hayek e justiça social
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EESP – FGV
Disciplina: Análise Econômica, Ética & Moral e Políticas Públicas, profs. Marcos Fernandes
Gonçalves da Silvas & Liliam Furquim de Azevedo
Aluno: Rafael Galvão de Almeida
Justiça social em Hayek: Um oximoro possível?
1. Definição de justiça social
Justiça social. Duas palavras muito presentes no diálogo político. O termo foi usado pela
primeira vez pelo jesuíta italiano Louis Taparelli d’Azeglio, para definir “a justiça entre homem
e homem” (BARZOTTO, 2004) em 1840. Mas para entender o significado é necessário entender
como a expressão surgiu. Aristóteles primeiramente definiu a justiça como a virtude de desejar
aquilo que é justo (idem) e Tomás de Aquino a definiu como dar a cada um aquilo que é
devido. São definições antigas, porém simples e razoáveis. Ao longo do tempo essas definições
foram se sofisticando e ganhando amplitude para se adaptar aos novos tempos (embora os
sentimentos humanos não tenham mudado), porque numa sociedade democrática o que se
torna um denominador comum entre os homens é que todos têm uma dignidade, em que é
necessário respeitá-la. A ênfase recai sobre os beneficiários do sistema legal, a sociedade e
seus membros, ao invés do sistema legal em si. O conceito moderno de justiça social, incluído
o defendido pela Constituição brasileira (artigos 170 e 193), tem base na doutrina social cristã,
em que o corolário que se segue é “as consequências extraídas deste conceito são radicais:
para a justiça social, os seres humanos, considerados como pessoas, são iguais e, portanto,
toda desigualdade em aspectos constitutivos da pessoa, como é o caso das suas necessidades
materiais básicas, deve ser afastada” (idem).
A justiça social regula a ação entre o indivíduo e a comunidade e tem como foco de ação o
bem comum, ou seja, a definição de bem comum na justiça social é semelhante àquela de bem
público em economia, já que a justiça social lida diretamente com as externalidades. Barzotto
explica o direito penal à luz da justiça social:
“O direito penal, nesta perspectiva, é uma expressão da justiça social: protege-se a pessoa humana como tal, e não este ou aquele membro. Por isso, uma ofensa a um membro é uma ofensa a toda comunidade, e a sua punição (em alguns casos) não depende da iniciativa do indivíduo singular, mas é assumida por um órgão da comunidade. A existência da pena deve-se à justiça social, ao passo que a quantificação da pena fica a cargo da justiça comutativa.” (idem).
Além disso, a justiça social trata as outras pessoas como fins em si mesmas, ou seja, devido à
dignidade inerente dela, há um imperativo de respeito mútuo, um reconhecimento mútuo, e
assim todas as pessoas são beneficiadas, e há um reciprocidade entre elas mesmas e a
sociedade em geral, ou seja, se é distribuído o que é devido a cada um.
Por isso, pode se ver que há uma identificação entre ‘justiça social’ e ‘justiça distributiva’, o
conceito o qual Hayek se insurge.
2. Hayek e a miragem
Hayek é considerado o pai do neoliberalismo, senão o pai, um de seus idealizadores. Como
sabemos, o neoliberalismo é um movimento que surgiu na década de 1970, em reação à
derrocada do keynesianismo como filosofia padrão para guiar a política econômica. O
neoliberalismo apoiava o encolhimento da intervenção estatal na economia, até o ponto de
apenas garantir funções básicas da sociedade e o funcionamento dos mercados, já que se
criaria uma ordem social eficiente só por meio deles. Como disse um deles, “o que é eficiente é
justo”. O título do segundo livro de sua trilogia Direito, Legislação e Liberdade denominado A
Miragem da Justiça Social, já é uma indicação do que ele achava do conceito de justiça social.
A justiça social não passava unicamente de uma miragem, possibilitada pela emergência do
positivismo jurídico (o positivismo jurídico é a escola de filosofia do direito em que o legislador
deve agir proativamente na criação das leis, em contraposição ao direito consuetudinário e ao
direito natural) com tendências, de acordo com a percepção dele, socialistas. Para Hayek, o
positivismo jurídico surgiu “da falsa conclusão de que não poderia haver quaisquer critérios
objetivos de justiça” (HAYEK, 1985, p. 54).
Sua rejeição ao conceito de justiça social, conforme entendido como justiça distributiva,
decorre do fato de que ele defendia que o mercado deveria ter poder de auto-organização
através de uma ordem espontânea (ver Almeida & Fernández para mais detalhes). A
interferência do governo e, porque não outros mecanismos de coerção como monopólios, faz
com que as pessoas não persigam mais seus interesses e sim permitem que uma autoridade
central faça isso por eles. O problema é que isso, para Hayek, sempre leva a uma sociedade
totalitária em que o indivíduo não tem mais poder de livre-iniciativa. E essa sociedade jamais
será eficiente porque o governo não tem e nem pode ter acesso a todas as variáveis relevantes
da sociedade, por isso, na tentativa de direcionar esforços para a eficiência, acaba-se criando
uma sociedade ineficiente e controladora.
“... a justiça é uma adaptação à nossa ignorância – à nossa permanente ignorância de fatos
particulares, que nenhum progresso científico pode eliminar por completo.” (p. 49). Pela
ordem espontânea, as normas passam por um processo de seleção natural, em que a utilidade
de uma norma a uma determinada cultura justifica sua existência; uma norma pode ser
considerada obsoleta se deixa de ser útil a uma determinada cultura, e pode até mesmo ser
reavivada. O importante a se frisar é que utilidade não tem nada a ver com moralidade ou
justiça, embora normas morais ou justas tendam a gerar maior utilidade.
Hayek investiga o que a justiça social significa, ela é tratada pela sociedade como algo desejado
intrinsicamente, para corrigir uma injustiça criada pelos homens; o problema é que “como em
geral o faz o pensamento primitivo ao perceber, pela primeira vez, algum processo regular,
interpretaram-se os resultados do ordenamento espontâneo do mercado como se algum ser
pensante os dirigisse deliberadamente, ou como se os benefícios ou o prejuízo específicos que
diferentes pessoas deles derivavam fossem determinados por atos deliberados de vontade,
podendo, assim, ser regidos por normas morais.” (p. 80).
Por trás da justiça social, há a ideia de merecimento, de forma que todos merecem uma
parcela do produto da sociedade e se a parcela é desigual da que supostamente seria justa,
deve haver intervenção na sociedade para corrigir isso; isso seria a justiça distributiva. Seria
sua reivindicação dirigida à sociedade, ao invés do indivíduo, “a reivindicação de ‘justiça social’
converte-se numa reivindicação de que os membros da sociedade se organizem de modo a
possibilitar a distribuição de cotas do produto da sociedade aos diferentes indivíduos ou
grupos. A questão básica passa a ser então saber se há o dever moral de se submeter a um
poder capaz de coordenar os esforços dos membros da sociedade com o objetivo de atingir
determinado padrão de distribuição considerado justo” (p. 82). O problema é que essas cotas
do produto são o resultado de interações de ordem espontânea, o que torna o conceito de
justiça social espúrio.
A justiça social penetrou no imaginário político de tal forma que está pré-condicionado para as
pessoas a aceitarem como algo esperado na cena política. Tornou-se também uma pedra de
toque da moral, ou seja, o fato de uma pessoa se importar com a justiça social seria um
indicador da moralidade daquela pessoa. Hayek argumenta que, apesar de que esse seja um
conceito aceito pela maioria, isso não significa que seja verdadeiro, o que é uma afirmação
válida, e vai além ao dizer que “é provavelmente, em nossos dias, a mais grave ameaça à
maioria dos valores de uma civilização livre. (p. 85),”
Em uma ordem de mercado, a reivindicação de justiça social não tem sentido ou significado
porque, para começar, mesmo que se aceitasse a colocação de que o resultado do mercado é
injusto, não se pode implicar automaticamente que o processo foi injusto ou se alguma das
partes foi. Se, em um cassino, um homem perde todas as suas economias para outro, e ter que
viver como indigente, ainda assim isso não poderia ser considerado injusto, porque ele não
pode forçar o sistema a submeter-se a seus desejos, embora possa utilizar toda a informação
disponível para auxiliar em seus propósitos. A justiça social só faria sentido em uma sociedade
comandada por uma autoridade maior, em que todos os indivíduos recebem suas atribuições e
a justiça social serviria para corrigir distorções. Além disso, seria também um erro pensar que o
sistema de livre-iniciativa em um mercado livre recompensaria os melhores e mais ricos, em
proporção à capacidade e produtividade, com a maior obtenção de cotas da renda nacional,
porque, como já foi frisado, não existe nada inerentemente justo ou injusto na ordem
espontânea, além de ser argumento falacioso por ser viés de sobrevivência (se considerarmos
apenas os bem-sucedidos em uma amostra cujo objetivo é global, a amostra não vai nos dizer
nada). Os ganhos auferidos num sistema de mercado não são e nem podem ser encarados
como recompensas.
O que pode ou não ser justo é a conduta dos jogadores, em que as pessoas aprenderam a
exigir justiça nas relações, pois a justiça justifica sua existência por ser útil à realização de
trocas e relacionamento entre pessoas (e é aqui que há espaço para atuação do Estado no
pensamento hayekiano; a uma das razões pela qual monopólios são ruins e imorais é
exatamente essa).
“A expressão ‘justiça social, tal como empregada hoje, não é social no sentido em que se fala
em ‘normas sociais’” (p. 99).
Embora apenas advogados mais extremos da justiça social defendam plena igualdade material,
ainda assim, o conceito de justiça social parece favorecer tal interpretação, mas é errôneo
pensar nesse sentido, porque uma boa parcela da desigualdade na sociedade é criada por
decisão própria dos agentes, ao escolherem empregos que têm remunerações diferentes; é
impossível, contraprodutivo e anti-humanitário basear um conceito de justiça social em
igualdade material plena dos resultados. Por outro lado, com relação às oportunidades iniciais
as coisas são diferentes, já que as circunstâncias do nascimento de cada pessoa estão fora de
seu próprio controle; embora o governo possa se esforçar para garantir uma maior igualdade
de oportunidade, com educação universal por exemplo, ainda assim seria difícil, mesmo para
pessoas com as mesmas habilidades; o perigo residiria em que o governo compensasse todas
as desvantagens de algumas pessoas impondo algum ônus às pessoas sem essas desvantagens,
até o governo controlar o modo como as pessoas agem; conclui-se que essas facilidades que o
governo pode prover podem ser justificadas por outros motivos.
Uma outra coisa pela qual Hayek critica o conceito é porque uma das razões pela qual existe o
Direito é para resolver conflitos. Um dos grandes objetivos do comunismo clássico é
estabelecer uma sociedade a qual não se tenha mais classes, porque essa é a fonte dos
conflitos, portanto o sucesso do comunismo seria o fim do Direito, “a transição da justiça
comutativa para a justiça distributiva significa uma progressiva substituição do direito privado
pelo direito público, dado que este consiste não em normas de conduta para cidadãos
privados, mas em normas de organização para funcionários públicos” (p. 108).
“Não há razão para que, numa sociedade livre, o governo não garanta a todos proteção contra sérias privações sob a forma de uma renda mínima garantida, ou um nível abaixo do qual ninguém precise descer. Participar desse seguro contra o extremo infortúnio pode ser do interesse de todos; ou pode-se considerar que todos têm o claro dever moral de assistir, no âmbito da comunidade organizada, os que não podem ser manter. Na medida em que uma tal renda mínima uniforme é oferecida, à margem do mercado, a todos que, por qualquer razão, são incapazes de obter no mercado uma manutenção adequada, isso não implica necessariamente uma restrição da liberdade, ou conflito com o estado de direito. Os problemas de que estamos aqui tratando surgem somente quando a remuneração por serviços prestados é determinada pela autoridade, suspendendo-se, assim, o mecanismo impessoal do mercado, que orienta a direção dos esforços individuais.” (108-9)
“Muito do que hoje se faz em nome da ‘justiça social’, portanto, é não só injusto como
também extremamente antissocial no verdadeiro sentido d palavra: significa, nada mais, nada
menos, que a proteção de interesses solidamente estabelecidos.” (p. 117). Em outras palavras,
a defesa da justiça social pode ser também uma tentativa de manipulação de um grupo social
por outro. Butler comenta que:
“Para Hayek, as reivindicações por ‘justiça social’ não estão de acordo com a disciplina adquirida sobre a qual se constrói a riqueza da sociedade. O exame que ele faz do conceito de ‘justiça social’ leva-o a rejeitar totalmente essa noção enquanto sólido princípio da ação [...] ‘Justiça social’ não é, de forma alguma, a expressão inocente da boa vontade para com os menos afortunados que normalmente aparenta ser, mas sim a demanda, por parte de grupos específicos, de uma posição privilegiada. Talvez pior que isso, na opinião de Hayek, é ela oposta da verdadeira justiça, que é orientada por regras gerais aceitas por todos e imparcial quando diante dos diversos indivíduos e grupos.” (BUTLER, 1987, 107-108, grifo acrescentado).
Enfim, Hayek conclui que “a expressão ‘justiça social’ não pode, por sua própria natureza, ser
provada” (HAYEK, 1985, p. 118). Deve se levar em conta o que os proponentes da justiça social
estão realmente pretendendo, é possível que eles estejam se aproveitando de uma demanda
social do que um grupo percebe como injusta para alavancar suas próprias agendas políticas.
Apesar de ser uma crítica forte, ainda assim, faz sentido porque nem mesmo o conceito de
justiça social deve ser tratado como uma vaca sagrada.
3. A possibilidade de justiça
Morrison identificou que o problema com a argumentação de Hayek é que ele não dá muita
importância a alguma alternativa, isto é, como ele insistiu demais no fato de que o resultado
do mercado não é justo nem injusto, dá-se a impressão de que os agentes têm que aceitar
passivamente o resultado, que incluem resultados percebidos como injustiças sociais. Há
também espaço para criticar o conceito de justiça de Hayek no sentido de que reconhece
apenas as instituições privadas e não dar atenção ao princípio kantiano de coerção recíproca (o
Estado tem o dever de proteger o indivíduo porque este lhe paga impostos, e este pode exigir
do Estado proteção tanto quanto o Estado pode exigir que o indivíduo lhe pague impostos), e
os mais pobres também fazem parte desse contrato tácito, logo eles também tem direito a
exigir do Estado proteção, justiça social (ou distributiva), se o mercado sozinho não fizer isso;
outra crítica que pode se fazer é que os resultados não são tão imprevisíveis assim, já que
pode-se realmente determinar se uma transação pode tornar as pessoas mais ricas ou pobres,
de acordo com a ordem de mercado.
O processo produtivo do mundo real seria um veículo para a coordenação de conhecimento
tácito e disperso. De um ponto de vista moral, para o autor, a crítica ao conceito de justiça
social falha. Olhando-se mais cuidadosamente, nota-se que a crítica de Hayek não implica da
pergunta se o governo deve intervir, mas quando e como, e esses pontos não necessariamente
colocam em conflito a ideia de justiça social e a preservação dos valores de mercado e
eficiência econômica.
E, com isso, há espaço para o diálogo entre Hayek e Rawls: há convergência no fato de ambos
utilizarem justiça procedural, a irrelevância do mérito (como foi explicado anteriormente, uma
pessoa com mais recursos não os ganha por merecimento, e isso é algo que Rawls parece
concordar), o uso de um véu da ignorância e desigualdades podem ser benéficas (LISTER,
2009).
Para Rawls, o objetivo da justiça é “a maneira pela qual as instituições sociais mais importantes
distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão de vantagens
provenientes da cooperação social” (p. 7-8) e essa é também uma preocupação no
pensamento de Hayek, como foi demonstrado.
Conclui-se que há um problema de definições: Hayek se insurgiu contra a justiça social, mas
parece ter sido uma forma de específica de justiça social, já que sugestões de política
compatíveis com um ideal de Estado mínimo (não se deve esquecer que para Hayek, um
Estado mínimo era um Estado forte) se encaixariam em outras definições de justiça social. Ele
foi até criticado por anarco-capitalistas por isso (o que pode ser um bom sinal).
O que ele criticou foi a imposição estatal no sentido de se transferir forçosamente recursos
com base em uma definição de mérito inerente, e isso seria prejudicial porque minaria a
ordem de mercado necessária ao funcionamento da sociedade. Porém mesmo assim suas
críticas podem ainda ser relevantes porque a justiça social não deve ser tratada como uma
vaca sagrada, imune a críticas, sendo que sua mais relevante foi que grupos políticos podem
aproveitar demandas da população para fazer avançar suas agendas políticas. Olhando-se mais
cuidadosamente, nota-se que a crítica de Hayek não implica da pergunta se o governo deve
intervir, mas quando e como, e esses pontos não necessariamente colocam em conflito a ideia
de justiça social e a preservação dos valores de mercado e eficiência econômica. E para Hayek
uma sociedade de mercado seria uma em que a intervenção seria mínima porque os
problemas econômicos seriam exceções; porém deve se determinar até que ponto essa
colocação seria relevante, até mesmo numa sociedade ideal.
4. Bibliografia
BARZOTTO, Luiz Fernando. “Justiça Social - Gênese, estrutura e aplicação de um conceito.”
Revista Jurídica Digital, vol. 4, 2003.
BUTLER, Eammon. A contribuição de Hayek às ideias políticas e econômicas do nosso tempo.
Rio de Janeiro: Insituto Liberal, 1987.
HAYEK, Friedrich. Direito, Legislação & Liberdade: A Miragem da Justiça Social. São Paulo:
Visão, 1985.
LISTER, Andrew. “The ‘Mirage’ of Social Justice: Hayek Against (and for) Rawls”. CSSJ Working
Papers Series, junho de 2011.
MORRISON, Samuel Taylor. “A Hayekian Theory of Social Justice”. NYU Journal of Law and
Liberty, nº 0, vol. 1, pp. 225-248.
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 2ª edição