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[T] Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 24, n. 35, p. 509-528, jul./dez. 2012 Crítica da técnica, crítica da filosofia: Heidegger e Simondon [I] Critique of technique, critique of philosophy: Heidegger and Simondon [A] Fernando Antonio Soares Fragozo Doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro RJ - Brasil, e-mail: [email protected] [R] Resumo O presente artigo tem como objetivo apresentar as críticas de Martin Heidegger e de Gilbert Simondon à concepção corrente da técnica, referida por Heidegger como a “concepção ins- trumental e antropológica da técnica”. Trata-se de mostrar que as críticas desses pensadores, por mais diferentes que possam ser seus universos conceituais, seus objetivos e seus méto- dos, são ambas realizadas a partir de um processo de interpretação desconstrutiva dos con- ceitos de “instrumentalidade”, “alienação” e “hilemorfismo”, num conjunto crítico que a cada vez relaciona diretamente crítica da técnica à crítica da filosofia. Nesse sentido, as análises são apresentadas a partir dos respectivos horizontes de reflexão filosófica de cada autor: no ISSN 0104-4443 Licenciado sob uma Licença Creative Commons

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[T]

Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 24, n. 35, p. 509-528, jul./dez. 2012

Crítica da técnica, crítica da filosofia: Heidegger e Simondon

[I]

Critique of technique, critique of philosophy:

Heidegger and Simondon

[A]

Fernando Antonio Soares Fragozo

Doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro RJ - Brasil, e-mail: [email protected]

[R]

Resumo

O presente artigo tem como objetivo apresentar as críticas de Martin Heidegger e de Gilbert

Simondon à concepção corrente da técnica, referida por Heidegger como a “concepção ins-

trumental e antropológica da técnica”. Trata-se de mostrar que as críticas desses pensadores,

por mais diferentes que possam ser seus universos conceituais, seus objetivos e seus méto-

dos, são ambas realizadas a partir de um processo de interpretação desconstrutiva dos con-

ceitos de “instrumentalidade”, “alienação” e “hilemorfismo”, num conjunto crítico que a cada

vez relaciona diretamente crítica da técnica à crítica da filosofia. Nesse sentido, as análises

são apresentadas a partir dos respectivos horizontes de reflexão filosófica de cada autor: no

ISSN 0104-4443Licenciado sob uma Licença Creative Commons

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caso de Heidegger, o projeto de elaboração da ontologia fundamental e, posteriormente, o

pensamento da história do ser e, no caso de Simondon, a questão da individuação. [P]

Palavras-chave: Crítica da Técnica. Crítica da Filosofia. Instrumentalidade. Alienação.

Hilemorfismo.

[B]

Abstract

This paper aims at presenting Martin Heidegger´s and Gilbert Simondon´s critiques of the

current definition of technique as proposed by Heidegger as the “instrumental and anthro-

pological conception of technique”. However different may their conceptual universes, objec-

tives and methods be, both thinkers realized such a critique through a process of deconstruc-

tive interpretation of the concepts of “instrumentality”, “alienation” and “hylomorphism”, in

a critical set that at each time relates the critique of technique to the critique of philosophy.

In this sense, both analysis are elaborated from the corresponding horizon of philosophical

reflection of each author: in the case of Heidegger, the project of fundamental ontology and

the subsequent history of being; in the case of Simondon, the issue of individuation. [#][K]

Keywords: Critique of Technique. Critique of Philosophy. Instrumentality. Alienation.

Hylomorphism.

Introdução

Em muito se diferenciam os pensamentos de Martin Heidegger e Gilbert Simondon. Origens, trajetórias e objetivos bastante distintos marcam esses pensadores. Pouco, à primeira vista, parece aproximá-los. No entanto, quando se trata de questionar a técnica, esses olhares tão di�ferenciados acabam por se encontrar em torno de um mesmo propósito: expor a insuficiência da concepção corrente da técnica que, para ambos, oculta o que de fato está em jogo com a questão da técnica. Esforço de desconstrução – que Simondon, na esteira de sua herança bachelardia�na, poderia denominar de “psicanálise” – de um conceito, a “técnica”, que entrelaça de forma ímpar todo o tecido filosófico, toda a metafísica

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ocidental, num nó conceitual que tanto Heidegger quanto Simondon, cada um a seu modo, visam desatar.

Nesse sentido, o título da presente exposição pode, à primeira vista, enganar: a remissão de Heidegger e de Simondon não se dá seja para a “crítica da técnica”, seja para a “crítica da filosofia”. Trata-se, nos dois casos, de críticas interrelacionas: a crítica da técnica sendo, simulta�neamente, para ambos, cada um ao seu modo, crítica da filosofia.

É Heidegger quem denomina explicitamente a concepção corrente da técnica de “concepção instrumental e antropológica” (HEIDEGGER, 2001, p. 12). Bem conhecida é sua posição de afastamento do que ele denomina de “antropologia”, na medida em que esta apresenta uma definição de homem como um “subsistente” (Vorhandene) – coisa, substância, objeto – que é pensado a partir de uma mathesis, de um conhecimento prévio, cujas origens Heidegger identifica fundamental�mente na concepção grega do zoon lógon ekhon e em sua tradução como animal rationale (HEIDEGGER, 1999, p. 85). O desdobramento dessa concepção se apresentará, ao longo do desenrolar da metafísica, sob as várias roupagens do “humanismo” (HEIDEGGER, 1979, p. 153).

Ora, em Simondon, como nos diz Barthélémy (2006, p. 118):

a palavra ‘antropologia’ designa, por um lado, um pensamento essen�cialista que separa o homem dos seres vivos e, por outro, um pensa�mento que reduz a técnica a seu uso pelo homem e portanto ao que Simondon nomeia ‘paradigma do trabalho’.

Nesse sentido, como propõe Barthélémy (2006, p. 117), o que garante que um diálogo entre Heidegger e Simondon possa acontecer apesar da enorme distância que os separa é a reivindicação por ambos de um pensamento não antropológico da técnica. Trata-se de pensar a técnica para além ou aquém do uso ou do instrumento. Para Heidegger, não se pode negar que pensar a técnica como instrumento é correto, mas com isso não se esgota a sua verdade (HEIDEGGER, 2001, p. 12).

Se a crítica da concepção antropológica e instrumental da técnica é certamente o núcleo da crítica que realizarão Heidegger e Simondon

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à concepção corrente da técnica, não é menos verdade que há, em am�bos os pensadores, duas críticas complementares que são não menos fundamentais: uma crítica do conceito de alienação (e, portanto, do marxismo) e uma crítica do hilemorfismo e do conceito de substância. Em conjunto, essas três críticas (instrumentalidade, alienação e hile�morfismo/substância) compõem o pano de fundo de cada uma dessas concepções propriamente ditas. É por meio dessas três críticas que rea�lizarei minha exposição.

Mas não nos enganemos: como se verá, mesmo se há semelhan�ça entre o que está em jogo nos dois casos, os motivos e os pontos de chegada dessas críticas não são de modo algum os mesmos. A con�vergência desse encontro crítico não deve esconder o fato de que se trata de horizontes de pensamento muito diferentes. Por outro lado, essa convergência pode (e de fato ela o faz) assinalar a necessidade de repensar profundamente não apenas a técnica mas também e princi�palmente a filosofia, seus conceitos, fundamentos, objetivos e história, de um modo radical.

Crítica da concepção instrumental da técnica

A crítica da concepção instrumental da técnica se apresenta em Heidegger de dois modos distintos: em Ser e Tempo, a técnica é pensa�da como elemento constitutivo do mundo, estrutura fundamental do ser-aí (Dasein); em A Questão da Técnica, ela é uma “forma do desencobrimento” ou um “destino do desencobrimento” que rege o homem e seu “fazer”.

De fato, em Ser e Tempo, é a explicitação da constituição ontoló�gica do ser-aí (Dasein) o horizonte que se quer atingir1. Trata-se ali de buscar a essência do “ente que nós mesmos somos” não pela carac�terização de uma substância (“animal racional”, “criatura”), mas no âmbito do “cuidado” (Sorge) que nos constitui como seres finitos e tem�porais inseridos num projeto herdado. O ponto de partida do tratado

1 A rigor, é à questão do sentido do ser que se visa, a constituição ontológica do Dasein sendo o primeiro passo que levaria à questão do sentido do ser.

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é justamente a “liberação” do ser-no-mundo como estrutura fundamen�tal do Dasein, de onde decorre a consequente análise e apresentação da mundanidade como conceito ontológico e existencial, a priori e genérico (HEIDEGGER, 1999, § 14). O mundo faz assim parte da constituição onto�lógica mesma do Dasein:

[...] o homem não ‘é’ no sentido de ser e, além disso, ter uma relação com o mundo, o qual por vezes lhe viesse a ser acrescentado. O Dasein nunca é ‘primeiro’ um ente, por assim dizer, livre de ser-em que, al�gumas vezes, tem gana de assumir uma ‘relação’ com o mundo. Esse assumir relações com o mundo só é possível porque o Dasein, sendo�-no-mundo, é como é (HEIDEGGER, 1999, p. 95-96, grifos do autor2).

Não há mundo sem Dasein, não há Dasein sem mundo. Lançado no mundo, todo Dasein é. Tal é o sentido mesmo de “existir”: ser lança�do no mundo em um projeto herdado que determina os afazeres e re�gula a compreensão que se tem de si mesmo. Citando Heidegger (1999, p. 48): “De certo modo e em certa medida, o Dasein se compreende a si mesmo de imediato a partir da tradição. Essa compreensão lhe abre e regula as possibilidades de seu ser”.

Trata-se, em cada mundo, de modos de ser que determinam nossas ações: o Dasein se vê desde sempre tomado pelas ocupações nas quais se empenha, maneja os “instrumentos” que constituem o seu mundo sem explicitamente se dar conta desse manejo enquanto manejo. “Instrumento” é aqui entendido por Heidegger num senti�do amplo: casa, máquina, rua, roupa, martelo, placa, livro, são to�dos instrumentos de um determinado mundo, fazem todos parte de um “todo instrumental” cujos componentes estão, de algum modo, sempre referenciados uns aos outros. Heidegger (1999, p. 110, grifo nosso) dirá que

o instrumento só pode ser o que é num todo instrumental que sem�pre pertence a seu ser. [...] O instrumento sempre corresponde à sua

2 Utilizo o conceito original de Dasein no lugar do conceito de “pre-sença” utilizado na tradução citada.

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instrumentalidade a partir da pertinência a outros instrumentos: instru�mento para escrever, pena, tinta, papel, suporte, mesa, lâmpada, móvel, janela, portas, quarto.

Enquanto “à mão” ou “manual” (Zuhandene), o ser dos instru�mentos tem a estrutura da referência: “o caráter ontológico do manual [Zuhandene] é a conjuntura [Bewandtnis]” (HEIDEGGER, 1999, p. 128, grifo do autor).

O ponto a ser enfatizado aqui é que é sempre a partir dessa “to�talidade instrumental”, dessa “conjuntura” (na verdade, de totalidades instrumentais específicas na medida em que elas variam de mundo para mundo) que se compreende a função de cada instrumento. Ora, a totali�dade instrumental, a conjuntura, é constituinte básica do mundo no qual o Dasein é lançado e determina o fazer, o sentido do que se deve fazer, o sentido da existência e a compreensão de si. A totalidade instrumental lhe abre um campo de possibilidades, mas em geral não é vista como campo de possibilidades abertas.

Fundamentalmente, o que isso significa é que o Dasein é sem�pre constituído pelo mundo no qual é lançado. Nesse sentido, o Dasein é, a cada vez, diferente e igual. Diferente, porque cada mundo é um mundo específico, com seus instrumentos, sua conjuntura, seu projeto, sua tradição, seu sentido. Igual, porque o Dasein só “é” (“existe”) como ser-no-mundo.

O horizonte da reflexão de Heidegger em A Questão da Técnica já é outro: é no âmbito mais geral da análise do “fim da filosofia” e da “superação da metafísica” que A Questão da Técnica se insere. De fato, a partir da viragem (Kehre) de seu pensamento, Heidegger passará a pensar a filosofia como metafísica, explicitando que a metafísica não é apenas uma disciplina da filosofia, a ser posicionada ao lado, por exemplo, da ética, da estética ou da lógica; uma disciplina que estuda�ria, conforme a definição dos tratados aristotélicos assim nomeados, os primeiros princípios, as causas e o fundamento do que há. Na medida em que a filosofia, em sua essência, busca justamente a causa, o primei�ro princípio, o fundamento do que há, ela, filosofia, é metafísica.

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Para Heidegger, a busca desse primeiro princípio se tradu�ziu, desde o questionamento inaugural dos gregos, em épocas his�toriais que determinaram o sentido do ser a cada momento. Assim, de Platão a Nietzsche, a metafísica desdobrou todo um leque de conceitos fundamentais, seguidamente questionados e reavaliados, num movimento do pensamento cujo motor se encontra no “princí�pio de razão” tal qual Leibniz o enuncia como “nada há sem causa” (HEIDEGGER, 1997, p. 3) ou “que de toda verdade se possa dar a razão” (HEIDEGGER, 1997, p. 34). Sucedem-se, assim, os conceitos e suas épocas como respostas ao que será por ele denominado de des�tino do ser (Seinsgeschick).

A essência da técnica moderna, o Gestell (dispositivo, arma�ção ou composição, segundo a tradução) é, assim, para Heidegger, consequência do desenrolar do processo metafísico ou ontoteológi�co. O Gestell é caracterizado pela disponibilização infinita do ente como tal e no seu todo e corresponde a uma intensificação paro�xística da relação sujeito-objeto que, com Descartes, se estabelece e se firma de modo determinante para a posteridade do pensamento ocidental. Nessa intensificação paroxística, cada polo parece se dis�tanciar a tal ponto de ser visto como inteiramente separado do ou�tro, e o homem, regido pela vontade de vontade, passa a considerar a totalidade do ente como um estoque disponível para futuras e permanentes transformações.

Em A Questão da Técnica, o foco fundamental sobre a técnica centra-se não no ato de “fazer” propriamente dito, mas no que “rege” o fazer, ou seja, na “essência” da técnica. Essa regência não provém do “homem” e de suas “vontades”, pois o homem é “regido” – e só é homem na medida em que “se dá” essa regência – pelo “destino do desencobrimento” a cada vez em vigor. A técnica é um modo do desencobrimento, é um fazer vir. Mas há modos e modos de fazer vir: assim, Heidegger distinguirá radi�calmente a téchne dos Gregos da “técnica moderna”. Uma distinção que se apresenta a partir da afirmação segundo a qual “a téchne pertence à pro-dução (Hervor�bringen), a poíesis”, enquanto que, por outro lado, “o desencobrimento dominante na técnica moderna não se desenvolve [...] numa pro-dução no sentido de poíesis” (HEIDEGGER, 2001, p. 18) já que

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“o desencobrimento que domina a técnica moderna, possui, como caracte�rística, o pôr, no sentido de explorar” (HEIDEGGER, 2001, p. 20).

O que diferencia a téchne da “técnica moderna” é o fato de que esta última, em seu ininterrupto processo de disponibilização de tudo o que há, oculta e fecha o acesso ao desencobrimento enquanto tal, enquanto que a téchne visa, permanentemente, o desencobrimento. “O decisivo na téchne não reside, pois, no fazer e manusear, nem na aplicação de meios, mas no desencobrimento mencionado. É neste desencobrimento e não na elaboração que a téchne se constitui e cum�pre em uma pro-dução” (HEIDEGGER, 2002, p. 20).

Todos os “destinos do desencobrimento” são, para Heidegger, perigosos na medida em que podem fazer com que apenas a primeira possibilidade se dê e o homem se esqueça/perca o acesso à sua es�sência. Mas, na medida em que o “destino de desencobrimento” que se dá sob a forma do Gestell oculta o desencobrimento enquanto tal, ele é, para Heidegger, o perigo supremo. Preso nas determinações de algum fazer específico, repetindo sem fim esse fazer, o homem perde sua essência de homem, vira um autômato sem consciência de seu acesso permanente ao desencobrimento, de seu acesso ao ser, de seu ser. Considerando-se “senhor do ente”, o homem perde o que tem de mais essencial (sem tê-lo como um “ente”): o ser-homem, “consciente” do desencobrimento enquanto tal.

Para Simondon (1958, p. 23), a crítica da instrumentalidade se fará na medida em que a concepção da utilidade mascara a tecnicida�de (technicité) propriamente dita do objeto técnico que reside em seu próprio funcionamento: “as espécies técnicas existem em número bem menor do que os usos aos quais os objetos técnicos são destinados; as necessidades humanas diversificam-se ao infinito, mas as direções de convergência das espécies técnicas são finitas”.

Como diz Barthélémy, contrariamente às razões que dirigem o uso do objeto técnico, as razões que guiam sua evolução não são pro�priamente antropológicas: se os objetos técnicos evoluem na direção de um pequeno número de tipos específicos, isso se dá a partir de uma ne�cessidade interna e não devido a influências econômicas ou exigências práticas (BARTHÉLÉMY, 2005a, p. 172). Uma tal necessidade interna é

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justamente o processo de concretização-convergência, característico da tecnicidade: a “concretização” é pensada por Simondon como processo de evolução do objeto técnico industrial individual, processo esse cuja característica marcante é a tendência à unificação de suas partes em um todo a partir do que Bernard Stiegler chama de “necessidade sinérgica” (1994, p. 88). Para Simondon, “num motor atual, cada peça importante está tão ligada às outras por meio de trocas recíprocas de energia que ela não pode ser diferente do que é” e nesse sentido o objeto técnico “evolui por convergência e adaptação a si, unifica-se interiormente segundo um princípio de ressonância interna” (SIMONDON, 1958, p. 19). Uma necessidade da forma das peças que compõem o objeto se apresenta como imanente ao próprio objeto e o homem apenas “toma ciência” dessa necessidade e a executa; o homem é apenas o operador. O objeto técnico industrial evolui assim segundo uma “lógica genéti�ca” própria – o seu “modo de existência” – e as vontades e necessida�des do homem, muito antes de moldá-lo, são elas mesmas moldadas sobre ele (STIEGLER, 1994, p. 86).

O objeto técnico se concretiza na medida em que se torna integra�do, uma parte servindo para diversas funções simultâneas. O exemplo paradigmático para Simondon é a turbina maremotriz Guimbal na qual o óleo serve simultaneamente para resfriar, lubrificar e torná-la estanque à água do mar (SIMONDON, 1958, p. 54). Desse modo, o objeto técnico passa a constituir, aos olhos de Simondon, não apenas uma mediação entre o homem e a natureza, mas se torna “um misto estável de humano e natural; ele dá a seu conteúdo humano uma estrutura semelhante a dos objetos naturais, e permite a inserção, no mundo das causas e efeitos na�turais, desta realidade humana”. Nesse sentido, “uma convertibilidade do humano em natural e do natural em humano institui�se por meio do esquematismo técnico” (SIMONDON, 1958, p. 245).

Por outro lado, para Simondon, o objeto técnico é “o suporte e o símbolo da transindividualidade”: é por meio do objeto técnico que uma relação inter-humana se estabelece. Trata-se de uma

relação (relation) que não põe os indivíduos em ligação (rapport) por meio de sua individualidade constituída, separando-os uns dos outros,

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nem por meio do que há de idêntico em todo sujeito humano, [...] mas por meio dessa carga realidade pré�individual que é conservada com o ser individual, e que contêm potenciais e virtualidade (SIMONDON, 1958, p. 247).

Para Simondon, o transindividual corresponde a um dos três “re�gimes de individuação”, os outros dois são o físico e o vital.

Em termos sumários, podemos dizer que a individuação física é o processo de individuação que termina quando a carga pré-individual se esgota. Seu exemplo paradigmático é o cristal, que se constitui como indivíduo quando o meio que o gera não tem mais energia nem ele�mentos que viabilizem a sua individuação.

A individuação vital é uma individuação perpetuada, que dife�re da individuação física na medida em que a individuação física se produz “apenas de um modo instantâneo, quântico, brusco e defini�tivo, deixando atrás de si uma dualidade de meio e indivíduo”. O ser vivo é um “teatro de individuação” que “conserva em si uma ativi�dade de individuação permanente” com uma carga pré-individual. Nesse sentido, “a vida é auto-entretenimento de uma meta-estabili�dade” (SIMONDON, 1964, p. 224).

O regime transindividual, do qual fazem parte o que Simondon denomina de “psiquismo” e “coletivo”, constitui um novo patamar de individuação.

O psiquismo e o coletivo são constituídos por individuações advindas após a individuação vital. O psiquismo é prosseguimento da individua�ção vital em um ser que, para resolver sua própria problemática, tem ele mesmo de intervir, com sua ação, como elemento do problema, como sujeito” (SIMONDON, 1964, p. 27).

Pensado como suporte e símbolo da transindividualidade, a re�flexão simondoniana sobre o objeto técnico apresenta evidentemente um paralelo com a concepção utensiliar proposta por Heidegger em Ser e Tempo, na medida em que ali os utensílios, sempre compreendi�dos a partir de uma rede de referências, constituem em sua totalidade a

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cada vez única o Dasein. Mas, se para Heidegger o caráter próprio do utensílio é justamente de ser conjunturalmente relacionado a outros utensílios, qualquer que seja o mundo específico no qual o Dasein tenha sido “lançado”, para Simondon parece haver uma diferença entre os perío�dos técnicos que colocaria em questão a possibilidade de sustentar essa referencialidade do utensílio desde o início do que Simondon denomi�na de “regime transindividual”: ao distinguir três idades do progresso técnico, em função de “três níveis do objeto técnico [...]: o elemento, o indivíduo, o conjunto” (SIMONDON, 1958, p. 15), Simondon dá a impressão de pensar que somente há, de fato, conjunto referencial utensiliar a partir do objeto técnico industrial, cuja característica própria é não poder ser “tomado separadamente”, marcando as�sim o advento de uma coesão interna do mundo dos objetos téc�nicos, pela qual a relação entre os objetos técnicos é transdutiva. Ora, como salienta Barthélémy (2008, p. 133):

A questão se apresenta pelo menos de saber se esta relação transdutiva entre os objetos técnicos modernos (as máquinas) não é reveladora da essência da técnica em geral, na medida em que, sem o instrumento, a humanidade nunca teria conhecido este devir que ela é.

Questão que se coloca justamente na medida em que Simondon (1958, p. 76) virá a especificar que “não há diferença fundamental en�tre os povos sem indústria e aqueles que têm uma indústria bem de�senvolvida” – o que parece significar que ele estaria de acordo com a ideia segundo a qual o utensílio deve ser sempre compreendido a partir de um conjunto que lhe dá sentido e isso desde o advento do “regime transindividual”.

Para Simondon, quando esses aspectos não são compreendidos (tecnicidade-concretização e modelo da transindividualidade), quando o objeto técnico é apenas visto sob a ótica de seu uso possível, ele é percebido apenas como “meio para a domesticação das forças natu�rais segundo uma lógica da serventia que torna a máquina um escravo que serve a fazer outros escravos” (SIMONDON, 1958, p. 127 apud VAYSSE, 2006, p. 7). É o que Simondon chama de “filosofia autocrática

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das técnicas”, que procede, segundo os termos de Vaysse (2006, p. 7), “de uma vontade de hegemonia sem medida nem freio, implicando um estupro da natureza na qual o homem se arroga uma potência demiúrgica incondicionada”. Vontade de dominação que tem evi�dentemente uma semelhança direta com o Gestell heideggeriano en�tendido como vontade de potência e disponibilização do ente no seu todo. No entanto, ali onde Heidegger diagnostica um “destino do ser”, Simondon vê principalmente uma incompreensão radical da tecnicida�de em seu aspecto evolutivo e transdutivo.

O que nos leva à crítica da alienação tal qual a entende Marx.

Crítica da alienação

Para Heidegger, tanto quanto para Simondon, a crítica do con�ceito marxista de alienação se faz na medida em que este seria conside�rado insuficiente.

Para Heidegger, Marx não teria se dado conta da amplitude do desenraizamento moderno como esquecimento da essência do homem, como esquecimento do Gestell como destino, ou seja, como possibili�dade de ser que, em seu frenesi técnico, exclui qualquer outra possi�bilidade e oculta a verdade do ser enquanto desvelamento. Marx não teria ido tão longe, mas teria ido bastante longe na medida em que teria percebido a relação essencial entre a história e o Ser. Ele teria assim alcançado uma “dimensão essencial da história, superior a qualquer outra forma de historiografia” (HEIDEGGER, 1979, p. 162). Contudo, para Heidegger, Marx ainda se encontra preso na metafísica da subjeti�vidade, da vontade de potência e controle. No seu caso, ele realiza essa vontade de potência para toda a humanidade: o comunismo coletivista seria o destino levado a seu extremo, por meio do qual toda a huma�nidade seria incluída no projeto de dominação da totalidade do ente.

Para Simondon, por outro lado, Marx diagnostica apenas a aliena�ção econômica e não faz a análise do que Barthélémy (2008, p. 141) chama de alienação maquínica moderna do trabalhador que “não é mais como an�tes o indivíduo técnico – o ‘carregador de utensílios (porteur d´outils)’ –,

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mas acompanha o novo indivíduo técnico – a máquina – em vez de ter um papel superior de supervisor e reparador, em outras palavras, de ‘mecanólogo’” (SIMONDON, 1958, p. 13). Mais uma vez, a origem desse diagnóstico incompleto se encontra em um desconhecimento do papel da técnica moderna e da tecnicidade enquanto tal. Para Simondon, o que o objeto técnico moderno representa é justamente uma “liberação” do homem como “carregador de utensílios”. Nesse sentido, a partir do ad�vento das máquinas, as funções que permanecem para o homem estão acima e abaixo desse papel de carregador de utensílios (que doravante é cumprida pela máquina), dirigindo-se para os elementos e para os con�juntos. A alienação maquínica moderna proviria:

1) do fato de o homem moderno nem sempre ocupar as funções que estão “acima” do papel de carregador de utensílios (pelo contrário, na indústria, é frequentemente o homem que é “ins�trumentalizado” como complemento da máquina);

2) e do fato de o trabalho ser ele mesmo alienante.

Como diz Simondon (1958, p. 248),

o grupo social de solidariedade funcional, tal qual a comunidade de trabalho, põe em relação apenas seres individuados. Por esta razão ela os limita e os aliena necessariamente, mesmo fora de toda modalidade econômica como a descrita por Marx sob o nome de capitalismo.

Para Simondon, é preciso que “a relação do homem ao objeto técnico compreenda [a] atenção à gênese contínua do objeto técnico” (SIMONDON, 1958, p. 250). É preciso que o trabalhador conheça o obje�to técnico, saiba como ele funciona, mas também como ele pode intervir nele, como pode modificá-lo e ajustá-lo em suas funções – em outros termos, a desalienação apenas ocorre quando o trabalhador se individua conjunta e simultaneamente ao objeto técnico. Para sair da situação de alienação, o que Simondon propõe é a criação de “um mundo técnico com novas estruturas”:

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Se esta hipótese é correta, a verdadeira via para reduzir a alienação não se situaria nem no âmbito social (com a comunidade de trabalho e a clas�se), nem no âmbito das relações interindividuais que a psicologia social encara habitualmente, mas ao nível do coletivo transindividual. O objeto técnico surgiu num mundo no qual as estruturas sociais e os conteúdos psíquicos foram formados pelo trabalho: o objeto técnico introduziu-se no mundo do trabalho em vez de criar um mundo técnico com novas estru�turas. A máquina foi assim conhecida e utilizada pelo trabalho e não pelo saber técnico; a relação do trabalhador com a máquina é inadequada, pois o trabalhador opera a máquina sem que seu gesto prolongue a atividade de invenção (SIMONDON, 1958, p. 249).

Ora, para Simondon há “trabalho” justamente quando “o ho�mem não pode confiar ao objeto técnico a função de mediação entre a espécie e a natureza” e tem, assim, de realizar ele mesmo essa função de relação, por meio de seu corpo, pensamento e ação (SIMONDON, 1958, p. 242). Na medida em que ele “empresta sua própria indivi�dualidade de ser vivo para organizar esta operação”, ele é um “car�regador de utensílios” (SIMONDON, 1958, p. 242). Nesse sentido, é possível a um homem “utensiliar” um outro homem: assim se dá a re�lação senhor-escravo como uma “experiência técnica” possível, mas, simultaneamente, como uma experiência técnica “muito incompleta” (SIMONDON, 1958, p. 242).

É justamente essa experiência técnica empobrecida que servirá, segundo Simondon, de paradigma inconsciente não apenas do traba�lho – e, consequentemente, da relação de “escravidão” em relação às máquinas, “a máquina é um escravo que serve para fazer outros escra�vos” (SIMONDON, 1958, p. 126) –, mas também, por mais incrível que possa parecer, do hilemorfismo. E é justamente o hilemorfismo – nome que dá Simondon à tradição do pensamento filosófico – que velará o acesso à tecnicidade. Desconstruir (o termo não é simondoniano) essa tradição é assim um de seus objetivos centrais, o que nos leva evidente�mente à análise da crítica ao hilemorfismo e ao conceito de substância que empreendem Simondon e Heidegger.

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Crítica do hilemorfismo e do conceito de substância3

Como assinala Barthélémy (2005b, p. 61), Simondon considera “a tradição filosófica que vai de Aristóteles a Kant [...] como uma história do hilemorfismo, logo como um esquecimento do ser na medida em que ‘o ser enquanto é’ não se identifica com ‘o ser enquanto é individuado’”. Para Simondon (1964, p. 28, grifo do autor) “é preciso partir da indivi�duação, do ser tomado em seu centro segundo a espacialidade e o devir e não de um indivíduo substancializado diante de um mundo estranho a ele”. Mesmo se uma diferença essencial subsiste entre o hilemorfismo e o substancialismo, o hilemorfismo já se apresentando como um pensa�mento da gênese na medida em que o indivíduo nasce do encontro entre uma matéria e uma forma, o hilemorfismo seria ainda uma forma de substancialismo; tanto quanto o substancialismo, o hilemorfismo supõe a existência de “um princípio de individuação anterior à própria indivi�duação, suscetível de explicá-la, produzi-la, conduzi-la” (SIMONDON, 1964, p. 21). Substancialismo sutil, cuja sutileza fez com que se impuses�se historicamente o hilemorfismo, torna-se, assim, o adversário principal a ser combatido por Simondon, mesmo se, como diz Barthélémy (2005b, p. 63), “é o substancialismo, entendido em sentido lato, que se particula�riza em hilemorfismo e não o contrário”.

A “desconstrução” do hilemorfismo se fará, assim, em duas eta�pas (BARTHÉLÉMY, 2005b, p. 85-87):

1) Identificar e analisar o paradigma “consciente” do hilemorfis�mo que é a operação de “tomada de forma” (prise de forme) por meio da operação de modelagem de um tijolo de argila. Dessa análise se obterá que apenas há “tomada de forma” porque a forma é mantida pelo tijolo porque a matéria argila que é co�locada no molde já está preparada, pré-formada, e a forma do molde, por sua vez, já é matéria em uma determinada forma. Os conceitos de “meta-estabilidade” e de “ressonância interna”

3 Desenvolvi com mais detalhes a crítica aos princípios fundamentais da filosofia por parte de Heidegger e Simondon em Simondon, Heidegger et la critique des príncipes (FRAGOZO, 2010).

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devem substituir o esquema hilemórfico para explicar o sistema que assim se torna tijolo.

2) Explicar por que o esquema hilemórfico se tornou um esquema universal que se aplica não apenas aos seres técnicos, mas tam�bém a tudo e, principalmente, aos próprios seres vivos como em Aristóteles. Ora, para Simondon, a força desse esquema reside não em seu paradigma “consciente” (a tomada de forma), mas em seu paradigma “inconsciente” que é a relação senhor-escravo como paradigma do trabalho. O hilemorfismo se apoia sobre o paradigma de uma operação técnica que reproduz inconscien�temente um paradigma social de servidão e submissão, que é o próprio modelo do trabalho: a forma corresponde a quem orde�na; a matéria a quem realiza. Aqui reside o que, para Simondon, deve ser revelado e repensado.

Nesse sentido, para Simondon, repensar a técnica significa simultaneamente encontrar os meios para repensar toda a tradição do pensamento ocidental denominada filosofia. Na medida em que é a partir de uma concepção incompleta da técnica que se baseia o paradigma central da tradição filosófica, a saber, o hilemorfismo, é preciso não apenas proceder a uma “hermenêutica desconstrutiva” (conceito não simondoniano, mas que se aplica de modo exemplar no seu caso) dessa tradição, mas também propor uma outra concepção da técnica que leve justamente em consideração esta desconstru�ção. Daí a necessidade de novos conceitos fundamentais tais como “transdução”, “transindividual”, “individuação” e “realismo das relações”, esse último sendo o que Barthélémy nomeia o “núcleo epistemológico” desta reforma conceitual que vai se opor diretamente ao conceito de “substância” na medida em que Simondon pensa o indivíduo como “ser em relação” doravante “desubstancializado”. Como assinala Barthélémy (2005b, p. 100), “o sentido profundo da ontogênese consiste em dissociar substancialismo e realismo ao fun�dar a realidade do real e a individualidade do indivíduo sobre a relação”. O indivíduo, para Simondon, é real, mas não é substancial: ele é relação.

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Heidegger, por outro lado, também empreenderá uma análise do conceito de substância. Mas seu caminho será outro. Para Heidegger, trata�se de desconstruir (o conceito aqui é diretamente utilizado como Destruktion ou Abbau) a tradição de pensamento nomeada “filosofia” na medida em que esta teria esquecido sua questão fundamental que é a questão do Ser. De fato, para Heidegger, notadamente o “segundo” Heidegger, trata-se de mostrar que a filosofia é, em seu fundo, “meta�física”, ou seja, busca dos princípios, causas e fundamento de tudo o que há. Uma busca que estaria desde o início viciada na medida em que a questão central da filosofia (ou seja, da metafísica), enunciada enquanto tal por Aristóteles – ti to on?, “o que é o ente?” – pressupõe de saída que o ente “é”, ou seja, é “presente”, que ele subsiste enquanto sub-stância. Ora, na medida em que a questão é assim posta, a questão se torna viciosa, pois a resposta apenas pode se dar no presente: “o ente é [...]”. “Substancializadas”, as “coisas” passam a ser pensadas como tendo um “núcleo” (a “substância”) com “acidentes”, as “proprieda�des” (cor, peso, grandeza etc.). Um modo de perceber as coisas que se tornou “natural” por ser “habitual”.

Nesse sentido, o hilemorfismo, que Heidegger nomeia, em A Origem da Obra de Arte, “complexo matéria-forma”, é pensado como uma projeção para toda coisa, todo ente, da relação que temos com os objetos produ�zidos pelo homem. De fato, nestes, tal matéria é escolhida para tomar tal forma a fim de realizar determinada tarefa (o couro do sapato, a madeira da cadeira etc.). Cito Heidegger:

Será por acaso que, na interpretação da coisa, aquela que acontece no fio condutor de matéria e forma obteve uma hegemonia especial? Essa determinação da coisa enraíza-se numa interpretação do ser-utensílio do utensílio. Esse ente, o utensílio, é próximo à representação do ho�mem de uma maneira especial, porque aporta ao ser através de nosso próprio produzir [Erzeugen] (HEIDEGGER, 1977 apud MOOSBURGER, 2007, p. 18).

Ora, para Heidegger, essa interpretação do ser-produto do pro�duto, na medida em que é aplicada às coisas e às obras de arte, perde todo seu sentido. Não é por meio do hilemorfismo que poderíamos nos

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aproximar das coisas e das obras, pois, para Heidegger, a obra de arte (e notadamente a poesia) é justamente o que abre o “acesso” às coisas. Em A Origem da Obra de Arte, Heidegger visará mostrar como a arte (a “grande” arte) instituía a cada vez um mundo, ou seja, uma interpreta�ção das “coisas” que guiaria o fazer humano e lhe daria sentido. Assim, o templo, “em seu erguer-se aí, dá às coisas pela primeira vez a sua face e aos homens o ponto de vista sobre si mesmos” (HEIDEGGER, 1977 apud MOOSBURGER 2007, p. 29) e “ser-obra significa: instalar um mundo” (HEIDEGGER, 1977 apud MOOSBURGER 2007, p. 30).

Mas isso não mais em nosso mundo. Neste, a arte teria se torna�do “objeto estético”, uma mercadoria entre outras, pois este mundo é caracterizado pela “fúria da técnica” (HEIDEGGER, 2001, p. 37), pelo Gestell, ponto de chegada da metafísica. A arte, contudo, teria nesse mundo a possibilidade de desempenhar um papel importante: na me�dida em que é essencialmente poesia, ou seja, produção, na medida em que a arte se dá num “espaço que, de um lado, [é] consangüíneo da essência da técnica e, de outro, lhe [é] fundamentalmente estranho” (HEIDEGGER, 2001, p. 37), a arte talvez possa despertar o homem de seu torpor técnico e abrir vias para um outro pensamento, um outro advento imprevisível e inesperado.

Para Simondon, a arte se encontra no centro da “defasagem” en�tre tecnicidade e religião. Trata-se da tentativa imperfeita de retorno à unidade mágica primitiva, trincada (brisée) pela distinção entre sujeito e objeto – o primeiro sujeito sendo a divindade, o primeiro objeto sendo o objeto técnico. Sua importância é capital, mas secundária em relação à filosofia: enquanto pensamento da unidade, da convergência, a arte, como “pensamento estético” é considerada como uma “filosofia implí�cita”. É a filosofia, para Simondon, que é um modo superior de restau�ração da unidade primitiva, mesmo que ela, filosofia, tanto quanto a arte, deva ser compreendida como um modo intuitivo de pensamento; a arte corresponderia a um nível “espontâneo” desse modo intuitivo, enquanto a filosofia corresponderia a um nível “reflexivo”, no qual todo o percurso do pensamento filosófico tradicional seria realizado (seus conceitos e oposições sendo “desconstruídos” e ultrapassados)

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e uma tomada de consciência intuitiva poderia acontecer. Como diz Simondon (1958, p. 237):

O pensamento filosófico apenas pode se constituir após ter esgotado suas possibilidades de conhecimento conceitual e de conhecimento pela idéia, ou seja, após uma tomada de consciência técnica e uma tomada de consciência religiosa do real; a filosofia vem após a construção téc�nica e a provação religiosa, definindo-se como capacidade de intuição no intervalo que as separa. Técnica e religião são assim os dois pólos diretores que suscitam a intuição filosófica do real.

Aqui, como em outros momentos fundamentais, Simondon e Heidegger se distanciam. O que fica de comum para ser pensado é este aporte crítico em relação à técnica e à filosofia – e, simultaneamente, à arte e à religião – que neste texto procuramos, em traços básicos, apresentar.

Referências

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Recebido: 10/10/2011Received: 10/10/2011

Aprovado: 20/02/2012Approved: 02/20/2012