hayek versus polanyi: espontaneidade e desígnio no capitalismo

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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS ESCOLA DE ECONOMIA DE SÃO PAULO (FGV – EESP) RAFAEL GALVÃO DE ALMEIDA HAYEK VERSUS POLANYI Espontaneidade e Desígnio no Capitalismo São Paulo Novembro de 2010

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Decidi demonstrar a minha mono ao mundo. Esse é o resumo:Este trabalho dedica-se a introduzir o conceito de ordem espontânea, seu desenvolvimento através de diversas escolas de pensamento econômico e a importância para a sociedade atual. É falado sobre a importância de Friedrich Hayek, já que ele tem o modelo mais conhecido de ordem espontânea, como ele começou a elaborá-lo a partir da sua pesquisa sobre o papel da informação na economia e sua maturação em Direito, Legislação e Liberdade. Como contraponto ao modelo hayekiano, incluem-se críticas ao conceito e se analisa o trabalho de Karl Polanyi. Ele divergia de Hayek sobre o papel do mercado na sociedade, ao afirmar que a sociedade se protege da invasão do mercado nas demais esferas sociais através do processo de duplo movimento. Por fim, conclui-se que a ordem espontânea existe, que o duplo movimento, porque inicia-se com indivíduos antes de tomar forma legislativa, tem as características necessárias para ser considerado um tipo de ordem espontânea e que o anarquismo político é degenerativo como programa de pesquisa.

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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS ESCOLA DE ECONOMIA DE SÃO PAULO (FGV – EESP)

RAFAEL GALVÃO DE ALMEIDA

HAYEK VERSUS POLANYI Espontaneidade e Desígnio no Capitalismo

São Paulo Novembro de 2010

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RAFAEL GALVÃO DE ALMEIDA

HAYEK VERSUS POLANYI Espontaneidade e Desígnio no Capitalismo

Monografia apresentada à Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, como requisito para a conclusão do curso de graduação em Ciências Econômicas Campo de conhecimento: História do Pensamento Econômico Orientador: Ramón Vicente García Fernández

São Paulo Novembro de 2010

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RESUMO

Este trabalho dedica-se a introduzir o conceito de ordem espontânea, seu desenvolvimento

através de diversas escolas de pensamento econômico e a importância para a sociedade atual.

É falado sobre a importância de Friedrich Hayek, já que ele tem o modelo mais conhecido de

ordem espontânea, como ele começou a elaborá-lo a partir da sua pesquisa sobre o papel da

informação na economia e sua maturação em Direito, Legislação e Liberdade. Como

contraponto ao modelo hayekiano, incluem-se críticas ao conceito e se analisa o trabalho de

Karl Polanyi. Ele divergia de Hayek sobre o papel do mercado na sociedade, ao afirmar que a

sociedade se protege da invasão do mercado nas demais esferas sociais através do processo de

duplo movimento. Por fim, conclui-se que a ordem espontânea existe, que o duplo

movimento, porque inicia-se com indivíduos antes de tomar forma legislativa, tem as

características necessárias para ser considerado um tipo de ordem espontânea e que o

anarquismo político é degenerativo como programa de pesquisa.

Palavras-chaves: ordem espontânea, duplo movimento, Friedrich Hayek, Karl Polanyi,

conhecimento tácito, mão invisível

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ABSTRACT

This work is dedicated to introduce the concept of spontaneous order, its development

through many schools of economic thought and its importance to today’s society. It is talked

about the importance of Friedrich Hayek, since he has the most known model of spontaneous

order, how he started to elaborate from his research about the role of the information on the

economy and his maturation in Law, Legislation and Liberty. As a counterpoint to the

hayekian model, it is included criticism to the concept and the work of Karl Polanyi is

analyzed. He diverged from Hayek about the role of the market in the society, when he

affirmed that society protects itself from the invasion of the market in the other social spheres,

through the process of double movement. Lastly, it is concluded that there is spontaneous

order, that double movement, because it is started with the individuals before taking

legislative form, has the necessary characteristics to be considered a type of spontaneous

order and that political anarchism is degenerative as research program.

Keywords: spontaneous order, double movement, Friedrich Hayek, Karl Polanyi, tacit

knowledge, invisible hand

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ÍNDICE

Desenvolvimento histórico e teórico ..........................................................................................6 1. Introdução...........................................................................................................................6 2. Definição do termo .............................................................................................................6 3. O conceito na história .........................................................................................................8

3.1. Escola de Salamanca ...................................................................................................9 3.2. Século XVIII .............................................................................................................10 3.3. Iluminismo escocês ...................................................................................................12 3.4. Adam Smith e a mão invisível...................................................................................13 3.5. A Escola Austríaca ....................................................................................................14

4. Teoria dos jogos ...............................................................................................................15 Hayek e a ordem espontânea ....................................................................................................17

1. Breve biografia pessoal e intelectual ................................................................................17 2. A guerra de Hayek contra o socialismo: O debate do cálculo econômico .......................19 3. O papel do indivíduo ........................................................................................................23 4. Liberdade e informação ....................................................................................................25 5. A ordem espontânea para Hayek em Direito, Legislação e Liberdade ............................26

A intervenção humana na ordem atual .....................................................................................30 1. Crítica plural à ordem espontânea ....................................................................................30 2. O pensamento de Karl Polanyi .........................................................................................32

Conclusão .................................................................................................................................38 Bibliografia...............................................................................................................................43

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DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO E TEÓRICO

Nenhum corpo existente de leis pode ser construído apenas por puro raciocínio abstrato, porque a imensa complexidade de um processo legal torna impossível representar seus elementos em poucas máximas simples.

Sir Matthew Hale, parafraseado por Norman Barry1.

Sabemos mais do que podemos dizer [que sabemos]. Michael Polanyi.

1. Introdução

O que têm em comum um movimento de preços numa feira de tomates de mesma qualidade,

um grupo de skatistas que usam uma área para andar de skate e não trombam entre si

frequentemente (KLEIN, 2006), regras sobre como pegar lenha após uma tempestade em um

vilarejo costeiro da Inglaterra (SUGDEN, 1989) e uma vizinhança segregada com moradores

tolerantes (BOWLES, 2003, p. 56)? Todos esses resultados surgiram da interação de

indivíduos que estavam pensando em si mesmo e assim eles puderam criar uma organização

adequada para seus fins entre si. Essa é a definição mais concisa de ordem espontânea, a

idéia de que muitas instituições surgem naturalmente na sociedade, sem interferência de um

poder superior, comumente identificado como o governo, mas sim através de interações

individuais. A mais famosa metáfora é a de Adam Smith, em que se referindo aos resultados

industriais explica que “é só levado a um fim que não era parte de sua intenção” (SMITH,

2003, p. 203). O termo “ordem espontânea” foi primeiramente usado pelo economista

Wilhelm Röpke (BLADEL, 2004).

2. Definição do termo

1 Está implícito que todas as traduções foram feitas pelo autor.

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Uma das características da teoria da ordem espontânea é que não há teoria sistematizada da

ordem espontânea. Os autores, tanto defensores quanto críticos, falam sobre “conceito”,

“idéia”, “doutrina” da ordem espontânea, mas nenhum deles utiliza a palavra “teoria”. O

único elemento que é consenso para todos os estudiosos do tema é que deve ser incorporado o

individualismo metodológico, no sentido de se utilizar o indivíduo como base para a análise.

Para Barry (1982), uma teoria da ordem espontânea precisa englobar individualismo

metodológico, racionalismo construído por um processo natural e lei natural, embora não no

sentido racionalista, isto é, no sentido de se permitir a intervenção pró-ativa do Estado na

economia2.

Enquanto isso, Mulligan (2004)3 organiza fatos estilizados que caracterizam ordem

espontânea, nas ciências sociais (ou na sociedade) entre eles, a) referência proeminente aos

costumes passados (path dependence) e respeito pela tradição; b) acumulação de um grande

número de pequenas mudanças incrementais; c) valorização da neutralidade, o que permite

aos indivíduos escolher livremente de acordo com suas preferências; d) foco no planejamento

individual dos processos, não do resultado; e) algum nível de incerteza para deixar que o

resultado final seja determinado pelos participantes; f) e um tipo de seleção natural entre as

instituições.

Por fim, um conceito relativamente ignorado na definição de ordem espontânea refere-se ao

conhecimento tácito, conceito elaborado por Michael Polanyi (2009), irmão de Karl Polanyi.

Neste trabalho, ele inicia com uma discussão sobre o papel do Estado no progresso científico,

2 Hayek faz uma distinção eloquente entre esses dois em seu ensaio Individualism: True and False em seu livro Individualism and Economic Order. 3 Mulligan cita sete características em seu artigo, mas considerei que a primeira e a sexta característica eram praticamente idênticas.

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narrando como, devido às doutrinas de Lysenko, a pesquisa científica na União Soviética

ficou extremamente prejudicada; não houve nenhum progresso a não ser na área relativa à

indústria bélica e nuclear (que, a propósito, não estavam sob o efeito das doutrinas

lysenkoistas). Isso ocorreu porque a busca pelo progresso científico deixou de ser um fim em

si mesmo. Isso, para ele, prejudica o desenvolvimento científico porque pressupõe que um

corpo de governo como o Estado consegue ter domínio sobre a direção do progresso

científico. Não pode ocorrer isso, porque, para Polanyi, o conhecimento adquirido através de

vias não-técnicas, como experiência e até intuição, é tão importante quanto o teórico, ou

explícito, como ele próprio coloca: “uma teoria matemática só pode ser construída se for

precedida de elementos que contenham conhecimento tácito” (POLANYI, 2009, p. 21), como

o conhecimento válido do problema, a capacidade do cientista de persegui-lo, guiado pel seu

senso de se aproximar da solução e antecipação das implicações, ainda, indeterminadas no

fim. E como o conhecimento tácito difere de um cientista para outro, há a possibilidade de

renovar e desenvolver o conhecimento científico, em que os cientistas vigiam uns aos outros

(princípio do controle mútuo), sem precisar de uma autoridade central, embora ela esteja

presente quando for útil; o ponto principal é que, com a presença do conhecimento tácito, os

agentes têm a oportunidade de se organizarem independentemente, o que favorece a criação

de uma ordem espontânea.

3. O conceito na história

A noção de ordem espontânea pode ser traçada até alguns filósofos da antiguidade4. Boehm

(1994) afirma que há indícios de idéias semelhantes em Aristóteles e Tomás de Aquino. Mas

os primeiros esboços de uma teoria de ordem espontânea surgiram na Espanha do século XVI.

4 O antigo economista Monchretién amaldiçoou Platão e Aristóteles por acreditarem que certas coisas podiam ser organizadas sem planejamento.

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3.1. Escola de Salamanca

A chamada Escola de Salamanca, um centro do escolasticismo espanhol durante os séculos

XVI e XVII foi conhecida por suas análises econômicas da época. A escola escolástica estava

alinhada com o pensamento comercial nascente da época. Como era o período de transição

final do feudalismo para o capitalismo pós-medieval, os comerciantes precisavam legitimar

suas práticas. Nos países protestantes, a própria Reforma já provia uma legitimação ao elevar

a categoria do comerciante, como já foi largamente estudado (e.g. A Ética Protestante e o

Espírito do Capitalismo, de Weber). Nos países católicos, o comerciante ainda era visto como

um profissional inferior, assim como foi durante todo o período medieval, mas a Escola de

Salamanca possibilitou uma legitimação para as atividades comerciais no contexto católico.

A Escola de Salamanca nunca sistematizou suas idéias, mas seus escritos demonstravam

entendimento avançado dos processos econômicos, como na teoria do valor5, quando eles

verificaram que o influxo de metais preciosos das colônias espanholas aumentava o nível de

preços em toda a Europa, e as contínuas intervenções na quantidade de moeda, disse o jesuíta

português Luis de Molina, apenas “faziam com que público ficasse pior” (apud BARRY,

1982). O principal reabilitador da teoria econômica escolástica, Schumpeter afirma que “o

que faltava (neles) era o conceito de margem” (idem).

Outro aspecto importante para se entender porque o escolasticismo de Salamanca pode ser

considerado um precursor do conceito de ordem espontânea é a ênfase no indivíduo, fato tão

5 Para Diego de Covarrabias, “o valor de um artigo não depende de seu valor natural, mas da estimação dos homens, mesmo que seja falha” (apud BARRY, 1982).

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salientado por Hayek. Eles eram antimonopolistas porque acreditavam que o monopólio do

mercado explorava os consumidores.

3.2 Século XVIII

Durante o século XVIII, houve dois eventos muito importantes para a tradição da ordem

espontânea: o primeiro foi o reconhecimento da common law, o direito consuetudinário, como

o sistema legal da Grã-Bretanha, que baseia a jurisprudência nos costumes e regras de bolso,

graças aos esforços do jurista sir Matthew Hale. Hoje em dia, há vários estudos sugerem que a

common law foi um elemento fundamental para possibilitar os países anglo-saxões se

desenvolverem, em contraposição ao direito romano, codificado.

O segundo foi a revolução científica, pela qual vários progressos científicos permitiram uma

maior compreensão do mundo e entre eles se destaca a física newtoniana. Uma característica

importante do modelo newtoniano é que permitia dar uma explicação racional da natureza

sem intervenção do homem, como colocou Bianchi (1988):

A ampla disseminação da física newtoniana faz com que a natureza seja encarada como um sistema de forças plenamente articulado, passível de entendimento, mensuração e manipulação [...] o Tableau Economique, do Dr. Quesnay, de 1758, embora inspirado no movimento de circulação do sangue, explicita de forma inequívoca uma concepção mecanicista da economia. Num quadro de três colunas, com seis pontos de partida e chegada, o domínio econômico é apresentado como um conjunto harmônico, em que cada parte cumpre uma função insubstituível na manutenção do todo. É o universo-máquina, o universo-relógio de funcionamento impecável, decomponível em elementos de extrema complexidade, mas, em princípio, acessível aos sentidos e mensurável. Abandona-se em definitivo a pretensão medieval de conhecer essências e causas finais, ao mesmo tempo em que a matemática é mantida como a grande ferramenta de trabalho, na prática das ciências empíricas (BIANCHI, 1988, p. 76, grifo acrescentado).

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Em 1705, o médico holandês radicado na Inglaterra Bernard de Mandeville chocou a opinião

pública com seu poema The Grumbling Hive6. A polêmica reside no fato de que Mandeville

nos conta a história de uma colméia na qual suas habitante aladas eram interesseiras,

invejosas, egoístas, verdadeiras patifes, mas que os vícios naturais de cada uma contribuíam

para a prosperidade global da colméia.

Muitas interpretações já foram feitas sobre esta obra. Barry (1982) reconhece que é difícil

encaixar Mandeville em um grupo de pensadores. Como a obra dele tem uma natureza

satírica, ele não tinha muita preocupação em ser cientificamente claro. É possível deduzir que

Mandeville desafiou a noção de que boas leis fazem bons cidadãos, que data desde

Aristóteles7, ao propor que “a noção moderna de que regras certas de governança podem fazer

com que motivos egoístas possam promover bem-estar geral” (BOWLES, 2003, p. 475),

enfatizando o papel das instituições8.

Basicamente ele acreditava numa sociedade mista em que o governo poderia fazer com que o

egoísmo humano inato trabalhasse a favor da sociedade, porém considerava que “o indivíduo

era logicamente anterior à sociedade” (DUMONT, 1977, p. 65) e, ao separar a economia da

moral. Para ele existe um mecanismo automático do sistema econômico que conduz ao bem

público e, quando ele não pudesse ser demonstrado, em outras palavras, falhava, o mecanismo

moral reafirmaria seu poder e autorizaria a intervenção política para o restabelecimento da

ordem (idem, p. 79).

O autor deduz em seu argumento uma equivalência entre dois sistemas, o moral e o econômico, que representam duas visões do sistema social. No sistema social da moralidade, vemos que os sujeitos ou agentes internalizam

6 Comumente mal-traduzido como A Fábula das Abelhas, que é o título do livro posterior dele, sobre o mesmo assinto. A tradução literal seria A Colméia Barulhenta. 7 Aliás, o primeiro a desafiar esse conceito foi Maquiavel, em sua obra-prima O Príncipe. 8 Ele mesmo considerava a moralidade algo “desenvolvido por políticos habilidosos para fazer com que os homens fossem úteis e tratáveis uns com os outros” (apud BARRY, 1982).

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a ordem social sob a forma de regras morais, cada uma definindo sua conduta indiretamente, ao se referir à sociedade como um todo. No sistema econômico, pelo contrário, cada sujeito define sua conduta apenas relativa a seu próprio interesse, e assim a sociedade não é nada mais que o mecanismo – ou a Mão Invisível – pelo qual os interesses se harmonizam. Este mecanismo estava implícito no início e que, uma vez descoberto, como por Mandeville, justifica condutas egoístas e não sociais de todos. (idem, P. 75).

Portanto, pode-se concluir que no sistema econômico, Mandeville acreditava numa ordem

espontânea, porém de nada valeria se não tivesse instituições morais fortes, e, para ele, essas

podiam ser construídas. Talvez Mandeville se aproxime mais do paradigma neoclássico do

que da escola austríaca.

3.3. Iluminismo escocês

O iluminismo escocês foi o maior propagador do individualismo como base da metodologia

(embora ainda não seja exatamente o individualismo metodológico), e tem seus principais

expoentes David Hume, Adam Ferguson e Adam Smith. A sociedade seria explicada em

termos de impulsos naturais, como auto-interesse e instinto, com pouca ou nenhuma

interferência de um planejador.

David Hume, um dos mais abrangentes filósofos do Iluminismo escocês, era também um

cético, principalmente em relação à razão humana. Ele não acreditava muito na idéia de que

regras poderiam ser criadas e impostas para melhoria da sociedade e acreditava que isso só

ocorreria se as regras que servem ao interesse das pessoas fossem observadas e estudadas.

Porém essas regras surgiriam espontaneamente, no sentido de Hayek, em suas palavras, “auto-

interesse é a verdadeira origem [da determinação] das regras de propriedade, direito e

obrigação” (apud BARRY, 1982).

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Outro expoente importante é Adam Ferguson, considerado o pai da sociologia moderna. Em

sua obra An Essay on Civil Society, ele defende que a sociedade comercial surgiria

espontaneamente, através do ajustamento das reações das pessoas às circunstâncias. Sua

descrição está na segunda seção do terceiro livro, chamada The history of political

stabilishments, e se encaixa muito bem com as definições modernas de ordem espontânea. Ele

busca descrever como a sociedade evolução, desde o estágio da barbárie até a sociedade

comercial, mas, diferente de Hobbes, não há contrato social, apenas através do intercâmbio e

combinação de seus interesses. Como ele mesmo falou, “nenhuma constituição é formada por

acordo, nenhum governo é copiado de um plano” (FERGUSON, p. 228).

Ainda assim há uma mistura curiosa em Ferguson; seu pensamento não inclui apenas uma ética voluntária que enfatiza a atividade e a benevolência [...], mas também um reconhecimento do fato que os homens são geralmente governados pelo auto-interesse e que o interesse público é alcançado assim que cada pessoa se importar com seu próprio bem-estar. Isto reforça a opinião de Hayek que a teoria da ordem espontânea não depende necessariamente de um axioma de auto-interesse, mas apenas da idéia de que estruturas sociais agregadas e ordenadas podem ser traçadas das ações de indivíduos que não tinham a intenção de criá-las assim (BARRY, 1982).

Ainda assim, Ferguson era cético em relação ao resultado social decorrente; ele acreditava

que a sociedade comercial poderia alienar o homem dos valores éticos, como espírito público

e cavalheirismo, enfim, que o auto-interesse não conseguiria sozinho segurar uma sociedade.

3.4. Adam Smith e a mão invisível

Adam Smith é outro grande pensador que, se fossem empilhados todos os livros e artigos que

tentam interpretar sua obra, daria para se ter um prédio de uns 10 metros. Sendo partidário do

iluminismo escocês, ele demonstra sua sabedoria em duas obras: Teoria dos Sentimentos

Morais e A Riqueza das Nações, e o ponto que une ambas é a análise das paixões humanas e

como isso explica a sociedade. A ordem é criada, independente da vontade dos estadistas ou

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mercantes, mas só poderia se tornar uma ordem boa se o Estado pudesse calibrá-la. Camargos

(2001) comenta que:

Se o estadista optasse pela abordagem de Smith, deveria, primeiramente, ter o conhecimento histórico do contexto da nação que dirige para aprender o comportamento da população face às suas motivações e levar em consideração que: 1) o resultado social beneficente é essencialmente auto-regulado pelas forças do mercado e as instituições sociais; e 2) nas eventuais, mas prováveis, falhas de mercado, é dever do Estado adiantar-se nos ajustes e aprimoramentos institucionais que se fizerem necessários para atenuá-las e corrigi-las. De outra forma, a mão invisível do mercado explana o resultado social beneficente, mas sob o auxílio da mão benevolente e justa do Estado. E é claro, todos estes termos devem ser apreendidos segundo o que foi exposto por Smith. (CAMARGOS, p. 134, grifo no original).

Portanto, Adam Smith, diferente de Hobbes e Mandeville, e também de Hayek, acreditava que

a intervenção estatal deve vir após a criação por ordem espontânea, não antes.

Após a introdução do utilitarismo, o programa de pesquisa da ordem espontânea foi deixado

de lado durante quase todo o século XIX. O utilitarismo, como colocado por Jeremy Bentham,

e os dois Mill pregava que o objetivo do governo era aumentar o bem-estar da sociedade

através da elaboração de leis e instituições. Entre os que continuavam a acreditar na

espontaneidade como a melhor resposta aos problemas, estavam os seguidores de Fréderic

Bastiat e Herbent Spencer, mas, no final do século XIX, surgiu a Escola Austríaca, de Carl

Menger, que renovou o interesse pelo tema.

3.5. A Escola Austríaca

Carl Menger, em sua obra Problems in Sociology and Economics, contrariando o pensamento

corrente, dizia que “o comportamento [dos agregados sociais] é explicável apenas em termos

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individualistas... Língua, religião, lei, até mesmo o Estado [...] não se pode falar que houve

ação proposital da comunidade para estabelecer essas coisas” (apud BARRY, 1982)9.

O foco de toda a escola austríaca está no indivíduo. “Apenas o indivíduo é real; a sociedade é

o efeito líquido de ações individuais” (CLARK, 1993), e é, portanto o indivíduo que melhor

pode escolher o resultado social, ou seja, se cada indivíduo agir em seu próprio proveito, o

resultado social será benéfico. Assim ele não deve sofrer interferência em suas ações, por isso

os austríacos vêem o governo com tantas suspeitas. Para eles, o governo jamais deve interferir

no processo de decisão do indivíduo, coagi-lo, porque o resultado social será sub-ótimo. Na

verdade, uma vertente de pensadores ainda mais radicais se separou da escola austríaca e

criou a escola anarcocapitalista, que prega a eliminação do governo para o funcionamento

correto da sociedade de mercado.

Assim, sendo influenciado pela escola austríaca, Hayek pôde criar um sistema no qual o

conceito de ordem espontânea pode ser crucial para a manutenção da sociedade,

diametralmente oposto ao de pensadores como Karl Polanyi, mas por enquanto apenas vou

citar o fato; o desenvolvimento do argumento dos dois autores estará nas próximas seções. Por

fim, será discutida a importância do conceito de ordem espontânea para a teoria dos jogos.

4. Teoria dos jogos

Desde os jogos mais simples até os mais complexos que são utilizados para modelagem

computacional, é necessário que pelo menos dois agentes interajam10, e se alcança um

9 Um ponto a favor de se considerar a linguagem como surgida de um processo espontâneo é o fracasso de uma língua construída, como o esperanto, de se difundir. 10 Embora existisse no começo os jogos com um jogador, em que este “jogava” contra a natureza, não são mais ensinados aos graduandos.

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resultado que não tem interferência externa. Um exemplo básico é o jogo do dilema dos

prisioneiros. O resultado é que se os dois prisioneiros cooperam, eles ficariam melhor, mas

como o incentivo à não cooperar é muito grande, suas situações finais acabam sendo de fato

piores. Não se tem objetivo nesse jogo, apenas o resultado11. Um dos formalizadores da teoria

dos jogos, Oskar Morgensten era um economista contemporâneo de Hayek, e o sucedeu na

diretoria do instituto que o último ajudou a fundar e, apesar de nunca se referir como

economista da escola austríaca, é considerado por várias vertentes desta escola como um

inovador da área. Schotter escreveu que “em termos econômicos [a teoria de Von Neumann-

Morgensten] deve ser apreciada como um marco na evolução da Escola Austríaca” (apud

FOSS, 1999).

Como a interação social dos indivíduos nesses jogos não tem objetivo definido, isto é

extremamente útil para se fazer simulações. Uma simulação não tem um objetivo definido,

apenas testa o que acontece se uma variável de um modelo for modificada. Os modelos

econômicos de agentes computacionais fazem exatamente isso. Vriend relata que Hayek dizia

que “para entender um rato e porque ele faz o que faz, devemos nos tornar como um rato”

(VRIEND, 2002), e num modelo computacional pode-se simular o que um rato teórico faria12,

embora ainda haja dúvidas se este tipo de modelagem é tecnicamente formal.

11 Jogos com objetivo seriam os leilões, por exemplo, que obrigatoriamente necessitariam de um desenhista. 12 Vriend também realça que os modelos são abstrações da realidade, não uma replicação dela.

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HAYEK E A ORDEM ESPONTÂNEA

Pode ser de longe a mais difícil e a não menos importante tarefa da razão humana compreender racionalmente suas próprias limitações. Friedrich Hayek A civilização avança graças à ampliação do número de operações importantes que podemos realizar sem pensar. Alfred North Whitehead

Friedrich Hayek foi sem dúvida o maior propagador do conceito de ordem espontânea. Mas,

para entender como se originou, é necessário pesquisar sua biografia, entender o que ele tinha

em mente para chegar a esse tópico.

1. Breve biografia pessoal e intelectual

Friedrich Augustus von Hayek nasceu em 1899, numa família de intelectuais. Seu pai era

botânico e professor na Universidade de Viena e era primo em segundo grau de Ludwig von

Wittgenstein. Após servir no exército Austro-Húngaro, durante a Primeira Guerra Mundial,

matriculou-se na Universidade de Viena, onde iniciou seus estudos em Direito. Em 1921

doutorou-se em Direito e em 1923, em Ciência Política. Nesse período, ele entrou em contato

com as idéias de Ludwig von Mises, que rejeitava o socialismo como alternativa para reduzir

e reverter a pobreza austríaca do pós-guerra (um dos motivos primários que levou Hayek a

estudar Economia).

Seu interesse em economia monetária levou-o a se tornar o primeiro presidente do

Österreichisches Institut für Konjunkturforschung (Instituto Austríaco para Pesquisa dos

Ciclos de Comércio), que mais tarde serviu para propagar a teoria austríaca dos ciclos de

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comércio. Em 1931, ele assumiu uma cadeira na London School of Economics, instituição na

qual ficaria quase duas décadas. Estando nessa escola, ele entrou em controvérsia com Keynes

e Sraffa, em relação à política monetária. Ele também se envolveu na controvérsia do cálculo

econômico em regimes socialistas, de onde começou a desenvolver suas teorias sobre a

importância da informação como elemento constitutivo no mercado.

Após a publicação da Teoria Geral de J. M. Keynes (1936), Hayek ficou fora de cena por

alguns anos, período no qual publicou sua Pure Theory of Capital (1941), que procurava dar

um novo entendimento ao papel do investimento e do capital na economia. Hayek só voltou a

aparecer para o público em geral quando foi publicado O Caminho para a Servidão, em 1944.

Neste livro, Hayek defendia o mercado livre e procurava dar um embasamento econômico à

guerra contra o fascismo. Foi também durante esse período que ele compilou o livro

Individualism and Economic Order (1948), que organizava as primeiras idéias do conceito de

ordem espontânea.

Em 1950, ele se mudou para a Universidade de Chicago, e permaneceu lá até 1962, quando se

mudou novamente, desta vez para a Universidade de Freiburg. Durante esse período, até

1974, ele ficou relativamente esquecido. Nesse período, ele desenvolveu trabalhos em

psicologia, no qual ele explorou transversalidades entre esta ciência, economia e direito, como

em The Counter-Revolution of Science (1952), The Theory of Complex Phenomena (1964), no

qual ele desenvolve estudos em complexidade e ordem espontânea. Também, em 1973, ele

começa a escrever a sua magna-opus Law, Legislation and Liberty, que seria completado em

1979, com três volumes.

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Como já foi dito, Hayek era apenas um intelectual não muito badalado, especialmente entre os

economistas, cuja atenção nesses anos estava voltada aos teóricos macroeconômicos da época,

como Friedman e Lucas, ou aos microeconomistas que desenvolveram a abordagem neo-

walrasiana, como Arrow, Debreu ou Hahn. Isso mudou quando Hayek recebeu o prêmio

Nobel de Economia em 1974, dividido juntamente com Gunnar Myrdal, “pelo trabalho

pioneiro na teoria monetária e flutuações econômicas e pela análise penetrante da

interdependência de fenômenos econômicos, sociais e institucionais.”13 A sua palestra se

denominou A Pretensão do Conhecimento, no qual ele alerta para a atitude “cientista” (que

ele descreveu anteriormente em The Counterrevolution of Science), na qual alerta que os

economistas, na ânsia de copiar os procedimentos de ciências como a física14, acabaram

contribuindo mais do que deveriam para a crise da década de 1970. Hayek reafirmou sua

teoria de que os preços representam essencialmente informação, e que esta é escassa, e que a

economia clássica trabalha com variáveis em que é difícil ou até impossível obter informação

precisa. Ele também afirma que a economia é uma ciência em que se deve considerar

“fenômenos de complexidade organizada”, cujas estruturas “não dependem apenas das

propriedades dos elementos individuais de que elas são compostas, e da frequência relativa

com que eles ocorrem, mas também na maneira que os elementos estão conectados” (Hayek,

1974). E, Hayek declara, esses fenômenos são impossíveis de serem totalmente computados

por um único observador.

2. A guerra de Hayek contra o socialismo: O debate do cálculo econômico

13 http://nobelprize.org/nobel_prizes/economics/laureates/1974/index.html ; o interessante é que Myrdal era um dos mais conhecidos teóricos social-democratas, ficando indignado com o fato de ter que dividir o prêmio com alguém com visões tão opostas à dele, tanto é que ele só fez sua palestra sete meses depois de Hayek. Isso também originou a observação irônica de que a economia é a única ciência que dá um Nobel para duas pessoas que falam coisas opostamente diferentes (a redundância é intencional). 14 Atualmente, com os avanços na física quântica, muitos físicos passaram a contestar a solidez da física como ciência exata.

Page 20: Hayek versus Polanyi: Espontaneidade e Desígnio no Capitalismo

20

Para entender como Hayek deu origem ao conceito de ordem espontânea, é necessário discutir

sobre uma controvérsia que se deu durante a década de 1930: o debate do cálculo econômico

em uma economia planejada.

O debate começou um pouco antes do início da Primeira Guerra Mundial, mas tomou força

quando Ludwig von Mises publicou em 1920 um artigo em que afirmava categoricamente que

é impossível uma economia planejada funcionar eficientemente. Caldwell (2003) afirma que o

teórico que Mises tinha em mente era Otto Neurath, que afirmava que o planejamento

econômicos dos tempos de guerra poderia ser levado adiante em tempos de paz, através de um

sistema de “contas nacionais” (não relacionado com o termo atual) que faria com que

atendesse objetivamente as necessidades de cada pessoa, física ou jurídica; em tal situação, e

que o dinheiro seria dispensável e uma economia poderia funcionar sem moeda. Como Mises

era um teórico monetário, e um dos fundamentos da Escola Austríaca é que a moeda emergiu

através de um processo de ordem espontânea, ele rechaçou esse argumento (o argumento de

uma economia sem moeda também não teve boa acolhida entre outros socialistas).

Contrariamente, Mises afirma que “quando não há um mercado livre, não há mecanismo de

preço; sem um mecanismo de preço, não há cálculo econômico” (MISES, 1920), ou seja,

apenas num mercado que não fosse controlado por um poder como o Estado é que os agentes

poderiam livremente estabelecer preços, fazer transações e alcançar estabilidade, algo que um

planejador central socialista jamais poderia fazer.

Hayek, quando entrou para a universidade, era um socialista fabiano mas, após conhecer

Mises, tornou-se um liberal e, durante a década de 1930, engajou-se em dois debates: um

sobre teoria do capital e ciclos econômicos contra Keynes e Sraffa, o qual não obteve bons

resultados, e no do cálculo econômico. Ele foi o editor de Collectivist economic planning:

Page 21: Hayek versus Polanyi: Espontaneidade e Desígnio no Capitalismo

21

Critical studies on the possibilities of socialism, um livro que procurava refutar o

planejamento econômico central.

O argumento dos socialistas da época era que o governo socialista podia emular as qualidades

que eles consideravam positivas do mercado através do poder do governo voltado para a

promoção do bem-estar do trabalhador numa sociedade, teoricamente, sem classes. Henry

Dickinson acreditava que, através do modelo walrasiano, poder-se-ia calcular quantidades e

preços ótimos em qualquer economia, tanto socialista quanto capitalista. O problema, então,

do planejador central era simplesmente montar o modelo (CALDWELL, 2003). Mas o

economista socialista pioneiro foi Oskar Lange. Em seu livro On the economic theory of

socialism, ele argumentava que se preços fossem entendidos como custos de oportunidade,

isto é, “termos no qual alternativas são fornecidas”, a fixação de preços seria apenas uma

peculiaridade do sistema capitalista. Então, numa economia socialista, os preços seriam dados

por um certo “comitê de planejamento central”. Com isso, as firmas não existiriam para

maximizar lucros, mas para fornecer bens à sociedade seguindo o critério “a cada um segundo

sua necessidade”, e o mecanismo de entrada e saída de firmas seria emulado por meio de

expansão ou contração da atividade. Problemas na fixação de preços seriam corrigidos por

meio de tentativa-e-erro. Haveria também um mercado de bens de consumo livre, mas um

mercado de bens de capital controlado, o que eliminaria a desigualdade de renda. Interessante

notar que, posteriormente, Lange se dedicou ao estudo da estatística15 e da cibernética, pois

ele acreditava que avanços na ciência da computação permitiriam ao planejador fazer um

sistema de equações computacional que simplesmente resolveria o “sistema de equações de

15 Ele se tornou posteriormente um dos pais da econometria. Para uma defesa do ponto de vista marxista, ver COTTRELL & COCKSHOTT (1993).

Page 22: Hayek versus Polanyi: Espontaneidade e Desígnio no Capitalismo

22

uma economia”. Uma tentativa de levar a cabo essa idéia foi o projeto Cybersyn, que foi

desenvolvido durante o governo de Salvador Allende no Chile16.

Em sua resposta, Hayek17 colocou a dificuldade de se obter a informação necessária para tal

empreendimento, de como formular as equações, de como o sistema era incapaz de se adaptar,

enfim, seria um esforço completamente infrutífero tentar fazer um modelo walrasiano

completo da economia para criar artificialmente um sistema socialista de preços justo para a

nação. Em seus dois artigos, Economics and Knowledge (1937) e The Use of Knowledge in

Society (1945) ele argumenta que nenhum planejador central tem informação suficiente para

decidir o que é melhor para a sociedade, porque, “o conceito de equilíbrio [geral] é de

nenhuma significância” (HAYEK, 1937). O problema surge com a expressão “informação

dada”, que é um conceito relevante para modelos teóricos, mas não se aplica à realidade.

Então, Hayek começou a desenvolver uma teoria com ausência de um equilíbrio geral na

economia. Faltaria ao planejador central não só saber as quantidades necessárias para o

cálculo, mas também quais delas seriam relevantes.

Sua mais conhecida investida contra o pensamento socialista foi o livro O Caminho da

Servidão (1944). A tese principal do livro é que se a sociedade entregar o controle dos meios

de produção ao Estado, mesmo que em condições democráticas, vai acabar levando

ultimamente à perda de liberdades individuais e dominação da ideologia estatista, porque a

ideologia estatista teria que passar por cima do indivíduo para realizar suas políticas. Para ele,

a liberdade individual é inviolável18, porque só através dela uma sociedade com um mercado

16 Para mais informações, ver MEDINA (2006). 17 Ele também colocou o problema de incentivos, abrindo caminho para a pesquisa da teoria da escolha pública, que não é o foco do presente trabalho. 18 Para ele, uma das funções necessárias do Estado é garantir a liberdade individual, ao, por exemplo, impedir energicamente a formação de monopólios (diferente do que vários economistas austríacos argumentam, Hayek admitia a possibilidade de monopólios, talvez seja por isso que ele afirmou que “nada tenha sido mais prejudicial

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23

competitivo pode florescer. Embora neste livro ele não tenha tocado muito na questão do

conhecimento, seus pressupostos estão implícitos, como quando fala que a concorrência é um

método de coordenação de esforços, sem intervenção coercitiva (HAYEK, 1990, p. 58).

O saldo do debate foi que Lange provou que uma economia socialista planificada poderia

funcionar teoricamente, tanto é que posteriormente, em 1967, ele escreveu que simplesmente

“podia-se colocar as equações simultâneas num computador eletrônico e obteríamos a solução

em alguns segundos” (LANGE, 1967, p. 158). Porém, pode parecer fácil falar, mas a crítica

de Hayek ainda é relevante na era da economia digital. Medina (2006), ao comentar sobre o

fracasso do projeto Cybersyn, fala que “[o] Trabalho, não se comportou como um fator de

produção, mas como um corpo de indivíduos auto-conscientes capazes de criticar e resistir ao

sistema.” Como o mercado é um sistema no qual os indivíduos estariam mais preparados a

reagir em resposta a choques imprevistos, ainda seria melhor do que uma economia planejada.

E então, como o mercado é uma ordem que não necessita de um planejador, seria capaz de se

auto-regular, com isso lançando com isso as bases do conceito de ordem espontânea, que ele

desenvolveria em alguns anos após o fim da Segunda Guerra Mundial.

3. O papel do indivíduo

Na visão econômica de Hayek, o indíviduo tem um papel importante, como se fosse um tijolo

na construção de um prédio. De acordo com Caldwell, Hayek tinha uma noção de

individualismo metodológico bem diferente do modelo neoclássico. Ele, Hayek, não

acreditava que o Homo oeconomicus deveria ser adotado como base de análise teórica, por ser

irreal e levar ao conceito de competição perfeita que, na opinião dele, empobrecia a análise

à causa liberal... do que o laissez-faire” (HAYEK, 1990, p. 39). Caldwell (2003) sugere que Hayek não aprovaria eventos como a mal-fadada privatização russa pós-soviética.

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24

econômica ao induzir a um entendimento falho de competição. Para Hayek o indivíduo não é

perfeitamente racional, não tem informação incompleta, mesmo que persiga seus próprios

interesses não precisa ser sempre considerado egoísta, seus gostos e preferências não são

estáveis; e o individualismo deveria levar a uma teoria da sociedade (CALDWELL, 2002, p.

289, 290). Apenas duas proposições pertencentes ao conceito de Homo oeconomicus são

mantidas: a idéia a origem dos gostos e preferências não é importante, pelo menos para a

maior parte da análise econômica, e a visão de que no indivíduo é onde começa a análise

social.

Caldwell também argumenta que Hayek não era muito focado no individualismo, preferindo a

análise social de agregados por meio do processo evolucionário de ordem espontânea; nessa

perspectiva “os indivíduos estão lá, mas eles são mantidos implicitamente” (ibid.). Hayek

escreveu poucos textos que falavam diretamente sobre o individualismo19, mas a preocupação

dele com o indivíduo é patente.

Em seu artigo Individualism: True and False, ele argumenta que o termo “individualismo” é

passível de muita distorção, a ponto de ele declarar: “quase me arrependo de relacionar um

termo tão abusado e pouco entendido com os ideais em que acredito” (HAYEK, 1980, p. 3).

Neste artigo ele também afirma que a primeira coisa a ser dita sobre o verdadeiro

individualismo é que é “uma teoria da sociedade, uma tentativa de enterender as forças que

determinam a vida social do homem” (ibid., p. 6, grifo no original). Ele utiliza esse argumento

para refutar o que considera um conceito errôneo de individualismo, o que postula que os

indivíduos devem ser considerados como unidades isoladas, sendo autossuficientes. Essa

noção de individualismo possibilita entender o indivíduo como um agente que interage com

19 Caldwell diz que ele só cita o termo “individualismo metodológico” apenas uma vez em toda a sua obra.

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25

todos a sua volta e essa interação é o que possibilita a formação de um sistema complexo

através do processo de ordem espontânea, daí a importância implícita do indivíduo na obra de

Hayek. Galeotti (1985, p. 178) escreve que “A teoria social de Hayek afirma que o indivíduo

isolado, sem regras e elos que agem como ligações com o contexto e o ambiente, perderia sua

identidade e entendimento comum; daí, a liberdade resultante seria desprovida de qualquer

significância.”

Aliás, a importância do indivíduo se verifica porque, para Hayek e para a Escola Austríaca em

geral, o equílibrio ocorre no nível individual, só tem um significado claro quando “aplicado às

ações de um indivíduo” (HAYEK, 1980, p. 36). De fato, Ludwig Lachmann, outro

representante Austríaco, escreveu que “a noção de equilíbrio geral deve ser abandonada, mas

a de equilíbrio individual é para ser retida a todos os custos. É simplesmente equivalente à

ação racional” (apud CLARK, 1994). As ações de um indivíduo devem estar em equilíbrio

com as de outro, porque só assim as transações podem ocorrer e a ordem social se realizar.

A análise social, então, só ganha sentido se considerar a sociedade como um sistema

complexo, como se fosse um sistema orgânico20, chegando a um resultado através das

interações e o mercado é um dos lugares onde os agentes interagem, e mudanças no

conhecimento relevante e informações fazem com que ocorram mudanças na ordem social,

que será o próximo tópico.

4. Liberdade e informação

Como a quantidade de conhecimento relevante é diferente para cada indivíduo, Hayek conclui

que,

20 Como discutiu-se na apresentação dos modelos de jogos evolucionários e computacionais, no primeiro capítulo.

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26

...praticamente todo indivíduo tem alguma vantagem sobre todos os outros porque ele possui uma [quantidade] de informação única à qual pode dar um bom uso, mas cujo uso pode ser feito apenas se as decisões a esse respeito são deixadas para ele ou se são feitas com sua cooperação ativa (HAYEK, 1948, p. 80).

Ribeiro (2002) analisou a obra de Hayek sobre a ótica da teoria da informação21 e concluiu

que, pelo processo de interação mercadológico, o nível de informação de uma sociedade é

aumentado. O mercado seria um processo de descoberta e o sistema de preços a sua

linguagem. Como há um feedback negativo, quando o indivíduo não tem suas expectativas

realizadas, e um custo enorme de ajustamento22, opta-se várias vezes por restringir a

liberdade, existindo um trade off entre lucratividade e nível de certeza, ou seja, quanto maior

a certeza, menor o nível de lucros. Como é colocado, “A restrição à liberdade reduz

informações inesperadas; portanto, protege o estoque de informações do observador, mas

restringe o conhecimento do mundo exterior” (RIBEIRO, 2002, p. 115). Hayek basicamente

acreditava que a liberdade suprida pelo mercado faria com que os custos decorrentes da

presença mínima, ou até mesmo ausência de interferência governamental fossem suprimidos.

5. A ordem espontânea para Hayek em Direito, Legislação e Liberdade

O primeiro volume de Direito, Legislação e Liberdade (DDL) foi publicado em 1973 e

representa a tentativa de Hayek de criar diretrizes para uma sociedade baseada no liberalismo.

A importância dessa obra para o presente trabalho é que nela há uma definição mais

amadurecida de ordem espontânea e sua aplicação para aquilo que Hayek tinha em mente

como modelo de sociedade.

21 Devido aos seus estudos sobre conhecimento e informação durante o período de debates das décadas de 1930 e 40, Hayek, como já demonstrado, desenvolveu trabalhos precursores da teoria da informação. 22 Nas palavras citadas pelo autor, “o mapa não é o território”, ou seja, teria que haver uma mudança muito grande no “mapa”, isto é, a reação do indivíduo frente a mudanças no “território”, isto é, condições econômicas.

Page 27: Hayek versus Polanyi: Espontaneidade e Desígnio no Capitalismo

27

Para Hayek, existem duas maneiras de considerar as estruturas das atividades humanas: o

racionalismo construtivista e evolução da sociedade. Ele considera a primeira perspectiva

como sendo imprópria para a análise social. O racionalismo construtivista23 teria sua origem

no pensamento de Descartes, mas sua origem pode ser traçada até a filosofia grega antiga24.

Para Descartes “a razão se definia como dedução e lógica a partir de premissas explícitas,

ação racional veio também a significar apenas aquela ação inteiramente determinada pela

ação conhecida e demonstrável” (HAYEK, 1985, p. 4). Com isso, podemos inferir que uma

instituição elaborada de acordo com um planejamento matemáticamente25 explícito deveria

ser superior. A ação racional e intencional do ser humano poderia criar instituições melhores e

substituir as antigas que, derivadas de costumes e tradições, seriam deixadas de lado se não

pudessem ser incluídas, pois elas também seriam derivadas de um planejamento antigo e que

provavelmente estaria ultrapassado.

É exatamente por isso que Hayek rejeita esse modo de pensar, explicando que muitas

instituições da sociedade resultavam, na verdade, “de costumes, hábitos ou práticas” (p. 5).

Devido ao fato de que a sociedade é regida por fenômenos complexos, é impossível ter

controle sobre todos os fatos relevantes26.

Para fazer uma explicação melhor sobre o desenvolvimento das instituições, ele recorre à

teoria da evolução darwiniana27 como modelo para explicar a formação de instituições, um

modelo de evolução cultural. Como os organismos evoluíram de acordo com as condições

23 Termo criado por Hayek e usado como umbrella term apenas, pelo que parece, pelos seus seguidores. 24 Principalmente Aristóteles, que pregava a superioridade da razão sobre os sentidos (ver RIBEIRO, 2002). 25 Lembrando que Descartes também era matemático e é creditado por ter elaborado o plano cartesiano e a geometria analítica. Levar para a política os seus avanços na área matemática seria meramente um passo lógico de sua filosofia. 26 Como foi discutido anteriormente. 27 Ou, como diria Caldwell, lamarckiana, embora Hayek tenha se referido à darwiniana.

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28

ambientais únicas e complexas e seria impossível prever a direção da linha evolucionária28,

ele fez uma adaptação para explicar a cultura e instituições. Na sociedade, as condições são

dadas pelo ambiente e pelo desenvolvimento das normas e são transmitidas de indivíduo para

indivíduo, de geração em geração, e a permanência de uma instituição é justificada pela

utilidade que gera ao grupo. As normas que regem a sociedade podem ou não ser verdadeiras

no sentido cartesiano, não há como saber exatamente (ibid. p. 15).

Com isso Hayek conclui que há uma falsa dicotomia entre “artificial” e “natural” existente

desde os filósofos gregos29. Porém, essa dicotomia é falsa no sentido em que existe uma

terceira categoria de fenômenos que, utilizando as palavras de Adam Ferguson, “são resultado

de ação humana, mas não de intenção humana” (ibid. p. 17; original30, FERGUSON, p. 222).

Para Hayek, pode se dividir o conceito de ordem em dois tipos, emprestando os termos

gregos: taxis, para designar ordenamento planejado, chamado por nós de “organização”, e

kosmos, chamada por nós de “ordem espontânea” ou até mesmo “organismo”. As

organizações seriam criadas por intervenção e planejamento humano, e seriam exógenas às

interações sociais. Um exemplo disso seria a organização de um exército, é impossível fazer

com que os soldados ajam independemente um do outro sem sofrerem grandes baixas. Por

outro lado, a ordem espontânea é o foco de Hayek. A importância do conceito reside no fato

de que, como já foi explicado ao longo do trabalho, a ordem é obtida através da interação

individual de milhares de indivíduos, sem que isso crie uma situação de anarquia.

Ambas as ordens devem cooperar,

28 Hayek provavelmente consideraria projetos como a série Futuro Selvagem não muito diferentes da astrologia. 29 Os termos gregos eram physis e thesis (ou nomó), que significavam, respectivamente, “por natureza” e “por convenção”. 30 Na verdade, Ferguson atribui essa frase ao cardel Jean Gondi de Retz (1612-1679).

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29

“Não há dúvida de que para muitas tarefas limitadas a organização é o método mais poderoso de coordenação eficaz, porque nos permite adaptar muito mais plenamente a ordem resultante aos nossos desejos, enquanto nas ocasiões em que, dada a complexidade das circunstâncias a serem consideradas, temos de confiar nas forças que propiciam uma ordem espontânea, [pois] nosso poder sobre o conteúdo específico dessa ordem é necessariamente limitado” (ibid. p. 48).

Porém, para Hayek, as organizações estão integradas numa ordem espontânea maior e mais

complexa que forma a sociedade e é essa complexidade, Hayek argumenta, que faz com que o

programa racionalista construtivista falhe em produzir uma sociedade livre.

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30

A INTERVENÇÃO HUMANA NA ORDEM ATUAL

A sociedade do século XVIII resistiu, inconscientemente, a qualquer tentativa de transformá-la em mero apêndice do mercado. Karl Polanyi. Não há ordem espontânea. Warren Samuels.

Falamos até aqui sobre a ordem espontânea, que, para seus defensores, emerge naturalmente.

Sendo essa uma afirmativa ampla e que envolve vários aspectos da vida, ela não pode ser um

consenso. O que se exporá nesse capítulo será o contraponto a essa perspectiva: a visão de que

as instituições surgem fundamentalmente como resultado de um processo de criação do

próprio homem31. Desde que Adam Smith enunciou seu princípio da mão invisível, sempre

houve críticos a esse conceito. Malthus, em seu livro Principles of Political Economy,

escreveu que é impossível para um governo deixar estritamente que as coisas tomem seu

curso natural. Além disso, ele também argumentava que a existência de eventos de excesso de

oferta, ou superprodução, evidenciam as limitações do mercado em se auto-regular

(HODGSON, 1996, p. 67).

1. Crítica plural à ordem espontânea

Marx (1996) afirma que, para que o processo de acumulação primitiva consiga se efetivar e

expandir a acumulação capitalista, é necessário criar uma legislação específica. “A burguesia

nascente precisa e emprega a força do Estado para ‘regular’ o salário, isto é, para comprimi-

lo dentro dos limites convenientes à extração de mais-valia, para prolongar a jornada de

trabalho e manter o próprio trabalhador num grau normal de dependência” (MARX, 1996, p.

359). Portanto, à medida que o governo vai sendo cada vez dominado pela burguesia, mais as

31 Embora nesse capítulo não seja analisado o planejamento econômico “racionalista construtivista”.

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31

leis vão moldando a sociedade à imagem capitalista, na qual “a situação do trabalhador,

qualquer que seja seu pagamento, alto ou baixo, tem de piorar” (idem, p. 275). Nessa visão, o

mercado não é criado por meio de um processo de ordem espontânea, mas impera a imposição

dos mecanismos capitalistas.

Bromley (2006) considera as instituições como sendo a arquitetura da existência social e

argumenta que, de forma um tanto hostil, o conceito de ordem espontânea não passa de “um

mecanismo de conto de fadas” (p. 41)32. “Todo mercado é uma construção social, e mudanças

nos parâmetros que o constroem – novos arranjos institucionais – também são criações

humanas” (p. 33). Para ele, de maneira semelhante à defendida por Hayek, a ação coletiva

também é importante para as relações de mercado e sociais em geral, “a economia está

sempre no processo de se transformar” (p. 40)33 e também rejeita a abordagem de equilíbrio

geral. Porém, a ação coletiva só pode florescer sob um regime legal, com participação ativa

do governo, para garantir direitos de propriedade e criar novas instituições econômicas.

Devido à complexidade e à existência de outros tipos de transações além da barganha, a saber,

as gerenciais e de racionamento (seguindo a classificação proposta por Commons), o governo

deve interfirir, criando instituições para lidar com elas34. Por isso, “as instituições constituem

uma ordem construída” (p. 41). Também “costumes evoluem para leis quando há razões

suficientes para essa evolução” (p. 48). Diferente do que é comumente argumentado, Bromley

sugere que as instituições não servem apenas para limitar a ação humana, mas também servem

para expandi-la, criando um novo campo de ação humana, em outras palavras, elas podem

aumentar, ao invés de diminuir, a liberdade do indivíduo.

32 Tanto é que o autor não pára para analisar o conceito e suas implicações, trata-o como algo, de certa forma, não importante para o pensamento econômico, apenas um erro, na melhor das hipóteses. 33 O que também pode ser inferido do pensamento de Hayek. 34 Porém, Bowles (2002) construiu um modelo que indica que os direitos de propriedade podem ter surgido espontaneamente, sem interferência de um governo.

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32

Em uma linha de argumentação parecida, Sandefur (2009a) conclui que não há como

distinguir realmente entre ordem construída, ou idealizada por meio do ‘racionalismo

construtivista’, e ordem espontânea, porque essa avaliação depende do ponto de vista do

observador. Ele dá um exemplo: uma escola tem que construir caminhos num gramado para

os alunos se movimentarem de um lugar para outro. Normalmente um arquiteto planejaria os

caminhos de acordo com o que achar melhor, mas um arquiteto confiante nos princípios de

Hayek esperaria um ano para observar onde a grama estaria mais pisoteada pelo ir e vir

espontâneo dos alunos para só então despejar o concreto. O problema é que o arquiteto tem

que despejar o concreto algum dia e, no momento em que ele fizer isso, ele poderá ser

considerado um ‘racionalista construtivista’ que interfere na ordem criada espontâneamente.

Para Sandefur, o grande problema da ordem espontânea é que, apesar de ser um excelente

conceito descritivo, não tem poder normativo algum e não há como condenar a coerção,

porque a coerção pode estar presente em arranjos ditos espontâneos. “A razão pela qual

planejamento centralizado e coerção governamental são errados não é porque eles perturbam

a ordem espontânea e sim porque a liberdade é um bem, um bem para o qual todos têm o

direito de ter.” (SANDEFUR, 2009b)35.

2. O pensamento de Karl Polanyi

Karl Polanyi nasce em 21 de outubro de 1886, em Viena, antigo Império Austro-Húngaro,

filho de pais húngaros, também intelectuais nobres. Seus irmãos também foram intelectuais,

sendo que o mais conhecido foi Michael Polanyi, citado anteriormente. Em 1909, forma-se

em Direito pela Universidade de Budapeste, e dedicou-se à economia e filosofia após isso.

Durante a primeira guerra mundial entra no exército austro-húngaro como oficial. Depois da

35 Curiosamente, as visões ideológicas desses três autores, Marx, Bromley e Sandefur, são bem diferentes. O primeiro escreve com base na economia política socialista, o segundo com base no institucionalismo antigo e o terceiro no conservadorismo clássico americano.

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33

guerra, envolve-se em debates econômicos, como jornalista e economista. Com a ascensão do

fascismo em seu país, muda-se para a Inglaterra, e lá, durante a década de 1940, começa a

escrever A Grande Transformação. Diferente de Hayek, que tem uma obra muito mais difusa,

a popularidade de Polanyi se concentra nessa única obra, embora ele tenha escrito mais livros

(e também esta é a única obra de Polanyi traduzida para o português).

Para Polanyi, uma economia de mercado “é uma economia dirigida pelos preços do mercado e

nada além dos preços do mercado” (POLANYI, p. 62). Porém, ele argumenta que nenhuma

sociedade teve sua economia controlada pelo mercado até a Revolução Industrial. A economia

era parte da sociedade, por isso não haveria propensão a buscar exclusiva e principalmente

lucros, mas haveria também uma preocupação social com a situação de todos os membros;

dentro dessa perspectiva, não seria correto falar em uma propensão natural à barganha, tal

como sugerira Adam Smith. A troca entre as sociedades teria começado através

principalmente da guerra e da pirataria, mas teria evoluído para o mercado, uma forma de

adquirir bens mais pacífica em vários casos. Polanyi enfatiza que os mercados existem desde

as economias primitivas, porém seu papel estava controlado pela sociedade. Mas

posteriormente, com o desenvolvimento da sociedade de mercado, o fenômeno se inverteu,

“em vez de a economia estar embutida nas relações sociais, as relações sociais estão

embutidas na economia” (idem, p. 77).

O mercado auto-regulado estava fora das preocupações dos formuladores de política até o fim

do século XVIII, e só pode ser formulado quando a parte econômica se separou da sociedade,

conforme referenciado no parágrafo anterior. Isso só foi possível graças à transformação da

terra, do trabalho e do dinheiro em mercadorias, mercadorias que Polanyi denomina como

fictícias, pois “não foram feitas para serem compradas e vendidas”. Isso também enfatiza a

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34

artificialidade da economia de mercado, que só poderia ser alcançada através de mudanças

institucionais dirigidas pelo governo. O argumento da espontaneidade do mercado é utilizado

para justificar aqueles que detêm o poder no mercado (CLARK, 1993) e para obter uma

desculpa para o excesso de desigualdade em uma sociedade. No fim, o mecanismo de

mercado auto-regulado seria “uma ofensa à liberdade e dignidade humana”

(THOMASBERGER, 2006).

Polanyi não hesitou em falar o quanto o pensamento econômico liberal fracassou no

entendimento da Revolução Industrial, de como ela separou a economia da sociedade.

“Animada por uma fé emocional na espontaneidade, a atitude de senso comum em relação à

mudança foi substituída por uma pronta aceitação mística das consequências sociais do

progresso econômico, quaisquer elas fossem” (POLANYI, p. 51, grifo nosso). A linha de

argumentação de Polanyi é semelhante àquela dada por Marx, citada anteriormente36, já que

assim como Marx, utiliza a sociedade inglesa de meados do século XIX como ponto de

análise.

Para Polanyi, a sociedade comercial moderna não surgiu de um processo evolucionário, mas

de uma imposição das classes mais ricas. Ele reconstrói a história britânica, porque lá é onde

que foi desenvolvida a sociedade comercial e a Revolução Industrial. A começar pelo século

XVI, nos cercamentos foi onde surgiram as primeiras sementes da Revolução Industrial, na

medida em que terras eram cercadas, acabando com as terras comuns, para a criação de

pastagens. Posteriormente, criou-se uma abundância de lã que seria usada, posteriormente,

36 Embora Polanyi critique os marxistas por terem uma abordagem semelhante à liberal para analisar o fenômeno (ver POLANYI, 1947). Polanyi também parece ter rejeitado a teoria do valor objetivo, fundamento da economia marxista, quando falou que a maior contribuição do utilitarismo seria “que o valor provinha da utilidade” (POLANYI, 2000, p. 146), o que faz sentido quando ele trata das mercadorias fictícias.

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35

para fomentar a Revolução Industrial a partir do setor têxtil, ao custo do desmonte do sistema

anterior.

Nesse ponto, Polanyi aponta que, graças à intervenção estatal, a Inglaterra pôde suportar o

processo de transição provocado pelos cercamento, socorrendo as vítimas e impondo

legislação (e até mesmo desrespeitando-a) para poder controlar o processo. Porém essas ações

da Coroa prejudicavam aos capitalistas, que necessitavam do livre-comércio, e eles chegaram

ao poder com Cromwell. Existia uma clara contradição entre progresso econômico e

desarticulação social, a transição estava impondo um custo considerável sobre a sociedade

inglesa através do desmonte de velhas instituições e criação de novas.

Porém, mesmo na Revolução Industrial, a sociedade não permaneceu passiva em relação às

mudanças, houve “um movimento bem estruturado para resistir aos efeitos perniciosos de

uma economia controlada pelo mercado” (idem, p. 98). Esse processo, de impor restrições,

quer seja pela regulação ou outros instrumentos com ou sem a presença do poder estatal, às

mercadorias fictícias, à medida que o comércio nacional e internacional vai se desenvolvendo,

é chamada de duplo movimento, “a auto-organização da sociedade, algumas vezes com a

ajuda do governo e outras vezes sem, para proteger o povo e a terra contra as forças

desintegradoras do sistema de mercado” (Gregory Baum, Karl Polanyi on Ethics and

Economics, apud ÖZEL, 2007). E através do duplo movimento, o custo de transição da

sociedade poderia atingir níveis suportáveis, que não precisassem envolver a sociedade em

uma conflagração, como uma guerra civil ou outro tipo de crise social37.

37 Obviamente, houve registros de agitação social na Inglaterra do século XIX, mas, em nenhum momento, houve ameaça de guerra civil, nem de guerra mundial, conforme Polanyi demonstra no início do livro. O conceito de duplo movimento deve ter alguma influência de Marx, porém para este autor a sociedade capitalista iria se enfraquecer e cair em si mesma devido às suas contradições, à medida que o proletariado fizesse uma revolução para tomar os meios de produção (MARX, p. 381). A história demonstrou que a reação capitalista era muito mais eficiente em atender as demandas da sociedade por causa, exatamente, do duplo movimento, que

Page 36: Hayek versus Polanyi: Espontaneidade e Desígnio no Capitalismo

36

Para Polanyi, o mercado auto-regulado só começou a tomar força com Quesnay e os

fisiocratas38, mas foi a partir de John Townsend e sua Dissertation on the Poor Laws que o

tema se tornou relevante. Nesta obra ele demonstrou que havia equilíbrio entre predador e

presa num ilha do Pacífico39 e que isso deveria ser aplicado à sociedade, e ela precisaria do

mínimo de governo, pois as necessidades humanas regulariam a si mesmas e aos habitantes, é

o que haveria de ser natural. (Porém, como Polanyi explica e foi referenciado no primeiro

capítulo deste trabalho, a ascenção de Bentham e dos utilitaristas colocou o laissez-faire de

lado, para dar prioridade à intervenção ativa)

Assim, lentamente o liberalismo se tornou em um credo. Começou apenas como uma tentativa

de eliminar algumas leis e regulamentações na produção até atingir a economia inteira. Mas,

repetindo, nada disso evoluiu naturalmente. “As décadas de 1830 e 1840 [sic] presenciaram

não apenas uma explosão legislativa que repelia as regulamentações restritivas, mas também

um aumento enorme das funções administrativas do estado” (idem, p. 170). Havia

participação firme do estado para atingir um nível de regulação que tornasse o laissez-faire

um princípio ativo da economia. Definitivamente um paradoxo, que “foi sobrepujado por um

outro. Enquanto [que] a economia laissez-faire foi o produto da ação deliberada do estado, as

restrições subsequentes ao laissez-faire se iniciaram de maneira espontânea. O laissez-faire

foi planejado; o planejamento não” (idem, p. 172). No fim, Polanyi conclui, os liberais

tiveram que se voltar contra o liberalismo. O duplo movimento estava funcionando a todo

vapor.

permitiu que a sociedade capitalista e um mercado relativamente aberto existisse, pelo em alguns países. Também, ironicamente, a história demonstrou que os regimes socialistas caíram em si mesmo por causa de suas contradições muito mais rapidamente do que os regimes capitalistas. 38 Ver capítulo 1 deste trabalho, embora Mandeville fosse o primeiro a causar agitação com essa idéia (ver KAYE, 1922. Eram comuns as fogueiras feitas com exemplares de seu livro). Porém os fisiocratas foram os primeiros a aplicar em políticas públicas. 39 Precedendo o conhecido modelo Lotka-Volterra na biologia.

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37

No fim, Polanyi irá argumentar que esse processo de duplo movimento foi o que destruiu a

sociedade criada no século XIX, danificada durante a Primeira Guerra Mundial e solapada

durante a Grande Depressão e a ascenção do fascismo e do socialismo, que seriam realizações

do duplo movimento. Portanto, o mercado auto-regulado seria um construto racionalista40

(idem, p. 290).

“A história econômica mostra que a emergência de mercados nacionais não foi, de forma alguma, o resultado da emancipação gradual e espontânea da esfera econômica do controle governamental. Pelo contrário, o mercado foi a consequência de uma intervenção consciente, e às vezes violenta, por parte do governo que impôs à sociedade a organização do mercado” (idem).

E foi a ideologia de mercado que, para o autor, ao recusar-se a reconhecer a realidade

sociedade41, possibilitou a abertura de caminhos para o facismo e o socialismo chegassem ao

poder, porque estes reconheciam a realidade da sociedade e, para isso, eles rejeitam o

postulado da liberdade. O mercado estava ameaçando tanto a sociedade que ela preferiu trocar

a liberdade autônoma e pessoal pela proteção do Estado. Polanyi argumenta que uma

sociedade na qual o mercado volta a participar da esfera social é possível preservar todas as

liberdades, incluindo as que são defendidas pelos liberais, de forma coletiva, com a inclusão

de todos indivíduos na sociedade, moldada pela vontade e desejos humanos. Esta seria a real

Grande Sociedade.

40 Qualquer semelhança com o conceito de “racionalismo construtivista” de Hayek pode não ser mera coincidência. 41 Quando Thatcher disse que “não existe essa coisa de sociedade”, era exatamente isso a que Polanyi se referia. O liberalismo tende a considerar a sociedade como uma multiplicidade, isto é, apenas o indivíduo tem existência real, e as ordens sociais são resultado das interações individuais (CLARK, 1993).

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38

CONCLUSÃO

Por fim, chega-se à conclusão deste trabalho e se pergunta novamente a questão: porque

comparar dois autores tão distintos? Tanto Hayek quanto Polanyi eram contemporâneos

durante a era final do Império Austro-Húngaro (Hayek era austríaco e Polanyi húngaro);

ambos serviram no Gemeinsame Armee durante a 1ª Guerra Mundial e começaram a estudar

economia para tentar prover soluções para a pobreza da região vienense, em que havia um

contraste entre a erudição e opulência das classes altas e pobreza nas classes baixas, durante o

pós-guerra; ambos se identificaram com a resposta socialista durante o início da década de

1920, sendo que posteriormente tomaram caminhos diferentes. Ambos adotaram o

expressivismo alemão, que, de acordo com Özel, estuda as instituições como realizações de

expressões sociais42. Ambos tiveram que se exilar da sua terra natal e adotaram a Inglaterra

como morada e, posteriormente, a América do Norte. Ambos publicaram suas obras-primas

em 1944, eram ardentes defensores da democracia e estudaram a mudança institucional,

evitando cair naquilo que Midgley chamou de “mito da escada rolante43”, de que toda

mudança, tanto biológica quanto tecnológica, é também moral e destina a humanidade ao

progresso, “um processo inexorável de melhorias” (MIDGLEY, p. 6). Migone (2006) resumiu

bem porque as comparações entre ambos são relevantes,

“... além do fato de que ambos se ateram à suas teoria a ponto de aceitarem as consequências mais duras sem fazer concessões, como será explicado abaixo... as tradições polanyiana e hayekiana representam dois pólos de tensão inerente no [sistema de] mercado capitalista moderno: a necessidade de conciliar liberdade individual com estabilidade social, assegurar a acumulação de capital e a

42 Ver Özel (2007) para mais detalhes. 43 Apesar de que ambos sugeriam políticas que melhorariam a situação humana, como em Direito, Legislação e Liberdade, e o último capítulo de A Grande Transformação, eles não colocavam suas sugestões como movimentos naturais da humanidade; lembrando que a ordem espontânea nos deu costumes como o sati e o duplo movimento nos deu o fascismo.

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39

reprodução da classe trabalhadora, tudo de acordo com as restrições da democracia liberal e economia de mercado” (MIGONE, p. 106)

Isso também evidencia as disparidades entre os dois falantes de língua alemã. Hayek era um

defensor intransigente do sistema de mercado livre, defendia a intervenção mínima do Estado

em todas as áreas da sociedade (porém é comumente confundido com um neoclássico),

embora ficasse longe de ser um representante da encarnação mais radical do liberalismo, o

anarco-capitalismo. Para Hayek, um Estado forte era um Estado mínimo, a economia poderia

prover um nível de bem-estar maior se não houvesse interferência na economia, nem mesmo

para a criação de moeda (Hayek propôs um sistema complexo em que os bancos iriam

competir pela criação de moeda, em Desestatização do Dinheiro). Hayek também rejeitou a

idéia de justiça social por completo, o que é uma consequência lógica e inegável de sua

filosofia44. Michael Polanyi (1949) criticou-o por “falar a uma sociedade apavorada com o

desemprego enquanto [ele, Hayek] fica indiferente a esse problema.”

Polanyi, por outro lado, era um socialista não-marxista; ele defendia que se a sociedade

deixasse o mercado se auto-regular, estaria cavando a própria cova. Seu principal argumento

era que a sociedade se defende da intrusão do mercado nas esferas da vida social através do

processo de duplo movimento, e esse argumento sobreviveu até mesmo a falhas de sua

abordagem. A principal falha é que descobertas arqueológicas45 após a Segunda Guerra

Mundial dificultaram sua argumentação sobre o papel do mercado nas sociedades antigas, já

que essas descobertas denunciavam um mercado bem mais desenvolvido e até mais auto-

44 “Para Hayek, as reivindicações por ‘justiça social’ não estão de acordo com a disciplina adquirida sobre a qual se constrói a riqueza da sociedade. O exame que ele faz do conceito de ‘justiça social’ leva-o a rejeitar totalmente essa noção enquanto sóldo princípio da ação [...] ‘Justiça social’ não é, de forma alguma, a expressão inocente da boa vontade para com os menos afortunados que normalmente aparenta ser, mas sim a demanda, por parte de grupos específicos, de uma posição privilegiada. Talvez pior que isso, na opinião de Hayek, é ela oposta da verdadeira justiça, que é orientada por regras gerais aceitas por todos e imparcial quando diante dos diversos indivíduos e grupos.” (BUTLER, 1987, 107-108). 45 Hejeebu & McCloskey (1999) citam vários estudiosos das culturas antigas que encontram pouca evidência de preços largamente administrados. North (1977) reconsidera o exemplo dos Kula, que Polanyi usou, e dá uma interpretação diferente, baseado em estudos posteriores.

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40

regulado do que ele supunha. Polanyi era um primitivista, que acreditava que “fatores

culturais dominavam a economia e em sociedades antigas, a economia estava inserida no resto

da sociedade e servia para outros propósitos além da geração de lucros” (MUUKONEN,

2009), e o primitivismo é largamente rejeitado hoje em dia. Peter Drucker, um dos maiores

teóricos em administração e amigo pessoal de Polanyi, observou que, no fim de sua vida, ele

se tornou um homem bastante desapontado (CARLSON, 2006).

Este trabalho conclui que há, de fato, instituições que surgem através do processo de ordem

espontânea, mesmo que não exista uma definição única de ordem espontânea. Utilizando-se

novamente da definição de Adam Ferguson que, apesar de ter sido proposta no século XVIII,

é a mais simples e explicativa das definições, ordem espontânea seria o processo pelo qual

certas instituições surgem através da ação humana, mas não de sua vontade. Isso porém não

nos permite determinar até que ponto as instituições são criadas por um processo de ordem

espontânea, isto é, que partes da sociedade devem ser deixadas para se auto-regularem e que

partes devem ter intervenção ativa do governo ou qualquer outro mecanismo de coerção,

como cooperativas46?

Porém, uma última conclusão é que nada deve ser subestimado; o mercado, se estiver

funcionando relativamente bem, até mesmo quando apresenta um certo nível de falhas de

mercado, realmente é um lugar no qual trocas pacíficas e justas para as partes podem se

realizar sem qualquer intervenção, como diria Coase. A principal decorrêcia dessa visão é que

isso permite aos indivíduos agirem independentemente uns dos outros, ou seja, isso dá

liberdade para agir como eles bem entenderem, o que emanicipa o indivíduo. Talvez seja por

isso que socialistas como Lange defenderam uma certa autonomia aos mercados, a ponto de

46 Boehm (1994, p. 300) menciona que a única instituição a qual pode se afirmar que há consenso em dizer que surgiu e evoluiu por ordem espontânea é a linguagem.

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41

considerar o mercado “um mecanismo de computação [de preços] da era pré-eletrônica”

(LANGE, 1967), e que seus defensores defendam o livre mercado tão intransigentemente. E

devido a essa necessidade de preservar a autonomia individual, a sociedade se organizaria

para deixar o mercado na sua área designada, ocorrendo o processo de duplo movimento,

descrito por Polanyi47. Mecanismos de planejamento e coerção não são exclusividade apenas

do governo, como bem colocou Sandefur (2009), em seu exemplo comparando o governo que

determina que os empregados devem ter um plano de saúde e o executivo que determina que

seus empregados devem ter o mesmo, e a necessidade de governos é imprescindível48.

Como foi proposto anteriormente, um dos maiores defeitos da argumentação de Karl Polanyi

é a confiança no primitivismo. Apesar disso, em Sociologia, o duplo movimento não é

rejeitado por nenhuma das escolas rivais ao primitivismo; mais ainda, pode se argumentar que

o duplo movimento é um tipo específico de ordem espontânea, porque a contestação e a

resistência à penetração do mercado na vida social começam de forma descentralizada, nos

indivíduos e, a partir de mecanismos de propagação, como os estudados em BOWLES (2002),

que os indíviduos se dirigem a um ponto focal em questão e podem demandar proteção, seja

através de revolução ou legislação49. O reconhecimento de que o duplo movimento é

espontâneo poderia auxiliar a tapar buracos nas teorias dos dois austro-húngaros: o duplo

movimento teria uma base bem mais sólida do que o primitivismo e haveria uma justificativa

para dar espaço a questões sociais na teoria de Hayek, porque a demanda por justiça social

surgiria espontâneamente, de acordo com as suas próprias diretrizes.

47 Polanyi provavelmente ficaria horrorizado com livros como Freakonomics. 48 Até porque, de acordo com a teoria de evolução cultural hayekiana, pode se sugerir que o Estado evoluiu naturalmente, mas isso já não está no escopo do projeto. 49 Nota-se que aqui também ocorre o dilema de Sandefur aqui, a partir do momento que a ordem espontânea é reconhecida e instituicionalizada (cimentada), ela deixa de ser espontânea.

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42

Uma conclusão secundária do trabalho é que, como o Estado é o principal agente capaz de

atender às demandas da sociedade, seja por maior liberdade para a auto-organização dos

mercados ou por uma maior restrição à ação dos mesmos, ele não pode ser desconsidera, o

que faz com programas de pesquisa baseados ou com fim no anarquismo político

(anarcossindicalismo, anarco-primitivismo, anarco-capitalismo, entre outros) sejam

degenerativos, porque se o duplo movimento não ocorrer democraticamente, ocorrerá

autoritariamente, e isso foi o que Polanyi procurour demonstrar em A Grande Transformação,

explicar a ascensão do fascismo e do socialismo como resposta ao fracasso do capitalismo na

década de 1930, por isso a sociedade deve tomar cuidado com o próprio processo de duplo

movimento. Então, o anarquismo deve ser rejeitado como alternativa viável.

Espera-se que esta discussão evolua50 para realmente se entender o que está por trás das

instituições que temos hoje. Sugden (1988) enumera três razões para o estudo desse conceito:

a) através do mecanismo de preço e das convenções existentes em cada lugar, o mercado é um

lugar que esse conceito tem importância fundamental; b) possibilita o entendimento e a

criação de modelos com racionalidade limitada; c) o conceito ajuda a entender de onde

surgem as crenças da sociedade. Esse é um problema que envolve grande parte dos

fundamentos da sociedade e do capitalismo e utilizar argumentos orwellianos de direita boa,

esquerda ruim, e vice-versa, não faz com que o diálogo progrida.

50 Ainda está para ser escrito o livro A Theory of Spontaneous Order.

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43

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