bourdieu e educaÇÃo: concepÇÃo crÍtica para pensar …

14
BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL 46 BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL FERREIRA, Walace 1 - UERJ RESUMO: Pierre Bourdieu é, sem duvida, um dos grandes sociólogos do século XX, reconhecido interna- cionalmente, e um dos grandes pensadores contemporâneos a abordar a questão da educação de forma tão relevante. Neste artigo apresentamos sua teoria acerca da educação nas socieda- des modernas, em que aparece uma considerável relação entre o papel da escola e a reprodu- ção e legitimação das desigualdades sociais no contexto do capitalismo. Em seguida, propomos uma reflexão sobre alguns aspetos da desigualdade social brasileira à luz da teoria de Bourdieu, de maneira a estimular o leitor a ter um pensamento mais cuidadoso e crítico sobre a educação e o seu papel. PALAVRAS-CHAVE: Bourdieu - Concepção crítica - Desigualdade social no Brasil - Papel da edu- cação. ABSTRACT: Pierre Bourdieu is, without doubt, one of the great sociologists of the twentieth century, recog- nized internationally, and one of the greatest contemporary thinkers to address the issue of e- ducation. This article presents the theory of Bourdieu on education in modern societies, in which appears a significant relationship between the school and the role of reproduction and legitima- tion of social inequalities in the context of capitalism. Then we propose a reflection on some aspects of Brazilian social inequality in the light of Bourdieu's theory, so as to encourage the reader to a more careful and critical thinking about education and its role. KEYWORDS: Bourdieu - Critical conception - Social inequality in Brazil - The role of education. Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produ- ção ou a sua construção”. 1 Professor Substituto de Sociologia no CAp-UERJ; Doutorando em Sociologia no IESP/UERJ. Email: [email protected]

Upload: others

Post on 04-Oct-2021

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR …

BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL

46

BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS

DESIGUALDADES SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL

FERREIRA, Walace1 - UERJ

RESUMO:

Pierre Bourdieu é, sem duvida, um dos grandes sociólogos do século XX, reconhecido interna-cionalmente, e um dos grandes pensadores contemporâneos a abordar a questão da educação de forma tão relevante. Neste artigo apresentamos sua teoria acerca da educação nas socieda-des modernas, em que aparece uma considerável relação entre o papel da escola e a reprodu-ção e legitimação das desigualdades sociais no contexto do capitalismo. Em seguida, propomos uma reflexão sobre alguns aspetos da desigualdade social brasileira à luz da teoria de Bourdieu, de maneira a estimular o leitor a ter um pensamento mais cuidadoso e crítico sobre a educação e o seu papel.

PALAVRAS-CHAVE: Bourdieu - Concepção crítica - Desigualdade social no Brasil - Papel da edu-cação.

ABSTRACT:

Pierre Bourdieu is, without doubt, one of the great sociologists of the twentieth century, recog-nized internationally, and one of the greatest contemporary thinkers to address the issue of e-ducation. This article presents the theory of Bourdieu on education in modern societies, in which appears a significant relationship between the school and the role of reproduction and legitima-tion of social inequalities in the context of capitalism. Then we propose a reflection on some aspects of Brazilian social inequality in the light of Bourdieu's theory, so as to encourage the reader to a more careful and critical thinking about education and its role.

KEYWORDS: Bourdieu - Critical conception - Social inequality in Brazil - The role of education.

“Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produ-ção ou a sua construção”.

1 Professor Substituto de Sociologia no CAp-UERJ; Doutorando em Sociologia no IESP/UERJ. Email: [email protected]

Page 2: BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR …

BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL

47

Paulo Freire. INTRODUÇÃO

Este artigo propõe uma análise sobre a teoria de um dos mais influentes pensado-res das ciências humanas no século XX, Pi-erre Bourdieu, no que se refere exatamente à área em que mais contribuiu: a educação nas sociedades modernas. Na concepção do autor, aparecem relevantes aspectos sobre a relação entre herança familiar, sobretudo cultural, e desempenho escolar; além de se estabelecer uma considerável relação entre o papel da escola e a reprodução e legitima-ção das desigualdades sociais no contexto do capitalismo.

Partindo dessas questões teóricas, a-bordadas nas primeiras quatro partes deste artigo, procuramos trazer alguns aspetos da desigualdade social brasileira, especialmente aquela que atinge a esfera educacional, de maneira a estabelecer uma reflexão dessas desigualdades à luz da teoria crítica bourdi-esiana. Essas reflexões aparecem na parte cinco e na conclusão deste artigo, que não pretende fazer uma análise profunda acerca dessa relação e nem sequer a explanação de qualquer verdade numa área polemizada teoricamente e recheada de pesquisas apro-fundadas, mas apenas levar o leitor a um pensamento mais cuidadoso sobre a educa-ção e o seu papel nas sociedades modernas.

1. O PENSAMENTO SOCIOLÓGICO DE PIERRE BOURDIEU E O LUGAR DA EDUCAÇÃO

Elaborando, obra por obra, um sistema completo de análise das relações sociais, Bourdieu desenvolveu uma sociologia que trouxe relevante reflexão crítica em torno das estruturas sociais. Para ele, o papel do sociólogo, enquanto um pesquisador atento das interlocuções sociais, seria o de desven-dar o que se passa por trás das estruturas

sociais, identificando os traços invisíveis que não podemos notar através de um simples olhar de senso comum.

Bourdieu elabora, desse modo, um sis-tema teórico voltado a mostrar como as condições de participação social dos indiví-duos baseiam-se na herança social, que se reproduz constantemente numa determina-da sociedade - a qual ele chama de estrutu-ra estruturante. Ou seja, a sociedade seria uma estrutura estruturante na medida em que suas mais profundas relações estão constantemente sendo reestruturadas a partir das ações dos seus indivíduos. Assim, o acúmulo dos bens simbólicos, dentre eles a educação, concentra-se nas estruturas do pensamento dos indivíduos, e também nas manifestações externalizadas por suas ações (BOURDIEU, 1989).

É importante dizer que a relação de in-terdependência entre o conceito de habitus e o conceito de campo é condição para seu pleno entendimento. O conceito de “campo” em Bourdieu representa um espaço marca-do pela dominação e pelos conflitos. Como exemplo, podemos citar o campo jornalísti-co, o campo literário, o campo educacional, dentre muitos outros. Cada campo teria, segundo Bourdieu, uma certa autonomia, possuindo suas próprias regras de organiza-ção e de hierarquia social. Dentro desses espaços limitados, os indivíduos atuariam segundo seu capital social, ou seja, as pos-sibilidades que possuem de acordo com a rede de contatos da qual fazem parte.

Ou seja, a teoria praxiológica, ao fugir dos determinismos das práticas, pressupõe uma relação dialética entre sujeito e socie-dade, uma relação de mão dupla entre habi-tus individual e a estrutura de um campo, socialmente determinado. Segundo esse ponto de vista, as ações, comportamentos,

Page 3: BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR …

BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL

48

escolhas ou aspirações individuais não deri-vam de cálculos ou planejamentos, são, antes, produtos da relação entre um habitus e as pressões e estímulos de uma conjuntu-ra (SETTON, 2002).

É através dos seus habitus que os in-divíduos elaboram suas trajetórias e assegu-ram a reprodução social. Esta reprodução, no entanto, não pode se realizar sem a sutil ação dos agentes e das instituições, preser-vando as funções sociais por uma forma de dominação simbólica exercida sobre os indi-víduos e com a adesão deles. Dessa manei-ra, um dos primeiros e mais importantes conceitos utilizados por Bourdieu é o de habitus, que é determinado pela posição social do indivíduo na sociedade, posição esta que lhe permite pensar, ver e agir nas mais variadas situações. O habitus traduz, dessa forma, estilos de vida, julgamentos políticos, morais e estéticos, além de ser também um meio de ação que permite criar ou desenvolver estratégias individuais ou coletivas (BOURDIEU, 1989).

Outro conceito muito importante do autor para a finalidade deste artigo consiste no de “capital cultural”, bastante utilizado nos seus trabalhos sobre escolaridade. O capital cultural refere-se, pois, aos dispositi-vos técnicos e simbólicos adquiridos pelos sujeitos no meio social. É o conjunto de diplomas, nível de conhecimento geral, ex-periências com teatro, artes, idiomas e boas maneiras (BOURDIEU, 1998). Este conceito distingue-se de outros dois também de su-ma importância, o “capital econômico” e o “capital social”, sendo o capital econômico relacionado às posses financeiras e os bens portados pelo sujeito, enquanto o capital social vincula-se às redes de relações sociais que este sujeito possui com outros agentes.

Segundo Bourdieu, os estudantes de classe média ou da alta burguesia, pela pro-ximidade com a cultura “erudita”, pelas prá-

ticas culturais ou linguísticas de seu meio familiar, teriam maior probabilidade de obter o sucesso escolar. Em suas pesquisas na França, Bourdieu procurou demonstrar que existe relação entre a cultura e as desigual-dades escolares. Ou seja, a escola pressu-põe certas competências que são, de fato, adquiridas na esfera familiar e no meio soci-al do indivíduo. Utilizando-se do conceito de “violência simbólica”, o autor busca desven-dar os mecanismos que fazem com que os sujeitos aceitem com naturalidade as repre-sentações e as ideias dominantes, coorde-nadas pela burguesia. A violência simbólica, na sua visão, seria desenvolvida pelas insti-tuições e pelos agentes que as põem em prática e sobre a qual se apoiaria o exercício da autoridade (VASCONCELLOS, 2002).

Seria através da transmissão da cultu-ra escolar, a partir especialmente do ambi-ente da escola, com suas regras, valores e padrões de comportamento, que a classe dominante revelaria a sua violência simbóli-ca sobre alunos das classes populares. Isso ocorreria a partir de conteúdos, programas, métodos de trabalho e de avaliação, rela-ções pedagógicas, práticas linguísticas e temáticas abordadas. Com isso, a violência simbólica se mostraria eficaz, no sentido de explicar a adesão dos dominados pela cultu-ra imposta pelas classes dominantes, na qual se aceitam regras, sanções, regras de direito ou morais e práticas linguísticas.

2. O PENSAMENTO EDUCACIONAL ANTE-CEDENTE À BOURDIEU

Bourdieu teve o mérito de formular, a partir dos anos 60, uma resposta original, abrangente e bem fundamentada, teórica e empiricamente, para o problema das desi-gualdades escolares, especialmente no foco de suas observações. Daí seu paradigma romper com a forma de se abordar as ques-

Page 4: BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR …

BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL

49

tões referentes à educação até então (MARTINS NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002).

Até meados do século XX, predomina-va, nas Ciências Sociais, uma visão extre-mamente otimista, de inspiração funcionalis-tai, que atribuía à escolarização um papel central no duplo processo de superação do atraso econômico, do autoritarismo e dos privilégios, associados às sociedades tradi-cionais, e de construção de uma nova socie-dade. Esta seria justa, baseada na merito-cracia; moderna, centrada na razão e nos conhecimentos científicos; e democrática, fundamentada na autonomia individual. Su-punha-se que por meio da escola - mesmo pública e gratuita - seria resolvido o proble-ma do acesso à educação, garantindo, des-sa maneira, a igualdade de oportunidades entre todos os cidadãos.

O que ocorreu, todavia, nos anos 60, foi uma crise profunda dessa concepção de escola e uma reinterpretação radical do pa-pel dos sistemas de ensino. Abandona-se o otimismo das décadas anteriores, em favor de uma postura bem mais pessimista. Em primeiro lugar, tem-se, a partir do final dos anos 50, a divulgação de uma série de grandes pesquisas quantitativas patrocina-das pelos governos inglês, americano e francês (Aritmética Política inglesa, Relatório Coleman - EUA, Estudos do INED - França) que, em resumo, mostraram, de forma cla-ra, o peso da origem social sobre os desti-nos escolares. A partir deles, tornou-se im-perativo reconhecer que o desempenho es-colar não dependia, tão simplesmente, dos dons individuais, mas também da origem social dos alunos, sua classe, etnia, sexo, local de moradia, dentre outros aspectos de ordem social. Em segundo lugar, a mudança no olhar sobre a educação nos anos 60 es-teve relacionada a efeitos inesperados da massificação do ensino. Os anos 60 marcam a chegada, ao ensino secundário e à Univer-

sidade, da primeira geração beneficiada pela forte expansão do sistema educacional no pós-guerra. Essa geração, reunida em seto-res mais amplos do que as tradicionais elites escolarizadas, se viu frustrada em suas ex-pectativas de mobilidade social através da escola, devido à desvalorização dos títulos escolares que acompanhou a massificação do ensino na Europa.

Diante dessa crise do paradigma fun-cionalista, Bourdieu propôs, nos anos 60, outra maneira de se pensar a questão. Os dados que apontavam a forte relação entre desempenho escolar e origem social e que, em última instância, negavam o paradigma funcionalista, transformaram-se nos elemen-tos de sustentação da nova teoria. Onde se via igualdade de oportunidades, meritocra-cia e justiça social, Bourdieu passou a ver reprodução e legitimação das desigualdades sociais. A educação perderia o papel, que lhe fora atribuído, de instância transforma-dora e democratizadora e passaria a ser vista como uma das principais instituições por meio da qual se mantêm e se legitimam os privilégios sociais. Uma das teses centrais da sua Sociologia da Educação é a de que os alunos não são indivíduos abstratos que competem em condições relativamente i-gualitárias na escola, mas atores socialmen-te constituídos que traz incorporada, em larga medida, uma bagagem social e cultu-ral diferenciada e mais ou menos rentável no mercado escolar (MARTINS NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002).

Decorrente desta abordagem, Bourdi-eu lança a concepção de que a escola não é neutra. Formalmente, ela efetivamente tra-taria a todos de modo igual, na medida em que todos assistiriam às mesmas aulas, se-riam submetidos às mesmas formas de ava-liação, obedeceriam às mesmas regras e, portanto, teriam as mesmas chances. Con-tudo, Bourdieu mostra que, na prática, as

Page 5: BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR …

BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL

50

chances são desiguais. Alguns estariam nu-ma condição mais favorável do que outros para atenderem às exigências, muitas vezes implícitas e subliminares, da escola. Ao sub-linhar que a cultura escolar é a cultura do-minante dissimulada, Bourdieu abre cami-nho para uma análise mais crítica do currí-culo, dos métodos pedagógicos e da avalia-ção escolar, pois os conteúdos curriculares seriam selecionados em função dos conhe-cimentos, dos valores, e dos interesses das classes dominantes. Como diz o autor:

É provável por um efeito de inércia cultural que continuamos tomando o sistema escolar como um fator de mobilidade social, segundo a ideo-logia da escola libertadora, quando, ao contrário, tudo tende a mostrar que ele é um dos fatores mais efi-cazes de conservação social, pois fornece a aparência de legitimidade às desigualdades sociais, e sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom natural (BOURDIEU, 1998, p. 41).

O indivíduo, em Bourdieu, é um ator socialmente configurado em seus mínimos detalhes. Os gostos mais íntimos, as prefe-rências, as aptidões, as posturas corporais, a entonação de voz, as aspirações relativas ao futuro profissional, tudo seria socialmen-te constituído. A partir de sua formação ini-cial, em um ambiente social e familiar, os quais correspondem a uma posição específi-ca na estrutura social, os sujeitos incorpora-riam um conjunto de disposições para a ação típica dessa posição - um habitus fami-liar ou de classe - que passaria a conduzi-los ao longo do tempo e nos mais variados am-bientes de ação. Já a estrutura social se perpetuaria, porque estes próprios sujeitos tenderiam a atualizá-la ao agir de acordo com o conjunto de disposições típicas da posição estrutural na qual eles foram socia-

lizados (MARTINS NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002).

Assim sendo, cada ser passa a ser ca-racterizado por uma bagagem socialmente herdada. Essa bagagem inclui, por um lado, certos componentes objetivos, externos ao sujeito, e que podem ser postos a serviço do sucesso escolar. Fazem parte dessa pri-meira categoria o capital econômico, toma-do em termos dos bens e serviços a que ele dá acesso, o capital social, cuja importância se dá pelo conjunto de relacionamentos sociais influentes mantidos pela família, a-lém do capital cultural institucionalizado, formado basicamente por títulos escolares. As referências culturais, os conhecimentos considerados legítimos e o domínio maior ou menor da língua culta, trazidos de casa por certas crianças, facilitariam o aprendizado escolar, na medida em que funcionariam como uma ponte entre o mundo familiar e a cultura escolar.

Desse modo, é muito importante sali-entarmos a percepção bourdiesiana de que a educação escolar, no caso das crianças oriundas de meios culturalmente favoreci-dos, seria uma espécie de continuação da educação familiar, enquanto, para as outras crianças, significaria algo estranho, distante, ou mesmo ameaçador. Nesse tom, a avalia-ção escolar vai muito além de uma simples verificação de aprendizagem, incluindo um verdadeiro julgamento cultural e até mesmo moral dos alunos. Como diz o autor:

Na verdade, cada família transmite a seus filhos, mais por vias indiretas que diretas, um certo capital cultu-ral e um certo ethos, sistema de va-lores implícitos e profundamente in-teriorizados, que contribui para de-finir, entre outras coisas, as atitudes face ao capital cultural e à institui-ção escolar. A herança cultural, que difere, sob dois aspectos, segundo as classes sociais, é a responsável

Page 6: BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR …

BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL

51

pela diferença inicial das crianças da experiência escolar e, conse-quentemente, pelas taxas de êxito (BOURDIEU, 1998, p. 42).

Salienta-se que essas exigências só podem ser plenamente atendidas por quem foi previamente socializado nesses mesmos valores. Pode ser na família, ou também através do contato pessoal com amigos e outros parentes que possuam familiaridade com o sistema educacional. Vê-se, neste caso, a importância do capital social como um instrumento de acumulação do capital cultural. Com isso, o capital econômico e o social funcionariam, na maior parte das ve-zes, apenas como meios auxiliares na acu-mulação do capital cultural.

3. O CAPITAL SOCIAL E O CAPITAL CULTURAL NA EDUCAÇÃO

Retomando o conceito de capital soci-al, este consiste num conjunto de recursos atuais ou potenciais ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de inter-conhecimento e de inter-reconhecimento. Em outras pala-vras, representa a vinculação a um grupo, como conjunto de agentes que não somente são dotados de propriedades comuns, mas também são unidos por ligações permanen-tes e úteis. Essas ligações, entretanto, são irredutíveis às relações objetivas de proxi-midade no espaço geográfico ou no espaço econômico e social, uma vez que são funda-das em trocas inseparavelmente materiais e simbólicas cuja instauração e perpetuação supõem o reconhecimento dessa proximida-de pelos agentes participantes (BOURDIEU, 1998).

Importante destacarmos que a exis-tência de uma rede de relações não é exa-tamente um dado natural, como é o caso do grupo familiar, por exemplo, o qual se defi-

ne pela caracterização genealógica que a constitui. Pelo contrário, é produto do traba-lho de instauração e manutenção que é ne-cessário para produzir e reproduzir relações duráveis e úteis, com vistas a proporcionar lucros materiais ou simbólicos. A rede de ligações é o produto de estratégias de in-vestimento social consciente ou inconscien-temente orientadas para a instituição ou a reprodução de relações sociais. Nela se es-tabelecem sentimentos de reconhecimento, de respeito, amizade, dentre outros. Estabe-lecem-se também garantias institucionaliza-das, como direitos. Tudo isso, constituído a partir das trocas executadas pelos seus membros, tais como palavras e presentes. Como assegura o autor:

A troca transforma as coisas troca-das em signos de reconhecimento e, mediante o reconhecimento mú-tuo e o reconhecimento da inclusão no grupo que ela implica, produz o grupo e determina ao mesmo tem-po os seus limites, isto é, os limites além dos quais a troca constitutiva, comércio, comensalidade, casamen-to, não pode ocorrer. Cada membro do grupo encontra-se assim instituí-do como guardião dos limites do grupo (BOURDIEU, 1998, p. 68).

Já quanto ao capital cultural incorpo-rado à realidade escolar, distinguem-se três formas sob as quais o capital cultural pode subsistir: no estado incorporado, no estado objetivado e no estado institucionalizado (BOURDIEU, 1998).

No estado incorporado, o capital cultu-ral aparece sob a forma de disposições du-ráveis no organismo do próprio indivíduo. É um ter que se tornou ser, uma propriedade que se fez corpo e tornou-se parte integran-te da pessoa, um habitus. Este capital não pode ser transmitido instantaneamente,

Page 7: BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR …

BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL

52

diferentemente do dinheiro ou de um título de nobreza, mas se adquire de uma forma totalmente dissimulada e inconsciente. Co-mo diz: “Não pode ser acumulado para além das capacidades de apropriação de um a-gente singular; depaupera e morre com seu portador, com suas capacidades biológicas, sua memória, etc” (BOURDIEU, 1998, p. 75).

Já no estado objetivado, aparecem sob a forma de bens culturais, como quadros, livros, dicionários, instrumentos e máquinas. O capital cultural, no estado objetivado, detém um certo número de propriedades que se define apenas em sua relação com o capital cultural em sua forma incorporada. Como diz:

O capital cultural no estado objeti-vado apresenta-se com todas as aparências de um universo autôno-mo e coerente que, apesar de ser o produto da ação histórica, tem suas próprias leis, transcendentes às vontades individuais, e que perma-nece irredutível, por isso mesmo, àquilo que cada agente ou mesmo o conjunto dos agentes pode se a-propriar (BOURDIEU, 1998, p. 78).

E quanto à sua existência, diz:

É preciso não esquecer, todavia, que ele só existe e subsiste como capital ativo e atuante, de forma material e simbólica, na condição de ser apropriado pelos agentes e utili-zado como arma e objeto às lutas que se travam no campo da produ-ção cultural (campo artístico, cientí-fico, etc.) e, para além desses, no campo das classes sociais, onde os agentes obtêm benefícios propor-cionais ao domínio que possuem desse capital objetivado, portanto, na medida de seu capital incorpora-do (BOURDIEU, 1998, p. 78).

Por fim, o estado institucionalizado é um tipo de forma de objetivação que é pre-ciso ser colocado à parte, uma vez que con-fere ao capital cultural propriedades intei-ramente originais. Segundo diz:

Ao conferir ao capital cultural pos-suído por determinado agente um reconhecimento institucional, o cer-tificado escolar permite, além disso, a comparação entre os diplomados e, até mesmo, sua ‘permuta’ (subs-tituindo-os uns pelos outros na su-cessão); permite também estabele-cer taxas de convertibilidade entre o capital cultural e o capital econômi-co, garantindo o valor em dinheiro de determinado capital escolar (BOURDIEU, 1998, p. 79).

4. O INVESTIMENTO NA EDUCAÇÃO DE ACORDO COM A CLASSE SOCIAL

Bourdieu distingue três conjuntos de disposições e de estratégias de investimento escolar os quais seriam adotados tendenci-almente pelas classes populares, classes médias (ou pequena burguesia) e pelas eli-tes (MARTINS NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002).

O primeiro desses grupos, pobre em capital econômico e cultural, tenderia a in-vestir de modo moderado no sistema de ensino. Seria um investimento relativamente baixo, o que se explicaria por várias razões. Em primeiro lugar, devido à percepção, a partir dos exemplos acumulados, de que as chances de sucesso são reduzidas, na medi-da em que faltariam os recursos econômi-cos, sociais e, sobretudo, culturais necessá-rios para um bom desempenho escolar. Isso tornaria o retorno do investimento muito incerto e, portanto, o risco muito alto. Essa incerteza e esse risco seriam ainda maiores

Page 8: BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR …

BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL

53

pelo fato de que o retorno do investimento escolar é dado no longo prazo, sendo que essas famílias estariam, em função de sua condição socioeconômica, menos prepara-das para suportar os custos econômicos dessa espera. Seria um pesado fardo, por exemplo, o adiamento da entrada dos filhos no mercado de trabalho, fator necessário para se adquirir a qualificação exigida para altas funções.

Acrescenta-se a isso o fato de que o retorno alcançado com os títulos escolares depende, parcialmente, como já foi dito anteriormente, da posse de recursos eco-nômicos e sociais passíveis de serem mobili-zados para potencializar o valor dos títulos. No caso dessas famílias, nas quais esses recursos são reduzidos. Segundo Bourdieu, nessas famílias, de um modo geral, a vida escolar dos filhos não seria acompanhada de modo muito sistemático e nem haveria uma cobrança intensiva em relação ao su-cesso escolar. As aspirações escolares desse grupo seriam moderadas, esperando dos filhos que eles estudassem apenas o sufici-ente para se manter. Esse estágio de edu-cação já significaria, na maioria dos casos, o alcance de uma escolarização superior à dos pais. Essas famílias tenderiam, assim, a pri-vilegiar as carreiras escolares mais curtas, que dão acesso mais rapidamente à inser-ção profissional. Um investimento numa carreira mais longa só seria feito nos casos em que a criança apresentasse, precoce-mente, resultados escolares excepcional-mente positivos, capazes de justificar a a-posta arriscada no investimento escolar.

Já as classes médias - ou pequena burguesia, segundo a expressão de Bourdi-eu -, tenderiam a investir pesada e sistema-ticamente na escolarização dos filhos. Esse comportamento se explicaria, em primeiro lugar, pelas chances objetivamente superio-res dos filhos das classes médias alcança-

rem o sucesso escolar. As famílias desse grupo social já possuiriam um volume razo-ável de capitais que lhes permitiriam apostar no mercado escolar sem correr tantos ris-cos. Para Bourdieu, no entanto, o compor-tamento das famílias das classes médias não pode ser explicado apenas pelas chances comparativamente superiores de seus filhos. Seria necessário considerar, igualmente, as expectativas quanto ao futuro, sustentadas por esses grupos sociais. Originárias, em grande parte, das camadas populares e ten-do ascendido às classes médias por meio da escolarização, as famílias de classe média nutririam esperanças de continuarem sua ascensão social, agora, em direção às elites.

Todas as condutas das classes médias poderiam ser entendidas, dessa maneira, como parte de um esforço mais amplo com vistas a criar condições favoráveis à ascen-são social. Nessas classes sociais seria nor-mal evidenciar determinadas disposições de renunciarem aos prazeres imediatos, em benefício do seu projeto de futuro, especi-almente dos filhos. Sacrificariam a compra de bens materiais e viagens, por exemplo, de modo a investirem na boa escolarização dos seus filhos.

Além disso, a classe média tenderia a controlar a fecundidade, desenvolvendo a estratégia de concentrar os recursos num número reduzido de filhos. Embora, de um modo geral, possa se falar que a aspiração por ascensão social, que caracteriza as clas-ses médias, conduz à tendência de se inves-tir fortemente na escolarização dos filhos, não se pode esquecer que o grau em que isso ocorre dependeria do peso relativo dos capitais em cada uma das frações da classe média. As frações mais providas de capital econômico - ao contrário das que possuem quase que exclusivamente capital cultural - tenderiam a não conceder uma prioridade tão acentuada ao investimento escolar. Se-

Page 9: BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR …

BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL

54

ria necessário observar, também, que a tendência maior ou menor ao investimento escolar estaria relacionada com a trajetória ascendente ou descendente da fração de classe média em questão. Nesse sentido, os grupos ascendentes seriam os que deposita-riam maiores esperanças na escolarização de seus filhos.

Por fim, Bourdieu se refere às elites econômicas. Esses grupos investiriam pesa-damente na escola, porém, de uma forma bem mais descontraída do que as classes médias. Isso se deveria, por um lado, ao fato de que o sucesso escolar no caso des-sas famílias é tido como algo natural, que não depende de um grande esforço de mo-bilização familiar. As condições objetivas, tais como a posse de um volume expressivo de capitais econômicos, sociais e culturais, tornariam o fracasso escolar bastante im-provável. Ademais, as elites estariam livres da luta pela ascensão social. Elas já ocupam as posições dominantes, não dependendo, portanto, do sucesso escolar dos filhos para ascender socialmente.

Em relação às elites, importante sali-entar que Bourdieu contrasta as frações mais ricas em capital cultural com aquelas mais ricas em capital econômico. As primei-ras seriam propensas a um investimento escolar mais intenso, visando o acesso às carreiras mais longas e prestigiosas do sis-tema de ensino. Já as frações mais ricas em capital econômico tenderiam a buscar na escola, principalmente, uma certificação que legitimaria o acesso às posições de controle já garantidas pelo capital econômico.

5. BREVE REFLEXÃO DAS DESIGUALDADES SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL À LUZ DE BOURDIEU

A história do Brasil mostra como as desigualdades sociais foram se reproduzindo

pelos séculos e pelas últimas décadas a par-tir, sobretudo, da reprodução de classes. Nesse sentido, a contribuição crítica de Bourdieu pode ser de extrema relevância para uma análise da realidade brasileira. As elites sempre desenvolveram mecanismos que lhes assegurassem a permanência nas posições de origem ascendente. A própria circulação dentro da estrutura social brasilei-ra não foi capaz de reduzir em grandes es-calas a desigualdade que o século XX her-dou do passado escravista. Não se pode negar que pobres e negros tiveram mobili-dade entre gerações, mas isso foi muito mais caracterizado por uma passagem da área rural para o meio urbano, do que pro-priamente representou consideráveis ganhos em relação à hierarquia social (RIBEIRO, 2007).

O modelo rural, formador da socieda-de brasileira, tinha como fortes traços a desigualdade, que aparecia na concentração de terras, nas influências econômicas e polí-ticas e no despreparo de grande parte dos trabalhadores. Foi exatamente essa popula-ção desprivilegiada do Brasil rural aquela que mais sofreu com os efeitos do rápido processo de industrialização e urbanização. Muitos de seus filhos foram viver nas cida-des, mas sentiram na pele o peso da ori-gem, seja través do preconceito da origem racial, seja através do preconceito da falta de conhecimentos técnicos para se empre-garem nos novos ramos fabris existentes (RIBEIRO, 2007).

Abaixo, tabela que mostra a distribui-ção do rendimento segundo a cor em 1999 e 2009, demonstrando como os negros se-guem, no período atual, em consideráveis desvantagens econômicas em relação aos brancos e como a riqueza no Brasil segue concentrada em benefício de pequenos gru-pos.

Além disso, o crescimento do sistema

Page 10: BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR …

BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL

55

educacional, ao longo do século XX, tam-bém foi bastante lento. Nas décadas de 1960 e 1970, para se ter uma ideia - perío-do considerado como o auge da industriali-zação -, as universidades e as escolas de nível secundário (atual ensino médio), cres-ceram mais que o ensino básico. Com isso, a maior parte da população desprovida eco-nomicamente e que vinha da área rural para a área urbana não conseguiu ingressar no sistema escolar básico. Apenas mais recen-temente, a partir da década de 1990, pu-demos verificar um efetivo aumento do en-sino básico no Brasil, caminhando para a

universalização do ensino nesta faixa etária. A educação, dessa maneira, permaneceu como fonte de acesso à reduzida parcela privilegiada da população durante boa parte do século passado (RIBEIRO, 2007).

Vejamos dados atuais, que mostram menos negros (pretos e pardos) no ensino superior, se comparados aos brancos. Ou seja, a educação superior continua conside-ravelmente segregada em favor de grupos racialmente definidos e de condições eco-nômicas determinadas:

Tabela 1:

Fonte: IBGE. Disponível em: http://picasaweb.google.com/lh/photo/ srV_B5CqtR1tCkPbIEjb5Q?feat=embedwebsite>.

Além disso, o crescimento do sistema educacional, ao longo do século XX, tam-bém foi bastante lento. Nas décadas de 1960 e 1970, para se ter uma ideia - perío-

do considerado como o auge da industriali-zação -, as universidades e as escolas de nível secundário (atual ensino médio), cres-ceram mais que o ensino básico. Com isso,

Page 11: BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR …

BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL

56

a maior parte da população desprovida eco-nomicamente e que vinha da área rural para a área urbana não conseguiu ingressar no sistema escolar básico. Apenas mais recen-temente, a partir da década de 1990, pu-demos verificar um efetivo aumento do en-sino básico no Brasil, caminhando para a universalização do ensino nesta faixa etária. A educação, dessa maneira, permaneceu como fonte de acesso à reduzida parcela

privilegiada da população durante boa parte do século passado (RIBEIRO, 2007).

Vejamos dados atuais, que mostram menos negros (pretos e pardos) no ensino superior, se comparados aos brancos. Ou seja, a edu-cação superior continua consideravelmente segregada em favor de grupos racialmente definidos e de condições econômicas deter-minadas:

Tabela 2:

Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/06/29/brancos-ganham-duas-vezes-mais-que-negros-e-dominam-ensino-superior-no-pais-mostra-censo-2010.htm>.

Numa linguagem bourdiesiana, a vio-lência simbólica presente na estrutura social brasileira a dividiu em classes bem defini-das, sustentando-as segundo o preconceito e a segregação. Nesta sociedade, o poder simbólico do capital econômico sempre e-xerceu considerável poder que se espalhou para os demais campos de vínculos sociais, tais como relações profissionais, políticas e

culturais. Os hábitos cultivados pelas elites acabaram se envolvendo com a ideia de que estes seriam os melhores hábitos, e os esti-los de vida dessa classe marcou profunda-mente os principais espaços de interação social no país.

Nesse contexto, a educação foi se de-senvolvendo, inicialmente, como fonte de acesso aos membros dessas elites, que nela

Page 12: BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR …

BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL

57

viram a possibilidade de ganhos de status e aquisição de um capital cultural que se jun-taria ao capital econômico já portado por suas famílias. Com o avanço das taxas de escolarização, hoje em dia a educação no Brasil de qualidade, a despeito dos projetos de universalização da alfabetização, é privi-légio de poucos que podem efetivamente arcar com seus altos custos.

Assim sendo, o capital cultural, indis-pensável para uma boa evolução na apren-dizagem e no aprimoramento do conheci-mento acerca do mundo a nossa volta, aca-ba por vincular-se diretamente às posses provenientes das condições de classe. Isso explica boa parte da relação proporcional-mente crescente entre a condição de renda per capita dos estudantes e o avanço nas transições escolares, e a manutenção das desigualdades educacionais no país. Portan-to, a partir destas desigualdades, explica-se como que, num país de fortes gradações de qualidade escolar, as desigualdades de ren-da e de cor persistem consideravelmente, mesmo após termos verificado um aumento considerável no acesso à educação, em to-das as faixas, nos últimos anos.

Vinculado a esses dois tipos de aportes sociológicos – o capital econômico e o capi-tal cultural – podemos nos inspirar em Bourdieu para identificarmos a forte presen-ça, no Brasil, do capital social. Este aporte, caracterizado pelas redes de contatos esta-belecidas pelos agentes da estrutura social, foi e continua sendo aspecto de relevante centralidade para a manutenção das desi-gualdades de classe. As redes sociais das pessoas com capital econômico e capital cultural intensos são mais amplas e mais articuladas do que daqueles que detém me-nores capitais desses tipos. Aí atua a violên-cia simbólica que acomete a sociedade bra-sileira, reestruturando uma realidade desi-gual em seus aspectos de classe e de raça,

e que a educação apresentaria pouca força para alterar.

É com isso que podemos propor uma leitura reflexiva acerca dos projetos de a-ções afirmativas que vêm sendo implemen-tados no Brasil, já que têm se configurado como as principais políticas voltadas para a redução das desigualdades raciais. Até que ponto as ações afirmativasii, ao darem maior possibilidade de acesso a cargos, empregos e vagas nas universidades – através das cotas universitárias –, efetivamente serão capazes de reduzir as desigualdades que acometem grupos segregados, como a i-mensa população negra? Embora a preten-são seja dar um suporte aos beneficiados, ligando-os ao capital econômico, cultural e social das elites, será necessário que as pessoas beneficiadas consigam transmitir aos seus filhos os mesmos capitais necessá-rios para chegarem aos patamares alcança-dos pelos pais sem a necessidade da mesma reserva de vagas.

Nesse sentido, Bourdieu nos permite pensar que as atuais políticas de justiça social podem estar apenas tentando ajustar a estrutura social existente, em busca de justiça e redução das desigualdades, mas sem alterar a estrutura que gerou as pró-prias desigualdades. Assim sendo, o Brasil pode estar mantendo as mesmas desigual-dades que historicamente apresentou, ape-nas reduzindo-as um pouco, porém sob o manto das políticas de igualização e da pre-ocupação com os índices de melhorias soci-ais que não transformariam a sua estrutura efetivamente desigual.

CONCLUSÃO

Apesar de os trabalhos de Bourdieu terem revelado as limitações da educação, enquanto portadora de um papel revolucio-nário, devemos ressalvar que a crença na

Page 13: BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR …

BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL

58

educação permanece bastante viva na lite-ratura pedagógica, nas políticas públicas e no inconsciente coletivo. No Brasil, a educa-ção, enquanto potencializadora de transfor-mação, continua em destaque, especialmen-te nos círculos públicos que envolvem os debates políticos. Defende-se que através do crescimento educacional o país poderá gerar uma massa mais consciente politica-mente, mais qualificada profissionalmente e mais avançada moralmente. Entretanto, o que os debates políticos não mostram são os limites da própria educação dentro de uma sociedade hierarquizada, do ponto de vista de vários capitais indispensáveis para os efeitos pretendidos através do investi-mento em educação.

No século XX, pouco depois do fim da abolição, foram chegando propostas e ideias de modernização ao país, mas junto houve a persistência de uma complexa teia de tradi-cionalismo político, social e econômico, que persiste até hoje em nossas vidas, tecendo um país contraditório: rico porém desigual. A educação aparece no seio dessas contradi-ções, haja vista as desigualdades que acom-panham o seu processo. As melhores escolas normalmente são pagas, e são quase que exclusivamente acessíveis às classes médias e altas. Seus alunos, em grande medida, tra-zem consigo toda uma conjunção de capitais indispensáveis para o sucesso educacional. Por outro lado, o ensino público geralmente apresenta uma série de problemas, desde a falta de infraestrutura adequada, até a má remuneração do corpo docente. No momento de concorrer às vagas dos melhores cursos e nas melhores faculdades, os indivíduos mais bem preparados levam vantagens, contes-tando a aparente e enganosa igualdade meri-tocrática de oportunidades.

Aceitemos ou não a leitura de Bourdieu para analisar as questões atuais do Brasil, podemos, sem sombra de dúvidas, usar sua

teoria para pensarmos a educação e o seu real papel transformador nas sociedades mo-dernas. Sem nos prendermos a uma cadeia pessimista, mas procurando nos desprender dela, alguma reflexão certamente poderá nos ajudar a melhorar nossa atuação enquanto profissionais da educação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998.

______________. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil S.A, 1989.

______________. Pierre Bourdieu: So-ciologia. ORTIZ, Renato (org.). São Paulo: Ática, 1983.

MARTINS NOGUEIRA, Cláudio Marques; NOGUEIRA, Maria Alice. "A sociologia da educação de Pierre Bourdieu: Limites e con-tribuições". In: Revista Educação e Soci-edade, vol. 23, nº 78, Campinas, 2002.

RIBEIRO, Carlos Antônio Costa. Estrutura de classe e mobilidade social no Brasil. Bauru, SO: Edusc, 2007.

SETTON, Maria da Graça Jacintho. "A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea". In: Revista Brasileira de Educação, nº 20, Maio/Jun/Jul/Ago, 2002.

VASCONCELLOS, Maria Drosila. "Pierre Bourdieu: a herança sociológica". In: Edu-cação & Sociedade, vol. 23, nº 78, abril, Campinas, 2002.

VIEIRA DA COSTA, Andréa Lopes. Ação Afirmativa e o Combate as Desigualda-des Raciais no Brasil: Em busca do Ca-minho das Pedras. Tese de Doutorado, IUPERJ: 2005.

Page 14: BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR …

BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL

59

i Émile Durkheim foi um dos expoentes do fun-cionalismo. A educação, segundo Durkheim, transmitiria valores morais que integram a soci-edade, sendo a coesão social o aspecto de sua maior preocupação. O autor destaca a função uniformizadora e diferenciadora da educação: de um lado, visando a integração do indivíduo no contexto social, transmitindo valores e desenvol-vendo atitudes comuns; de outro lado, a educa-ção diferenciadora, respondendo à divisão social do trabalho e reforçando-a. No Brasil, este para-digma do consenso influenciou especialmente a obra de Fernando Azevedo, sociólogo inspirado na teoria durkheimiana. Azevedo foi o pioneiro da Escola Nova, movimento que nas primeiras décadas do século XX defendia a universalização da escola pública, laica e gratuita. Segundo de-fendia, os sistemas educativos variam de acordo com as formas de sociedade, só sendo compre-endidos, pois, em função do todo. Assim, ele destaca o papel socializador da educação, seu caráter coercitivo, sua importância para a inte-gração social e as relações entre mudança social e educacional. No Brasil em que viveu, marcado pela emergência da sociedade urbano-industrial, uma de suas grandes preocupações foi o ajus-tamento da educação às novas condições histó-rico-sociais. ii Ótimo estudo sobre as ações afirmativas, Cf. VIEIRA DA COSTA, Andréa Lopes. Ação Afir-mativa e o Combate as Desigualdades Ra-ciais no Brasil: Em busca do Caminho das Pedras. Tese de Doutorado, IUPERJ: 2005.