoxal que eu chamo de humanismo naturalista. O

    paradoxo de tal humanismo reside que ele combina a viso segundo a qual os

    humanos so como as outras espcies animais que lutam pela sobrevivncia,

    com a perspectiva que os humanos so diferentes dos outros animais por

    serem dotados de racionalidade que lhes d o direito de definir, avaliar e usar

    as coisas da maneira que entendem escolher. (1990, p. 288)

    De acordo com Heidegger, a perspectiva naturalista desencadeia juntamente

    com a modernidade a era do niilismo, uma vez que o homem abandona e esquece do

    ser, tomando como referncia de verdade a si mesmo. O humanismo a autopromoo

    do animal humano, como sujeito certo de si mesmo substituindo o falecido Deus

    (ZIMMERMAN, 1990, p.288). A partir de ento, a natureza comea a ser vista como

    objeto de captura pelo homem moderno. Os entes passam a ser controlados mediante

    um projeto de planificao e nivelamento do mundo. Com isso, Heidegger no sugere o

    abandono da metafsica, antes ele nos chama a ateno para o fato de que a metafsica

    ainda, de certo modo, determinar o relacionamento do homem com o ser. O ser, na

    modernidade no mais pensado como constante presena como na metafsica clssica,

    mas a metafsica retorna, transforma e permanece no poder como a diferena ainda

    vigente entre ser e ente (HEIDEGGER, 2008l, p.62). O mundo moderno, segundo

    Heidegger cunhado pela metafsica, isto , por uma falta de percepo dessa diferena.

    Assim, a era moderna edificada sombra do nivelamento dos entes e, assim, o homem

    a partir de sua subjetividade calculadora define o ente em sua totalidade.

  • 25

    Os entes na modernidade surgem em sua totalidade no propriamente atravs

    de um princpio ulterior, mas a partir de um princpio de certeza do sujeito que

    representa a si mesmo e o mundo. Neste sentido, podemos de fato pensar que existe um

    rompimento entre a histria da metafsica e a histria da modernidade, mas justamente

    na era moderna que a metafsica encontra seu acabamento. A metafsica a histria do

    esquecimento do ser e a modernidade se configura como o esquecimento do

    esquecimento do ser ou como afirma Heidegger como o abandono do ser. Vale

    esclarecer que o processo de esquecimento do ser que culminou na modernidade no se

    caracteriza por uma mudana radical de lidar com o ser, o que acontece na modernidade

    a efetiva consumao de um esquecimento ontolgico. Na modernidade no h

    propriamente uma eternizao do ser por meio da constante presena do ente, existe na

    verdade uma vontade de querer. Essa vontade de querer, na concepo nietzschiana

    pode ser compreendida como a mais expressiva relao entre sujeito e objeto, na qual a

    subjetividade determina e se sobrepe absoluta sobre os entes de tal maneira a dispensar

    qualquer questionamento sobre o sentido do ser. Essa caracterizao da poca moderna

    o que Heidegger chama de era da ausncia de sentido consumada. Segundo o

    filsofo:

    Essa im-posio confirma a extrema cegueira com respeito ao esquecimento

    do ser. O homem quer a si mesmo enquanto o voluntrio da vontade de

    querer, para o qual toda verdade torna-se aquele erro de que necessita para

    poder dispor com segurana da iluso de que a vontade de querer nada mais

    quer do que o nada anulador contra o qual ele ento se afirma, sem nem

    mesmo poder saber de sua prpria nulidade (HEIDEGGER, 2008l, p.62).

    Dessa perspectiva possvel compreender com mais clareza o que Heidegger

    quer dizer quando se refere ao abandono do ser, isto , nem mesmo o questionamento a

    respeito do seu sentido pensado. Perguntar pelo ser na era moderna acarretaria um

    empecilho ou um entrave ao projeto moderno de eficcia na conduo dos entes.

    margem pela pergunta do sentido do ser, o mundo se constri sob a base de coisas. O

    prprio homem tomado como mais um ente nivelado com os demais se transformando

    em fundo de reserva. Na objetivao, o prprio homem e tudo o que humano se

    transformam em mero fundo de reserva que, computado psicologicamente, inserido no

    processo de trabalho da vontade de vontade (HEIDEGGER, 2007b, p. 296). Para

    Heidegger, uma das caractersticas fundamentais da modernidade no simplesmente a

    dominao dos entes em um aspecto isolado, mas o que h por trs dessa dominao.

    Em sentido outro, Heidegger considera que a essncia da dominao na era moderna a

  • 26

    vontade de querer, de reter para si, de armazenar para disponibilizar. a partir desse

    contexto, da entificao desenfreada que a modernidade vai confirmar a essncia

    tecnolgica da metafsica.

    Na era da tcnica (Gestell), tudo disponibilizado atravs da vontade de

    querer. Essa vontade o que permite a operacionalizao do mundo sob a gide da

    racionalidade cientfico-tecnolgica. No mundo moderno, existe uma recproca que pe

    em funcionamento constante o objetivo maior da tcnica, que o controle. De um lado,

    tudo disponibilizado conforme a vontade de querer, de outro, a utilizao e controle

    dos entes o que alimenta e d o resultado previamente calculado dessa vontade. De

    igual modo, o mundo metafsico foi construdo, tendo como fundamento o ideal de

    controle, uma vez que postulava o ser como algo acabado, constante margem dos

    desdobramentos histricos. Assim, o que temos na modernidade uma nova adequao

    da objetividade, isto , na metafsica ela ficava a cargo do sujeito da representao e, na

    era da tcnica moderna ela reafirmada pela disponibilidade alimentada pela vontade de

    querer. A tcnica entendida dessa forma no corresponde, segundo Heidegger, a

    fabricao de parafernlias, mas a toda uma modificao que coloca o mundo em uma

    linha horizontal, tendo como base uma racionalidade cientfico-tecnolgica proveniente

    da vontade de querer. De acordo com Heidegger:

    Pode-se chamar, numa nica palavra, de tcnica a forma de manifestao

    em que a vontade de querer se institucionaliza e calcula no mundo no-

    histrico da metafsica acabada. Esse nome engloba todos os setores dos

    entes que equipam a totalidade dos entes: natureza objetivada, cultura

    ativada, poltica produzida, superestrutura de ideais. A tcnica no significa

    aqui os setores isolados da fabricao e aparelhamento de mquinas. Estas

    possuem, sem dvida, uma posio privilegiada, a se determinar mais de

    perto, fundada na primazia do material que se assume como o pretenso

    elementar e o objeto em sentido eminente (HEIDEGGER, 2008l, p. 69).

    O carter no-histrico da tcnica moderna, quer dizer, o mundo manipulado e

    projetado pela subjetividade racionalista nos impe uma nova realidade que se apresenta

    em todos os espaos da vida cotidiana. Porquanto, no devemos nos referir a tcnica

    moderna unicamente como avanos tecnolgicos ou como uma conjuntura de aparelhos

    que facilitam a vida humana. A tcnica, segundo Heidegger, no apenas facilita a vida

    do homem moderno, mas a abrevia, no sentido no propriamente biolgico, mas no que

    diz respeito maneira de lidar e estar no mundo. A eficincia se torna fator

    preponderante da era moderna, assim, a impessoalidade uma das caractersticas

    fundamentais do mundo moderno, uma vez que para dar conta da grande demanda por

  • 27

    resultados que representam a rapidez da avassaladora da tecnologia, a humanidade

    necessita urgentemente abolir suas singularidades em prol da homogeneidade. A

    natureza, a cultura, a poltica, a linguagem foram reduzidos, a grosso modo, a sistemas

    operacionais. Como fonte de maior esclarecimento exemplificador, recorremos leitura

    de Zimmerman quando este interpreta Heidegger ao afirmar que uma das expresses da

    eficincia e homogeneizao impostas pela tcnica moderna acontece com o surgimento

    da mquina de escrever:

    A mquina de escrever separa a escrita do domnio essencial da mo, e,

    acrescenta-se, da palavra. As mquinas de escrever tm a sua utilidade, por

    exemplo, para reproduzir e preservar coisas j escritas mo. Mas no h

    lugar para a escrita a mquina em matria de correspondncia pessoal!

    Quando as mquinas de escrever apareceram, Heidegger comentou que as

    pessoas sentiram-se insultadas por receberem cartas escritas dessa maneira:

    Hoje, [todavia] uma carta escrita mo interrompe a leitura rpida e est,

    portanto, fora de moda e indesejada. A escrita mquina esconde o carter

    pessoal do autor da carta, contribuindo dessa maneira para a homogeneizao

    da humanidade moderna (1990, p.308).

    O exemplo supracitado demonstra o surgimento da mquina de escrever no

    meramente como um advento tecnolgico, mas como a expresso de uma modificao

    profunda no modo de o homem moderno lidar consigo mesmo e com o mundo. As

    singularidades so suprimidas pela eficincia da homogeneizao. A cultura vai se

    alterando de forma bastante complexa, pois o que pensamos acontecer de maneira

    gradativa so, na verdade, mudanas incondicionais que subvertem o comportamento e

    o modo de pensar do homem moderno. Em nome da eficincia imputada pela tcnica

    moderna, a natureza vai sendo catalogada atravs de uma linguagem cada vez mais

    suprimida e rpida. A poltica, a exemplo do nazismo, prope uma identidade nica do

    povo alemo que, de acordo com Heidegger, no tem por objetivo a preservao de uma

    cultura ou de tradies, mas apresenta em seu interior a vontade de poder reafirmada

    por Nietzsche como mola propulsora de controle e asseguramento do povo alemo sob a

    concepo de mobilizao total defendida por Ernest Jnger. Nesse sentido, as

    mudanas apresentadas pela tcnica moderna afastam um contato autntico do homem

    com o mundo e, por sua vez um afastamento do ser.

    Embora a manipulao e o domnio incondicionado do homem moderno sobre o

    mundo apresente uma verso aparentemente libertadora proposta pela tcnica moderna,

    o mundo desenhado por este prisma tcnico na verdade um aprisionamento. Em face

    de toda planificao prvia do ente em seu todo e diante do movimento circular de

  • 28

    produo e consumo, no h mais acontecimento digno desse nome: mundo. Frente ao

    consumo dos entes no fazer da tcnica (2002a, p. 80), o mundo da tcnica se tornou

    sem mundo, um no mundo que oculta para o homem o fato de que todo mundo

    sempre historial-ontolgico, ou seja, est sempre fundado em uma deciso historial ou

    em um desocultamento ontolgico do ente na totalidade. De acordo com Heidegger, o

    mundo , na concepo tcnica, uma fixidez operativa que domina e determina o que as

    coisas so a partir de um distanciamento do prprio mundo. Por isso a armao

    tecnolgica j no pode ser, de modo algum, um mundo. Como diz o pensador:

    Na era em que apenas o poder tem poder, isto , na era da afluncia

    incondicional dos entes ao abuso do consumo, o mundo torna-se sem-mundo

    na mesma medida em que o ser ainda vige, mas sem vigor prprio. O ente

    real enquanto operativo. Em toda parte, a operatividade. Em parte alguma, o

    fazer-se mundo do mundo. (...) Essa circularidade entre o abuso e o consumo

    o nico processo que caracteriza o destino de um mundo que deixou de ser

    mundo (HEIDEGGER, 2002a, p. 80-83).

    A distncia do mundo e de ns mesmos ocasionados pela tcnica moderna nos

    remete a concepo heideggeriana de demora (Cf. HEIDEGGER, 2000b, p.14). Para

    Heidegger, o homem moderno, guiado pela fugacidade e pelo efmero, no mais se

    demora junto s coisas, acontecimentos. Isso acontece devido s coisas no serem mais

    pensadas como coisas, mas como disponibilidade subsistente (Bestand), anlise que

    aprofundaremos mais adiante. Desse modo, ao mesmo tempo em que somos

    precipitadamente ceifados da nossa demora junto s coisas pela necessidade de

    encontrar uma resposta convincente e objetiva do que a existncia humana, o mundo

    tambm nos aparece totalmente arquitetado pelo engendro tcnico. E tudo no apenas

    na sua composio estrutural, mas no modo como concebemos este mundo. As coisas se

    delineiam de tal forma que parecem independer da vontade humana. O poderio da

    tcnica se apresenta no como senhor imperioso e subjugador, mas como um processo

    natural e irreversvel diante do qual as pessoas so submetidas sem perceber a abertura

    que nela se apresenta.

    Com efeito, urgente refletir sobre o sentido ontolgico-historial da tcnica que

    se edifica na modernidade e, como ele fez surgir uma nova forma de desocultao do

    ente na totalidade que atravessa e domina o homem moderno em seu encontro com os

    entes em geral. De acordo com Heidegger, a tcnica no deve ser compreendida como o

    rompimento com o ser, mas sim como um destino inevitvel que pe o homem frente a

    uma concepo de ser inicialmente proposta pela metafsica. A tcnica moderna um

  • 29

    meio errneo de compreenso do ser que o apreende sob a trama da disponibilidade.

    Nesses termos, a racionalidade cientfico-tecnolgica assume, na modernidade, o papel

    de condutora do sentido do ser, desconsiderando sua caracterstica fundamental que a

    de ocultar-se e desocultar-se por si. O fato de o ser possuir essa caracterstica

    fundamental no significa dizer que ele representa uma entidade eterna, independente e

    fora do mundo, mas tal caracterstica reafirma, de acordo com Heidegger, que o ser

    essencialmente histrico e como tal no pode ser apreendido conceitualmente e nem

    tampouco passvel de previsibilidade e controle. Desta feita, o mundo deixou de ser

    mundo para o homem moderno na medida em que o espao que ele ocupa ou habita

    passa a ser tomado sob a tica da operabilidade constante, a terra deixa de ser terra, no

    sentido de morada do homem, para se transformar em fonte de recurso e produo

    sendo impelida a fornecer aquilo que foi projetado e calculado pelo homem moderno.

    Em uma conferncia intitulada Construir, habitar, pensar de 1951, Heidegger diz o

    seguinte:

    Ser homem diz: ser como um mortal sobre essa terra. Diz habitar. A antiga

    palavra bauen (construir) diz que o homem medida que habita. A palavra

    bauen (construir), porm, significa ao mesmo tempo: proteger e cultivar, a

    saber cultivar o campo, cultivar a vinha. Construir significa cuidar do

    crescimento que, por si mesmo, d tempo aos seus frutos. No sentido de

    proteger e cultivar, construir no o mesmo que produzir (2008e, p.127).

    A anlise da reflexo de Heidegger sobre a modernidade nos conduz ao

    entendimento de que a realidade no construda em um sentido de cultivo, mas ao

    contrrio disso, o mundo e a natureza so projetados conforme os desgnios da

    subjetividade calculadora. Na modernidade, o mundo posto como uma linha de

    projeo, diante da qual tudo o que existe tem necessariamente de servir a um fim

    determinado e previamente calculado pela subjetividade moderna. Nesse sentido,

    importante destacar que o processo de mutao que projeta o mundo como imagem, ao

    invs de conceber o ente na totalidade como o fez a antiga metafsica tem sua maior

    expressividade com o racionalismo cartesiano. A categoria de logos defendida por

    Aristteles como uma prerrogativa humana e depois por Nietzsche transforma-se na

    modernidade em poder, a partir de Descartes que faz da humanidade projetores do

    mundo. Como projetores, os humanos no podem agir s cegas, mas necessitam ter

    previsibilidade e controle dos entes em geral. Assim, o logos da antiga metafsica

    converte-se em poder atribuindo ao homem moderno a capacidade de desvelamento,

  • 30

    no como Altheia, mas como fonte de recurso a partir de uma racionalidade

    instrumental (Cf. ZIMMERMAN, 1990, p.288).

    As formulaes supracitadas nos fazem perceber que o advento da tcnica

    moderna no para Heidegger um acontecimento intempestivo, mas faz parte de um

    longo processo histrico, no qual os entes se revelam desta ou daquela maneira (Cf.

    CASANOVA, 2006, p.125). Desse modo, o que acontece na modernidade a

    substituio de um modelo de constante presena do ente para a representao desse

    ente atravs da subjetividade racionalista. Para legitimar o poder de conferir verdade aos

    entes que representa, o prprio sujeito necessita encontrar uma explicao que fornea

    as bases para se autolegislar como aquele que representa. Nesse sentido precisa

    primeiramente representar-se a si mesmo. De acordo com Heidegger, o sujeito recorre

    vontade de querer-se para assegurar-se a si mesmo de pensar e legislar

    incondicionalmente sobre os entes. Vejamos o que diz o pensador:

    Objeto no sentido de contra-posio se d apenas onde o homem se torna

    sujeito, onde o sujeito se torna ego e o ego, cogito. D-se onde esse cogitare

    , em sua essncia, concebido como a unidade originariamente sinttica da

    apercepo transcendental, onde se alcana o ponto mais elevado da lgica

    (a verdade como a certeza do eu penso). Somente aqui descobre-se a

    essncia do objeto em sua objetividade. Somente aqui torna-se,

    consequentemente , possvel e inevitvel conceber a prpria objetividade

    como o novo e verdadeiro objeto e pensa-lo incondicionalmente.

    (HEIDEGGER, 2008l, p.73).

    Diante do que foi dito anteriormente, pretendemos dar continuidade ao fio

    condutor desta discusso de modo mais aprofundado sobre a crtica de Heidegger ao

    fundamento instaurador do mundo moderno, a subjetividade calculadora que representa

    o ente em seu todo como objeto. O diagnstico crtico da modernidade empreendido por

    Heidegger busca questionar as pretenses totalizantes da objetivao cientfico-

    tecnolgica do ente em seu todo, evidenciando seus riscos e perigos e reivindicando

    uma superao desse pensamento representacional e dessa interpretao da essncia da

    verdade como certeza da subjetividade. Porm, no se trata de uma recusa voluntarista

    da cincia, da tcnica e da era moderna, mas sim um esforo meditativo que descerra o

    espao de dilogo com formas no metafsicas de pensamento, de correspondncia entre

    homem e ser ou de desocultamento do ente na totalidade.

    Para que percebamos que tipo de pensamento pode ser proposto para alm da

    razo cientfico-tecnolgica, Heidegger faz uma discusso acerca do papel da filosofia

    vista ao longo da histria como cincia. A filosofia tida como cincia se constitui como

  • 31

    pilar da modernidade enquanto fundamento terico da tcnica moderna. As discusses

    que versam sobre os avanos da tecnologia moderna, encontram na filosofia sua

    justificativa para explicar a entificao do ser. Assim, o que pretendemos no momento

    que se segue , justamente demonstrar que a tcnica como um processo histrico no se

    faz a si mesma e nem tampouco se sustenta por si s historicamente, mas que tem na

    filosofia seu principal eixo articulador que conduziu entificao do ser e, que na

    modernidade a base para a apreenso do ente na totalidade, utilizando-se da

    objetivao do real.

    Recorremos aqui conferncia O Fim da Filosofia e a Tarefa do Pensamento

    (1979) com o objetivo de proporcionar maior clareza e embasamento discursivo para o

    entendimento da converso da filosofia em cincia e desta como instauradora do mundo

    moderno. Neste texto, Heidegger inicia a partir de duas indagaes: em que medida

    entrou a filosofia, na poca atual, em seu estgio final? Que tarefa ainda permanece

    reservada para o pensamento no fim da filosofia?

    De acordo com Heidegger, a metafsica pensa o ser a partir da sua

    correspondncia com o ente. A metafsica tornou-se o fundamento de toda interpretao

    do ser, principalmente a partir de Plato. Vejamos o que afirma Heidegger:

    Por meio da interpretao do ser como ideia, Plato distinguiu pela primeira

    vez o ser com o carter do a priori. (...). De acordo com o seu carter a priori,

    contudo, o ser reside para alm do ente. Para alm de e por cima de

    significam em grego meta. O conhecimento e o saber sobre o ente, o

    essencialmente a priori o precedente so anteriores segundo natureza.

    Dessa forma, visto a partir dos entes, dos fsica, eles precisam ir alm

    destes, ou seja, o conhecimento precisa ser met t physica, precisa ser

    metafsica. De acordo com a definio substancial, esse termo no diz outra

    coisa seno o saber acerca do ser do ente, um ser que distinto por meio do

    carter a priori e que foi concebido por Plato como ideia. Com a

    interpretao platnica do ser como ideia comea, portanto, a metafsica

    (HEIDEGGER, 2007b, p. 165-166).

    Concentrado nessa perspectiva, Heidegger chama a ateno para o fim da

    filosofia enquanto metafsica. Quando pensa em fim, Heidegger se refere no ao

    trmino propriamente dito da filosofia. Para Heidegger, o fim da metafsica no

    corresponde a um esquecimento de sua histria para o ocidente europeu, mas ao

    contrrio disso, demarcaria a partir de ento a mais expressiva referncia de pensamento

    para a civilizao mundial. Assim, a autonomia das cincias que, na modernidade

    aparecem sob a conceituao de racionalidade cientfico-tecnolgica se constitui como o

  • 32

    acabamento ou consumao da metafsica em suas possibilidades mais extremas.

    Segundo o autor:

    Fim , como acabamento, a concentrao nas possibilidades supremas.

    Pensamos estas possibilidades de maneira muito estreitas enquanto apenas

    esperamos o desdobramento de novas filosofias do estilo at agora vigente.

    Esquecemos que j na poca da filosofia grega se manifesta um trao

    decisivo da Filosofia: o desenvolvimento das cincias em meio ao horizonte

    aberto pela Filosofia. O desenvolvimento das cincias , ao mesmo tempo,

    sua independncia da Filosofia e a inaugurao da sua autonomia. Este

    fenmeno faz parte do acabamento da Filosofia. Seu desenvolvimento est

    hoje em plena marcha, em todas as esferas do ente. Parece a pura dissoluo

    da Filosofia; , no entanto, seu acabamento (HEIDEGGER, 1983a, p, 72).

    Desse modo, Heidegger destaca que a filosofia enquanto metafsica no foi uma

    histria que teve seu fim com o surgimento da modernidade, mas se configurou como

    referncia conceitual, isto , de entificao do ser que conduziu todo o percurso da

    modernidade. A metafsica nesse sentido, o fundamento de toda a racionalidade

    cientfica e tecnolgica que se organiza, segundo Heidegger como Gestell e que

    converte toda a realidade em bens disponveis ou em fundo de reserva (Bestand). Com a

    independncia das cincias no chega ao fim a filosofia enquanto metafsica, mas sua

    culminncia, se tornando o centro de toda a civilizao ocidental. Toda a exigncia que

    se faz sobre a natureza, que ela fornea tudo o que tiver refora o carter dominador que

    se iniciou com a metafsica, mas especificamente com a de Plato. O carter dominador

    da metafsica pode ser compreendido como a entificao do ser que o colocou sob o

    entendimento de uma entidade constante e eterna. Na modernidade, essa dominao e

    controle aparecem tendo como fundamento a plena realizao da metafsica a partir do

    que Heidegger chama de Gestell ou essncia da tcnica moderna. O Gestell tem por

    objetivo a mobilizao total do homem tecnicamente organizado pronto para prev,

    manipular e disponibilizar de toda a natureza, tendo como impulso primordial a vontade

    de querer como operacionalizao constante do mundo.

    A consumao da metafsica como tcnica moderna se entremeia em todos os

    espaos da vida humana e no modo como os humanos lidam com o mundo e a natureza.

    Nesse sentido, a concepo de tcnica como um destino histrico de manifestao do

    ser parece no ser passvel de compreenso, mas to somente de aceitao. De modo

    mais claro, a tcnica moderna compreendida pela modernidade como um processo de

    aperfeioamento de tcnicas mais antigas, ficando a essncia da tcnica limitada

    compreenso de que esta apenas um meio instrumental de lidar com o mundo. Apesar

    de a moderna tcnica configurar um modo de desencobrimento, ele permanece

  • 33

    encoberto pelas concepes comuns que versam sobre ela, isto , de que ela um meio

    para um fim ou simplesmente uma instrumentalidade aperfeioada, tema que

    aprofundaremos no decorrer do segundo captulo. O fato que, enquanto a compreenso

    que se tem sobre a tcnica se restringir ao aperfeioamento de ferramentas e

    instrumentos proporcionados pelo desenvolvimento tecnolgico permanecer de igual

    maneira velado qualquer questionamento acerca do seu fundamento. Nas palavras de

    Heidegger:

    provavelmente desaparecer a necessidade de questionar a tcnica moderna,

    na mesma medida em que mais decisivamente a tcnica marcar e orientar

    todas as manifestaes no planeta e o posto que o homem nele ocupa

    (HEIDEGGER, 1983a, p. 73).

    A proposta de Heidegger, nesse sentido, tentar recuperar um pensamento que

    procure o fundamento metafsico e, assim compreender o fundamento da tcnica

    moderna. Em outros termos, necessrio pensar para alm do que a metafsica nos

    apresenta, isto, , a entificao do ser se quisermos compreender sua essncia. A

    essncia da metafsica era o que, de fato, interessava para Heidegger, pois nela continha,

    segundo o autor a pea chave para compreendermos o processo da histria moderna e o

    predomnio da tcnica como referncia do mundo moderno. Em entrevista concedida ao

    professor Richard Wisser, Heidegger faz a seguinte afirmao: Eu pergunto: o que a

    metafsica? Eu no formulo uma questo metafsica, mas a questo sobre a essncia da

    metafsica (O que nos faz pensar, 1996, p.16). medida que Heidegger no formula

    uma questo metafsica, significa que para o filsofo, o que interessa no a entificao

    do ser, mas a metafsica enquanto desdobramento ontolgico consumado na

    modernidade, isto , sua essncia. Vejamos o que diz Heidegger:

    A Metafsica o que propiciou a marca do mundo histrico do Ocidente e de

    nosso destino. Enquanto marca e cunho, a Metafsica permanece o que

    atual. A atualidade desse atual no depende de que ns, seja uma pessoa

    isolada, esse a, ou seja, um homem da atualidade histrica, tomemos ou no

    conhecimento dela (1998, p.286).

    O tempo, segundo Heidegger constitui a essncia impensada do ser, o que quer

    dizer que a modernidade caracteriza um perodo que, consumando o que a metafsica

    props fornece ao tempo contornos precisos e previsveis. O tempo, na era moderna

    definido atravs da projeo e imagem da natureza, fazendo deste uma atualidade

    constante. O ser, nesse sentido, enclausurado na previsibilidade e assegurao do

    clculo, perdendo sua capacidade de velamento e desvelamento. A verdade do ser,

  • 34

    segundo Heidegger no deve ser compreendida como um modo conceitual de sua

    definio, mas ao contrrio disso, a verdade do ser se caracteriza por um elo

    inquebrantvel de ausncia e presena. justamente esse jogo de desvelamento e

    velamento que, segundo Heidegger o que podemos chamar de diferena ontolgica. A

    diferena ontolgica o fundamento impensado da metafsica em todo o seu percurso

    histrico.

    O esquecimento do ser o seu esquecimento enquanto diferena, isto , como

    retiro e ocultao. Esses processos no significam que o ser se esconde propositalmente

    como se fosse de fato uma entidade a ser apreendida, seja pela metafsica com a ideia de

    constante presena ou na era moderna como imagem e disponibilidade. Retiro e

    ocultao fazem parte da constituio essencial do ser e o que caracteriza sua

    capacidade de durao, de demora. Desse modo, pensar esse processo essencial do ser

    o principal objetivo de Heidegger no fim da filosofia enquanto metafsica. Contudo, o

    filsofo no pretende fundar uma nova constituio ou definio conceitual para o ser,

    se trata antes de uma meditao que possui um carter de expectativa que pode ser

    sintetizado da seguinte forma: existe ainda algum tipo de abertura para um pensamento

    que no tenha sido absorvido pela tcnica?

    Essa uma pergunta que possui contornos sinuosos. Toda a histria da filosofia

    calcada no fundamento proporcionado por suas ontologias. O tipo de pensamento que

    buscamos a luz do que ensejado por Heidegger no traz no seu mago carter

    fundador, mas carter preparatrio. A dificuldade se encontra exatamente aqui, isto , de

    no haver uma resposta concisa para o que se espera. Nesse sentido, o pensamento o

    desafio do prprio pensamento, pois para si prprio que se guarda, que se anuncia

    como outra possibilidade de habitar o mundo.

    Aqui se tem em mira a possibilidade de a civilizao mundial, assim como

    apenas agora comeou , superar algum dia seu carter tcnico-cientfico-

    industrial como nica medida de habitao do homem no mundo. Esta

    civilizao mundial certamente no o conseguir a partir dela mesma e

    atravs dela, mas antes, atravs da disponibilidade do homem para uma

    determinao que a todo momento, quer ouvida quer no, fala no interior do

    destino ainda no decidido do homem (HEIDEGGER, 1983a, p. 74).

    O pensamento como abertura para alcanar um novo horizonte para a

    humanidade sombreado pelos desgnios da tcnica moderna. Uma poca em que a

    subjetividade racionalista dificulta sobremaneira pensar o fundamento da metafsica. A

    partir do momento em que fizermos o retorno sua essncia, ou seja, pensarmos o ser

  • 35

    no como constante presena e nem tampouco como disponibilidade, mas como o que

    oculta e desvela a si mesmo, que poderemos fazer uma experincia autntica com o

    pensamento. A subjetividade racionalista prev e dispe de toda a realidade, encerrando

    o ser em uma perspectiva matematizada. Segundo Heidegger, a tentativa de superar a

    metafsica tradicional desembocou nas concepes modernas de apreenso do ente em

    sua totalidade, o eu, a conscincia, a razo e o esprito (HEIDEGGER, 2006, p. 66).

    Todas essas manifestaes constituem na problemtica de isolamento do eu que na

    modernidade no deixa de ser o fundamento recusado da metafsica clssica. Nas

    palavras de Heidegger:

    ...o eu, a conscincia, a pessoa so de tal modo incorporados pela metafsica

    que este eu no mais de forma alguma colocado em questo. Isto no

    significa uma simples omisso quanto colocao da questo, mas o eu e a

    conscincia so justamente tomados por base como o fundamento mais

    seguro e inquestionvel. De modo que na metafsica moderna ganha corpo

    um tipo totalmente determinado de questionamento que se move no cerne do

    conceito, uma co-inserco conceptiva do questionador em sentido negativo,

    de tal forma que o eu mesmo se transforma em fundamento para todo o

    questionar ulterior. Essa a conexo mais ntima, na qual a primazia do

    problema da subjetividade e da requisio por certeza se encontra com a

    pergunta de contedo da metafsica tradicional (2006, p.66).

    Nesse sentido, a tarefa do pensamento que Heidegger prope pensar o

    discorrimento da metafsica at a modernidade como um destino do ser. Assim,

    podemos perceber que as concepes supracitadas aperfeioadas e engendradas na

    modernidade, mesmo no aniquilando a possibilidade de pensar o ser como

    acontecimento histrico, dificultam e sombreiam concepo de tcnica como um

    destino ontolgico. Desse modo, retomando as anlises de Casanova (2006),

    continuaremos nossa discusso sobre a ideia da subjetividade como condio para o

    enrijecimento do mundo moderno e das concepes sobre tcnica moderna.

    Esse empenho do pensamento na modernidade busca, segundo Casanova (2006,

    p. 126), objetivar o ser atravs de uma definio essencial do ente. Nesta inverso do ser

    pelo ente, a verdade como altheia, como desvelamento, passa a ser verdade como

    certitudo. A compreenso da verdade como 1 d lugar a certificao dos entes

    atravs do completo retorno a si mesmo (Cf. CASANOVA, 2006, p. 127). Em outro

    1 O termo grego utilizado na obra de Plato para indicar o mundo ideal. Casanova utiliza esse

    termo para indicar um modo fixo e especfico de mostrar-se do ser que na modernidade foi substitudo

    pela certeza de um ente especfico. Esse ente passa a ser o sujeito que assume, na modernidade, todas as

    disposies constitutivas do mundo, asseguradas pela certeza de verdade desse sujeito para com os outros

    entes.

  • 36

    sentido, pela certeza assegurada pela subjetividade que determina a verdade dos entes

    em conformidade com a representao do sujeito. Encontra-se, assim, novamente velada

    a questo prpria do pensamento, agora calcada no mais no ser como praesentatio,

    quer dizer, aquele que se presentifica como fundamento eterno, mas como representao

    subjetiva.

    De acordo com Casanova, a representao dos entes por meio de uma

    subjetividade capaz de fornecer uma verdade certificada dos entes coloca o sujeito

    tambm como um ente necessitado de fundamentao ontolgica. Como o sujeito

    tambm necessita de fundamentao ontolgica, o que garante ento sua autoridade para

    representar os demais entes? Heidegger, nas palavras de Casanova (2006), coloca em

    termos de discusso a ideia de vontade como querer-se (CASANOVA, 2006, p. 128)

    como j tratada no decorrer do texto. Edifica-se, nesse sentido, a metafsica como

    tcnica moderna sobre o princpio bsico da racionalidade como fundadora de si

    mesma. A esse respeito Casanova destaca:

    O que temos aqui no mais a deduo lgica dos modos genricos de

    interpelao discursiva dos entes em sua aparncia (categorias). Ao contrrio,

    o que temos muito mais a experincia de uma subjetividade que precisa,

    antes de tudo, fundar racionalmente a si mesma como a sede prpria das

    representaes para que possa cunhar por meio de si mesma uma via de

    acesso efetiva s quididades (2006, p. 128).

    Atravs do exerccio de sua subjetividade, Descartes chega ideia de Deus como

    aquele que garante inerentemente toda a sua capacidade de arquitetar racionalmente o

    mundo. No obstante, os erros aos quais esto suscetveis mente humana no podem

    ser obra de um Deus perfeito. Desse modo, Descartes argumenta que a vontade mais

    ampla e extensa do que o entendimento, abarcando indistintamente a realidade que o

    cerca. Da o comeo para a justificativa da causa dos erros. (CASANOVA, 2006, p.

    128-130).

    Contudo, para Descartes, afirma Casanova, a vontade no ainda a fonte para os

    erros causados pela razo humana. O erro consiste naquilo que o homem mesmo . Dito

    de outra maneira, a capacidade racional distinta da vontade. Aquela finita e

    imperfeita enquanto esta perfeita exatamente porque consegue ultrapassar os limites

    intrnsecos da razo. No seria entrar em contradio ao afirmar que a razo seria a

    fonte dos erros? Como garantir o critrio de autoridade para o sujeito das

    representaes? Como maior enriquecimento de nossa discusso recorremos tambm a

  • 37

    uma anlise realizada por Wanderley J. Ferreira Jr. Vejamos o que ele diz sobre essa

    questo:

    O termo subjectum perde sua referncia ao hypokimenon grego (o que

    presente efetivamente a cada momento), passando a identificar-se com o ego

    de um suposto sujeito pensante. Esse ego seria o ente mais verdadeiro e

    evidente, cuja certeza a mais acessvel. Ele o ente em relao ao qual e a

    partir do qual se pensam o ser e a substncia; enfim, a totalidade do ente

    esgota-se no poder ser objeto de representao desse ego (Descartes).

    Doravante, o ser transforma-se em objeto do representar de um sujeito que

    pensa (2002, p. 89).

    Mas, se a capacidade racional finita e imperfeita, logo, esta no pode ser fonte

    da quididade dos entes. Seria, ento, a vontade, j que esta se aproxima do ser supremo

    por sua perfeio? Na verdade, para Descartes, a causa dos erros est no modo da

    relao entre entendimento e vontade.

    O entendimento se deixa levar para alm daquilo que lhe claro e distinto,

    adentrando no terreno da vontade, esta, por sua vez, ultrapassa o espao das ideias

    claras e distintas se tornando apenas arbtrio. Assim, temos outro ponto de interpretao.

    No a vontade, por sua perfeio, que se sobrepe ao entendimento, mas, antes, a

    subjetividade que determina os limites da vontade. essa a interpretao heideggeriana

    da vontade como querer-se (CASANOVA, 2006, p. 130-132). Sobre isso Casanova

    acrescenta: O sujeito da representao sempre precisa se assegurar aqui primariamente

    de que tudo o que afirma ou nega est originariamente fundado em uma postulao

    volitiva instaurada a partir de si mesmo (2006, p. 132).

    Porm, como isso se relaciona com a instaurao do mundo da tcnica moderna?

    A concepo da subjetividade, interpretada a partir da ideia cartesiana, configura a

    substituio do conceito de verdade como altheia, por verdade como certeza. Isso

    acontece no mais por uma nova especulao metafsica, nos moldes clssicos, mas por

    uma auto-reflexo da prpria subjetividade. Nesse contexto, nada pode ser concebido

    fora da especulao subjetiva, tudo tem que ser pensado a partir de sua prpria extenso,

    o que nos conduz a pensar em uma noo de sistema. Esse sistema s , por sua vez,

    sistema como absoluto porque a subjetividade s se mantm efetivamente como tal se

    em momento algum se suprimir a distncia entre ela e o seu objeto (CASANOVA,

    2006, p.134).

    De acordo com a leitura heideggeriana de Nietzsche, a construo do mundo

    moderno , antes de mais nada, uma confrontao entre as concepes metafsicas

  • 38

    clssicas e sua prpria negao. Para Heidegger, esse embate no conseguiu atingir a

    superao da metafsica, mas sua restruturao. Na era moderna, o fundamento da

    verdade do ente em seu todo aparece como sujeito, isto , como eu fundador do

    mundo moderno. Tal concepo apresentada por Heidegger encontra um eixo de

    articulao entre Descartes e Nietzsche.

    No comeo da filosofia moderna encontra-se a sentena de Descartes: ego

    cogito, ergo sum eu penso, logo eu sou. Toda conscincia das coisas e do

    ente na totalidade reportada autoconscincia do sujeito humano como

    fundamento inabalvel de toda certeza. A realidade do real determina-se no

    tempo subsequente como objetividade, como algo que concebido por meio

    e para este como aquilo que lanado e mantido em oposio a ele. A

    realidade do real o ter-sido-representado pelo sujeito representador e para

    este. A doutrina nietzschiana que transforma tudo aquilo que e como em

    propriedade e em produto do homem no leva a termo seno o

    desdobramento extremo dessa doutrina cartesiana, segundo a qual toda a

    verdade refundada na certeza de si do sujeito humano (HEIDEGGER,

    2007b, p. 95).

    Desta feita, o homem moderno toma para si a tarefa de ordenar o caos oriundo

    da ausncia de valores referencias dados pela metafsica. A subjetividade moderna

    procura em si mesma tanto a refutao dos princpios metafsicos quanto a legitimao

    dos princpios da razo em si mesma. Wanderley J. Ferreira Jr refora nossa

    interpretao na medida em que explicita:

    Como sujeito, o homem se funda a si mesmo como medida de todas as

    medidas com as quais se mede o que pode ser tomado como certo, verdadeiro

    e existente. Mas como se tornou possvel interpretar todo existente a partir

    das estruturas do sujeito cognoscente? Segundo Heidegger, a preeminncia

    de um subjectum provm da pretenso do homem de encontrar um

    fundamento que descansa na certeza de si mesmo (FERREIRA Jr., 2002).

    Dessa forma, se faz necessrio percorrer todos os caminhos, todas as vielas para

    que a metafsica como tcnica moderna encontre o caminho de volta ao seu fundamento.

    Esse retorno no se faz utilizando lminas afiadas que decepam partes do processo

    histrico. O que Heidegger prope que tomemos parte nesse processo no como

    meros expectadores, mas como reconhecedores da tcnica como um destino do ser que

    no deve ter a compreenso do seu sentido absolutizado pela metafsica e nem

    tampouco pela sua consumao na modernidade.

    Estamos de fato nos referindo de modo especfico trajetria da metafsica

    ocidental que por muito tempo erigiu seu imprio a partir da ideia do supra-sensvel.

    Dissolvendo essa ideia acreditava-se superar a metafsica, mas esta ganhou uma nova

    roupagem medida que foi construdo o mundo moderno com o conceito de

  • 39

    subjetividade. Dessa forma, todos os desgnios metafsicos foram introjetados para

    dentro do homem que se tornou o dono determinante da verdade. A razo cientfico-

    tecnolgica ocupa, na modernidade o lugar que antes pertencia a metafsica, o que no

    quer dizer que esta foi substituda pela razo calcu